Consulta em: https://hdl.handle.net/10216/145728


Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Especialização em Estudos Comparativos e Relações Interculturais
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
José Luís dos Santos Freitas
M
2022

José Luís dos Santos Freitas
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
2022

José Luís dos Santos Freitas
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho

Membros do Júri
Professor Doutor José Domingos de Almeida
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Professora Doutora Maria Luísa Malato
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Professora Doutora Maria de Fátima Outeirinho
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Classificação obtida: 16 Valores

Dedicatória
Ao meu pai, cuja bibliofagia insaciável moldou o meu caráter de leitor felizmente compulsivo.
À minha mulher Diva e minhas filhas Sofia e Cristina, pelo “mutualismo facultativo” que nos une e enriquece culturalmente.

Sumário
Declaração de honra .................................................................................................................3
Agradecimentos ...........................................................................................................................4
Resumo................................................................................................................................................ 5
Abstract ............................................................................................................................................. 6
Introdução........................................................................................................................................ .8
1. Das descobertas às opções............................................................................................ 13
1.1. Génese de uma consciência........................................................................................ 13
1.2. Sensibilização social…………………….……………………...................................……..…………….…..15
2. Apre(e)nder o Mundo......................................................................................................... 25
2.1. Pobreza e sofrimento...........……………………………………………………….……………………………….25
2.2. Revolta...................................................................................................................................... 28
2.3. Compreensão da humanidade............................................................................ 30
2.4. Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu…….………32
3. Castro e a Verdade: ficção e censura……..……..…………………………………..………..….43
3.1. A questão da ficcionalidade....………………………………………………………………………....…44
3.2.Postura de um novel humanista............................................................................ 47
Considerações finais .............................................................................................................68
Referências bibliográficas……………………………………………………………………………..……………..74

Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 22 de setembro de 2022
José Luís dos Santos Freitas
Agradecimentos
À minha família, pelo apoio que me deram e pelo orgulho que demonstraram pela prossecussão dos meus estudos, constantemente interrompidos pelas vicissitudes da vida. As suas manifestações de encorajamento foram importantes para vencer os obstáculos que se me foram deparando.
À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima da Costa Outeirinho, pelo Saber que partilhou comigo, pelo apoio demonstrado e — muito importante – pela sua jovialidade: um verdadeiro lenitivo que ajuda a, por vezes, restabelecer a auto-confiança perdida. A sua paciência, estímulo e boa-vontade ajudaram-me a lutar contra a maré, apesar de a corrente ser por vezes forte. Nunca foi uma tábua de salvação; em vez disso, ensinou-me a nadar.
A tod@s @s professor@s que me foram acompanhando no calcorreio pelos caminhos do Conhecimento, e com quem aprendi incontáveis e insuspeitadas singularidades. Bem hajam, também.

Resumo
Abordar José Maria Ferreira de Castro é, até certo ponto, repetir o que já foi questionado pelos investigadores que nos antecederam na árdua tarefa de decifração do autor e da sua obra. No entanto, a nossa investigação, se (assim o esperamos) bem conduzida, acrescentará algumas – embora ténues - centelhas de luz, que poderão guiar os biblionautas castrianos vindouros na demanda da razão para um projeto estético do escritor. Um objetivo desejável, mas de conclusão lenta e imprevisível.
Não nos podemos arrogar o privilégio do solevar definitivo do diáfano véu que cinge essa razão, a força e a mensagem de um daqueles que fazem parte do restrito grupo de ínclitos escritores portugueses que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Não podemos emular o Grande Arquiteto, arrogando-nos um Fiat Lux que afaste as trevas e dissipe quaisquer dúvidas sobre esta questão fulcral que abordamos. Poderemos, porventura, contribuir modestamente para a compreensão do trabalho ímpar e multifacetado de Ferreira de Castro, como ímpares e multifacetados serão os trabalhos de todos os grandes vultos literários da Humanidade.
A nossa focagem no autor de A Selva visa analisar a génese e o percurso ético do escritor, rendido à perspetiva de um novel humanismo universalista, ou seja, afastando a visão renascentista do homem como centro de um universo de etnia exclusivamente branca e masculina, onde os negros, os índios, as mulheres, as crianças e os escravos não tinham expressão. Em suma, um humanismo não democrático e excludente.
Seguindo os seus passos pelo planeta e pela literatura, tentaremos dissecar as causas e efeitos das suas ideias e credos, avaliando a sua — arriscamo-nos a dizer — pegada civilizacional e ética, a sua humanidade e os seus sonhos edénicos. Aventurar-nos-emos, em suma, a explicar quem foi Ferreira de Castro, qual a sua utopia e qual o seu legado às letras e ao Mundo.
Palavras-chave: Ferreira de Castro, ética, humanismo, estética.

Abstract
To address José Maria Ferreira de Castro seems to repeat what has been questioned by preceding researchers in the hard task of deciphering the author and his work. Still, our investigation, if successfully conducted (so we hope), may add some – certainly tenuous – sparks of light that may guide the future Castrian Biblionauts on the quest for the reason of the writer’s aesthetic project. Although rather desirable, it may have a slow and unpredictable conclusion.
We cannot brag from the privilege of lifting the light veil that covers that reason, the force, and the message of one of those men that are included among the strict group of illustrious Portuguese writers that due to great deeds have been freed from death. We cannot emulate the Great Architect by arrogating a Fiat Lux that dissipates the darkness and solve all the doubts about this central question. Nevertheless, it might be possible that we modestly contribute to the understanding of his unique and multifaced work – once unique and multifaceted are the works of all the great writers of Humankind.
When addressing to the author of The Jungle we try to analyze his genesis and ethic course rendered to the perspective of a universalist humanism that moves away the Renaissance look of Man as the center of an exclusively white and male universe where the Black, the Indian, the women, the children and the slaves had no expression whatsoever. In short, a nondemocratic exclusionary humanism.
Following the writer’s steps through planet and literature we shall try to dissect the causes and consequences of his ideas and beliefs, assessing his — we dare say — ethical and civilizational footprint, his humanity and his Edenic dreams. In the end, we shall try to explain who Ferreira de Castro was and which were his Utopia and his legacy to Letters and to the World.
Keywords: Ferreira de Castro, ethics, humanism, aesthetics.

O homem não é um animal solitário, e enquanto perdura a vida em sociedade, a realização de si mesmo não pode ser o supremo princípio ético.
Bertrand Russell
Introdução
O nosso escopo ao elaborar esta dissertação é o de procurar interpretar o modo como Ferreira de Castro, no seu percurso existencial, observa, interioriza e expõe a visão do seu mundo contemporâneo e dos lugares que visitou através do planeta, como ser humano e como europeu, assim como avaliar em que medida as questões intemporais como as injustiças sociais, a insensibilidade e a desumanidade de alguns sobre uma maioria ou minoria, consoante cada situação particular[1], se refletem nos seus testemunhos de viagens — Pequenos Mundos e Velhas Civilizações e A Volta ao Mundo, assim como nos romances Emigrantes, A Selva, Terra Fria, A Lã e a Neve e Eternidade
Não despiciendo, o restante conjunto da sua produção literária reflete também essas preocupações éticas, embora tenhamos escolhido prioritariamente as obras acima discriminadas por elas constituírem o grupo onde as questões focadas têm mais visibilidade. Hoje, como então, testemunhamos a pobreza, a miséria, a exclusão, a discriminação e mesmo a escravatura. Estas máculas sociais têm permanecido quase imutáveis e continuam a fustigar inexorável e generalizadamente o globo.
Ferreira de Castro não é um escritor renascentista; os seus ideais não se regem apenas pelo Humanismo medievo. Para ele, o sentido de Humanidade abarca os conceitos coetâneos a Thomas More e Petrarca, embora os exceda largamente, pois amplia a sua esfera a todos aqueles a quem esse humanismo primário excluiu: as minorias (étnicas ou outras), as mulheres, os escravos, e mesmo as crianças. O humanismo do autor é universalista, no mais cabal sentido do termo[2]. Garcia e Silva[3] resume assim as suas qualidades:
Ferreira de Castro manteve ao longo da vida grande coerência em matérias éticas e ideológicas fundamentais. Anarquista, antimilitarista, antirracista, anticlerical, antipatrioteirista, anticapitalista; anticolonialista, anti pena de morte, anti eleições[4]; pró-eutanásia, pró-amor livre”. (SILVA apud CARVALHO, 2017: 66-67)
Assim, procuraremos compreender a ética do escritor e determinar a sua postura estética através do seu percurso vital, ponderando que contribuição poderá ter tido o nascimento e infância breve no seio de uma família humilde, inserido num panorama social de quase analfabetismo, de uma típica aldeia beirã nos fins do século XIX. Mais importante ainda, em que grau a sua emigração para o Brasil, mais concretamente, para um local de morte iminente, de desenraizamento provável e de penúria garantida, denominado Seringal Paraíso, no Amazonas — local onde estabeleceria contacto com outro tipo alienígena de miséria e de exploração social —, contribuiu para a formação da sua personalidade humanista e para o seu apurado sentido de justiça.
Terá sido talvez esta abordagem primeva com um mundo que não o seu, o que incentivou o jovem Ferreira de Castro à produção livresca e, posteriormente, ao jornalismo. Assim, foi na sede do distrito, em Belém do Pará, local a que se dirigiu após abandonar a selva, desiludido e padecente de enorme incompletude existencial, que tomou o primeiro contacto com o mundo mediático das letras.
Farto da exploração e das injustiças que presenciou durante os quatro anos da sua permanência no seringal, Castro, prenhe de sonhos e parco de dinheiro, tentou progredir nesta cidade através do seu anseio de menino: a atividade jornalística – após desmistificado, na selva amazónica, o logro de um Eldorado impossível. Em entrevista a Álvaro Salema, amigo e um dos seus principais biógrafos, afirma: “Logo nesses dois primeiros anos da minha estadia ali, eu havia modificado muito. A ideia que levara ao Brasil o meu final da infância, que era a de enriquecer, desaparecera completamente. Eu perdera o espírito de emigrante e só desejava ser escritor.“ (CASTRO, 2021: min. 12.04)
Em “Pequena história de A Selva”, José Maria, na sua fuga de há muito desejada, para longe do Paraíso a bordo do navio Sapucaia, que o levaria para um futuro incerto, mas conscientemente decidido, relembra: “Eu tinha, então, dezasseis anos. E dos quatro que passara ali, não houve um só dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir!” (CASTRO, 1970: 18)
Foi uma decisão arriscada, mas de que o autor nunca quis abdicar, mesmo atendendo a que poderia tornar-se um fracasso— o que, felizmente, não sucedeu, como está claramente demonstrado no término da citação autobiográfica que reproduzimos: “A luz do farol ia diminuindo ao longe, um ponto único e vermelho na noite da floresta — um ponto final da minha vida ali.” (Ibidem)
Inicialmente, este jovem, recém-chegado e desconhecido, e em complemento de outros díspares mesteres, empregou as suas aptidões literárias como meio de sobrevivência, ao publicar artigos em jornais e iniciar-se como escritor, produzindo obras literárias em formato folhetinesco, que ele próprio chegou a distribuir porta a porta. Sem embargo, a sua ainda incipiente produção literária denotava já uma preocupação social focada nos pobres, nos oprimidos, naqueles verdadeiros vencidos da vida, que em nada se assemelhavam àqueles que, de apodo homónimo, constituíram os ilustres escritores da Geração de 70, do século que acabara de findar. Para esses, contavam os ideais; para os primeiros, a sobrevivência.
Feita a introdução do escritor, origem criadora do objeto do nosso estudo, e de onde partimos para a análise da sua ética pessoal e da razão estética da sua obra, começamos por expor os pontos que julgamos pertinentes para a compreensão do raciocínio que preside às conclusões que obtivemos.
Deste modo, no primeiro capítulo, exploramos a génese do seu pensamento humanista, fazendo uma breve resenha da sua infância - em Portugal e no Brasil - e de como esta influenciou a sua visão político-social futura. Analisamos a evolução destas caraterísticas a partir da sua estadia e aprendizagem em Belém do Pará, agora numa perspetiva mais maturada, onde veremos o jovem Ferreira de Castro entregue à sua sorte, ao seu sonho e aos estímulos que constituíram a base do seu pensamento humanista.
Visitamos também a sua inscrição no quadro emigracional da época, deparando com os obstáculos que o escritor teve de vencer perante um cenário de insucesso quase por certo garantido. Para finalizar o capítulo, apontamos as referências anarco-libertárias que canalizaram com êxito o seu percurso ético e a sua inscrição no movimento do Realismo Social, de que falaremos posteriormente.
O segundo capítulo incide sobre a forma como Ferreira de Castro interioriza a sua perceção do Mundo, os seus sentimentos perante os males e fragilidades da Humanidade, a sua visão da miséria, das suas causas, dos dramas que, incessantemente, assolam os mais desfavorecidos e cuja raíz vai encontrar – não na Natureza e suas calamidades, mas no seio dos seus pares. Apontamos ainda para a convicção de Ferreira de Castro na grande responsabilidade dos países dominantes do Ocidente — com particular ênfase, da Europa — pelas atitudes exploradoras e preconceituosas que se abatiam e abatem sobre os desfavorecidos de todo o Mundo.
É contra esse comportamento antinatural que o autor manifesta o seu repúdio, a sua revolta; mas, “(...) homem generoso e de profundos afectos, uma pomba sem fel, como lhe chamou carinhosamente Vitorino Nemésio, reconhecendo num comovido tributo o seu pecado de não lhe ter dado em vida a atenção que merecia” (SAMUEL, 2017: 30-31), Ferreira de Castro vê a Humanidade, no seu conjunto, como uma criança que, inconsciente da sua maldade, a exerce, não apenas entre seus semelhantes, mas alargando-a aos seres que lhe são tantas vezes vistos como evolucionalmente inferiores; no geral, a toda a Natureza. Reabordamos, deste modo, a ética castriana, já não como resultado de influências políticas específicas, mas como produto acabado das suas vivências e convicções humanísticas.
Referimos a sua extrema afeição ao reino vegetal, particularmente às árvores, das quais guarda sensações intensas, que cambiam do respeito temeroso ao êxtase quase místico, que espelha nas suas obras e acompanham-no até ao fim da sua passagem terrena.
Apontamos também o modo como o escritor intui o planeta e o transporta para a literatura e, depois, através dela, o devolve a si próprio, explicado, transformado, transmutado numa utopia improvável feita, não apenas de humanidade, mas de um amor incondicional por todos os seres humanos, que o autor acreditava ser possível, embora certamente não no seu tempo, mas num futuro indeterminado.
No terceiro capítulo tentamos demonstrar o papel que a construção ficcional escolhida por Ferreira de Castro tem na narrativa de viagens — que neste ponto tratamos com mais acuidade —, assim como considerar a sua eficácia como processo de transmissão dos valores éticos com que o autor pretende sensibilizar os leitores. Referimos também quais as bases dessa mesma ética, as fontes e influências recebidas pelo escritor, aludindo ainda à polémica em torno da sua pertença ou exclusão do movimento neorrealista, não nos esquecendo de mencionar as dificuldades experienciadas pelo romancista na sua produção literária, provocadas pela coação constante da Censura estatal.
Fixamo-nos assim no escritor e na sua obra. Tentamos expor o que consideramos os pontos mais importantes e já definitivamente consolidados, não apenas do seu sentido ético e de justiça, como também os objetivos estéticos que o nortearam e ao seu legado escrito, no decorrer de toda a sua existência. É com esse objetivo que incidimos, neste capítulo, nas influências basilares do seu Novel Humanismo[5].


 
  •   Das descobertas às opções
  Sem querermos entrar em demasia em abordagens biográficas, talvez ganhemos em lembrar as bases político-sociais que presidem à formação e consolidação da ética de Ferreira de Castro, e é o próprio escritor que nos aponta alguns caminhos.
  
  • Génese de uma consciência
   Eu era uma criança muito tímida, muito melancólica, já com fervores românticos. Os demais garotos não me compreendiam, a minha família também não. Sofri bastante com isso. Eu mesmo não compreendia a mim próprio e lamentava não ter a alegria e o à-vontade dos outros. Vivia permanentemente com uma sensação de inferioridade. Foi com essas características que eu desembarquei na selva amazónica, ainda não tinha 13 anos. A minha adaptação àquele meio, tão diferente do da terra nativa, constituiu um tormento quotidiano, e nunca mais me adaptei completamente. (CASTRO, 2021: min. 6.42)
Já com uma experiência na elaboração de pequenos textos, que redigia, muito novo, de motu proprio ou a pedido, no seu rincão natal, e em defesa da sua (sobre)vivência infante num ambiente estranho e hostil, longe de tudo e de todos os que lhe eram familiares e queridos, José Maria apoiava-se no único bordão a que se podia permitir, durante os parcos momentos de ócio — a escrita. Numa gravação datada de fins da década de 60 do século XX, o autor narra: “Mas, poucos meses depois de chegar ali, comecei a escrever, a escrever sobre os meus estados de alma, os meus desesperos, os meus sonhos.” (CASTRO, 2021: min. 7.39)
Quanto aos motivos que espoletaram a sua atividade literária e jornalística, pouco haverá mais a dizer sem repetir as palavras do escritor, citadas acima. As características com que se reveste nestas poucas palavras, encontramo-las facilmente quando percorremos a sua vida e as suas obras, mesmo que com visão pouco atenta. Ferreira de Castro escrevia, não pela fama ou fortuna, mas por vocação; a esta, o seu talento jornalístico foi, ao longo da existência, elevando o sentido de justiça, em paridade com um humanitarismo crescente. O seu percurso mundano foi sempre pautado por uma recusa das honrarias que lhe foram sendo oferecidas, não somente na sua pátria, mas também por outros países e organizações não nacionais.
Convém lembrar que, embora mais tarde se destaque como escritor de realismo social[6], surgem traços românticos em algumas das suas produções literárias mais primitivas, que o autor posteriormente repudiou[7], e notam-se ainda vestígios nas descrições paisagísticas e humanas com que emoldura a componente mais importante de toda a sua produção literária – A Selva – e por seu intermédio, a Humanidade, com os seus problemas, venturas, misérias e virtudes. O naturalismo também está aí presente[8], com todo um rol de mazelas humanas; no entanto, o realismo social torna-se relevante e constituirá, a partir desta obra, o epicentro da sua arte.
Em A Lã e a Neve, considerada por muitos dos seus críticos como o mais representativo e mais bem-sucedido romance de realismo social do autor, a sua postura ética, já plenamente desenvolvida, aponta para as consequências nefastas de um sistema onde as elites industriais sobreviviam comodamente à custa de uma oferta de trabalho incerto e mal remunerado. No “Pórtico” da obra, Ferreira de Castro descreve as vicissitudes da força operária dos lanifícios da Covilhã que se sujeitava a condições precaríssimas e desumanas e que, não raras vezes, produziam desfechos lamentáveis:
A indústria sofria (...) bastantes oscilações. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matéria ou pouco consumo, diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à lã haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria mais descarnada ainda do que o normal. Com seu fabrico reduzido, a Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas para o meretrício de Lisboa. (CASTRO, 1949a: 18)
1.2. Sensibilização social
Nota-se em Ferreira de Castro, desde o momento em que o escritor abandonou o seringal, onde poucas probabilidades de desenvolvimento pessoal lhe seriam viáveis, o nascimento de uma consciência social até então em latência, e uma vontade forte em instruir-se com o fito de desenvolver e pôr em prática todos esses sentimentos de equidade e justiça que desabrochavam no seu ainda jovem espírito:
[A Selva é] [a]cima de tudo uma grande obra de arte, o romance é também o testemunho da vivência do autor e veicula, como seria de esperar, a sua mundividência, a perspectiva pessoal com que o escritor encarava a vida e os problemas que se levant[av]am[9] ao ser humano.
 
  • De que forma poderemos enquadrar essa mundividência? Claramente através de um conjunto de ideias e sensibilidades que dotaram a totalidade da obra castriana de uma mensagem coerente e consistente da emancipação do Homem. Não se trata de uma simples amálgama de sentimentos piedosos, vulgo “humanistas”; está para além disso, e tem uma designação bem definida na história das ideias políticas e sociais: chama-se anarquismo, e Ferreira de Castro foi um dos expoentes literários do século XX, em Portugal, dessa forma mais livre de encarar o mundo e a vida. (ALVES, 2007a: 87-88)


 O narrador omnisciente d’A Selva alterna com um narrador personagem, e constitui, no fundo, um romance autobiográfico. Esta alternância de realidade com ficção permite a Ferreira de Castro um distanciamento crítico que facilita o processo narrativo, sem, contudo, se afastar demasiado da realidade que o escritor experienciou. A chegada de Alberto, o seu alter-ego, ao Paraíso, rememora o desembarque de José Maria no seringal:
A chegada dos “brabos”, os novos legionários que o Ceará e o Maranhão enviavam à selva, provocava sempre risos e chocarrices daqueles que já se tinham amestrado na vida da terra insubmissa e de costumes singulares. E se o recém-vindo se melindrava, humilhado pela recepção imprevista, os algozes folgazões não o largavam mais, deleitando-se em persegui-lo com todas as facécias que podiam inventar contra a sua inexperiência. Enervava-os, inconscientemente, que alguém acreditasse ainda naquilo de que eles já descriam; e os remoques só terminavam depois do “brabo” se ter familiarizado com os segredos da vida local e resignado ao extermínio das suas próprias ilusões. (CASTRO, 1970: 95)
Circunstâncias similares a estas terão constituído o seu primeiro choque civilizacional, assim como uma das primeiras constatações desse fosso social entre os seres humanos que tão intensamente marcaram o escritor ao longo da sua vida e delinearam o percurso que a partir daí sempre se esforçou por percorrer.
Poucos dias após a publicação de A Selva, morre Diana de Liz; e Castro, em “Pequena história de A Selva” [10], confessa aos seus leitores a dor da partida, aliada à dor da sua passagem pelo sertão brasileiro:
Dir-se-ia que A Selva, drama dos homens perante a injustiça doutros homens e as violências da natureza, estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para o seu próprio autor, uma pequena história, uma pequena parcela da grande dor humana, dessa dor de que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão. (CASTRO, 1970, 28)

 
  • A investigadora Ana Cristina Carvalho afirma que a emigração de Ferreira de Castro, inicialmente instigada pelo anseio de melhores condições de vida e subsistência, transmutou-se, por força das circunstâncias, não num progresso financeiro, mas num enriquecimento espiritual que marcaria o futuro do escritor:


  • [A] emigração para o Brasil, escape à pobreza mais comum na época, terá necessariamente influenciado a decisão de José Maria; porém, e não obstante os parcos recursos da família, em declarações e memórias futuras o escritor apontaria outros motores da sua emigração. E neles valoriza um diferente conceito da “fortuna”, decorrente dessa aventura: as vivências que fundaram a sua consciência humanista. (CARVALHO, 2017: 35)
                                                                                                           
 
  • Convém realçar o extrato de um artigo da autoria do investigador Eugénio dos Santos[11], para que possamos compreender melhor o conjunto de circunstâncias adversas que acompanharam o futuro escritor na sua estreia emigratória e que, por razões óbvias, dificultaram extraordinariamente o início do seu percurso literário. Foi muito provavelmente a sua força de vontade, aliada ao sonho de se tornar jornalista, que o acompanharam desde Portugal, o que lhe gerou o estímulo necessário para se libertar das grilhetas que a sociedade lhe impusera:
  •  

  •  

 Sabe-se bem que em certas regiões do país, de tradição emigratória mais forte, alguns jovens eram “preparados” para partir e poderem ter acesso rápido no lugar de acolhimento. Cuidadosamente alfabetizados, senhores do ofício de caixeiro, aprendido nas casas comerciais das grandes cidades, antigos seminaristas, padres inconformados, jovens de famílias com posses, mas a quem eram impostos casamentos contra a vontade, descontentes com partilhas desiguais, ou rapazes insubmissos ao poder autoritário do pai, alguns com consideráveis meios de riqueza, todos estes tipos de pessoas estavam em condições psicológicas de partir.(...) Há que distinguir, contudo, dois tipos de emigrantes para o Brasil ao longo do século passado e já nos inícios deste: aqueles de que acabamos de falar e que se perfilham para entrarem no comércio, nos serviços, na complexa teia da vida urbana e os outros, que o jovem país prefere acolher, para irem trabalhar nos campos, no interior, como substitutos da antiga mão-de-obra escrava. No café, na borracha, no cacau ou no tabaco o que importa que estes demonstrem é força braçal e resistência às agruras do clima. Por isso, aí não importa ser alfabetizado. Pelo contrário, convém não o ser. Desse modo, se evita a cidade, o desejo de ir à procura de novidades.[12] (SANTOS, 2000: 23)

Ora, Ferreira de Castro era minimamente alfabetizado; chegado ao Brasil, lia tudo a que pudesse ter acesso e, volvidos apenas dois anos, almejava sair do seringal para Belém do Pará, à procura — não de novidades, mas de algo bem específico, bem calculado: a possibilidade de, não só tentar exercer o tão almejado jornalismo, como ter acesso às fontes de informação e conhecimento que lhe permitiriam exercer essa profissão de acordo com a ética anarquista que, ainda embrionária, se ia fortalecendo. Teve assim início a sua penosa, mas triunfadora saga.
 
  • Deste modo, mais além do Utilitarismo do filósofo e feminista John Stuart Mill que advogava a  soberania individual sobre corpo e mente, e de Pierre-Joseph Proudhon, também filósofo, que defendia uma sociedade sem autoridade, Ferreira de Castro acabou adotando como norma de conduta e postura ética, perante si próprio e o Mundo, o Anarquismo Libertário do revolucionário Bakunine, que se encontra muito próximo do pensamento do anarquista William Godwin, no qual figura, essencialmente, a crença de que só o conhecimento poderá ser o veículo de libertação da Humanidade:


 Como outros filósofos libertários que vieram depois de­le, Godwin via a sociedade como um fenômeno que se desenvolvia na­turalmente, capaz de funcionar independente de um governo, mas não compartilhava da fé que outros anarquistas depositavam nos ins­tintos espontâneos da massa inculta. Nesse sentido, permanecia um homem do Iluminismo, acreditando que a educação era a verdadeira chave da liberdade e temendo que, sem ela, as paixões incon­troláveis do homem freqüentemente não ficariam satisfeitas em obter a igual­dade, mas os levariam a desejar o poder. (WOODCOCK, 2002: 69)
Deste difere, no entanto, na sua convicção de que a humanidade necessita apenas de estímulo e compreensão para poder, eficazmente, gerir a sua conduta e criar o seu próprio destino. Em Eternidade, Juvenal, um dos avatares da extensa produção romanesca do escritor, acredita que para o ser humano apenas é necessário consciencialização e senso comum para que ele se transforme num pilar da sociedade, compartilhando com todos os outros os direitos e deveres que lhes são naturalmente inerentes: “O rancho inteiro, desde que promovera a homem responsável cada escravo da enxada, criara amor-próprio e portava-se a contento.” (CASTRO, 1948: 268)
Juvenal, engenheiro silvicultor, responsável pela arborização das serras na ilha da Madeira, depara, ao tomar posse, com um sistema de trabalho exploratório e ditatorial; após ter despedido um capataz desumano, acede, perante os trabalhadores rurais, em nomear outro do agrado destes. A citação que reproduzimos, em complemento da anterior, demonstra o sucesso da sua atitude, antes duramente criticada pelos membros da sociedade industrial a que estava vinculado, que defendiam que só à força de imposições e castigos – que incluíam os despedimentos – seria possível
fazer trabalhar eficazmente os jornaleiros, que viviam e eram pagos miseravelmente. Vieira, o novo capataz, faz o ponto da situação:
— Há alguma novidade? — perguntou-lhe Juvenal.
O capataz respondeu negativamente. Tudo corria bem — acrescentou. Os homens iam dando boa conta de si. Com mais gana só em fazenda própria se trabalharia na Madeira. Ainda na véspera, como um madraceasse, os camaradas, por expontânea decisão, tinham-no afastado do serviço, durante uma semana, para ver se nele crescia a vergonha. Com pessoal assim, tão agradecido ao senhor engenheiro, até dava gosto trabalhar. (CASTRO, 1948: 291)
Na verdade, um dos grandes mentores libertários de Castro foi Piotr Kropotkine; Ricardo Alves afirma que a influência deste ideólogo, juntamente com as de Zola e Raul Brandão, é já visível no Mas…, — uma das obras embrionárias do escritor. (ALVES, 2002: 69-70) Este investigador refere ainda que a viúva de Castro, Elena Muriel Ferreira de Castro[13], o informou de que, ”quando o conheceu, em 1936, a obra e a personalidade do doutrinário russo exerciam nele um grande fascínio. Interesse que já vinha de tempos mais remotos, numa clara referência ao Mas…“ (ALVES, 2002: 126)
Ferreira de Castro foi um homem sensível ao sofrimento alheio; tentou minimizá-lo sempre que possível e indignava-se com a sua existência, principalmente quando provocada por outrem. As suas críticas eram duras, porém de uma contundência isenta de agressividade. À medida que o escritor foi evoluindo, o seu intelecto foi divisando as razões subjacentes ao intrincado entrelaçamento entre culpa e sofrimento, como se encarnasse simultaneamente o papel de acusador e o de advogado do diabo.
Jorge Amado dá-nos também a sua visão de como o escritor influenciou a humanidade:
Com a arma da literatura ajudou a transformar o mundo. Foi verdadeiro escritor da nossa época, sendo, como queria Gorki, ao mesmo tempo coveiro e parteiro, coveiro de um mundo caduco, de um tempo podre, parteiro de um mundo novo, de um tempo alegre e livre. O menino saído do fundo da floresta cumpriu a sua missão grandiosa[14]. (AMADO, 1966: 172)
É extenso o rol dos intelectuais seus contemporâneos ou posteriores que tecem louvores ao autor consagrado. O seu trabalho como escritor, a sua humanidade e humildade, assim como o seu mecenato e o igualitarismo isento de qualquer tipo de discriminação, ditaram o grande número de homenagens que recebeu e continua a receber na atualidade. Assim o descreve Fernando Aguiar-Branco[15]:
Ferreira de Castro foi um humanista. Nos seus livros pulsa, com vigor, a tensão circunstancial e o drama das circunstâncias adversas. N’A Selva, um livro que ressalta da sua autobiografia, bem como em Terra Fria ou em A Lã e a Neve, a problemática do comportamento humano, face a situações limite ou inesperadas do quotidiano, está ali presente. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 15)
António dos Santos Pereira[16] faz o retrato de um homem preocupado com o bem-estar social e em constante luta contra as situações de desigualdade e desfavorecimento dos seres humanos, independentemente do seu género, etnia ou idade: “Vê-lo-emos atento a denunciar a falta de higiene, de habitação digna, de educação, a mendicância, o abandono infantil, a prostituição em expressões bem realistas desde o Funchal às serras do Barroso e à Covilhã, no sentido militante de denúncia para a mudança.”[17] (PEREIRA, 2017: 108)
Um dos textos mais exemplificativos deste esforço de denúncia, encontramo-lo no capítulo inicial de Os Fragmentos : “Historial da velha mina”. É uma memória jornalística datada, segundo o autor, de 1928 ou 1929. Ferreira de Castro, então colaborador d’O Século, acreditava que a publicação de uma reportagem que expunha as condições miseráveis dos mineiros das minas de S. Domingos, em Mértola, apelaria para o sentido de justiça e piedade do recém formado Estado Novo, uma vez que “[h]avia ainda alguma tolerância, embora cada vez mais rara e encolhida.”(CASTRO, 1974: 17) Vai disfarçado de caixeiro-viajante, a pedido dos mineiros, para não levantar suspeitas. Nas instalações da mina depara, entre outras situações pouco ou nada edificantes, com as habitações exíguas e miseráveis dos trabalhadores – meros cubículos de uma única divisão, sem janelas, onde morava uma família inteira:
O quarto servia de cozinha, de sala e dormitório; e à noite, nessa promiscuidade absoluta de corpos e de frangalhos, os pais, se eram respeitadores, apagavam a luz ou voltavam as costas, quando as filhas já crescidas se despiam.
Todas as imposições da vida, as sua intimidades, os seus odores, as suas emergências, se desenrolavam entre estas quatro paredes. Aqui se procedia à sementeira de crianças, aqui elas nasciam, aqui a maioria delas falecia, por carência de higiene e de alimentação adequada aos seus corpitos tenros e indefesos. As sobreviventes gatinhavam no soalho encardido, sujas, babadas, entre farrapos avulsos, colchões estendidos no chão, cobertores amarfanhados sobre eles; e nos seus arrastares iam tombando as panelas sob a chaminé existente ao fundo ou fazendo tremer a pequena mesa onde a mãe preparava os alimentos para o lume e mais tarde a família os comeria. Algumas conseguiam emergir de toda essa mondongaria até o rebordo da cama dos pais, onde assomavam os seus rostitos inocentes, os seus olhitos duma curiosidade embrionária, como se nos mirassem do peitoril duma janela que lhes faltava. (CASTRO, 1974: 21)
Castro, humanista convicto, vê o seu artigo recusado; poucos anos volvidos, em 1934, após numerosos textos e inúmeros cortes, decide, amargurado, abandonar definitivamente o jornalismo em Portugal. Não obstante ter-se dedicado, a partir dessa data e exclusivamente, à tarefa de escritor, continuará a sofrer, até à sua derradeira publicação, as influências da cisalha do aparelho ideológico do Estado Novo. Neste caso particular, embora não se aplicasse a Censura Prévia, também conhecido como o “Lápis Azul”, vigorava uma Censura a posteriori, que funcionava de acordo com a ótica volúvel dos revisores: caso se justificasse, seria feita a apreensão das obras já depois da sua publicação. Atendendo aos prejuizos materiais elevados, aos riscos de perseguição, vigilância, processo criminal ou mesmo cárcere que essa situação poderia implicar, tanto editores e livreiros como os próprios escritores tinham cuidados redrobrados em relação aos livros a imprimir.
Em 1945, Castro é perentório. Numa entrevista assaz acrimoniosa, tece o panorama da literatura no Portugal do seu tempo: “ É ingénuo um governo imaginar que, por decretos ou pela força ou pela censura, consegue impor a sua mentalidade ao povo e aos seus homens de pensamento.”(CASTRO, 1945)[18]
Quarenta anos depois da sua decisão de interromper a atividade jornalística, é publicado a título póstumo, em “Origem de O Intervalo”, um desabafo tardio sobre o cárcere ético que até então o oprimira: “É muito difícil alguém, a menos que tenha alma cínica, falsificar-se a si próprio.” (CASTRO, 1974: 78)

2. “Apre(e)nder” o Mundo
Após o choque de, ainda muito jovem, sentir-se separado da sua família e do seu mundo-berço, Ferreira de Castro teve de, emocionalmente, evoluir. Como criança tímida e introvertida que era, ter-lhe-á sido extremamente difícil superar esses traumas; no entanto, a convivência com o seringal, o seu sofrimento e dos seus companheiros de infortúnio, fizeram-no amadurecer muito rapidamente. A noção das injustiças que viveu e presenciou foram as partículas ígneas que, pouco a pouco, atearam o rastilho que acabou por, definitivamente, ativar a sua conceção idealizada do mundo.
 
  • Assim também no-lo diz Ana Cristina Carvalho, quando afirma que
   
  • [o] testemunho direto do sofrimento humano, os momentos de funda incerteza e as angústias suportadas na Amazónia, antecedidos do desenraizamento prematuro do meio familiar e aldeão, contribuíram, pois, para moldar a personalidade, bem como a visão do mundo, do Ferreira de Castro adulto. (CARVALHO, 2017: 61)


 2.1.   Pobreza e sofrimento

O escritor, nas viagens pelo mundo do seu tempo, valeu-se de uma apurada visão jornalística, aliada a uma elevada capacidade memorialista, sem as quais não teria sido possível escrever A Selva ou Pequenos Mundos e Velhas Civilizações com uma acuidade tão pormenorizada, uma vez que já se tinham passado vários anos após as suas estadias nos locais descritos: A Selva foi publicada 16 anos após a saída do Seringal e Pequenos Mundos constitui uma antologia das diversas viagens que efetuou de 1929 a 1935. A sua sensibilidade emotiva assumiu-se também como fator determinante para a riqueza e prolixidade do conteúdo.
Por ocasião das comemorações do cinquentenário da obra literária de Ferreira de Castro, Alberto Figueira Gomes[19] afirma que “(é) no estudo do homem e do seu drama que Ferreira de Castro põe o melhor do seu génio de pintor de almas, de situações e de lutas.” (GOMES, 1967: 37) Efetivamente, logo a partir da sua primeira obra reeditável[20] — Emigrantes, nota-se no escritor uma necessidade de “ser o Mundo”, de libertar-se da individualidade para melhor o compreender, e à Humanidade que dele é parte integrante.
Ferreira de Castro, como propõe Alves (2003: 16), tenta interiorizar o Orbe e pensar-se enquanto seu constituinte indissociável. De cada vez que deparamos, nas suas obras, com as injustiças humanas, notamos no escritor como que remorso e mortificação por não poder remediar ou anular as deformidades sociais que as provocaram: “Não é fácil debruçarmo-nos sobre a História sem lamentarmos a Humanidade e sem sentirmos horror pelo que fizeram os poderosos de todos os tempos.” (CASTRO, 1949c: 210) Esses sentimentos acompanharam-no desde a infância, pois o autor já os refere numa carta endereçada a Winifred L. Chappell[21], em 1953: “(…) entre os 14 e os 16 anos, tive ocasião de ler várias obras de sociologia, que constituíram, para mim, uma explicação dum mundo que eu sofria, mas não sabia julgar”. (CASTRO, 1953: 195)
Bigotte Chorão afirma que, para Ferreira de Castro,
(...) a literatura não era tanto uma expressão religiosa ou estética como um relato de vida vivida e sofrida. Daí que, em alguns dos seus melhores momentos — como na clássica A Selva —, haja um predomínio da reportagem, isto é, da captação directa de uma realidade conhecida na própria carne.” (CHORÃO, 1967: 148)
Ferreira de Castro revê-se em cada ser humano padecente de injustiças pois, como diz Chorão, também ele sentiu na carne e no espírito o peso de uma dura realidade. Jovem que era, as marcas psicológicas foram profundas e refletiram-se nas suas obras e na sua existência sob a forma de uma rebelião surda, de uma identificação com o Outro que sofre e de um sentimento involuntário de culpa eivado de esperança num melhor porvir.
Por estas razões, o autor de A Volta ao Mundo sentia-se particularmente afetado pela extrema pobreza e desigualdade de algumas regiões, nomeadamente a Índia e outros países asiáticos, muitos deles devendo essa situação de subdesenvolvimento e miséria à cupidez insensível da civilizada Europa:
Não se pode olhar para o ser humano na Índia sem se ter a sensação de que ele é infinitamente desgraçado, mesmo quando, individualmente, não o é. Pelo seu atraso, pelos seus habitantes e pelo próprio abandono a que o votaram, ele oferece, a cada passo, imagens imprevistas, algumas das quais constituem regalo dos frívolos viajantes que buscam no Oriente apenas o pitoresco. (CASTRO, 1950a: 24-25)
O escritor não deixa de responsabilizar, direta ou indiretamente, o mundo ocidental pelo segregacionismo e exploração patentes nos países que, à época, e na esmagadora maioria dos casos, se encontravam sob o domínio das grandes potências europeias, não excluindo, evidentemente, a crescente influência dos Estados Unidos da América. As suas críticas incidem, não apenas na sujeição física desses povos, mas também sobre as visões preconcebidas e aviltantes que sobre eles os referidos impérios fazem recair:
Tem-se clamado muito sobre a imundície na China e os que o fazem parece esquecerem que na Europa há muita imundície igual. Tudo quanto vimos nestas pobres aldeias não é pior do muito que temos visto na maioria dos países latinos, incluindo o nosso, em todas as terras árabes e outros centros de gordo turismo. (CASTRO, 1950b: 101)
Ressalve-se que o humanista não se insurge contra o turismo como atividade lúdica e cultural, que ele próprio praticou, e que constitui, no fundo, não apenas uma mais-valia económica como, simultaneamente, uma relevante janela aberta do Mundo e para o Mundo; opõe-se – isso sim – a quaisquer atitudes amorais, gananciosas ou sectárias sobre povos ou grupos sociais, que possam resultar desse mester.
Ao mesmo tempo, Castro, universalista irredutível, idealiza um Planeta uno, onde cada ocorrência, benéfica ou prejudicial, não pode ser entendida como um caso particular de uma determinada região ou país; apenas mudam as circunstâncias, não devendo existir, portanto, juízos de valor unilaterais. É este conjunto de valores que constitui - mas não apenas - a sua ética, que desenvolveremos mais à frente.
2.2. Revolta

Sou profundamente revoltado. Espiritualmente insubmisso. (CASTRO apud CARVALHO, 2017: 63)

Os Fragmentos é, na nossa opinião, e enquanto escrito na primeira pessoa, ou seja, até à página 83 da edição consultada, e a partir da qual tem início o romance O Intervalo, um livro de confidências, uma espécie de pequeno diário íntimo de um escritor que, desilusão após desilusão, quase já acredita que a sua utopia não passará de um mito. E assim, deixa para os vindouros o seu testemunho, pois que eles, um dia, num futuro longínquo, talvez possam ver cumprido o sonho que ele sonhou. Esta obra contém o seu manifesto de revolta, de inconformidade e desencanto, mas também de esperança, não é uma declaração de desistência. Nela, diz o autor o que não pôde ser dito… até um dia de abril de 1974:
Estes fragmentos são filhos das insatisfações estéticas, tantas vezes torturantes e secretas, que sentem os escritores do Mundo inteiro e também das cancelas cerradas perante a liberdade de pensamento que dificultam, há já muitos anos, os passos espontâneos dos escritores portugueses.” (CASTRO, 1974: 13).
Seguindo a mesma intenção investigativa, Ana Cristina Carvalho[22] reforça-nos a ideia de que o escritor aguardava expetante a ratificação do início dos tempos futuros que profetizara, onde a liberdade de expressão, a justiça e, simultaneamente, a fraternidade universal, deixariam de ser ilusórias:
Os textos reunidos em “Os Fragmentos”, vários deles os últimos escritos por Ferreira de Castro, são passíveis de formar a etapa de “Declínio” declínio no sentido não de decadência mas de perda natural de vitalidade. Enquanto alguns textos são recuperações importantes, caso de O Intervalo, que durante quarenta anos aguardou na gaveta a abolição da censura, outros servem-lhes de enquadramento, e o conjunto, preparado pelo autor para se publicar quando esse momento chegasse, mas editado postumamente, resulta numa espécie de balanço de seis décadas de atividade literária. (CARVALHO, 2017: 127-128)
Ferreira de Castro pôde ainda celebrar o fim da ditadura do Estado Novo, em 25 de abril de 1974. Contudo não chegou a presenciar a publicação do seu último livro, pois morreu 2 meses depois, a 29 de junho. Desta obra citamos um exemplo das suas exteriorizações sarcásticas que, não sendo explicitamente violentas, demonstram uma enorme incisividade e que, durante muitos anos, dormiram numa gaveta à espera da libertação:
E como Portugal era, nessa época (anos 30), uma pátria oficialmente ditosa, que se afirmava ser invejada por todas as outras e por alguém velada dia e noite, à luz eficaz dum candeeiro medievo, para felicidade de todos os filhos, não se justificava alusão alguma aos bairros de folha de Flandres enferrujada e tábuas apodrecidas, tão-pouco às crianças esfarrapadas e de pés nus, que enxameavam nas províncias nortenhas, ou mesmo a outros incontáveis aspectos de miséria dum povo ingrato que desfrutava de muita sorte; tudo isso constituía a nossa originalidade turística, no fundo riqueza da nação. [23] (CASTRO, 1974: 55)
2.3. Compreensão da Humanidade

O escritor invoca os seus pares para que, respeitando uma ética ambiental — da qual terá sido um dos pioneiros no nosso país — se unam em concordância com os valores de igualdade que defende.
Ciente das diferenças entre os povos, exorta-os a dissipá-las, na demanda de um entendimento mútuo que proporcione o tão almejado cosmopolitismo, com pleno respeito pela Natureza, em todas as suas formas:
(…) o universal é a fusão e a compreensão solidária de todas as aldeias, vilas e cidades, planícies e montanhas do Mundo, se há alma para a todas abarcar e se na alma existe sítio propício aos mastros e às velas que nos levem a unir-nos, pelo amor fraternal, a todos os seres humanos, nas suas diversas pátrias.
(CASTRO,[24] 1974: 54)
Ferreira de Castro é um universalista em cujo âmago se repercute o pulsar de toda a humanidade, e afirma-o com uma convicção inabalável que constitui, aliás, o corolário de toda a sua existência:
(…) por cima da condição de europeu, de latino e de português, sinto na minha alma uma grande identidade com a alma de todos os outros povos. Creio, aliás, que isso acontece com quase todos os homens, mesmo sem eles darem por isso, mesmo sem eles o saberem... (CASTRO, 1953:197)
No segundo volume d’A Volta ao Mundo essa identidade de alma, esse espelhamento de sentimentos, está bem presente no seguinte fragmento:
A maioria dos costumes hindus apresenta-se melancolicamente absurda ao primeiro contacto; mas quando, descendo às raízes, se chega à compreensão, a melancolia torna-se muito maior. Na Índia, compreender é mais triste ainda do que julgar pelas exterioridades. (CASTRO, 1950a: 33)
Em toda a extensa descrição da Índia n’A Volta ao Mundo, deparamos constantemente com essa preocupação humanitária, acompanhada por uma sofrida amargura, que provém da sua impotência por pouco ou nada poder fazer para atenuar tamanha miséria: “Antes de virmos à Índia, amávamos o povo hindu pelo que havíamos lido e ouvido sobre o seu sofrimento; agora, que o vimos face a face, amamo-lo muito mais, porque ele é muito mais desditoso do que tínhamos imaginado.” (idem: 149)
O mundo que Ferreira de Castro vê, é, aos seus olhos, imperfeito e injusto. Ele tem plena consciência de que não será durante o período da sua existência terrena que se atingirão os objetivos de justiça social e equidade que defende. Considera a sua postura e a sua missão como escritor um ato impulsionador desses ideais, na direção de um futuro que ambiciona para a humanidade.
Numa impossibilidade de, isolado, fazer desaparecer, omnipotentemente, os males do Mundo, também exclui a hipótese de emular um deus ex machina, que os dissipasse parcialmente, ignorando o todo, numa solução imperfeita e enganosa; Para Castro, a solução passa pela consciencialização e libertação de toda a humanidade, num processo que sabe lento, mas que crê possível; é essa a sua utopia, é esse o seu sonho: “Eu tenho tanta pena do homem que me aflige a certeza de que já não vivo quando a vida for apenas amor, amor que a compreensão nos dá.” (CASTRO apud MOREIRA, 1967: 104)
2.4 Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu.

Numa revisitação literária à selva amazónica brasileira, Ferreira de Castro, no romance intitulado O Instinto Supremo, e baseado em factos históricos sobre a vida do Marechal Rondon[25], a quem admirava, reproduz os esforços deste militar brasileiro para proteger e civilizar os indígenas. Por ocasião das comemorações do cinquentenário da vida literária do escritor, Peregrino Júnior[26] escreveu:
[Instinto Supremo é] um romance cuja figura principal é Rondon, o desbravador, o homem de quem Ferreira de Castro aprendeu, em uma frase, toda uma filosofia. Esta frase é a seguinte: “Morrer se preciso, matar nunca”. Toda a obra de Ferreira de Castro está impregnada desta filosofia, que deseja para os seus semelhantes trabalho, liberdade, fortuna e, finalmente, uma vida digna e melhor. (PEREGRINO JÚNIOR, 1967: 23)
Do mesmo modo, a caraterização feita por Ricardo Alves foca a vertente humanitária e de proteção dos que, pelas mais variadas circunstâncias, se encontram em desvantagem perante os seus pares no Mundo. É para isso que aponta Óscar Lopes quando afirma que a obra Emigrantes inicia uma nova fase do realismo social em Portugal e releva, em A Lã e a Neve, algumas das situações mais emocionantes dessa mesma fase literária. “Em Ferreira de Castro viu este ensaísta [Óscar Lopes], ‘desde sempre, em literatura, um advogado’ das camadas que neste século foram conquistando a sua emancipação: as mulheres, os assalariados e os povos.” (ALVES, 2002: 79)
Observa ainda o investigador que
[r]aramente (…) Castro foi explícito quanto às fontes matriciais do seu pensamento político. Assumia-se como autodidacta e produto das suas múltiplas leituras. A obra, todavia, espelha e veicula eloquentemente as ideias libertárias que perfilhou durante a vida inteira: afirmação de liberdade individual, postura refractária à autoridade, internacionalismo, antimilitarismo, tolerância que excluía conciliação em face de valores essenciais, feminismo e, inclusive, o respeito e comunhão com a natureza, atitude que hoje designaríamos genericamente como ecologista. (ALVES, 2002: 118)
Alves refere também que “Castro foi um contemplativo da Natureza, em especial da natureza vegetal; e esta ocupa também um lugar de primeira importância na sua obra (...).” (ALVES, 2014: 4).
Assim, para além da atenção votada, Alves não é o único a aperceber-se desta consonância com a natureza em toda a sua plenitude. Também Bernard Emery refere em Castro “o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais” (EMERY, 2016: 229), tal como Ana Cristina Carvalho que, no estudo que temos vindo a citar, refere a grande afinidade que Castro teve com a Natureza, em todas as suas manifestações vitais e no respeito pelas caraterísticas físicas da mesma, sejam elas orológicas, oceânicas, fluviais ou meteorológicas.
É, no entanto, à árvore, à floresta, que Ferreira de Castro rende preito e homenagem. Desde a selva amazónica, passando pelos lugares que visitou, recordando o seu torrão natal ou deliciando-se com a Serra de Sintra, as árvores estão sempre presentes nos seus livros.
Trata-se, no caso da Amazónia, de uma relação de amor-ódio, com componentes que, por vezes, ora se confundem, se misturam ou individualizam: a floresta onde os índios se acoitam, a lembrança do trabalho rude e desgastante, a solidão de um lugar estranho e longínquo e a sensação de uma grandiosidade verde e opressiva, são fortes contributos para guardar no mais recôndito da sua memória essa fase da sua vida. O autor, perante a imensidão da selva e a estreita relação que esta tem com a fração terminal da sua infância e início de adolescência, num misto de sofrimento, medo e deslumbre, mas também de aprendizagem, confessa que evitou por muitos anos escrever qualquer obra que abordasse a sua lembrança, mesmo que num registo ficcional. Castro, referindo-se à sua vinda para Belém do Pará, fugido da sua experiência deprimente, e perante a recusa do seu “protetor” em acolhê-lo, relata:
Foi esse momento, tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio. E quando o terrível pesadelo me faz acordar, cheio de aflição, tenho de acender a luz e olhar o quarto até me convencer de que sonho apenas – eu que, nos derradeiros tempos, tanto desejo retornar à selva, para a ver um último dia e dela me despedir para sempre.
Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente.[27] (CASTRO, 1970: 20)
Bernard Emery recorda uma entrevista concedida por Ferreira de Castro em 1939, onde este explica a razão pela qual a selva lhe impunha tão respeitoso temor:
Todas as florestas têm o seu segredo e mesmo os pequenos bosques têm a sua luz. (...) mas nenhuma guarda um segredo tão perturbante como a floresta da Amazónia. Um mundo nos seus primórdios, onde cada silêncio é uma ameaça, cada árvore um inimigo, onde o estremecimento das plantas apodrecidas e espalhadas pelo chão, um fruto que cai, provocam mais receio do que se uma bomba explodisse na rua. (CASTRO apud EMERY, 2016: 128)
No entanto, nessa entrevista, Ferreira de Castro não expõe totalmente os seus medos e a razão dos seus pesadelos. Criança ainda, chegado a um mundo novo e inóspito, repleto de perigos insuspeitados e entregue às descrições cruas e, por vezes exageradas de quem, já experiente, atemorizava os novos candidatos a seringueiros, os “brabos”, com histórias supostamente reais e assustadoras, não seria de admirar que tivesse ficado psicologicamente traumatizado.
No “Pórtico” de O Instinto Supremo, o autor confessa a mais impactante razão do medo que o acompanhou intensamente durante quase três lustros e que provavelmente deixou algumas sequelas, mesmo depois do exorcismo da escrita:
Eram o meu terror esses índios. Quase criança ainda, arribada dum meio diferente, quando caminhava pelos varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearenses e maranhenses, dispersas na brenha, muito, muito longe umas das outras, esperava sempre ver os Parintintins surgirem por detrás das árvores, as flechas já nos arcos retesados, a abaterem-me num momento e cortarem-me a cabeça e sumirem-se de novo, deixando regressar o pesado silêncio da mata, que só por si me atemorizava intensamente. (CASTRO, 1968: 14-15)

No conto Young Goodman Brown, Hawthorne[28] apresenta-nos, plena de simbolismos, uma descrição assaz negativa da floresta:
The whole forest was peopled with frightful sounds; the creaking of the trees, the howling of wild beasts, and the yell of Indians; while, sometimes the wind tolled like a distant church-bell, and sometimes gave a broad roar around the traveller, as if all Nature were laughing him to scorn. (HAWTHORNE: 6)
Não fosse esta ilustração um produto da visão puritana do autor americano, onde a Natureza era encarada como algo maléfico de que o homem teria de se libertar e afastar — portanto, uma narração que obedece a um intuito religioso e moralista —, poderíamos supor que teria sido escrita por Ferreira de Castro.
Essa fobia paralisante que impedia o escritor de se referir ao seu “degredo” de quase quatro anos numa idade em que quaisquer circunstâncias adversas marcam mais profundamente, deixando vestígios por vezes indeléveis, tinha de ser sublimada. Como afirma Jaime Brasil, a primeira etapa da libertação passará pela redação de A Selva — uma libertação pelo Verbo: “A selva possuíra-o, enfeitiçara-o. Os pavores e angústias do adolescente habitavam o homem como demónios atormentadores. Só o Verbo, que é luz e vida, os poderia afugentar. Esse Verbo só encarnou quinze anos depois.” (BRASIL apud EMERY, 2016: 130)
Como jornalista de O Século, o autor foi destacado para a cidade de Paris durante dois meses, o que o forçou a interromper a obra libertadora; foi uma experiência bem-vinda, “sem desgosto algum, antes com um prazer todo febril e exultante [.]” (CASTRO, 1970: 21), pois visitar a França, “(...) o velho país literário que se incrusta no nosso espírito desde os anos infantis e parece não ser um trecho do Mundo, mas o próprio Mundo concentrado num sonho para quem vive longe e nunca o viu” (idem: 22), era a suprema aspiração de qualquer escritor ou artista. Esse interregno foi benéfico para Castro, que relembra:
A vantagem de me libertar, por algum tempo, da atmosfera do livro, do passado que ressuscitava e se tornava presente com uma vitalidade angustiosa, pois se é verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto, que algumas noites suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu próprio criara. (CASTRO, 1970: 22)
Aparte este “amor” ambíguo por uma Amazónia que, simultaneamente, o repele e o atrai, Ferreira de Castro envolve o Mundo inteiro num amplexo indiscriminado. No entanto, será ao seu semelhante que, por razões humanitárias, por saber que ele é um dos seres mais desprotegidos, mais explorados da Criação, dará uma atenção mais pronunciada.
O “escritor-povo” (FREITAS[29], 1967: 186) tem para com a humanidade uma atitude de compreensão pelos erros que esta comete, na assunção de que essas faltas resultam maioritariamente das pressões a que está sujeita. Tal não implica, porém, que perdoe as ofensas dolosas, praticadas por quem quer que seja, contra quem quer que seja. Os pobres, os excluídos, os explorados, têm nele um defensor incondicional:
[Ferreira de Castro possui] a piedade pelo semelhante, a compreensão das suas deficiências, a atribuição de uma culpabilidade relativa quanto aos erros que pratica, num clima que frequentes vezes lhe desobedece e não hesita em esmagá-lo na primeira encruzilhada. Percebemos nele um debruçar caritativo, fraternal, sobre as suas mazelas, a compaixão que sente por essas turbas desgarradas, tragicamente imóveis, que esperam apesar de tudo um milagre salvador. A sujeição apassivou-as e arrebatou-lhes a consciência do que representam neste minúsculo planeta, assoberbado por gigantescas paixões desnaturadas. (MOREIRA, 1967: 103)
Notamos no autor um aumento de perceção e atitude benevolente perante as falhas da humanidade a partir do início do seu relacionamento com Diana de Liz[30], em 1927, e até à morte desta, em 1930, — sentimento que se prolongou pelo resto da sua existência, como homem e como escritor. António dos Santos Pereira[31] afirma que qualquer referência à autora não deverá ser feita com ligeireza, “pois percebemos quanta humanidade de forma única ela aportou a Ferreira de Castro, intensificando a sensibilidade deste aos grandes problemas da vida.” (PEREIRA, 2016: 106)
A nossa interpretação é reforçada pelos prólogos de Ferreira de Castro às obras póstumas da escritora e reproduzidos por Manuel Ferro[32] no seu artigo de investigação. No prólogo de Pedras Falsas lemos que,
(…) partilhando da mesma ansiedade, [d]a mesma chama inquieta e infinita de Florbela Espanca, Diana de Lis enlanguescia em ternura e em compreensão. Era mais humana. As suas páginas, de onde brota uma suavíssima ironia, uma crítica amena aos preconceitos que lutam com irrefragáveis impulsos, estão cheias de piedade, de absolvição. Pautavam-lhe essa atitude compreensiva, o seu coração, onde residiam todas as generosidades, a sua sensibilidade delicadíssima e a sua grande cultura. (Castro apud FERRO, 2009, 389-390)
No prólogo seguinte, em Memórias duma Mulher da Época, Ferreira de Castro refere que os últimos trabalhos desta autora “são páginas onde a compreensão e a justificação da existência como ela é e não como nós gostaríamos que ela fosse, se envolvem em fraternal melancolia para com os nossos semelhantes.” (ibidem)
Não podemos, na verdade, ignorar as alterações que foram surgindo na produção literária do escritor após o seu casamento com Mimi Haas. O que era antes uma prosa cheia de humanidade e compaixão por todos os povos e em todos os personagens das suas obras, para os quais – bons ou maus – não existiam admoestações ou observações condenatórias explícitas, começou a, lentamente, transformar-se em reflexões analíticas sobre a personalidade dos seus intervenientes: Ferreira de Castro – defensor dos bons, dos justos e dos explorados, adquire outra parceria; surge Ferreira de Castro – advogado do diabo, remissor dos maus. Evidentemente, não falamos apenas da análise que o autor faz das suas criações, que adquirem, no computo geral, um cariz marcadamente autobiográfico, como extensões de si próprio, da sua vivência, da sua personalidade e, em consequência, do seu espírito humanista; o escritor debruça-se também sobre a maldade subjacente à espécie humana na generalidade, tentando compreender a sua existência, as suas manifestações e a sua génese.
Em Diana de Liz encontrou Castro uma alma gémea, cheia de perdão e compaixão pela humanidade. Esse entendimento mútuo terá expandido o já existente pensamento filantrópico do escritor, surgindo, em plenitude, no seu mundo literário e pessoal. Bernard Emery é taxativo ao referir que foi esta escritora, “sua companheira desde 1927, que teve uma influência muito positiva na evolução do estilo do autor.” (EMERY, 2016: 95)
Amplia-se em Ferreira de Castro uma compreensão dos dois opostos que não se inscreve num registo aristotélico, ou seja, em função do Bem e do Mal, e muito menos contemplando os seres humanos sob uma perspetiva plotínica, onde a Beleza abarca apenas o Belo. A estética de Ferreira de Castro suplanta essa separação entre o Bem e o Mal, entre o Belo e o Feio.
Segundo Alves, há, no espólio do autor, um sem-número de pedidos de ajuda por parte de viúvas e familiares de escritores e jornalistas, que se viram em dificuldades por força do desaparecimento dos seus entes queridos e que viam em Ferreira de Castro uma alma caridosa, pronta a auxiliar os seus semelhantes em momentos críticos das suas vidas. O crítico refere que Bernard Emery, ao inscrever essa solidariedade num franciscanismo que se revela na obra castriana, considera Castro como um “escritor ateu, mas impregnado de cristianismo.” (ALVES, 2002: 157)
Do mesmo modo, Aguiar-Branco retrata esta faceta humanitária do escritor: “O dinheiro que ganhava com [os prémios literários que recebia], segundo relatam as biografias, usava-o para fomentar obras de cultura ou de socorro a necessitados, na sua maior parte do jornalismo e do teatro.” (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)
Emery explica como Castro, sendo ateu, age em sintonia com uma perspetiva tão consentânea ou, pelo menos, similar à moral cristã:
[…] o escritor de Ossela nunca vê a imagem do Cristo no próximo por quem ele se compadece e se solidariza. Pelo contrário, não podemos negar que nele existe uma atitude franciscana na sua preocupação constante de diálogo, de compreensão e de compaixão. Se reduzirmos o espírito franciscano ao seu componente mais conhecido, e sem dúvida também o mais original, a saber, o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais, podemos efectivamente encontrar pontos comuns entre o escritor ateu e o santo cristão. (EMERY, 2016: 228-229)
O investigador aponta para uma transmutação da fraternidade, sempre presente em Castro, para algo mais intenso, mais íntimo; o escritor revê-se em todos os seres humanos e, ao fazê-lo, encarna a Humanidade, apieda-se e compreende-a, nos seus defeitos e nas suas virtudes:
(…) Também é verdade que a noção de fraternidade tem sempre em Ferreira de Castro uma forte intensidade sentimental, é assim que se explica a evolução que se deu nele da fraternidade para o amor pelo homem. Na génese deste amor, tal como a encontramos em Emigrantes, em A Selva, e depois em Eternidade, em que ela parece definitivamente realizada, há, além da compaixão, um sentimento de culpa face àquele que sofre, àquele que esquecemos, e ao ser que, pela sua insignificância, foi abandonado a uma espécie de inexistência. (idem: 229)
Reafirmamos, face ao exposto por Bernard Emery, o papel de Diana de Liz no desenvolvimento e maturação dos parâmetros definitivos que regem a elaboração das obras posteriores de Ferreira de Castro, que o crítico admite estarem definitivamente realizados em Eternidade.
É o próprio escritor, citado por Dias de Melo[33], que nos explica o juízo estético que rege toda a sua obra e, inseparavelmente, toda a sua vida:
Para mim parece-me que a maior aquisição foi compreender e amar o meu semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus erros e nos seus acertos, e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas realizações e nos seus heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, os limites inumeráveis, as aspirações sempre adiadas, impõem a tantos deles com implacável frequência. Compreender os problemas que afligem a maioria dos homens, que os afligem há milhares de anos, enquanto esperam pela justiça que tem demorado tanto. Compreender e fraternizar com os homens, sejam do Barroso ou da Serra da Estrela, da cidade em que vivo ou da aldeia em que nasci, de todas as cidades e de todas as aldeias de todos os países da Terra, por cima de todas as fronteiras e de todas as pátrias. Este acto de compreensão e de solidariedade, que emana não só do muito que sofri, mas também das observações feitas ao longo da minha existência, tantas vezes movimentada como a dos nómadas, sobre a Humanidade de várias latitudes: foi, sem nenhuma dúvida, a melhor aquisição que fiz. (CASTRO apud MELO, 1966: 94-95)
Ana Cristina Carvalho resume em poucas linhas o principal objetivo ético pelo qual Ferreira de Castro lutou, na firme convicção da vitória dos seus pares: “Um dos mais relevantes emblemas castrianos é a irredutível esperança na capacidade da Humanidade para sanar as suas imperfeições, gerar a própria redenção e construir um futuro brilhante. Bernard Emery chamou-lhe a ‘filosofia de esperança’.” (CARVALHO, 2017: 67)

 
  • Castro e a verdade: ficção e censura 
              A construção ficcional é explorada pelo autor como processo de enriquecimento dos seus textos de viagens, dando-lhes, não apenas a consistência narrativa necessária para descrever a sua experiência erradia, como também a utilizando como veículo para expor a sua visão inconformada dos erros e injustiças do mundo.
É evidente que também os seus romances, à semelhança de quaisquer outros de díspares autores, carecem da ficção para que a narrativa exista como tal e, identicamente ao acima exposto, possam conferir aos textos toda a carga dramática de que estes necessitam para transmitir as críticas e valores defendidos por Castro.

3.1. A questão da ficcionalidade
 
  •  
                               O investigador Ricardo António Alves apresenta uma definição da ética e dos objetivos do labor literário do escritor e que se projetam na globalidade da sua produção escrita:
[A obra de Ferreira de Castro encerra]:
1) uma tentativa de compreender o mundo, pensar os seus problemas e de o questionar.
2) a consciência de que o Homem é um ser complexo e contraditório.
3) inconformismo perante uma organização social injusta que está na origem duma maioria de deserdados que, então como agora, vivem nas margens do sistema. Para Ferreira de Castro, no entanto, os homens não são — não podem ser — uma massa que se conduza como um rebanho, mas indivíduos com realidades específicas e detentores duma dignidade que lhes advém da sua condição humana — que nunca poderá estar desligada da liberdade (...) (ALVES, 2003: 16-17).
O processo de criação dos textos de viagens de Ferreira de Castro obedece a um encadeamento de géneros e subgéneros literários como, por exemplo, romance, crónica e narrativa de viagem que, associados à investigação jornalística, longe de tornarem as obras confusas pela miscigenação genológica ou massudas pela profícua informação acrescentada, clarificam e tornam a leitura gratificante.
Ao lermos Ferreira de Castro nas suas descrições de viagens pelo mundo da época, deparamos com uma informação cuidada, fruto de autodidatismo e apurada visão jornalística, cultivados com denodo. Quando descreve um lugar, o autor provê-se de minuciosos dados históricos, a que acrescenta profícuas informações etnográficas e, se necessário, esclarecimentos sociológicos e acuradas descrições relativas à mitologia ou lendas a ele associados.
Alves ressalva a intenção estética do autor que, afirma, não tem mais pretensões de didatismo que não sejam apenas aquelas que sugerem um caminho evolutivo que conduza ao desenvolvimento racional da humanidade, em direção a um porvir por si idealizado:
Mas Ferreira de Castro era um romancista, não pretendia ser um historiador. A sua intenção era a de escrever uma nova “epopeia”: a das “classes populares em busca duma redenção colectiva. Uma epopeia que não teve ainda o seu épico” [34].
Há, no entanto, em Ferreira de Castro, um gosto da História, um perscrutar do passado que tem de ser visto à luz da sua matriz ideológica. Não se trata de amenizar a leitura, distrair o leitor, transportando-o para séculos recuados, mas perspectivar a evolução da humanidade no sentido do progresso, por contraste com políticas e mentalidades ancestrais, forçosamente superadas, “num trabalho lento de pua furando granito”[35] — para utilizar uma imagem de Terra Fria.[36] (ALVES, 2002: 37-38)
O cunho, por vezes fortemente autobiográfico, percetível na sua produção
literária, sobrepõe-se à ficcionalidade romanesca que o autor utiliza como forma de realçar as situações e vivências que expõe.
Em The Routledge Companion to Travel Writing afirma-se que “[t]here is no way to easily demarcate where fiction ends and anthropology begins” (THOMPSON, 2020: 58). No entanto, é impossível escrever um livro de viagens que não contenha, mesmo que infimamente, traços de ficcionalidade; qualquer descrição que não contemple essa premissa será um mero texto injuntivo, um insípido manual de instruções, que não passará dos pormenores técnicos, sem a mínima ação estetizante.
Embora possam, eventual e legitimamente recair suspeitas de a-historicidade e fantasia no que concerne a ficcionalidade das criações literárias do autor de A Selva, recorremos novamente a Thompson para, se não o ilibar, pelo menos legitimar as opções escolhidas por Ferreira de Castro: “Fiction, it is argued, can play a role in combating one of travel writing’s most ethically troubling characteristics: its persistent failure to promote an egalitarian sense of solidarity with travelees.” (THOMPSON, 2020: 59)
De facto, o uso da ficção permite relatar as experiências viáticas, não como algo por vezes arredio ou aberrante — o que criaria no leitor uma sensação de diferença, estranhamento, ou mesmo repulsa — mas, e mantendo a acuidade expetável, atenuar quaisquer choques civilizacionais ou éticos que as narrações efetuadas possam provocar, criando assim uma sensação de familiaridade ou naturalidade.
O autor demonstra compreensão e empatia para com os povos e as civilizações retratadas; nos seus relatos de viagens não encontramos vestígios de racismo, misoginia, exclusão ou sentimentos de superioridade, salvaguardando, é certo, a sua crença de que só através da instrução e da cultura (ocidentalizada, subentenda-se) será possível estabelecer um patamar de igualdade civilizacional, num total respeito pelos usos e costumes, desde que não colidam com a liberdade dos povos visados ou coibam o seu desenvolvimento.
Em sintonia com o exposto por Thompson, a ficcionalidade de Ferreira de Castro apresenta ao leitor todo um conjunto de novas e, por vezes, perturbadoras noções de povos e civilizações, desmitificando-os da sua aura de incultura e desmistificando conceitos a estes ancestralmente ligados:
For some readers, elements of outright fiction may always seem inappropriate and morally problematic in an ostensibly non-fictional form such as travel writing. However, advocates of fictionalization would suggest that creative-critical forms of travel writing are better able to emphasize writer’s positionality, to relinquish the genre’s customary degree of narrative authority, and encourage more sympathy for the peoples and places being described. (THOMPSON, 2020: 60)
De igual modo, e referindo-nos a outras obras de Ferreira de Castro que, embora já fora do âmbito da literatura de viagens, contêm sempre algo experienciado direta ou indiretamente pelo autor, como A Selva, Emigrantes, Eternidade, A Lã e a Neve ou Terra Fria, assim como aquele que podemos considerar um romance histórico, intitulado O Instinto Supremo, o uso da ficção surge como processo de autentificação do narrado. No ‘Pórtico’ deste último, o escritor justifica o seu uso:
Fiel à realidade literária, que pelo seu poder condensador e harmonizante é, como de há muito se sabe, mais convincente, tantas vezes mais verosímil do que a da vida, em numerosos passos desta obra rompi deliberadamente com a história, em prol da ficção criadora e livre, para que os seus heróis não parecessem mitos, as suas acções não segregassem a incredulidade que brota das fábulas, as suas virtudes emergissem da própria condição humana, como em todas as épocas foi verdade, antes dos factos se decomporem e tornarem lendários. (CASTRO, 1968: 17-18)
A credibilização das narrativas castrianas passa, como o autor indica, pela ficcionalização das suas histórias, dos seus romances; deste modo, as mensagens que os textos veiculam são transmitidas pelas personagens de um modo mais natural, pois o uso do quotidiano, quer nos quadros apresentados, quer na própria linguagem despretensiosa, criam uma relação de empatia com o leitor, que afasta qualquer suspeita de descrições fantasiosas ou inexatas, sob o efeito do processo de verosimilhança aqui construído.
Tzvetan Todorov, citando Oscar Wilde[37], corrobora esta ligação entre ficção e realidade através da literatura:
A vida em si é “terrivelmente desprovida de forma”. Dessa ausência resulta o papel da arte. “A função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo”. Ora, criar um mundo verdadeiro implica que a arte não rompe a sua relação com o mundo. (TODOROV, 2007: 66)
Em consequência, toda a obra do escritor reflete um esforço de legitimação dos seus ideais, mesmo que para isso seja necessário recorrer a uma trama ficcional que reforce e enriqueça literariamente a mensagem que pretende transmitir.
  
  •  Postura de um novel humanista
 
Embora possamos assumir que Ferreira de Castro foi, como soía dizer-se, um homem da sua época, ou seja, viveu sob uma ineludível influência dos conceitos sociais e morais então vigentes, o escritor empenhou-se sempre em, à luz da sua filosofia humanista, recusar tudo e todos os que, de alguma forma, revelassem diferença ou discriminação para com os seus semelhantes. O investigador Ricardo Alves afirma:

Não há, conscientemente, uma atitude etnocêntrica por parte do escritor n’A Volta ao Mundo. Mas, enquanto produto da sua própria cultura, constata-se como ele radica nas ideias progressistas ocidentais — com toda a carga positiva e equívoca que esta palavra encerra — a mudança das mentalidades das novas gerações desses territórios para com a tradição, “numa luta contra o passado”, combate de que ele quis ser um dos paladinos e que aplaudia onde quer que ele se manifestasse. (ALVES, 2002: 48)
Esse empenho na recusa de um etnocentrismo que lhe é, por inscrição cultural, inerente, encontra-se visível na sua atitude de autocrítica e no aviso que faz aos seus leitores, aquando da sua descrição da Índia e da sua civilização:
Os tipos, a cor do pigmento e as raças variam de grupo para grupo; tudo isto parece fantasia teatral, coisa imaginada. No primeiro contacto visual, o forasteiro tem de fazer um esforço para aceitar que toda esta humanidade é igual àquela a que ele pertence. (CASTRO,1950a: 19- 20)
Por outras palavras, o escritor alerta o leitor — e referindo-se a alguns países ou regiões e povos que visitou e que, à época, seriam considerados, por variegados fatores, civilizacionalmente atrasados — para a possibilidade de algumas conceções ocidentais preconceituosas e a-históricas se poderem sobrepor a uma renovada visão humanista do Mundo.
De facto, não há como não atentar na mirada europeísta do autor e de como ela influencia a sua perceção da humanidade. Existe efetivamente um olhar civilizador ocidental que Ferreira de Castro lança sobre as regiões intra e extraeuropeias que visitou.
Porém, e em abono da verdade e defesa do escritor, não nos podemos esquecer que esse mesmo olhar recai sobre o seu próprio país, vítima, como muitos outros, de um atraso moral, civilizacional e tecnológico assaz importante. Como Ricardo Alves salienta, “(...) pode dizer-se que a produção jornalística de Ferreira de Castro evidencia já uma preocupação por temas sociais, como as condições de vida dos presos, os meios de acolhimento nos albergues nocturnos (…), a vida dos operários na Mina de S. Domingos” (ALVES, 2002: 30).
Face ao exposto, constata-se que o problema pátrio é também por si analisado; porém, devido à existência de uma censura estatal extremamente repressiva, as suas críticas só muito mais tarde ganharão voz, pois, agastado com os cortes deturpantes, parciais e não raras vezes totais dos seus artigos, muitos deles sem razão minimamente plausível, desistirá do jornalismo até que, eventualmente, a liberdade de imprensa venha a ser restabelecida.
Só regressa às questões do próprio país quando a sua projeção internacional como escritor lhe permite tornar-se relativamente tolerado ou imune às investidas dos opositores, dos que se esforçam por coartar a sua liberdade de expressão e, por extensão, a verdade sobre as injustiças e as atrocidades internas pois, como diz o autor, “(…) os inimigos da liberdade só o são quando dispõem dela, quando gosam de todas as liberdades, inclusivé a de eliminar a liberdade dos outros.” (CASTRO, 1946: 1)
O escritor não é um turista, ávido por exibir cosmopolitismo e colecionar países e regiões no seu passaporte; é acima de tudo, um humanista que viaja para tentar conhecer, sinalizar e, eventualmente, compreender um mundo que, muito embora alienígena, sofre e tem os mesmos erros e problemas de que a sua pátria padece, também ela prenhe de miséria, fome e opressão.
Não procura o pitoresco, se essa singularidade passa pela infelicidade de um povo; para ele, o pitoresco é a originalidade da diferença de uma sociedade para com outras culturas e outros seres que se lhe assemelham na condição humana.
No japão, muito embora tenha feito observações pouco abonatórias dessa sociedade, visto ela constituir, na época, um país opressor, pois dominava a vizinha China com mão de ferro e pela força das armas, não deixa, contudo, de louvar as caraterísticas positivas dos nipónicos, retratando-os como uma etnia literária e artisticamente avançada, cuja capacidade tecnológica considerava, em certos aspetos, superior à dos norte-americanos. O seu espírito crítico não deixa, pois, de fazer um reparo em defesa da sua — cada vez maior — crença de que, afinal, humanisticamente falando, não existe plural na definição de “ser humano”:
Nós próprios, durante esta longa viagem, durante esta longa sucessão de povos, de costumes e de países diferentes, temos verificado, uma vez mais, quanto é absurdo julgar os homens pela sua cor ou pelo desenho dos seus olhos. Passamos duma terra para outra, duma raça para outra raça e, ao cabo de alguns dias, já nos parece natural o que a princípio nos surpreendeu e quase nos esquecemos de que os homens com quem estamos a conviver são, na aparência e nos usos, diferentes daqueles com quem convivemos semanas antes, porque, acima dos costumes e da cor da pele, persiste sempre e sobretudo — o Homem. (CASTRO, 1950b: 290)
Cruz Malpique apercebe-se bem dessa convicção de igualdade e pertença que Castro faz sempre transparecer na sua postura como escritor e cidadão do Mundo e que transporta para os seus livros:
Ferreira de Castro e a sua obra literária constituem um todo. Ele está nela, ela está nele. Consubstanciam-se. Osmoseiam-se. Penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la. Ferreira de Castro foi às vivências pessoais, transladou-as umas vezes na primeira pessoa, outras vezes na terceira, para lhes dar aparente impessoalidade mas, no fundo, é ele quem está sempre, na raiz daquilo que escreviveu. (MALPIQUE, 1976: 172)
É, todavia, notória a proeminência com que Castro tece acutilantes comentários sobre as injustiças que vai observando no seu périplo pelo mundo, assim como sobre a tirania e cupidez das classes dominantes, não se inibindo, porém, de atribuir a alguns dos povos dominados, por via da sua passividade ou excessiva resignação ou, como dirá Ferrão Moreira[38], “[p]or conveniências opíparas de uns e entranhadas covardias de outros” (MOREIRA, 1967: 99), o seu quinhão de responsabilidade:
Quando, há perto de quatro séculos e meio Vasco da Gama chegou a esta costa [Índia], o panorama devia ser o mesmo. Mas cobria-se, então, de mistério. Nós sabemos hoje que, nesta massa escura e ondulada onde finda o mar, reina a miséria e vegetam densas multidões semi-famintas e semi-nuas, separadas por ódios de raças e credos, tão grandes que nem a desgraça comum as une [.] (CASTRO, 1950a: 49)
Do mesmo modo, referindo-se ao povo malaio, o escritor critica o conformismo patente naqueles que teriam sobejas razões para se revoltarem contra um statu quo de milénios:
(…) gentes que labutam aqui, pelo magro arroz de cada dia ou que vêm, das minas de estanho, gastar, em Kuala Lumpur, o pouco que amealharam do muito pouco que receberam — e sempre a sorrir, com optimismo, perante a exploração de que são vítimas. (CASTRO, 1950a: 223)
Mesmo concedendo o devido e imprescindível distanciamento temporal e histórico e atentando às profundas e complexas mudanças políticas, geográficas e sociais que o orbe experienciou desde a criação das obras citadas, torna-se-nos difícil não ver espelhado o contemporâneo nas descrições do autor e nos seus comentários. Aparte o maravilhamento do Viator e a tentativa de compreensão e assimilação de mundos e culturas aos quais é estranho, o escritor faz transparecer frequentemente, de modo assaz incisivo e sem pudores, um misto de piedade, amargura e denúncia. Eurico Gama[39] afirma que Castro “escreveu com o coração, por vezes sangrando perante tantas injustiças praticadas no mundo atroz que vivemos[.]” (GAMA, 1976:145) Como ácrata assumido desde muito jovem e, nas palavras deste bibliófilo e editor elvense,
a sua ideologia política palpita em todos os seus livros, mas nunca neles encontramos palavras recalcadas pelo ódio, pecado em que Aquilino com frequência se deixava cair. Ferreira de Castro está sempre acima dessas misérias, sem, contudo trair os seus nobres ideais. (ibidem)
De facto, o autor de Emigrantes, não obstante a sua mordacidade e demonstrações de revolta perante as injustiças que presenciou ou denuncia, fá-lo de um modo expositivo, jornalístico, sem demonstração de excessiva rudeza ou agressividade. Como afirmou Agustina Bessa-Luís, citada por Pedro Calheiros, “[o]s contrastes da sociedade causavam-lhe uma pena indigna. Nunca agressiva. Ele era um homem de boa índole, não sabia insultar nem se encolerizava facilmente.” (CALHEIROS, 2007: 19)
As observações e relatos que produz, longe de meros apêndices de um livro de viagens, acabam por revelar o estímulo subjacente à criação, não apenas da obra A Volta ao Mundo, mas também da sua outra publicação, Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, dedicado à mesma temática. Alves, referindo-se à primeira obra, afirma:
Ao contrário de alguns orientalistas do século XIX (…), Castro não procurou o exotismo para satisfazer a curiosidade fácil dos leitores. Registou o belo e o feio, o sublime e o medonho, exalçando-os, deplorando-os e relativizando-os de acordo com a sua visão do mundo e da vida. (ALVES, 2002: 48-49)
Ferreira de Castro foi um escritor com uma sensibilidade incomum, cujo espírito crítico tanto condenava como indultava, de acordo com as circunstâncias, os povos e culturas que visitou. Nalguns trechos das suas obras nota-se essa dicotomia censura-louvor, numa maneira muito própria de, como diz Alves acima, registar o belo e o feio, o sublime e o medonho. Na sua visita a Jerusalém – cidade sagrada para muçulmanos, judeus e cristãos, observa:
(…) as gentes, cá fora, falam, gesticulam muito, altercam entre si, num rumor infindável; dentro, porém, dos pequenos estabelecimentos há sempre figuras de árabes, esboçadas na obscuridade, que se mantêm em completa quietude, pensativos, abstractos, os olhos com a neblina da distância, o corpo presente e o espírito ausente. A alma muçulmana, feita destes contrastes bruscos, dá ao pitoresco das ruas de Jerusalém alguma coisa que está por cima do pitoresco, do ruído e da ânsia de quitar proveito do estrangeiro; algo de melancólica espiritualidade, de leve sombra que se estende, indolentemente, sobre o sol que dorme nas vetustas pedras. (CASTRO, 1949d: 157)
Mais à frente o autor revela o seu modus operandi, de que forma ele exorta a observar o mundo, ou seja, a interpretá-lo. Não o avalia apenas com o que em aparência se lhe depara, mas sobretudo com a visão interior, com o perscrutar crítico do espírito: “Perante Jerusalém, como perante as paisagens, o importante não é o que se vê e sim o estado de alma com que se vê. Na Palestina, o principal não é o que está; o principal é o que cada um traz dentro de si próprio.” (CASTRO, 1949d: 169)
Em conformidade, e referindo-nos ao trabalho do escritor, citamos a investigadora Sofia de Melo Araújo, que afirma:
(...) há que reconhecer o extraordinário papel da Arte em geral, e da literatura de ficção em particular, não apenas como veículo de ideias definidas, mas também enquanto gerador de questionações e reinterpretações do Mundo e da Vida, que assumem mesmo papéis de destaque na transformação do Real. (ARAÚJO, 2016: 72)
Para Sofia Araújo essa aceitação traduz-se “na necessidade de constatar que, para além dos efeitos estéticos, a obra de arte é sempre uma representação de valores, de escolhas, e que alguns desses valores não são simplesmente estéticos, mas sociais, políticos e éticos”. (idem: 73)
O escritor esforçou-se sempre por apresentar os episódios da humanidade e, em geral, da vida à superfície do planeta, tal qual elas se manifestavam: sem filtros e sem véus, embora salvaguardando uma narrativa dentro do que considerava socialmente aceitável, tanto nos seus textos literários como nos jornalísticos.
Assim, Adelino Ferreira Neves recorda o desencanto amargo com que Ferreira de Castro acolheu a informação de que um artigo seu tinha sido suprimido pela Censura. Nesse texto, Castro, mais do que a notícia como mero trato jornalístico, impessoal e frio, ressaltava aspetos sociais que apelavam a uma compreensão, compaixão e justiça pelo que se escondia por detrás de um drama humano, provocado por precipitação e abuso de poder das autoridades: em Beja, um homem havia sido acusado de roubo de cereais; para o tentarem condenar, levaram a sua mulher para a cadeia, onde foi torturada, numa tentativa de obter dela a confirmação do roubo. Esta, não resistindo ao sofrimento, enforcou-se na cela. Em desespero, o marido, ao saber de tão terrível desenlace, barricou-se em casa, armado. Cercado pela GNR e pela PSP, durante o tiroteio que se iniciou, matou um chefe das forças policiais, tendo também sofrido ferimentos. Preso e enviado ao hospital numa ambulância, com febre devido às escoriações, pediu água. O guarda que seguia na viatura, enfurecido pela morte do chefe, em resposta e por vingança, alvejou-o, matando-o. Posteriormente soube-se que o homem estava inocente.
Castro faz a notícia, fiel aos acontecimentos. Neves, como correspondente e redator regional d’O Século em Beja, manda-a publicar, enviando-a para Lisboa. Mais tarde, visitando o autor nessa cidade, soube que a notícia tinha sido totalmente cortada pelo lápis azul da Censura:
Passados tantos anos ainda hoje revejo nitidamente o semblante de tristeza e mágoa de Ferreira de Castro, depois de ter lido a reportagem que escrevera!... E. perguntando-lhe eu da sua impressão crítica dos acontecimentos, Ferreira de Castro disse-me simplesmente... ‘O Matos nunca se poderá considerar um criminoso... defendeu-se dos que o queriam matar; nada teria acontecido se não lhe tivessem morto a mãe dos seus filhos e depois o não tivessem perseguido tão ferozmente.’ [40] (NEVES, 1976: 13-14)
Ana Cristina Carvalho reproduz o extrato de uma entrevista do autor ao Diário de Lisboa (1945), onde este, amargamente, mas com fina ironia, refere a sua incredulidade perante os cortes censórios que, amiudadas vezes, sofria nos seus artigos jornalísticos:
Uma vez, cheguei a escrever três artigos sobre o mesmo assunto — sobre o Natal — e todos foram proibidos, porque neles eu aludia aos pobres que, nessa noite, tinham frio. Chega a parecer inverosímil (...) que as esferas oficiais houvessem deliberado fazer acreditar o país e o estrangeiro que em Portugal ninguém tinha frio, nem fome, nem miséria, que havia, portanto, um Portugal que nós não víamos em parte alguma e que era diferente daquele que nós víamos todos os dias e em toda a parte. (CASTRO apud Carvalho, 2017: 130)
Também Ricardo Alves reconhece o ónus sofrido pelo autor – no fundo, por todos os escritores portugueses não alinhados com as políticas do regime — e que reflete na sua constatação de que “Castro escreveu a sua obra sob a pressão da censura, de Emigrantes a Os Fragmentos. Sentiu, portanto, duma forma aguda os constrangimentos e o sufoco dum estado repressivo e policiado.” (ALVES, 2002: 100)
De facto, o escritor refere na sua última obra – Os Fragmentos – essa sensação torturante com que teve de conviver durante toda a sua vida profissional de escritor e de jornalista, de não poder escrever as verdades que lhe brotavam do mais íntimo da sua consciência e com as quais pretendia denunciar os erros e iniquidades do sistema e, por extensão, do mundo: “(…) de todos esses fabricantes de perniciosos silêncios, o mais nocivo de todos (…) não é o censor real, é a sua consequência, o censor abstracto que se instala no nosso cérebro e de lá nos comanda impiedosamente.” (CASTRO, 1974: 39)
Ferreira de Castro relembra a mágoa com que “(…) f[o]i obrigado a vigiar o comportamento das palavras para além das suas imposições estéticas, nesta mesma secretária de onde eles deviam erguer voo, direitos à luz exterior, e quedarem afinal na escuridão das gavetas, como na de um túmulo.” (idem: 11)
São, como já acima foi referido, contínuos os cortes às suas crónicas, e também aos seus livros: depois de já ter publicado A Volta ao Mundo, Eternidade e Terra Fria, tenta dar ao prelo O Intervalo, no que é prontamente impedido pela Censura. Esta obra, publicada postumamente após o 25 de abril de 1974, e inserida no livro Os Fragmentos, aborda a vida de um personagem ficcional, chamado Alexandre Novais, um dirigente anarcossindicalista português, obrigado a refugiar-se em Espanha por ser alvo de perseguição política no seu país.
A ação decorre em 1933, em Cádis, onde o português participa nas insurreições operárias da Andaluzia, que acabam por redundar no massacre de Casas Viejas, onde populares revoltosos sucumbem, independentemente do seu sexo ou idade, às mãos das forças policiais — acontecimento verídico que precipitou a queda da 2ª República espanhola. Tratava-se, assim, de um tema interditado pelo Estado Novo, pois implicava, não apenas a reprodução inadmissível de uma sublevação popular, como indiciava também a existência de atitudes repressivas do Estado, em território luso.
Por razão desse impedimento, e dando voz a Ferreira de Castro: “Mas já então eu vivia exclusivamente da minha pena. Tinha, pois, de trabalhar. E foi por essa exigência que escrevi, com desalento imenso, o meu primeiro livro de viagens, esses ‘Pequenos Mundos’ que nunca pensara escrever quando os trilhara num sonho errante.” (idem: 78)
Não podendo falar abertamente das injustiças e misérias do seu país, o único recurso foi o de o fazer espelhando noutros mundos o mundo em que nascera e que lhe era interdito criticar.
De notar que, na última obra referida, a sua descrição da ilha da Madeira já consegue deixar transparecer os primeiros vislumbres de uma crítica ao imobilismo e segregacionismo estatal, no que concerne ao bem-estar do povo, sem que, em consequência, seja impedido pela Censura:
O nível de vida do povo, sobretudo do camponês, é impressionantemente baixo. Como na Córsega, a existência humana nas aldeias da Madeira caracteriza-se por uma forçada sobriedade na alimentação. Aqui bebe-se aguardente a mais e pão a menos. (…) Até há pouco tempo havia o sonho da emigração; mas fechadas as portas da América, só no álcool o camponês gozará, porventura, fictícia redenção e momentâneo esquecimento. O seu hortejo, o leitezito da sua vaca, que ele vende para lacticínios, e os bordados que faz a mulher, dão-lhe tão fraco rendimento que nenhuma hipótese de vida farta lhe é possível admitir. Como nas aldeias do continente, encontramos na Madeira menos crianças que vão à escola porque os pais não podiam comprar os livros de ensino. (CASTRO, 1949d: 279)
O pitoresco, como expressão genuína do povo, esse casticismo português de primitivismo e miséria, explorado como um exotismo intraeuropeu, atrativo para os estrangeiros e para benefício económico do Estado e de alguns privilegiados, começa a ser referido com mais incisividade:
Não há muito tempo, esta expressão de existência primitiva era apenas vista como “coisa pitoresca”. O forasteiro arribava, fruía o encanto das longas sebes de buxo e de hidrângeas, sorria-se paternalmente das barraquitas, que são graciosas na sua pobreza e abalava a narrar a impressão colhida do povo que vivia na nossa época como nas épocas primárias. Hoje, desde que se tenha o coração e cérebro em bom funcionamento, isto levanta outras sugestões. (CASTRO, 1949d: 281)
A atitude paternalista atribuída aos forasteiros, e a que o autor se refere, poderá ser considerada uma forma de exotismo intraeuropeu, mas a que não podemos atribuir em exclusivo a visão eurocêntrica e depreciativa que os países do Norte do Continente tinham — e mantêm ainda — sobre os territórios soberanos do Sul da Europa. Muito para além disso, trata-se de uma mirada de supremacia social que poderá ser exercida por um qualquer grupo que se autointitule superior, geralmente em termos de classe, económicos, ou mesmo nacionais, independentemente desta dicotomia continental.
Podemos assim falar também de um “microexotismo intraeuropeu” quando abordamos, por exemplo, algumas formas de turismo rural que não se enquadrem em padrões ecológicos ou culturais, mas que se destinem apenas à fruição dessa “existência primitiva” como “coisa pitoresca”. Sob esta perspetiva, um português da Madeira poderia ser visto como exótico aos olhos de um seu compatriota continental.
Apesar da origem da visão eurocêntrica do Norte Europeu, que acima referimos, ter raízes históricas e geográficas muito mais antigas e complexas, é relevante citar Roberto Dainotto: “With the Reformation, a latitudinal crisis ‘between an increasingly wealthy protestant North and an increasingly impoverished Catholic South’ (Pagden, introduction 13)[41] completed the latitudinal fracture of Europe, shifting its center of influence away from the Mediterranean.” (DAINOTTO, 2007: 44)
Desta crise, e segundo alguns autores – diz Dainotto – nasceu o Espírito da Europa Moderna.
Podemos, assim, compreender um pouco melhor as razões de uma conceção redutora que englobava os quatro países mediterrânicos aderentes à União Europeia nas décadas de 80 e 90 do Século XX – Portugal, Itália, Grécia e Espanha –, e que os países do Norte apelidaram de PIGS[42]: “A modern European identity, in other words, begins when the non-Europe is internalized—when the south, indeed, becomes the sufficient and indispensable internal Other: Europe, but also the negative part of it.” (DAINOTTO, 2007: 4)
Por estas mesmas razões não será de admirar que o autor, profeticamente, se permita, sessenta e dois anos antes das declarações acima transcritas, em 1945, conceder uma entrevista, onde tece críticas ao desempenho governamental e, no geral, ao estrato social dominante sem, contudo, ser demasiado explícito, evitando assim represálias desnecessárias, e para si moralmente desgastantes:
Não sou político. Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos. (CASTRO, 1945) [43]
Por essa altura, a projeção de Ferreira de Castro como escritor, fruto do acolhimento extremamente positivo da crítica e dos leitores, um pouco por todo o mundo, no seguimento das várias traduções e publicações das obras Emigrantes em 1928, e A Selva em 1930, tinha surtido os seus efeitos:
A excepcional recepção internacional da obra de Ferreira de Castro explica grandemente o medo do regime salazarista de proibir as suas obras e de inquietar o escritor. Prender ou censurar Ferreira de Castro, o Soljenitsyne luso, pela sua aura, seria uma autodenúncia internacional dos maus hábitos repressivos do regime e dirigir ainda mais os holofotes para a miséria do povo português.[44] (CALHEIROS, 2017: 35)
Numa carta laudatória enviada ao escritor no seguimento da publicação da novela A Missão, em 1954, Jaime Brasil revela-nos, não apenas a relativa intocabilidade de que Castro gozava, mas também, no que concernia aos editores, o temor de represálias que subjazia a publicação das suas obras:
A novela central é assaz subversiva para lhe ter causado apreensões e aos leões editores. É preciso terem-lhe muito respeito para dos seus acacianos prelos saírem coisas tão atentatórias da ordem estabelecida. Parabéns pela sua coragem, a sua de autor e não a deles editores, pois neles não se trata de coragem, mas de medo. [45] (BRASIL, 1954: 199)
Ferreira de Castro é, como Aquilino Ribeiro, um autor inconformado; o primeiro foi um migrante económico, o segundo, temporariamente um exilado político, posteriormente indultado. Embora separados por treze anos de idade, pois Aquilino nasceu em 1885, partilham o mesmo pensamento ideológico e ideal humanístico: o anarquismo. Nenhum tem qualquer filiação partidária, são republicanos e anticlericais e ambos se insurgem contra o Estado Novo, por questões políticas, sociais e humanitárias; os dois são jornalistas e escritores, mas, ao contrário da suavidade castriana, Aquilino é truculento. Na sua juventude, foi preso por posse de bombas e suspeito de colaborar no assassínio do rei D. Carlos e do seu filho e sucessor, D. Luís Filipe, além de participar em levantamentos e outras atividades ditas subversivas.
No entanto, ambos foram “tolerados” pelo Estado a quem criticavam, pois que o sucesso da sua projeção nacional e mundial exigia um abrandamento ou supressão de medidas punitivas ou restritivas, de modo a salvaguardar a imagem de normalidade e tolerância que o governo pretendia fazer passar ao resto do mundo. De outro modo, seriam hoje, provavelmente, autores quase desconhecidos.
Sem pretender entrar em exageros encomiásticos, achamos, contudo, relevante e pleno de significado o retrato moral que Cruz Malpique faz de Ferreira de Castro: “humano, humanista e humanitário.” (MALPIQUE, 1976: 173) Dois exemplos, para nós, mais marcantes desta afirmação e dos quais não podemos abdicar —sob pena de retirarmos à nossa exposição a alma de Ferreira de Castro —, surgem aquando dos seus relatos das visitas à Índia e, posteriormente, à China. Comecemos pela terra dos Brâmanes:
Maletas feitas, abalamos, um dia, do hotel. A numerosa criadagem formava, consoante o hábito, filas à porta do quarto, atenta à gorgeta (…). Só o “intocável” estava longe, encolhido, isolado, na parte mais obscura do corredor. Ao gratificá-lo, estendemos-lhe a nossa mão, numa pueril mas irrefreável atitude contra o aviltamento do ser humano. Gesto inédito, decerto, na sua vida, ele quedou-se, a contemplar-nos, perplexo. Só perante a teimosia da mão que se lhe oferecia, se decidiu a apertá-la, timidamente, os olhos apavorados, receando não haver compreendido bem e ofender-nos. Afinal, nós éramos iguais em tudo, que para os defensores das castas um europeu e um pária da Índia são ambos intocáveis e impuros… já à porta do ascensor, demos conta de que nos havíamos esquecido dos cigarros e, por eles, volvemos ao quarto. Fomos encontrar o pária a chorar. Ao passarmos, ele soergueu a cabeça e nos seus olhos de grande superfície branca vimos uma submissão e uma inútil gratidão que jamais tínhamos visto noutro olhar…
Pouco depois, o expresso de Agra, levando-nos, partiu da arrogante estação de Bombaim. (CASTRO, 1950a: 74-75)
Na Índia, embora combatido durante décadas, o sistema de castas — no fundo, uma forma de xenofobia e racismo internos —, estritamente ligado à miséria, ignorância e fanatismo religioso de um dos países mais populosos do planeta, pode ainda hoje refletir-se parcialmente no presente, expondo episódios que se poderão aproximar da realidade que Ferreira de Castro presenciou há mais de oitenta anos. Entretanto, na China, o panorama modificou-se radicalmente, embora saibamos que lá, como em qualquer outro país, continua a existir muita miséria escondida e incómoda.
Ferreira de Castro, em 1939, em plena Guerra Sino-Nipónica e no início da II Guerra Mundial, parte da cidade chinesa de Xangai, então ocupada pelos japoneses, para Cobe, no País do Sol Nascente.
Antes de abandonar o cais e embarcar no navio fretado, lembra-se que ainda possui cerca de dez ou doze dólares chineses que, fora do país, nenhum valor terão, devido à extrema desvalorização provocada pelo clima bélico então vigente. Chama o condutor de um jinrixá[46] que acabara de deixar um cliente e oferece-lhos. Ele, após compreender que se tratava de uma dádiva, fica incrédulo e admirado. Castro comenta, não se esquecendo, todavia, de, à semelhança do exemplo que demos sobre a Índia, assinalar subtilmente a exploração e os contrastes sociais:
Com uma só libra se pode fruir um dia de opulência. O trabalhador nativo continua, porém, a receber uns míseros cêntimos. Quis o destino que, para nós, a última imagem humana da velha China mártir fosse a deste sudoroso chinês, de calções curtos e blusa sem mangas, que, com uma mancheia de papéis amarrotados, papéis que nem sequer traduziam generosidade da nossa parte, nos contemplava como se não soubesse ao certo se havíamos perdido o juízo ou se ele estava a sonhar. Na nossa frente erguiam-se os imponentes edifícios de Xangai, catedrais de negócios, e corria a terra chinesa, onde, há já séculos, bandos de alienígenas iniciaram, em proveito próprio, a colheita das riquezas nacionais — e nunca mais a abandonaram. (CASTRO, 1950b: 171)
N’A Volta ao Mundo, da qual retirámos as citações acima, e tal como em Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, Ferreira de Castro divide-se por três tipos de descrição: a geográfica, a histórica e a etnográfica, mantendo em permanência elos de ligação com destaques não menos importantes, talvez mesmo veladamente fulcrais, que serão a injustiça social, as condições desumanas que presenciou no mundo do seu tempo, na sua vivência e nas suas viagens e que, embora aparentem por vezes terem sido extirpadas ou atenuadas nos nossos dias, continuam a surgir mais encobertas e, eventualmente, ainda mais gravosas do que as constatadas à época das descrições do autor. Mesmo considerando que A Selva é um romance de cariz autobiográfico e Pequenos Mundos e A Volta ao Mundo são livros de viagens, seria provavelmente a vertente de denúncia das injustiças sociais, o verdadeiro motivo da sua conceção. No caso de Portugal, o autor recusava-se a compactuar com descrições miríficas que mostrassem um jardim da Europa à beira-mar plantado e habitado por um povo de jardineiros felizes. Seria isso o que o Estado Novo pretendia mostrar aos olhos do mundo, através do controlo da Imprensa, dos poetas e dos escritores portugueses.
Assim, não lhe sendo permitido denunciar o estado da Nação, opta, contra sua vontade e por força da necessidade de subsistência, por escrever os livros referidos. Nestes, não se inibe, todavia, de denunciar as injustiças, expor a miséria, a opressão e as péssimas condições de sobrevivência de cada povo e de cada país que visitou, deixando por vezes, nas entrelinhas, indícios suficientes para se poderem estabelecer ligações com os problemas análogos da sua pátria.
Surge a este propósito uma questão fraturante que tem sido alvo de diversas interpretações: o papel desempenhado pelo autor na génese do neorrealismo português.
No documentário Estado Novo e Literatura, consultável no arquivo online da Rádio Televisão Portuguesa, Luís Augusto Costa Dias (à época, diretor do Museu do Neorrealismo) comenta que, embora Ferreira de Castro possa encontrar-se “dentro do espectro neorrealista”, o seu papel será mais o de “recuperação dos realismos.” (DIAS, 1997: passim)
Segundo o investigador, “a característica basilar do neorrealismo” é “a questão da utopia”, ou seja, “a criação de uma sociedade nova livre de opressões”, através de “uma corrente da arte e do pensamento”, em simultaneidade, e não como “uma literatura exclusivamente política.” (idem)
No entanto, existe uma ligação política que une os pioneiros do neorrealismo: a sua convicção de que só a luta de classes poderá ser o procedimento tendente à criação de uma sociedade mais justa e equilibrada ou, por outras palavras, uma sociedade de inspiração marxista.
Tal não é o caso de Ferreira de Castro: ácrata convicto, nunca aceitaria subjugar os seus ideais a uma qualquer – fosse qual fosse – estrutura de poder, razão por que foi, fiel a si próprio, e até ao fim dos seus dias, agnóstico e apartidário. Como observa Aguiar-Branco, referindo-se ao autor:
[a]firmou sempre que a liberdade de pensar é indissociável da dignidade humana. O seu conceito e prática de liberdade levou-o, inclusivamente, a não professar nenhum credo religioso, nem aderir a qualquer fação ou partido político, apesar de reiterados convites e da sua valia entre os intelectuais neorrealistas e nos meios anarco-sindicalistas. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)
Damos, assim, alguma razão a Ricardo António Alves, quando este afirma que “se ele foi um precursor, não deixa de ser bizarro ter antecipado na estética uma via discordante da sua própria ideologia, tanto mais que quem abre caminhos, trilha-os forçosamente, mesmo que depois acabe por se afastar deles — e não foi o caso.” (ALVES, 2002: 74)
A opinião de João Gaspar Simões é, em parte, concordante com a de Ricardo Alves:
Sem dúvida que são muitas as divergências a assinalar entre o realismo social de Ferreira de Castro e o realismo social dos neo-realistas. A mais evidente é esta: enquanto a literatura do autor de A Selva é fortemente temperada de realidade experiencial, digamos, jornalística, a literatura dos neo-realistas é assinalada por um regresso ao subjectivismo de tipo “Matière de Bretagne”,[47] uma vez que a falta de experiência da realidade evocada conduz à introdução da poesia onde é mister encontrarmos a realidade.[48] (SIMÕES, 1967: 151)
No entanto, no seguimento da sua exposição, Simões volta a reacender a polémica, deixando o leitor num impasse quanto à sua inscrição estético-ideológica:
Copiam-lhe os métodos os novos realistas? Não. Seguem-lhe a filosofia? Tão-pouco. Adoptam-lhe a estética? Também não. Em que é que o realismo social de Ferreira de Castro pode considerar-se, então, precursor do realismo social dos neo-realistas? Apenas em ser realismo social. (…) Os neo-realistas, mesmo que nada aprendam com Ferreira de Castro no ponto de vista da concepção romanesca, têm nele um precursor. E um precursor mais válido do que parece. Enquanto a sua literatura é vivida como experiência humana, a deles — a da maior parte deles — é concebida de cor, elaboração livresca equacionada de acordo com uma estética mais próxima da subjectividade da novela de cavalaria que da objectividade dos relatos quase jornalísticos em que se funda a autêntica novelística de fundo realista. (idem: 152)
Lucas Maia[49]explica este processo de separação de correntes ideológicas, embora de inspiração comum, que poderá fazer-nos entender melhor o motivo das divergências em torno da categorização deste autor:
Durante o processo de afirmação do anarquismo como um movimento social, o aparecimento e influência do russo Mickhail Bakunin é de fundamental importância. Bastante influenciado pelas idéias de Proudhon, Bakunin vai levar às últimas conseqüências as idéias de anarquia como negação da autoridade e do estado. Criou-se deste modo uma polêmica entre Marx e Bakunin ou como entrou para os anais da história do movimento comunista: os socialistas autoritários, discípulos de Marx e os socialistas libertários, discípulos de Bakunin. Os primeiros, amantes da autoridade e do estado, os segundos, a negação racional e direta da autoridade, do estado e dos governos. (MAIA, 2010: 140-141)


Face ao exposto, somos tentados a acreditar que José Maria Ferreira de Castro é um dos escritores mais importantes do Realismo Social no nosso país, movimento artístico então emergente e perseguido. Quanto à sua inscrição no Neorrealismo, limitamo-nos a expor os argumentos teóricos que se nos têm deparado sem, contudo, abraçar qualquer posição estética, pois não consideramos avisado adotar uma decisão definitiva sobre um tema que, pela dificuldade de escolha entre algumas teorias aceites como minimamente válidas e pela dubiedade de outras, não pode exigir uma tomada de opinião sólida sem uma investigação mais aprofundada, e que não constitui o objetivo desta dissertação.

Considerações Finais
No presente estudo, procuramos atardar-nos em pegadas éticas e estéticas de algumas obras de Ferreira de Castro.
Tentámos compreender o autor nos limites de uma multidisciplinaridade, para nós, possível. Aflorámos um pouco da ética, da estética, da moral, do humanismo, da literatura, da sociologia e da política; analisámos o seu percurso vital, quase desde a nascença, o seu desterro compulsório e desvalido, e como lutou para se libertar e à Humanidade, como um todo, de um futuro determinista, não com um intuito biografista, mas colocando tal démarche ao serviço do nosso desígnio, que é o de procurar assimilar a sua ética universalista e o objeto estético por que ansiava. Valemo-nos, à impossibilidade de outros recursos, de livros do autor e de meios audio-visuais e estudos com ele relacionados, assim como obras que selecionámos dentro do quadro multidisciplinar acima referido. Desse modo, peça a peça, capítulo a capítulo, seguimos o seu percurso singular.
Começámos, assim, por analisar as suas origens modestas e os pressupostos de desenvolvimento literário e pessoal, que em nada abonavam a seu favor, e concluimos que, aliado a um anseio de se tornar jornalista, — objetivo preconcebido ainda na infância, em Oliveira de Azeméis —, juntou a uma vontade forte uma visão humanitária, ambas reforçadas pela sua própria experiência e cimentadas pela exploração e condições desumanas a que ele e os seus companheiros de infortúnio se sujeitaram.
Vimos, mais tarde, que o jovem José Maria, ainda adolescente, e pese embora as dificuldades de sobrevivência, aliou o seu desejo de pertencer ao mundo mediático, editando pequenos artigos nos jornais locais — e em paralelo com uma incipiente produção novelística —, a um esforço tenaz de leitura que abarcava as mais diversas e possíveis disciplinas do conhecimento, ao seu alcance. Foi, portanto, um autodidata atento, o que já lhe permitia escrever com acuidade e certa erudição.
Inicia-se nesta fase o seu interesse pelas doutrinas sociais, muito em voga na época, com particular incidência no anarco-sindicalismo, que marcaria o seu percurso até ao fim dos seus dias e que muito cedo se transforma numa forma de realismo social muito própria, que culmina no que apodamos de Novel Humanismo. Este, tendo como pano de fundo várias personagens de referência na sua vida literária e humanística, como Kropotkine, Marechal Rondon, assim como sua primeira mulher Diana de Liz, entre outros, materializa-se numa relação de alteridade “impregnada de cristianismo”, ou, por outras palavras, numa espécie de “franciscanismo” ( Emery apud ALVES, 2002: 157) ateu.
Viajante, sedento de compreender e interagir com o Mundo em que vivia, alargou os seus horizontes e estreitou a sua ligação com povos e culturas próximas e longínquas, sempre atento aos enormes fossos sociais com que deparava, tentando interpretar as razões dessas diferenças com paciência e compaixão.
É, pois, esta, em essência, a sua ética: nem filiado nem acólito, Ferreira de Castro adota uma prática que, passando pela observação, compreensão, denúncia e crítica, atinge o seu clímax num altruísmo transmutado em amor incondicional pelo Mundo, pela Natureza e suas díspares manifestações e, muito particularmente, pela Humanidade.
Antes, porém, e num longo processo, o autor teve de exorcizar-se de visões preconcebidas e fraturantes sobre a sociedade, sublimar as suas conceções do Orbe e pacificar-se com a Natureza. A sua visão da juventude, naturalmente aguerrida e ansiosa pela mudança, foi-se transformando pela ponderação e pela compreensão dos seres com quem partilhava a espécie, acabando por lhe conceder a paz dos que se sentem indivisos com o Universo.
No decorrer da sua vida e como manifestação da sua ética, Ferreira de Castro produziu obras literárias que veiculam a materialização dos seus ideais, da sua visão do Cosmos, da Natureza e da Humanidade que o habita, e que poderão ser consideradas o seu corpus estético.
Pela nossa análise chegámos, porém, à conclusão de que o impacto inicial da sua Obra, pese embora a qualidade literária e o reconhecimento dos valores que encerra, tem vindo a diluir-se por força das suas circunstâncias temporais e situacionais específicas que, na nossa opinião, fazem-lhe perigar a sobrevivência no tempo literário; embora o impacto mundial tenha sido extremamente relevante, à época, as suas descrições viáticas e os seus romances foram perdendo a atualidade perante o público leitor, apesar de toda a sua riqueza como objeto multidisciplinar (histórico, sociológico, político e etnológico, entre outros), apenas resistindo maioritáriamente no seio dos meios académicos e de algumas entidades exclusivamente dedicadas à sua existência e produção intelectual. Na ausência destes, as obras de Ferreira de Castro, embora possuindo uma elevada eticidade, cedo se transformariam em triviais romances e livros de viagens, onde se observariam algumas abordagens à construção social da época, com as suas injustiças e desigualdades, mas que eventualmente passariam despercebidas, e os seus livros acabariam por se tornar textos obsoletos, redundando em meras curiosidades literárias.
A investigadora Sofia Araújo inicia o primeiro capítulo do seu estudo, por nós anteriormente citado, com uma observação, na nossa opinião, muito pertinente:
A aproximação científica da Ética à ficção dá-se na generalidade dos casos pelo estudo da função (ou disfunção) exercida pela Literatura na formação ética dos seus leitores, da forma como o recurso à Literatura, enquanto experiência estética e enquanto reduto de vivências vicariantes, pode influenciar ou mesmo determinar a atitude ética (e respetiva seleção axiológica) do seu recetor. (ARAÚJO, 2016: 33)[50]
Relevamos, assim, a importância da divulgação da obra de José Maria Ferreira de Castro, não apenas como objeto de fruição estética, mas principalmente como somatório dos valores éticos que hoje, como então, é importante difundir. No entanto, não será difícil entender a razão do seu “apagamento” no panorama literário português ou, mais propriamente, no circuito de leitura português; Segundo os dados do Conselho Nacional de Educação, nota-se que
(...)no que respeita à implantação da forma de cultura predominante da modernidade, a cultura escrita, Portugal é, desde meados do século XIX, separado do espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, tornando-se numa periferia da periferia, e tal comportamento agrava-se durante o século XX, quando o país se torna ele próprio numa tendência, ou seja, evidencia um atraso tal que não é “agrupável” com outros países europeus[.][51] (CANDEIAS, 2010: 30)
Assim, a sua ética, embora na essência, imutável, não atinge na atualidade os objetivos iniciais propostos e a projeção que o conjunto do seu trabalho literário pretendia veicular, visto a existência de um público-alvo ser, à época deficitário. Ao mesmo tempo que a anterior, também a sua obra, entendida como objeto estético, foi esvanecendo por falta de leitores sensíveis à perceção estética — circunstâncias que tiveram repercussões negativas óbvias durante as gerações seguintes.
Apesar dos louváveis e insistentes esforços de recuperação das entidades acima referidas que, em continuidade, se debruçam sobre o seu trabalho, Ferreira de Castro, referência literária e ética, tem-se vindo a tornar diáfano à medida que a sua escrita se afunda no passado.
Devido ao complexo entorno que focámos no desenvolvimento do tema proposto, torna-se difícil avaliar com distanciamento e isenção José Maria Ferreira de Castro; é necessário ler atentamente as suas obras e as recensões dos seus críticos mais fidedignos, tapando os olhos e os ouvidos aos modismos, aos gostos das leituras fáceis ou resumidas e a quaisquer tentativas insidiosas de inscrição em cultos ou ideologias.
Apesar da injusta névoa que paira sobre o seu trabalho, os seus livros valem pelo conteúdo, pela coerência e pela mensagem que o leitor consciente e atento identifica, assim como Ferreira de Castro vale pela sua humanidade e universalidade; juntos fazem, como numa transmutação alquímica, a Obra. Nas palavras de Cruz Malpique, que citámos anteriormente: “Consubstanciam-se, osmoseiam-se, penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la.”
Os livros que Castro escreveu são o seu reflexo, e tudo quanto aí deixa transparecer é sincero, sem subterfúgios. Neles apercebemo-nos dos seus medos, dos seus sonhos, das suas amarguras e dos seus momentos de felicidade e familiarizamo-nos com a sua ética (novel) humanista, com o seu grande sentido de justiça e a sua bondade humanitária.
O autor foi um visionário que carregava uma revigorada Utopia, idealizada, iniciada e fortalecida no seio da maior floresta virgem do planeta. Não podemos afirmar que nada sucede por acaso, mas podemos acreditar que as circunstâncias que forçaram o então infante a emigrar para o Brasil e as desventuras sofridas por quem era demasiado novo para sofrer as agruras de um clima estranho, um desenraizamento familiar e pátrio e um labor etariamente impróprio, foram os principais responsáveis pelo desenvolvimento da vocação e da personalidade forte do escritor. Se, porventura, José Maria se tivesse rendido ao propósito original do enriquecimento, se se tivesse deixado influenciar pelo sonhos quiméricos que na época circulavam em muitas aldeias de Portugal, onde o mito do brasileiro rico era recorrente, regressaria (ou não) à sua pátria, imagem viva da sua própria personagem de Emigrantes e de, fugazmente, A Lã e a Neve: o desventurado Manuel da Bouça; ou poderia voltar “brasileiro” e rico e acabaria por morrer, como poucos outros, influente, opulento, não raras vezes benemérito, é certo. Teríamos, contudo, perdido o escritor, a obra, o humanismo, a bondade e a sua grande influência como interventor social.
Felizmente para ele e para nós, a criança já levava consigo para o Brasil os rudimentos de um desejo que aí se tornaria cada vez mais forte: ser jornalista. O resto já é do conhecimento geral.
Ferreira de Castro recusou títulos e honrarias durante toda a sua vida; mas, a sua condição de ser humano, imperfeito como os seus pares, permitiu-lhe uma insignificante, perdoável e justificada vaidade.
Na sua visita ao Egito, o autor comenta a necrópole de Sakkara, declarando: “Os mortos, quando deixaram pedras a falar por eles, viveram sempre mais do que os vivos.“ (CASTRO, 1949d: 138) Na Serra de Sintra, no local da sua sepultura, existe, por sua expressa vontade, um simples banco de pedra que lhe serve de lápida tumular; é a sua Menfis. Nele está gravado o nome, data de nascimento e morte, e a sua profissão: escritor. Não contém epitáfio; esse, foi por si escrito, muitos anos antes:
Meu irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos. Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na serra onde eu e quem o meu coração tiver amado dormimos o último sono e leva contigo um pouco de pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços… (CASTRO, 1948: 9)
Referências Bibliográficas
Bibliografia Ativa
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CASTRO, Ferreira de, 1945, A Selva, Lisboa, Guimarães & Cª.
CASTRO, Ferreira de, 1946, Mensagem do escritor Ferreira de Castro sobre a acção da Censura em Portugal. Fundação Mário Soares / DST - Documentos Souto Teixeira. In http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04435.487.005#!1. Visto em 02/01/2022.
CASTRO, Ferreira de, 1948, Eternidade. Lisboa, Guimarães & Cª.
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Bibliografia Geral
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[1] Consideramos, para este efeito, maioria quando se trate de, por exemplo, uma região ou um povo, subjugado aos ditames de um governo ou qualquer outra organização social ou grupo; por minoria, entendemos grupos étnicos ou outros (negros, indianos, homossexuais, transgéneros, etc.), sujeitos às mesmas condições.
[2] Não confundir com o Humanismo Universalista, ou Movimento Siloísta, criado em 1969 pelo escritor argentino Mario Luis Rodriguez Cobos (1938-2010), também conhecido pelo pseudónimo Silo. (Vide https://partidohumanista.cl/mario-luis-rodriguez-cobos/). Embora, possivelmente, não exista qualquer relação, as bases deste movimento são muito similares ao que Ferreira de Castro praticava.
[3] Luís Garcia e Silva (1933-2020) – médico dermatologista e militante libertário, foi editor do jornal A Batalha. (Vide Introdução e Notas da coletânea de artigos “Ecos da Semana”, editada em 2004 pelo Centro de Estudos Libertários de Lisboa in http://ric.slhi.pt/Suplemento_de_A_Batalha/estudos/monografias).
[4] Abstemo-nos de utilizar a referência bibliográfica Sic nas citações apresentadas, visto a sua maioria conter grafia já não utilizada, e corrermos o risco de entrar em exagero na reprodução do advérbio latino. Mantém-se então essas ocorrências, numa reprodução fiel dos textos consultados, e de total responsabilidade dos seus autores.
[5] Expressão que optámos por usar em alternativa a outras designações que, por demasiado utilizadas em díspares assuntos e ocasiões, externos ao nosso trabalho, poderiam induzir os nossos leitores em erro.
[6] O Realismo Social está presente nas mais diversas artes e visa observar e realçar as condições sociopolíticas das classes trabalhadoras com o intuito de denunciar as desigualdades e injustiças provocadas pelas estruturas de poder dominantes.
[7] É o próprio Ferreira de Castro quem assume o romantismo, não apenas nas obras primárias, renegadas por si, mas estendendo-se por toda a sua produção literária: “Eu tinha vinte e sete anos e olhei para trás. Tudo quanto havia escrito, todas as experiências estéticas já realizadas, inclusive as páginas mais audaciosas, que me pareciam, por esse seu carácter, as mais originais, encontravam-se imbuídas de romantismo, sentimento que vinha desde a meninez e me acompanharia pela vida fora, em satélite do meu próprio realismo futuro, me acompanharia tão persistentemente como a Lua acompanha a Terra, mesmo quando não a vemos” (CASTRO, 2007: 20).
[8] Miguel Real afirma que A Selva, “possui[ndo] uma dimensão social, que o conteúdo do romance evidencia, e, porém, quanto ao estilo, mais naturalista do que realista, salientando mais a estranheza e a anormalidade dos comportamentos humanos do que a evidenciação das relações sociais colectivas estabelecidas justa ou injustamente na sociedade” (REAL, 2007: 268).
[9] As chavetas retas figuram na citação.
[10] “Pequena história de A Selva” foi acrescentada a esta edição, extraída da edição comemorativa de A Selva, de 1955).
[11] Professor Doutor Eugénio Francisco dos Santos (1937-2022). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[12] Torna-se evidente que o jovem Ferreira de Castro não pertencia ao primeiro grupo de emigrantes – os Brasileiros de Torna-Viagem -, industriados para atividades que, à partida, lhes garantiriam sucesso profissional e económico, mas sim ao grupo de emigrantes indiferenciados, engodados, não raras vezes, pelas promessas de engajadores sem escrúpulos, para serventia em mesteres inferiores, mal remunerados e amiudadamente escravizantes.
[13] Elena Muriel Ferreira de Castro, pintora (1913-2007). Casou com o escritor em 1938.
[14] Extrato de uma mensagem, publicada no jornal Diário de Lisboa em 09/06/1966.
[15]. Discurso de abertura da sessão de homenagem a Ferreira de Castro por ocasião das comemorações dos 100 anos de vida literária do escritor.
[16] António dos Santos Pereira (1954- ) – professor catedrático da Universidade da Beira Interior, na área de História e Arqueologia.
[17] Conferência pronunciada em 19 de outubro de 2016.
[18] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”. A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[19] Alberto Figueira Gomes (1912-1986) – escritor e jornalista madeirense.
[20] Ferreira de Castro recusou sempre a reedição de todas as obras anteriores a 1928, “aquelas primeiras produções que eu próprio considerava e considero, apenas tentativas” (CASTRO in SALEMA, 2021. Min 17.48) — obras rudimentares que não espelhavam os seus ideais estéticos.
[21] Winifred L. Chappell (1879-1951) foi uma professora, diaconisa da Methodist Federation for Social Action (MFSA), sufragista, escritora e editora norte-americana, muito ativa na defesa dos pobres e dos explorados.
[22] Ana Cristina Leitão Martins de Carvalho (1961- ), doutorada em Ecologia Humana, investigadora integrada do CICSNova (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. É membro do Conselho Editorial da revista C@striana on line.
[23] Esta citação integra o capítulo “A aldeia nativa” da obra Os Fragmentos.
[24] Idem, ibidem.
[25] Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) foi um sertanista e engenheiro militar brasileiro. Foi também diretor do Serviço de Proteção ao Índio e idealizador do Parque Nacional de Xingu.
[26] João Peregrino Júnior da Rocha Fagundes (1898-1983), jornalista, médico, contista e ensaísta, foi presidente da Academia Brasileira de Letras.
[27] Esta edição contém “Pequena história de A Selva”, reproduzida da edição comemorativa de 1955.
[28] Nathaniel Hawthorne (1804-1864) - escritor norte-americano.
[29] José de Freitas - jornalista e escritor (1910-1976).
[30] Diana de Liz (1892-1930): pseudónimo literário de Maria Eugénia Haas da Costa, primeira mulher de Ferreira de Castro, também conhecida como “Mimi Haas” — nome com que assinava as suas contribuições para vários jornais e revistas.
[31] António dos Santos Pereira – doutorado em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor Catedrático na Universidade da Beira Interior.
[32] Manuel Simplício Geraldo Ferro – doutorado em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, exercendo o cargo de Professor Auxiliar na mesma Faculdade.
[33] José Dias de Melo (1925-2008), poeta e escritor açoriano. Conferência proferida em 16 de setembro de 1966, na sociedade literária “Artista Faialense”.
[34] Trata-se de uma afirmação do próprio Ferreira de Castro (1974. p: 60).
[35] Página 17 da edição que consultámos (Alves refere a pág. 15 da edição de 1980, que utilizou).
[36] Citação extraída do capítulo “A Revolta da Andaluzia (1931)” e O Intervalo.
[37] Wilde, Oscar, 1996, Le Déclain du Mensonge, Œuvre, Paris, Gallimard: 791; Le Antique,ibidem, pp 865 e 853.
[38] Dr. Fernando Ferrão Moreira, professor de Língua e História Pátria na, então, Escola Técnica e Elementar Gomes Teixeira, no Porto.
[39] Eurico Gama (1913-1977), bibliógrafo e editor, foi diretor da Biblioteca Municipal de Elvas.
[40] Extraído do artigo “In memoriam de Ferreira de Castro”, de Adelino Vieira Neves – Cascais, 1976.
[41] PAGDEN, Anthony. ‘‘Europe: Conceptualizing a Continent.’’ The Idea of Europe:From Antiquity to the European Union, ed. Pagden. New York, Woodrow Wilson Center Press, 2002. 33–54. Citado pelo autor.
[42] Portugal, Italy, Greece, Spain: “É um acrónimo de clara intenção pejorativa (pig, porco em inglês) criado nos anos noventa do século XX para designar Portugal, Itália, Grécia e Espanha. Esta categorização articula uma dimensão geográfica e cultural – Europa do sul ou mediterrânica – e outra económica – países cronicamente deficitários – para transmitir uma mensagem simples: ‘povos do Sul que sendo incapazes de se sustentarem a si próprios vivem à custa do Norte virtuoso, endividando-se’.“ Extrato do artigo de José Maria de Castro Caldas: “ PIGS – Observatório sobre Crises e Alternativas” in https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7809.
[43] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”,A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[44] Pronunciado por Pedro Calheiros na “Conferência Inaugural”, em 11/10/2016.
[45] Ao referir-se aos “leões editores”, Ricardo Alves esclarece que se trata de uma alusão aos proprietários da Guimarães & Cª, Maria Leonor e Francisco da Cunha Leão.
[46] O mesmo que riquexó.
[47] On donne le nom de « matière de Bretagne » à un ensemble de légendes et de chansons, diffusées à l'origine par des jongleurs gallois et armoricains, et qui alimentèrent, entre 1150 et 1250 environ, un certain nombre de romans appelés romans bretons. In https://www.larousse.fr/encyclopedie/divers/matieres_de_Bretagne_et_romans_bretons/180250.
[48] Extrato de um artigo publicado por Simões no jornal O Primeiro de Janeiro, em 29/06/1966.
[49] Lucas Maia dos Santos, doutorado em Geografia e professor na Universidade Estadual de Goiás, no Brasil. Especializou-se em: Marxismo, Geografia e Sociologia do trabalho e Geografia Urbana.
[50] Araújo explica o que entende por aproximação científica: Ética, enquanto domínio científico, não é o conjunto de respostas que escolhemos dar às questões de valores, mas antes o próprio exercício reflexivo em torno desses mesmos valores. Como tal, uma reflexão em torno dos aspetos éticos de determinada obra ou de aspetos da mesma será sempre uma reflexão aberta e teórica, e não uma classificação objetiva e definitiva, e muito menos um ato normativo. (ARAÚJO, 2016: 73)
[51] Segundo o autor, o declínio do país teve início no dealbar do século XX; até aí, Portugal estava agrupado com outros países (Bulgária, Roménia, Grécia e Jugoslávia) no último patamar da tabela europeia de evolução educativa.



Ferreira de Castro – a selva alquímica: transmutações e aprendizagens num espaço multifacetado

José Maria Ferreira de Castro, nascido em 1898 em Oliveira de Azeméis e emigrado ao 11 anos para o Brasil, onde trabalhou nos seringais da Amazónia, é um escritor consagrado nacional e internacionalmente, com dezenas de reedições em lingua portuguesa e traduções um pouco por todo o mundo. Infelizmente e de forma progressiva desde os últimos decénios do século XX e o advento do novo milénio, tem sido inexplicávelmente arredado da memória e do conhecimento dos seus compatriotas. O facto é lamentável, mesmo atendendo tão sómente ao facto de o autor ter sido um interveniente de relevo no panorama do realismo social e em dos percursores do neo-realismo português. A sua influência e importância literária estendeu-se principalmente desde a década de 30 até ao ano de 74 do século passado, data da sua morte. Dado o seu carácter humanista e a sua presença interventiva na melhoria das condições sociais dos mais desfavorecidos, seria de esperar que o seu exemplo tivesse sido valorizado após a revolução dos cravos e até aos nossos dias.
Além do acima exposto há a considerar toda uma experiência literária de viagens nacional e, como se diria na época, além-fronteiras, digna de destaque e que culmina com a sua magnus opus viática A Volta ao Mundo, pertencente ao género literário que é, aliás, o tema central desta comunicação.
Para uma abordagem geopoética na vertente de espaço e transculturalidades da obra A Selva, de José Ferreira de Castro, é necessário analisá-la, não apenas como uma descrição sensorial de e em um mero espaço geográfico e dissociável de outras ligações interdisciplinares como a economia, a história, a sociologia, a etnografia ou outras possíveis inscrições, mas também isentá-la de qualquer conotação com a visão dualista e adâmica da Natureza: ora messiânica, como a defendida por John Milton em Paradise Lost, ora lugar tenebroso e de perdição, segundo Nathaniel Hawthorne em Young Goodman Brown, um imaginário recorrente do Antebellum norte-americano. Interessa encarar o processo, não apenas como um apontamento de viagens e uma vivência de alteridade, mas também como um testemunho de emigração de forte componente autobiográfica, espelhando-se na 3ª pessoa de um autor implícito espectável e com a distorção expectável de uma produção textual ficcionada.
E, muito relevantemente, assumi-la como uma ponte entre o espaço cultural e social de visão europeista e colonialista do autor com as visões autóctones, também elas dessemelhantes entre si: a visão do seringador, do paraense europeizado, e a do indio amazónico da tribo dos Parintintins, preservado até então da influência aculturante, avesso ao contacto civilizacional e feroz defensor do seu espaço e da sua identidade.
Ferreira de Castro, no seu Pórtico ou prólogo da obra, refere: “ao farfalhar do patriotismo, venha do norte ou do sul, da Europa ou da América, se sobrepõe sempre, no meu espirito, uma causa mais forte, uma razão maior: a da Humanidade. A razão deste livro” (CASTRO:14). Numa correspondência particular, datada de 1953, o escritor reforça esse seu sentimento de unidade e de partilha: “[...] a verdade é que, por cima da minha condição de europeu, de latino e de português, sinto na minha alma uma grande identidade com a alma de todos os outros povos. Creio, aliás, que isso acontece com quase todos os homens, mesmo sem eles darem por isso, mesmo sem eles o saberem...”. Antonio Olinto, escritor brasileiro já falecido, sintetiza, em 1966, numa frase sucinta e magistralmente bem concebida, o axis magnum do autor: “Nele, mais do que em qualquer outro romancista de lingua portuguesa de nosso tempo, há um gosto de mundo[...]”.
Para além da preocupação com o bem-estar social patente em toda a obra, o autor parte para uma análise multifacetada cujo epicentro é e sempre será a selva no decorrer de todo o romance, o imenso espaço amazónico enquanto lugar de experimentação, cadinho multidisciplinar que concatena ramificações tão aparentemente díspares como a botânica e a escravatura, passando pela climatologia, a agricultura e indústria, a organização laboral, a zoologia, a sociologia, a etnografia, até temas como a emigração ou, afinal, a própria geografia física. Neste espaço diversificado Ferreira de Castro monta um palco para simbioses culturais, tanto com os searenses como com os indios amazónicos. Contudo esse mutualismo é sistematicamente negado pelo ultimo grupo co-espacial - os Paratintins – situação eventualmente originada pelo forte sentido de territoralidade e independência deste corpus social: “À quoi sert une frontière? A séparer, à rejeter et à exclure. À entraver le passage de ceux qui ne sont pas de chez nous ou pas comme nous” [SAVOVA : 367]. Neste caso, a fronteira índia será a imensidão selvática, herdada de incontáveis gerações.
Mais conciso, Albert Jacquard expõe :
“Quand l’autre est à la fois semblable et différent […]. Nous faisons toute cette expérience a minima [devant] notre reflet dans la vitre d’un magasin : « C’est moi, ça ? » Un moi qui est un autre. Je ne peux nier que ce soit moi et, pourtant, je ne me reconnais pas dans cette image ” [apud SABOVA : 367].
Pelo outro lado, não podemos esquecer a existência de uma negação de diálogo e empenho na imposição de valores emanados de uma cultura ocidentalizante que se arroga superior e decreta sem permutas.
N’A Selva, Ferreira de Castro mostra o espaço físico – a selva geográfica, um espaço imenso, de limites vagamente identificáveis. Mas mostra também um espaço de experiências “tranculturais”, de vivências, um espaço também traumáticamente seu, espaço de sofrimento, onde a presença do homem dito civilizado estava ainda apenas identificada como um desejo mórbido de riqueza e não como uma ameaça para o próprio habitat. Oriundo de um povo colonizador, o autor é agora a sua contraparte, o seu oposto: colonizado pelos ideais de riqueza e pela ganância daqueles que foram outrora os explorados e oprimidos, é-o também pelos indios brasileiros a quem os valores ocidentalizantes nada dizem e a que opõem, à sua limitada maneira, o dominio do espaço geográfico que ocupam. A sua tribo é uma pequena nação independente que resiste às investidas espaciais e culturais, mantendo a sua identidade, a sua alteridade. Há aqui um jogo de influências onde por vezes é dificil distinguir quem coloniza quem pois os, esforços expansionistas de uns são frequentemente travados pelo territorialismo dos outros num vai-e-vem de cedências impostas. Os paraenses são, por sua vez e enquanto corpus laboral dominante, culturalmente autofágicos, deixam-se embrutecer por distorcidos valores de lucro amoral que se reflecte no esforço de eliminação dos autóctones e na exploração e quase escravização daqueles sobre quem têm ascendente. As práticas esclavagistas ainda estavam presentes na mentalidade nacional, pois a sua abolição era ainda recente, datando de 13 de maio de 1888, por intermédio da Lei Áurea, promulgada pela Princesa Isabel, filha de D. Pedro II, imperador do Brasil.
Existem pois vários espaços co-existentes e interpenetráveis que interagem com o autor e as várias culturas em presença, tessituras de alteridade, visões do outro com perspectivas radicalmente diferentes:
« [...] si un étranger, par définition, est “celui qui n’est pas moi”, [...] tout un chacun déviant cet étranger-là : une personne qui regarde tout autant qu’il est regardé, une figure au seuil de ses frontières intérieures (qu’elle sera tentée, ou non, de franchir pour s’aventurer de l’autre côté de soi) » [SAVOVA : 335].
Este espaço cuja porosidade permite o fervilhar de tais inter-relações é assim uno na diversidade e permite, consoante as vivências e perspectivas, transformar-se, qual processo alquímico, metafóricamente em chumbo ou em ouro, elemento enriquecedor ou escória deletéria.
Ozíris Borges Filho, partindo do livro A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, defende o
conceito de topoanálise, embora manifeste discordância com a definição por este sustentada de que “ a topoanálise seria [...] o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima”, o que considera demasiado redutor, defendendo antes que:
“Por topoanálise, entendemos mais que o “estudo psicológico”, pois a topoanálise abarca também todas as outras abordagens sobre o espaço. Assim, inferências sociológicas, filosóficas, estruturais, etc.,fazem parte de uma interpretação do espaço na obra literária. Ela também não se restringe à análise da vida íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a personagem seja no âmbito cultural ou natural” [BORGES, Ozíris, 2008].
Mesmo fazendo uma leitura pouco atenta d’A Selva, é por demais evidente a enorme importância macroespacial presente em todo o romance, podendo-se mesmo sugerir que a referida selva é o seu personagem principal, à roda da qual tudo gira, constituindo o eixo agregador de toda a trama literária, não sendo contudo a única face prismática visível para a análise crítica desta obra emblemática, nos contextos através dos quais está sendo abordada.
Alberto, como alter ego do autor, manifesta-se de início excludente perante uma sociedade que não compreendia e cujos hábitos ou atitudes recusava liminarmente, pois ”[...] sentia uma repulsa instintiva por toda aquela humanidade de hábitos rudimentares e cujo convívio, ainda em hipótese, o amargurava profundamente”[CASTRO : 79]. No entanto, essa visão negativa vai-se desvanecendo à medida que o personagem se vai entrosando com a nova sociedade que o cerca, ajudado pelo seu camarada, protector e mentor Firmino: “A pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se e compreendia-as melhor. Já eram outras para êle, assim vestidas com os farrapos dramáticos que a Europa ignorava”[CASTRO : 162].
Benjamim Videira Pires sintetiza este processo de forma assaz simples:
“Pela aproximação, convívio e miscegenação, completamo-nos, como homens, unindo os contrários, que não são antagónicos nem contraditórios. [...] Miscegenação, assimilição, aculturação, inculturação? Nenhuma antropologia, ainda tão incerta de si, consegue traçar-lhes as fronteiras. [A] transculturação [é] osmose contínua e sem datas, em corpo e alma, de tudo o que somos e temos, entre homens e povos que sabem conviver [...] (PIRES : 9).
Definindo assim transculturalidade como uma aculturação mútua, simbiótica, sem a qual a alteridade não é integralmente aceite, inibindo o espelhamento recíproco do eu nos outros, o personagem-autor vai mimetizando no decorrer da sua obra o processo de reencontro, de reunificação do Homem como um todo numa metafórica inversão do relato bíblico, contido no Livro do Génesis, da dispersão humana provocada pela, também ela simbólica, derrocada da Torre de Babel.
Bibliografia
CASTRO, Ferreira de (1945), A Selva, Lisboa, Guimarães & Cª. óáíú
file:///C:/Users/josef_000/Downloads/Nathaniel+Hawthorne+-+Young+Goodman+Brown.pdf
http://museuvirtual.cm-sintra.pt/mfc/colecoes.html#
http://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/683
http://www.planetpublish.com/wp-content/uploads/2011/11/Paradise_Lost_NT.pdf
PIRES, Benjamim Videira (1988), Os Extremos Conciliam-se(Transculturação em Macau), Instituto Cultural de Macau.
SAVOVA, Lioubov (2012), Le Métier du poète en exil, Paris, Honoré Champion.
http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067/OZIRIS_FILHO.pdf
www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=234


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ELIAS CANETTI

ELIAS CANETTI (1905-1984)
Nascido na Bulgaria, em Rustschuk, na fronteira com a Roménia, descendente de judeus sefarditas expulsos em 1492 pelos reis católicos, o seu apelido é de origem toponímica, uma corruptela de Cañete, na província de Cuenca, em Espanha. Aos 6 anos muda-se com a família para Manchester, na Inglaterra, onde aprende a língua inglesa; dois anos depois, após a morte de seu pai, desloca-se para Viena, na Áustria e desenvolve a língua alemã por imposição da sua mãe. Em 1916 vai para a Suiça e aí permanece até 1921 de onde se segue uma passagem por Frankfurt, na Alemanha, e o retorno a Viena, graduando-se em Química (que nunca exerce) no ano de 1929. Aqui inicia a sua carreira literária, casando-se entretanto com Veza Taubner-Calderón, sua primeira esposa,tambem ela escritora e judia. Nova mudança geográfica em 1938, desta vez para França, fugindo aos progroms iniciados pelo partido nacional socialista alemão em 9 de Novembro desse ano, com o Kristalnacht, em Viena. No ano seguinte, perante a eminência de invasão deste país pelos exércitos de Hitler e atendendo à sua perigosa e ineludívelmente fatal classificação racial de judeu, refugia-se em Londres, levando consigo a sua esposa (que morrerá em 1963) e em 1952 adquire a nacionalidade britânica; no inicio da década de 70 do sec XX retira-se para Zurique, na Suiça, onde casa de novo, desta vez com Hera Buschor, tendo tido uma filha desta relação . Residirá nesta cidade até ao seu falecimento em 1984.
Pese embora que a sua língua de nascimento tenha sido a búlgara, que o ladino fosse a língua tradicionalmente falada pela sua família e o inglês utilizado durante a sua infância e posteriormente o seu exílio, é contudo no alemão da sua juventude que produz toda a obra literária, ditado pelo elevado conceito que tem pela cultura de um país que não responsabiliza pelo seu exílio: a Alemanha.
Publica obras que abrangem os mais variegados géneros literários, das quais se poderão salientar, dentre outras não menos importantes, a novela (Die Blendung – Auto de Fé), a biografia (Der andere Prozess –O Outro Processo) , o teatro (Kömodie der Eitelkeit - A Comedia das Vaidades), o ensaio (Das Gewissen der Worte – A Consciência das Palavras), o relato de viagens (Die Stimmen von Marrakesch - As Vozes de Marraquexe), as memórias (Die Geretette Zunge – A Língua Posta a Salvo). Além destes há ainda a destacar livros de aforismos e aquela que foi a sua obra mais importante, na qual investiu 20 anos da sua vida, que é Masse und Macht ( Massa e Poder) , um tratado psico-sociológico que estabelece a relação entre as formas de poder e as massas humanas ou, melhor dizendo, procura” [c]ompreender o poder através do estudo da multidão, em detrimento de conceitos como ‘classe’ ou ‘nação’ “(SONTAG:147). Em 1972 recebe o Prémio Georg Büchner (o mais importante galhardão literário alemão), seguindo-se os prémios Gottfried Keller em 1977, Johann Peter Hebel em 1980, Franz Kafka em 1981 e nesse mesmo ano o Prémio Nobel da Literatura.
Embora laureado e detentor de uma obra tão rica e diversificada, não parecem existir sobre ele muitos trabalhos académicos em língua portuguesa. Salvo a honrosa excepção referenciada na bibliografia, nada mais aparenta existir para consulta e a sua biografia, escrita por Sven Hanuschek, está apenas disponível em alemão.
Elias Canetti não é o comum escritor de viagens. Além de As Vozes de Marraquexe, escrito em 1967 e baseado numa viagem a Marrocos efectuada em 1954, nada mais produz que possa ser mínimamente conotado com experiências de viagens. As suas memórias, que constituem três volumes de uma vasta obra e onde o escritor se justifica, desconstrói-se nem sempre veladamente perante o leitor numa perspectiva ora tainista ora sartriana, apenas afloram o percurso viático do autor como mero elemento de ligação e coesão. Fora esta deslocação física, as únicas viagens que o autor relata pertencem ao plano cognitivo e teórico e dão consistência à sua produção literária como um todo, não lhe sendo também alheia a sua diaspórica passagem no orbe.
No entanto Canetti também não é um sociólogo, novelista, ensaista, aforista ou biógrafo; Canetti é o que escolhe ser em cada determinado momento da sua carreira literária. A fluidez com que passa da ficção para o ensaio, do relato de viagem para o tratado sociológico faz dele, a seu modo, um Pessoa sem heterónimos, um a(u)tor que encarna um papel no qual investe todo o seu potencial e que não desilude as expectativas que cria perante o género que escolhe e o leitor que selecciona. Como viator, Canetti transporta-nos para a sua viagem, instala-nos ao seu lado, fá-lo-na experienciar com as suas descrições singelas mas carregadas de força descritiva, quase fílmica, ora alabando a diferença do Outro, como quando sugere na sua obra que paira no ar “ como que uma nota de orgulho” pela produção artistica exposta no Souk, para venda [CANETTI (2003):18], ou ao fazer a comparação dentro da própria alteridade dizendo que o comércio “[é] uma actividade ‘aberta’ “ num país “que tem tanto de intimo como de fechado” [CANETTI (2003):19/20], ou ainda por comparação com a sua vivência civilizacional: opinando que o comércio “não tem sombra de arte” noutros países onde o preço é tabelado [CANETTI (2003):21].
Esta visão de Marraquexe é substancialmente diferente da visão colonial e orientalista que George Orwell descreve:
“[...] quando se vê como as pessoas vivem e, mais ainda,com que facilidade elas morrem, é sempre dificil acreditar que estamos a caminhar entre seres humanos. [...] As pessoas têm caras morenas – e, ainda para mais, são tantas! Será que são mesmo feitas da mesma carne que nós? Ou serão apenas uma matéria morena indiferenciada, tão pouco indiferenciadas quanto as abelhas ou os insectos ou o coral?” (apud SAID: 296).
Pelo contrário, o autor manifesta uma voluntária e desejada estranheza, o desejo de admirar (não necessáriamente de compreender) o Outro no que ele tem de diferente ou oposto, num todo impronunciável, incaracterizável e espelhar-se nele, ser e rever-se no outro, pois “o eu cumpre-se na diversidade e na metamorfose, não deixando, um tanto paradoxalmente de ser eu” (TOPA:149), e justificando-se taxativamente: “Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta, a indignação, essas ficam deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos, maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo novo. O bom e perfeito viajante não tem coração!” [CANETTI (2003):26].
O coração encontra-se no local de pertença, de identidade: é este o sentido que o literato intenta transmitir. O seu coração assume ao longo das permutas com a alteridade esse compromisso:
[...] cette identité [...] – et ce sera l’alternative de Canetti – c’est une identité en perpétuelle métamorphose, toujours prête à accepter l’autre, quel qu’il soit, pour l’avoir reconnu comme une dynamique de soi.
Ne pas partager la même religion ou nationalité, les mêmes habitudes culturelles, rend la joie de Canetti plus expansive encore - une joie abreuvée dans le miracle de la vraie rencontre : ici, l’identité originaire n’est pas niée, mais mise en perspective. Indéfiniment (SAVOVA: 350).
Canetti, no seu passado, também foi o Outro, um estrangeiro que, com os seus usos e costumes, veio de Rustschuk para a Europa, pois “[o] resto do mundo chamava-se aí Europa, [...] a Europa começava onde o império turco tinha outrora acabado”[CANETTI (2008): 11], um estranho no meio de outros também para si estranhos. Simultâneamente viajante observador e também objecto de observação, sentiu os olhares questionantes e incómodos da sua excludente não-pertença, algo que revive no Souk marroquino: “Só então vi em cada tenda dois ou três pares de olhos postos em mim. A criatura estranha passara a ser eu” [CANETTI (2003):33].
Não obstante, em As Vozes de Marraquexe, Elias Canetti demonstra uma refinada sensibilidade emocional , uma quase ternura perante uma alteridade que confessa não compreender nem querer compreender, sob pena de destruir toda a diferença que faz a diferença, tenta formar um hiato entre o seu Eu ocidental e o Outro exótico, civilizacionalmente dessemelhante, mantendo-lhe a aura de estranheza precípua, criando com ele uma empatia relacional, uma sensação de equidade, quiçá eivada de um sentimento de superioridade, de entidade esclarecida que o autor, conscientemente ou não, ignora, num esforço de neutralidade que a sua escrita, como reflexo de si próprio, da sua individualidade, nega. Contudo Canetti dá voz ao observado, atentando nele, valorizando-o. Não o compreendendo interioriza-o, recusa o conhecimento do outro porque recusa o poder que isso lhe confere, a supremacia de uma visão orgulhosa e colonialista resultante da percepção da diferença. Ele viaja no desconhecido e tudo absorve, tudo questiona sem esperar resposta como uma esponja absorve um líquido sem dele tomar consciência. Este interpenetra-a, preenche-a, faz parte dela e não necessita de ser compreendido.
A sua obra entretece-se, não apenas com um sentimento de pertença a uma comunidade semita universal mas também com uma perspectiva sociológica e filosófica das relações entre o poder de e sobre as massas humanas. Extensas e complexas como são essas correspondências, tornam-se incompatíveis com meros informes sucintos ou notas de rodapé. Será no entanto interessante explorar esses indissociáveis vínculos que abrem novos e surpreendentes horizontes à compreensão e interpretação global do autor e do seu legado.
Lugares
Bulgária, Áustria, França, Inglaterra, Suiça, Alemanha, Marrocos
Citações
Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los atravéz de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.
Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas primeiras horas [CANETTI (2003): 25/26].
Para mim era como se estivesse realmente noutro sítio, como se tivesse enfim chegado ao termo da minha viagem. Não queria sair mais dali! Ali estivera há cem anos, tudo esquecera! Tudo lembrava agora. Encontrei aí toda essa densidade, todo esse calor de vida que sinto em mim próprio. Eu era, eu fui aquele lugar, quando lá estava. E creio que para sempre o serei!
Era_me tão penoso separar-me dele que ali voltava sempre de cinco em cinco ou de dez em dez minutos.
Andasse por onde andasse na Mellah, procurasse eu lá o que procurasse, interrompia tudo para voltar àquele pequeno lugar, para o atravessar nesta ou naquela direcção, para ter a certeza, a absoluta certeza de que ele ainda lá estava!... [CANETTI (2003): 53].
Nada teme más el hombre que ser tocado por lo desconocido. Desea saber quién es el que le agarra; le quiere reconocer o, al menos, poder clasificar. El hombre elude siempre el contacto con lo extraño.[…] Todas las distancias que el hombre ha creado a su alrededor han surgido de este temor a ser tocado. [CANETTI (1981): 3].

Bibliografia activa seleccionada

CANETTI, Elias (2003), As Vozes de Marraquexe – Notas de uma viagem, Barcelona, Bibliotex Editor.
Bibliografia crítica seleccionada

CANETTI, Elias (1981), Masa y Poder, Barcelona, Muchnik Editores.
CANETTI, Elias (2008), A Língua posta a salvo, Porto, Campo das Letras.
SAID, Edward W. (2004), Orientalismo, Lisboa, Edições Cotovia.
SAVOVA, Lioubov (2012), Le Métier du Poète en Exil – Vladimir Nabokov, Elias Canetti et Yordan Yovkov, Paris, Honoré Champion Editeur.
SONTAG, Susan (1986), Sob o Signo de Saturno, São Paulo, L&PM Editores.
TOPA, Helena (2003), A palavra de Fogo – Uma leitura contextualizante da prosa breve de Elias Canetti, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia.


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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Duas gerações – a mesma experiência: o exílio
Simetrias e assimetrias entre Aquilino Gomes Ribeiro e António José Saraiva


José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de investigação no âmbito da disciplina de Técnicas em Comparatismo do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Julho de 2017
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Duas gerações – a mesma experiência: o exílio
Simetrias e assimetrias entre Aquilino Gomes Ribeiro e António José Saraiva


Resumo
Lato sensu, falar de exílios será como falar de seres humanos: serão todos iguais; o estado de exilado caracteriza-se sempre por uma desterritorialização, seja ela física ou psicológica, ou mesmo ambas, provocada por uma incompatibilização, natural ou induzida, com o seu ambiente natural, qualquer que ele seja. As consequências são também similares: solidão, sentimento de falta de pertença, impossibilidade de retorno integral à “normalidade” do seu local de enraizamento e do seu inner self.
No entanto, essa igualdade exílica não poderia ser mais diferente, do mesmo modo que os seres humanos não são todos iguais. Uma análise menos simplista transporta-nos para um universo em que a diversidade, tanto humana como situacional, imprime um cunho heterogéneo, impossível de contornar ou copiar. As características de cada indivíduo – onde se incluirão, entre outros, a morfologia, o género, a aptidão artística ou a personalidade - assim como o âmbito político-geográfico em que decorrem - origens e destino do exílio, causas e consequências - trazem a este complexo binómio alterações de carácter social, pessoal, político, religioso ou outros, extremamente relevantes.
Partindo de um exílio forçado e de outro autoimposto, de percursos geograficamente similares e de razões políticas convergentes, mas assumindo uma temporalidade e espacialidade apartadas por três décadas e, em consequência, um contexto sociopolítico e económico transformado por alterações estruturais profundas, tenta-se fazer a análise dos pontos de convergência e assimetrias decorrentes dos percursos exílicos de duas figuras do panorama literário português do século XX que, embora tendo compartilhado o mesmo local de proscrição - Paris, assim como cometido o mesmo “crime” - o livre pensamento, sentem diferentemente as suas expatriações. E, por isto, modificam-se as consequências, as dimensões, as características e os desequilíbrios (GUILLÉN: 15).
Tal é a abordagem que se pretende aplicar no sentido de estabelecer relações de identidade/heterodoxia nos percursos exílicos de Aquilino Gomes Ribeiro e António José Saraiva.
Palavras-chave: Aquilino, Saraiva, exílio, Paris, correspondência.

Abstract
Lato sensu, talking about exile and talking about people is the same: they are all alike. Exile implies a deterritorialisation, either physical, psychological or both, caused by a natural or induced incompatibility with the native environment. Consequences are also similar: solitude, feeling of exclusion, impossibility of a fully return to one’s “normality”.
However, that equality couldn’t be more different, the same way humans are not so equal as they seem. A deeper analisys presents us a universe in which both human factor and situational diversity acquire a unique and irreproducible character.
One’s characteristics such as (among others) morphology, gender, artistic skills or personality, as well as political and geographical context, like origin and place of exile and its causes and consequences, bring most relevant changes, regarding social, personal, political, religious or even other features, to this complex binomial.
Starting from one’s forced and another’s self-imposed exile, through similar geographical routes and converging political reasons but carrying a life experience aparted by three decades and, consequently, suffering from profound structural changes, we try to analyse the assembling and differing points of the exile parcours of two actors from the XXth century’s Portuguese literary scene that, despite having shared the same place of proscription – Paris, and the same “crime” – freethought, experience differently their banishment. And that way consequences,dimensions,characteristics and unbalances turn differently[1](GUILLÉN: 15).
Such is the approach we intend to apply in order to establish identity/heterodoxy connections between the exile pathways of Aquilino Gomes Ribeiro and António José Saraiva.
Key-words: Aquilino, Saraiva, exile, Paris, correspondence.

1 – O Mestre
Aquilino Gomes Ribeiro (1885-1963) – Cronista, escritor. Experienciou três exílios físicos por dissidência ativa (durante a Monarquia, em 1908, por posse de bombas; no Estado Novo, em 1927 e 1928, por participação em sublevações contra o regime vigente à época). Amnistiado em 1932, viveu em Portugal, onde continuou a desenvolver prolífica obra literária, até à sua morte.
Truculento e iconoclasta, como o caracteriza Mário Soares, no prefácio de Em defesa de Aquilino (CALDEIRA e ANDRINGA {org.}: 16), Aquilino Ribeiro cedo se incompatibiliza com o imobilismo político e cultural que o panorama português lhe apresenta nos princípios do século XX, e que o leva a sentir-se [n]áufrago, rebelde, indócil, desamparado (Aquilino apud VIDIGAL:17); começa assim um inxílio [2] que o levará a outros exílios, físicos, como consequência direta do seu labor oposicionista, aliado a um ceticismo acrático que, em Paris, aprender[á] a converter em norma de vida (Aquilino apud REIS: 14).
Aquilino, em 1908, é, não apenas um jornalista em percurso iniciático, mas também um escritor em formação, em maturação. O seu exílio em Paris permite-lhe conhecer outras vertentes culturais, conceitos insuspeitados, ideias inovadoras que lhe vão criando novos horizontes criativos e novas perspetivas de análise, numa ampliação de sentidos que a experiência do exilio traz consigo (GUILLÉN: 158). Como expatriado, sabe tomar partido do seu deslocamento, entranha-se nele, absorve dele tudo o que a sua pátria lhe nega, não pode ou não lhe consegue dar, fortalece o seu espírito artístico e humanitário.
Esta oportunidade de desenvolvimento e o reconhecimento assumido perante a nationis hospitio distancia-se, no entanto, do seu raciocínio crítico; não se coíbe de exprobrar a França, não como corpus social ou geográfico, mas na própria essência do seu sistema governativo e cultural, numa postura humanista e inconformada perante a qual, e pelas mesmas razões, a sua pátria não é excluída.
Aliás, e como corolário da sua desterritorialização forçada, a mágoa que sente perante a patria mater, agora encarada como patria matrasta, extravasa na maioria das crónicas que publica como correspondente em França de alguns periódicos portugueses e adquire, em consequência, uma conotação político-social que, forçosamente, assume a sua própria visão pessoal e toda a pujança dos seus ideais. São particularmente relevantes os artigos publicados nesse mesmo ano de 1908 (REIS: passim).
Apesar duma francofilia que nunca negou é, no entanto, avesso a influências galicizantes na linguagem, muito do agrado de escritores de referência, seus antecessores, como Eça de Queirós ou Fialho de Almeida, a quem acusa de conspurca[r] de francesia o papel de impressão (Aquilino Ribeiro apud LOPES: 274).
Acérrimo defensor da língua portuguesa, expõe-na proficuamente nas suas obras, num leque abrangente que inclui desde o discurso académico, culto, às expressões mais populares. A sua postura crítica perante a sociedade e perante o atraso cultural do país é profusamente exposta em toda a sua obra literária (onde se incluem alguns registos jornalísticos), numa abordagem picaresca, em equilíbrio com uma atitude de defesa do casticismo da língua, e que se terá um dos seus expoentes máximos no romance O Malhadinhas (RIBEIRO, 1985).
Embora possamos considerar Aquilino Ribeiro um estrangeirado, no sentido em que o autor, em sintonia com o conceito, tal como é entendido na análise de Carlos Leone (LEONE: passim), fortalece a sua experiência humanista e cultural em França, refresca o seu saber com ideias e conceitos novos, ele é e será sempre, todavia, um homem do seu país; ao amargor irónico do rejeitado pela pátria contrapõe-se o orgulho e o sentimento de pertença do luso destemido e telúrico. E aí, fruto desse antagonismo de sentimentos, dessa visão da pátria, ora mãe, ora madrasta, surge uma literatura que denuncia, com toda a crueza dos seus personagens, mas que simultaneamente, através dessa mesma rudeza, dissimula a sua denúncia.
Aquilino utiliza muito poucos estrangeiramentos e neologismos, que defende aplicar só por necessidade (RIBEIRO apud CRUZ: 69). Daí a sua aversão aos excessos, principalmente os praticados por Fialho de Almeida, acusado de leviandade e de abundância anormal no uso de estrangeirismos (FRANCO: 24).
Esta sua defesa da língua revela-se de novo no prefácio da coletânea Cavaleiro de Oliveira – Cartas, onde admite proceder nessa prosa ao de leve […] a bem da vernaculidade filológica e da clareza, ressalvando que mesmo assim fica a construção eivada de galicismos […] (RIBEIRO, prefácio, in OLIVEIRA {1960}: XXXIII).
A propósito, convém referir, e porque estamos a tratar do tema do exílio e suas inferências, que Aquilino Ribeiro tem uma ligação muito especial com o Cavaleiro de Oliveira e a sua obra, uma relação da qual se poderá inferir uma curiosa bipolaridade, quase como que de amor/ódio, e que Maria Helena Pinto Cunha faz notar na sua dissertação de mestrado.
Excluindo outras razões que, para o tema em epígrafe, não são particularmente relevantes, como o desentendimento entre o escritor e o seu antigo professor, António Gonçalves Rodrigues, com acusações mútuas de plágio, informa-nos a autora que, a partir de 1922, e após a tradução e prefácio da obra de Francisco Xavier, Recreação Periódica, Aquilino não mais abandonará o estudo do Cavaleiro. Anos depois, em 1955, na obra autobiográfica Abóboras no Telhado (RIBEIRO, 1955), o escritor narrará detalhadamente todo o esforço bibliográfico em torno desse autor.
Maria Helena Cunha termina, formulando uma ilação:
A reabilitação da obra do Cavaleiro de Oliveira parece cumprir uma profecia do próprio autor que se centrava a sua leitura no apelo ao povo português para acordar desse sono profundo inquisitorial. Poderemos ver nesse interesse de Aquilino Ribeiro pelo Cavaleiro de Oliveira uma forma de contestação à ditadura do Estado Novo? (CUNHA: 94-95).
Há, pois, aqui, um enquadramento sobremaneira paradoxal: por um lado, Aquilino acusa o Cavaleiro de ser escritor menor, fútil, irregular e leviano, eivado das corrupções e vícios que a longa permanência no estrangeiro e porventura o desuso do idioma haviam fatalmente de imprimir-lhe no estilo [um estrangeirado?];contudo, e nas mesmas linhas: escrevia com solércia, graça ligeira, se não chiste, com espontaneidade (RIBEIRO, prefácio, in OLIVEIRA {1960}: XXXIV - XXXV). Com tantos defeitos e algumas poucas virtudes, é de estranhar que tenha dedicado tanto da sua vida a um escritor que em sua opinião parece não valer a pena, um “escritor menor”.
Verá Aquilino no Cavaleiro de Oliveira o émulo ou talvez até a musa inspiradora da sua obra, profusamente habitada por personagens picarescas que têm bastante em comum com este último e consigo próprio? Haverá alguma admiração mal contida, dissimulada, fruto das posturas críticas tomadas pelo autor das Cartas, perante a Autoridade e a Igreja e que se lhe assemelham? A nosso ver, sim.
Não será despiciendo o facto de o escritor ser filho de um padre, o que, embora adquira uma certa “normalidade”(à época), é, contudo, relevante como desencadeador ou, no mínimo, potenciador da sua postura anticlerical - um estigma social que carregará durante a sua juventude e uma revolta mal disfarçada que guardará consigo até à morte.
Ressalva-se apenas a discordância com a proposta de Maria Helena Cunha de que este interesse pela obra seria provavelmente provocado pelo paralelismo que Aquilino veria em relação ao Estado Novo: como esta foi publicada em 1922, seria impossível ou, no mínimo, improvável, que o escritor se lhe opusesse ou que estabelecesse qualquer paralelo com um sistema político que só seria implantado quatro anos depois, em 1926, pois estava-se ainda na Primeira República. Quanto à Monarquia, considera-se bastante provável essa analogia, uma vez que, pesasse embora mais de uma década sobre a sua extinção, o espectro da realeza ainda pairava e era alimentado por algumas fações da sociedade portuguesa. Ademais, o autor fora um dos seus mais virulentos opositores.
No tocante ao “estrangeiramento” do Cavaleiro de Oliveira (e muito particularmente o de Aquilino) e às conotações positivas ou negativas que daí se poderão inferir, existem duas correntes de opinião a considerar e que, embora aparentemente antagónicas, não se auto-excluem. Joaquim Barradas de Carvalho, professor universitário e historiador, defende:
É sintomático que os intelectuais mais em evidência, mais capazes, dos últimos séculos da nossa história, sejam comummente e através dos tempos denominados estrangeirados; sendo estes, afinal, os mais clarividentes defensores dos interesses autenticamente nacionais (CARVALHO apud CUNHA: 47).
Em contrapartida, Eduardo Lourenço considera, quanto aos ditos estrangeirados, que:
[…] é possível que estejamos a colocar a questão às avessas. Que seja mais explicativa a idéia de que foram até à cultura europeia, do que a de que vieram da cultura superior europeia. Ou antes, a de que só vieram depois de ter ido e talvez seja muito importante esta prioridade, pois ela determinou concerteza o carácter peculiar dessas filiações ou importações (LOURENÇO apud LEONE: 52-53).
Em nossa opinião, ambos estarão corretos: se Aquilino Ribeiro se revelou um grande escritor e humanista, é indubitável que a influência desse “entreposto de culturas” de uma grande metrópole como é Paris, onde se cruzavam e desenvolviam ideias e ideais de todos os quadrantes da civilização, teve no seu intelecto uma enorme influência; por outro lado, e concordando com Eduardo Lourenço, não se nasce do nada, é necessário existir uma centelha para se atear o fogo. O combustível, esse, o exílio forneceu-o, pois este pode ser elixir cognitivo, afinamento da consciência e afirmação da estatura do exilado, enriquecimento axiológico, filtro capaz de transformar a dureza do desterro em experiência do pensamento (FARIA, Almeida, Prefácio, in GUILLéN, {2005}: 11].
Consultámos ainda um ensaio sobre os estrangeirados, elaborado por Jorge Borges de Macedo (MACEDO: passim), que, em nossa opinião, reforça, embora que parcialmente, o parecer de Almeida Faria. Não o abordaremos, porém, aqui, pois que a discussão sobre a validade dos conceitos expostos e a sua aplicação iriam desviar este pequeno estudo dos seus objetivos originais.

2 – O Professor
António José Saraiva (1917-1993) – Cronista, escritor, investigador de História e Literatura Portuguesa, professor. Exilou-se voluntariamente em 1960, em sequência de pressões do Estado Novo, devido à sua ligação ao Partido Comunista Português e ao apoio ao general Humberto Delgado, candidato da Oposição, opções essas que o Regime sancionou, proibindo-o de lecionar, não apenas no ensino público, mas também no privado. Retornou ao país em 1974, onde passou a residir, continuando a publicar o resultado das suas investigações, até à data do seu falecimento.
Podemos considerar que António José Saraiva, à semelhança de Aquilino, foi um inxilado no seu país, muito antes de se desterrar voluntária e fisicamente na capital francesa. Já em 1943, recém-formado em Filologia Românica, confessa: eu sinto que a minha pátria é grande e que vivo exilado num país de pequeninas cousas (SARAIVA e SARAIVA: 126). Essa cisão interna, essa incompletude espiritual, deveu-a à sua postura de inconformidade perante um mundo pátrio que não preenchia os seus anelos humanistas, os seus ideais de justiça social.
Perante o que investigámos do seu percurso no orbe, e de acordo com as suas próprias afirmações, o início do seu desterro espiritual ficou inicialmente a dever-se a diferendos profissionais; mais tarde, e pelas ligações políticas acima citadas, esse exílio interno tornar-se-á ainda mais penoso. Após o egresso do ensino, passará a viver exclusivamente da criação literária e, em 1960, já em França, integrar-se-á no meio académico parisiense.
O seu exílio voluntário marca-o fortemente, assumindo de início um carácter epifânico, como o próprio refere, pouco após a sua chegada a Paris: [t]udo se renovou […]. As paredes em que me sentia metido, apoiado e contente, alargaram-se. Agora sim, digo que não sei nada. Preciso de pensar, pensar, e reconstruir um mundo. Tudo ruíu […]. Nesse momento, a possibilidade de esperança num mundo em que, aparentemente, todas as portas estão fechadas (A.J.Saraiva, apud RODRIGUES: 53), abria-se-lhe. No entanto, à medida que os anos vão passando, tornou-se também uma experiência dolorosa:
[…] a solidão em que vivo, neste meu quarto vazio ou nas ruas cheias de gente, desde há anos, ora me inclina para uma resignação filosófica, ora para um desespero furioso (RODRIGUES: 36). [...] sinto-me só, sem raízes, desesperadamente só e sem raízes, incapacitado de trabalhar, vazio de crer humano, em fase de considerar muito sériamente a necessidade moral do suicídio! (NEVES:107).
Utilizando a abordagem da docente e investigadora Ana Paula Coutinho Mendes, Saraiva tocou algumas das principais e mais sensíveis teclas identitárias do exilado: [o]s sentimentos de estranheza, de desintegração, de indecisão e de fissura interiores; as tensões associadas tanto ao abandono como ao regresso à terra natal (MENDES: 219).
Essas fragilidades, muito mais notórias neste literato do que em Aquilino, são patentes na maioria da sua correspondência, não apenas aquela permutada entre o autor e Óscar Lopes, mas, e principalmente, nas missivas trocadas com Luisa Dacosta, sua amiga e confidente, assim como aquelas cambiadas com a sua segunda mulher, Maria Isabel Saraiva.
Ao contrário do Mestre, António José Saraiva é mais inseguro, mais emotivo, admite pertencer ao género das pessoas que são muito sensíveis ao desconforto e à dureza do mundo exterior, quando alguma vez se chocam com ele (RODRIGUES: 22). Esse conjunto de circunstâncias fá-lo sentir mais dura e intensamente os anos de exílio, sente-se preso entre dois mundos, fragmentado, a viver em fatias sobrepostas e impermeáveis entre si (SARAIVA e SARAIVA:36), incapaz de aceitar, tanto o isolamento da pátria como a consciência da sua condição de exílio, pois que, [n]ão é tanto a perda de um lugar que fere, mas sim a perda do sentido de lugar, seja onde for que o individuo se encontre (NOUSS: 36).
A investigadora Elisabeth Lamothe vai mais longe, considerando que o sentimento de perda, para além de apenas um lugar, representa uma vacuidade dramaticamente indefinida: L’exilé n’est pas seulement en butte à un obstacle donné, à une peine délimitée, mais à l’indéterminé de la perte[3] ( LAMOTHE, Elisabeth {2012}, Migrations et translations dans The Lacuna de Barbara Kingsolver in SAVIN :96).

3.1 - Correspondências ou similaridades
Com base numa filosofia da migração de Vilém Flusser, Aquilino e Saraiva, vistos como “dissidentes”, eram fatores de perturbação da ordem e foram expulsos para que a pátria pudesse se tornar ainda mais comum e habitual do que antes (FEITOSA, Charles in LINZ e PELBART: 42).
Para estes, o mundo é percebido de forma mais apurada e, como tal, afastam-se da normalidade estática da sua sociedade, tornam-se estrangeiros, indesejados, e, ao mesmo tempo, deliberadamente inoportunos, como Georges Steiner caracteriza os artistas exilados, errantes entre as línguas (STEINER apud SAID: 33). A sua postura de não-alinhamento com o statu quo é uma forma de reagirem a esse “comum e habitual”, surgindo assim como “incomuns e inabituais” no local de fixação e, ao fazê-lo, tornam-se, a seu modo, revolucionários.
Esse “ser revolucionário” é visto com estranheza e desconfiança, tanto pela pátria de acolhimento como pela da sua naturalidade; a retração e repulsão são mútuas, reforçando assim a sensação de banimento e de não-pertença, sentido por todas as partes envolvidas: o indivíduo, a comunidade de origem e os “outros”.
Aos excluídos caberá então ser criativos, explorar novas formas de suprir a sua autoconfiança, de modo a não soçobrarem no esforço de compilação das novas informações decorrentes do contacto com a alteridade, “igualarem-se”, “outrarem-se”, ou simplesmente dissimularem-se para poderem passar despercebidos, ao mesmo tempo que tentam “desenraizar-se” e criar raízes nesse outro lugar.
Paralelamente, como “revolucionários íntimos”, como seres agora sem polis, tentarão mudar, ou, pelo menos, influenciar, mesmo que inconscientemente, os dois polos da sua “dupla” vida, à luz da síntese das suas experiências. É aqui, nestas circunstâncias, que se tornam deliberadamente inoportunos perante a alteridade e a pátria.

3.2 – O libertário
No Mestre, encontramos fortes traços de inconformismo, expressos na forma de críticas contundentes que, focando-se embora na atualidade francesa da época, dissimulam nas entrelinhas “recados” e alertas ao seu país, através das crónicas que enviava regularmente para algumas publicações portuguesas. É particularmente reveladora a crónica publicada na Ilustração Portuguesa de 15 de Novembro de 1909, sob o título de Liliput em Paris: [n]este reino onde é preciso amputar as nossas dimensões, […] reduzir as ideias do tamanho de nozes ao tamanho de avelãs ou caroços de cereja [e onde existe] essa subtil ciência dos Governos que sabe converter cada gesto, cada necessidade do cidadão numa fórmula bancária, apercebemo-nos de uma crítica sobremaneira irónica e mordaz da governação política portuguesa, à época, a coberto da aparentemente inócua descrição de uma diversão circense, em voga na sociedade parisiense. Se mais dúvidas existissem sobre os paralelismos intencionais, a sua visita ao director, ou mais propriamente o primeiro-ministro daquele reino constitucional, tão constitucional como o trono dos bons reis fainéants[4], numa clara alusão ao chefe do governo monárquico, o ditador João Franco, e à própria instituição monárquica, tal bastaria para no-las dissipar.
Tratava-se assim de uma atitude astuciosa de Aquilino para denunciar a situação portuguesa através de crónicas de dupla significação. Ana Paula C. Mendes refere esta estratégia típica dos exilados: [e]star entre duas línguas permite ao sujeito narrativo reflectir sobre cada uma delas, descobrir-lhe ecos ou dobras de sentido que escapam normalmente a um falante comum que se movimenta no interior de apenas um idioma (MENDES: 209).

3.3 – O académico
No tocante ao Professor, a correspondência particular é bem o reflexo dos seus estados de alma sem, contudo, exprimir com demasiada abertura as suas opiniões ou os seus planos para o futuro. Não por sua livre opção, mas para, devido às circunstâncias, dissimular astuciosamente, qual Ulisses contemporâneo, quaisquer confidências mais reveladoras que pudessem comprometer a possibilidade de retorno à sua Ítaca. Não convém esquecer que este, tal como Aquilino, se encontrava em vigilância permanente pela polícia política, tanto francesa como portuguesa.
Um dos fatores típicos de desestabilização do exilado é focado repetidamente por Saraiva: o problema da divergência de opiniões, da ausência de solidariedade por parte dos conterrâneos entre si, da falta de coesão. O ambiente de retração, de desconfiança, comum aos exilados (que o autor funde na categoria dos emigrantes) e parte integrante da sua condição, é denunciado com amargura, frequentemente. No início de 1965, refere:
Paris […] tornou[-se] insuportável, porque os portugueses de cá traçaram entre si fronteiras invisíveis mas intransponíveis, de tal maneira que eu fico desagrupado, reduzido aos amigos mais íntimos. É impressionante verificar como as pessoas se agrupam em função de cumplicidades que se exprimem exteriormente por ideologias [...](RODRIGUES: 103).
Ainda nesse mesmo ano, o docente observa que:[o] meio da emigração é tal, que a coisa mais útil e menos perniciosa que podemos fazer é afastarmo-nos, ou, então, estar calados. Ninguém espera que da emigração venha alguma coisa (RODRIGUES: 116). Deste modo, assume uma postura que, embora tomando a forma de reconhecimento identitário, de pertença a uma comunidade, o ostraciza ainda mais. Ao seu exílio interno pátrio, sucede um duplo exílio:
Os outros exercem sobre nós toda a pressão de que são capazes para nos fazer aderir a eles, isto é para nos alienar. Fazem-no até com muitas e boas intenções, da mesma forma que os apóstolos pressionaram o próximo para os levar para o céu. Mas o céu dos outros nunca é o nosso céu [...] (NEVES: 101).
Relembramos aqui Flusser e a sua teoria sobre a resistência das comunidades às alterações ou tentativas de alteração do statu quo.

Conclusão
Pela análise dos dois escritores em perspetiva, concluímos que, aparte as características-padrão da exiliência, comuns, não apenas a Aquilino e Saraiva, mas a toda uma “comunidade exílica”, independentemente das suas origens ou dos seus destinos, mesmo até da sua localização temporal[5], existem diferenças de fundo na forma como cada um deles encarou a sua experiência, as benesses ou malefícios que daí advieram e o próprio processo de sublimação.
Aquilino Ribeiro sempre expressou hiperbólica admiração pelo país que o acolheu e o ajudou a fortalecer, não apenas a sua postura humanista perante o mundo, mas ainda a sua evolução como artista. Dotado de um estilo muito próprio que foge aos cânones literários do seu tempo e que consiste num retomar das expressões populares, muitas delas arcaicas, num casticismo linguístico que exige, por vezes, o recurso a processos de desencriptação, através de dicionários e outras obras especializadas, o autor revela-nos o seu apego às raízes nacionais. Muito embora injustiçado e expatriado - e disso direta influência - Aquilino demonstra na sua escrita um culto pátrio aliado a uma denúncia, impiedosa mas dissimulada, dos males que afligem o seu país.
Não haverá, porventura, melhor definição para o recurso estilístico de Aquilino Ribeiro que a caracterização da essência do estilo, concebida pelo poeta António Osório e referida na obra Povo e Personagem, da professora Cremilda Medina: dizer o inominável de forma brutal, mas sem a desmesura daquele, o máximo de violência num mínimo de retórica (OSÓRIO apud MEDINA: 65).
António José Saraiva, por seu turno, embora assumindo e reconhecendo o incentivo que alguns franceses lhe deram, nunca se sentiu integrado nesta comunidade. Aproveitou, no entanto, essa oportunidade para enriquecer a sua erudição e a sua experiência num exílio que o impeliu a, através da escrita, debruçar-se sobre as suas origens, numa recusa desesperada de assunção de desenraizamento. Enquanto investigador, aplicou-se exaustivamente na história e literatura portuguesas, o que lhe permitiu suportar o degredo ao manter viva a imagem e memória do seu território natal, mau grado a dificuldade provocada pelo deslocamento físico para outro país e consequente afastamento das principais fontes de referenciação.
Apartando-nos do sofrimento psicológico, visivelmente expresso na sua correspondência, o seu contributo literário muito beneficiou com o seu desterro.
Ao contrário de Aquilino Ribeiro, e por motivos óbvios, não podemos analisar o seu percurso exílico senão através da sua correspondência e de algumas entrevistas que concedeu esporadicamente a vários órgãos da comunicação social: toda a sua produção como autor baseia-se em investigação histórica e literária que é, por natureza, excludente de considerações ou juízos de valor que não os estritamente ligados aos temas que esta foca. Aquilino tinha a seu favor a possibilidade de “escrever nas entrelinhas” das suas crónicas e ainda a de produzir obras ficcionais que, por o serem, admitiam segundos sentidos ou outras mensagens subliminares.
Saraiva tenta combater a letargia nacional com um esforço de desenvolvimento social e cultural através da elucidação e aprimoramento das circunstancias históricas e da renovação do estudo da língua, pois sente que o seu papel é o de autor e semeador de ideias, crítico (NEVES: 103); quer voltar a influenciar o público português, ser “deliberadamente inoportuno” para levar a gente a procurar uma saída para o beco onde parece que as pessoas estão metidas (idem, ibidem).
Em termos gerais, ambos os autores influenciaram, não apenas o panorama social e político, mas também e muito particularmente, o literário, através da sua visão renovada pela permanência e contacto com outras culturas, na “capital mítica dos exílios”, que é Paris. Não que tenham dela recebido algo de raiz, mas porque permitiu-lhes afinar e refinar as suas próprias características intelectuais e a sua marcada personalidade humanística, legando à sua pátria novas perspetivas de futuro ao lançar a semente da mudança.
[...] para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou - mas do ideal intimo a que aspirava (Eça de Queirós apud MACHADO: 30).

Bibliografia
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[1] Tradução livre, do português.
[2] Es posible ser exiliado sin moverse del país natal, basta con estar extrañado, desvinculado, alienado. Este fenómeno ha sido acertadamente llamado “inxilio”. La categoría parece haber sido acuñada en Uruguay y ha tenido mucho uso en el contexto de los análisis literarios. […] El inxilio es, entonces, una suerte de mudez, de silencio/sordera producida por una situación de extranjería, que paradojalmente tiene lugar en los límites de la propia tierra (Herceg : 15).
[3] O exilado enfrenta, não somente um dado obstáculo, um mal circunscrito, mas também a indeterminação da perda (tradução livre, do francês).
[4] Que não fazem nada ou nada querem fazer (tradução livre, do francês).
[5] Convirá, aqui, ter uma certa cautela na assunção de dados que tomamos como adquiridos, mas que, todavia, poderão cair no exagero da superinterpretação (vide ECO, Umberto [2005], Interpretação e Superinterpretação, Martins Fontes, São Paulo).

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Mario Vargas Llosa

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Recensão critica ao ensaio A Civilização do Espetáculo,
 de Mario Vargas Llosa


José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho académico no âmbito da disciplina de Teoria da Literatura – Modos e Modelos, da especialização em Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Julho de 2018
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A Civilização do Espetáculo, de Mario Vargas Llosa
Recensão Crítica


José Luís dos Santos Freitas
Up.200700990@letras.up.pt

LLOSA,Mario Vargas (2012), A Civilização do Espetáculo, Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Quetzal.
Recorrendo a uma seleção de artigos de opinião publicados no periódico madrileno El País, reagrupados acronicamente e aglutinados com outros textos de modo a permitirem uma sequência lógica de leitura, Mario Vargas Llosa apresenta no ensaio em epígrafe uma visão pessoal do estado da cultura no mundo e suas tendências de futuro, a qual, na visão do autor, já ultrapassou a borda do abismo e encontra-se em queda livre.
Dos temas abordados pelo escritor, escolhemos apenas aqueles que mais diretamente se ligam ao estado das artes e da literatura, pois é esse o nosso escopo crítico, ignorando outras que, embora pertinentes, se distanciam um pouco das nossas intenções de análise.
Assim, elegemos” Metamorfose de uma palavra”, “I. A civilização do espetáculo”, “II. Breve discurso sobre a cultura”,”III. Proibido proibir” e “Antecedentes – Pedra de Toque. Mais informação, menos conhecimento”, como os textos mais representativos do assunto escolhido e que a seguir abordaremos separadamente.
Metamorfose de uma palavra
Citando Llosa, quando a sua geração entrou para a escola ou para a universidade, ainda existia cultura, a qual foi sendo progressivamente substituída por uma “bizarra matéria” (LLOSA : 11) que adulterou a primeira,perante a condescendência da sociedade em geral.Segundo os seus parâmetros, a cultura está a desaparecer, “e talvez já tenha desaparecido, discretamente esvaziada do seu conteúdo e este substituído por outro, que desfigura o que teve” (idem, ibidem).
Em 1954, prevendo esta mudança gradual, Hanna Arendt escreve:“ (…) la société de masses, qu’on l’aime ou pas, va demeurer nôtre dans l’avenir prévisible, de là sa « culture » la culture populaire {ne peut être} abandonnée à la populace” (ARENDT : 253).
A filósofa defendia o controlo dessa inevitável transformação como a única forma possível de preservar toda uma herança cultural que temia que desaparecesse na voragem da nova “cultura” emergente.
Como recurso introdutório para justificar a sua tese, o escritor cita os pareceres de T. S. Eliot, George Steiner, Guy Debord, Giles Lipovetsky e Jean Serroy, assim como de Frédéric Martel.
O primeiro refere a necessidade de uma elite que preserve a alta cultura e que permita que culturas minoritárias mantenham o seu nível de qualidade, o qual será o expetável para a faixa social de onde provém, ou seja, uma gradação de cultura por classes. Esse sistema de sociedade teria como base de sustentação a família, em primeiro lugar, e um lugar de destaque para a religião cristã – essencial, para Eliot, na construção e manutenção da cultura ocidental. Este escritor admite a possibilidade de um período de ausência de cultura, originado pela sua decadência, o que Llosa identifica com a atualidade.
Steiner também aceita o papel da religião na cultura,porém demarca-a da exclusividade do cristianismo, entendendo-a como uma ambição de transcendência, comum a todas as culturas. Critica Eliot por não ter considerado os grandes conflitos armados mundiais e o Holocausto como fator de declínio da cultura europeia.
Para Steiner, Deus foi morto pelos filósofos iluministas, o que redundou, pela ausência dos valores morais que veiculava, num caos de destruição bélica cujo expoente máximo foram os campos de concentração e extermínio nazis e soviéticos. Na sua visão, este foi o ponto em que a cultura acabou, sendo substituída pela pós-cultura ou contracultura, que carateriza como a descrença no progresso e o surgimento de um pessimismo estoico que vê a História, também ela, em declínio. A partir daí, a tradição cultural ficará confinada ao academismo, sendo substituída na sociedade pela imagem e pela música estridente das novas gerações, factos que considera inibidores do desenvolvimento do raciocínio dedutivo e de qualquer atividade que exija algo mais complexo que uma atitude passiva de receção.
Gui Debord, apoiado numa teoria de cariz marxista, defende que a sociedade se está a afundar num consumismo galopante que lhe retira a vontade própria. O escritor acusa o capitalismo de criar mercadorias que, pelas suas características apelativas, escravizam o homem, afundando-o cada vez mais numa induzida e desenfreada espiral de consumo de produtos supérfluos.
Segundo Llosa, embora existam pontos de confluência entre o seu pensamento e o de Debord, este encara o problema numa perspetiva mais económica, histórica e filosófica do que cultural e defende uma atitude revolucionária para acabar com este tipo de sociedade, objetivos que o escritor peruano afirma serem totalmente diferentes dos da sua linha de pensamento.
A opinião de Gilles Lipowetski e Jean Serroy não difere muito dos exemplos apontados por Llosa, exceto no que concerne a existência do que denominam de cultura-mundo, criada pela partilha dos denominadores culturais de todos os países que, apesar das diferentes tradições, se vão interpenetrando, esbatendo assim progressivamente as suas diferenças. De acordo com os autores, deixaram de existir focos radiantes de cultura, pois “[n]estes tempos hipermodernos, a cultura transformou-se num mundo cuja circunferência passou a estar em todo o lado e o centro em lado nenhum” (LIPOWETSKI e SERROY: 12).
Divergindo sobremaneira da opinião de Llosa, os autores consideram que, embora a produção da cultura esteja cada vez mais industrializada e massificada, há que aceitar a sua transformação como inevitável e, proactivamente, tentar geri-la: “Uma das questões da cultura-mundo é precisamente esta: como educar os indivíduos e formar espíritos livres num universo de excesso informativo?” (idem: 100).
E prosseguem:
“(…) não se trata de promover uma política alternativa ou uma política de civilização – se é que até isso se pode fazer - . Mas uma política que procure, de maneira mais realista civilizar a cultura-mundo que é agora a nossa.
É a esta cultura-mundo (…) que nos devemos ater para o melhor e para o pior. Ela traz consigo muitos males, como se disse, mas tem grande potencial” (idem: 184).
Tal convicção não é partilhada por Hanna Arendt, que considera que a cultura emergente, a cultura de massas, não sairá da sua condição de anticultura, por mais esforços educativos que se venham a propor. Para a filósofa, não passará de “un loisir de masse, qui se nourrit des objets culturels du monde. Croire qu’une telle société deviendra plus « cultivé » avec le temps et le travail de l’éducation est, je crois, une erreur fatale ” (ARENDT :270).
Inúmeras vezes, no decorrer da História, foi anunciado o término de qualquer ação ou acontecimento: a morte de Deus, a morte da crítica, o fim da civilização, o fim do Mundo. E, no entanto, todos continuam a existir, talvez reformulados, eventualmente enfraquecidos, mas ainda presentes. É nossa convicção que, como afirmam Lipowetski e Serroy, apesar dos muitos males que ela veicule, a cultura de massas ou cultura-mundo tem potencial para se transformar numa cultura renovada, com diferentes parâmetros, que se irá libertando dos limites que atualmente lhe são impostos, nomeadamente pelos interesses políticos e comerciais, retomando progressivamente os princípios axiais do conhecimento.
Note-se que a qualidade da oferta artística e literária tem aumentado nas últimas décadas e é apreciada por um número cada vez maior de um público que se vai demarcando da massificação todavia crescente. Embora ainda nos deparemos com um número impressionante de indivíduos pseudo-cultos, de “turistas culturais” que tratam a arte como um trunfo na ascensão social, nos likes do Facebook e nos carimbos do passaporte, assim como no conhecimento e leitura compulsiva dos livros da moda, começa-se a notar em alguns um interesse que vai transcendendo a mera representação. Será destes últimos que, autodidatas ou eventualmente apoiados pelas agora reduzidas elites do conhecimento, poderá nascer uma renovada cultura, eventualmente com novos paradigmas, e detentora de uma nova tradição.
Como última referência mencionada pelo literato, Frédéric Martel, sociólogo e autor do livro Culture mainstream, fala de uma nova forma de cultura que, democratizada, chega a todas as classes sociais. Esta cultura, já não exclusiva de uma elite é, no seu entender, o reflexo de uma nova modernidade ou pós-modernidade que acompanha sincronicamente os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia, em constante desenvolvimento.
Martel, perfeito reflexo da sua época, não menciona literatura, arte, música clássica, humanidades ou filosofia; em seu lugar figuram mangas, videojogos, telenovelas e outros programas televisivos, concertos de rock, música rap e afins.
Como comenta Llosa: “A cultura é diversão e o que não é divertido não é cultura” (LLOSA:28). A nova cultura é transitória, descartável, ao invés da anterior: perene, profunda, feita de marcos incontornáveis e duradouros; a primeira vale pela sua rendabilidade e não pela sua qualidade.
I. A civilização do espetáculo
A visão de repórteres esperando pelo ato desesperado de um broker atirando-se de alguma janela de Wall Street no dia 19 de setembro de 2008, é o mote escolhido por Vargas Llosa para definir o estado atual da civilização do ocidente. A procura do drama, do escândalo, da tragédia, são prioridades na informação por serem altamente ventáveis, pois entretêm e não exigem muito ou nenhum esforço intelectual.
O súbito aumento do nível de vida da classe média e o seu crescimento exponencial, no período pós Segunda Guerra Mundial, ajudado por um extraordinário crescimento económico norte-americano e europeu (a que não será alheio o Plano Marshall, ditado pela Doutrina Truman, programa americano de desenvolvimento dos países europeus devastados pela guerra), ditou uma procura de diversão sem precedentes na História do planeta. A progressiva liberalização dos parâmetros morais e a democratização da cultura,tornada light para poder ser acessível a todos, contribuíram para o florescimento de empresas e produtos que respondessem cabalmente a esse crescente desejo hedonista.
Sob estes parâmetros, Llosa define a cultura atual como “todas as manifestações da vida de uma comunidade: a sua língua, as suas crenças, os seus usos e costumes, a sua indumentária, as suas técnicas e, em suma tudo o que nela se pratica, evita, respeita e abomina” (LLOSA:33). Deste modo, diz o autor, ironizando, tudo se resume a um passatempo agradável.
Max Horkheimer e Theodor Adorno, num texto intitulado “A indústria cultural – o iluminismo como mistificação de massas”, vão um pouco mais longe afirmando: “A libertação prometida pelo amusement é a do pensamento como negação. A impudência da pregunta retórica: «Que é que a gente quer?» consiste em se dirigir às pessoas fingindo tratá-las como sujeitos pensantes, quando seu fito, na verdade, é o de desabituá-las ao contato com a subjetividade” (MOLES: 192).
Edgar Morin tem uma visão diferente deste problema,sustentando que “a cultura é como a Natureza: vive de respirações, de fluxos, de fôlegos, de fecundações e de mestiçagens. É por isso que a cultura viva de hoje em dia é fortemente afectada pela mundialização em marcha forçada que domina a actualidade” (MORIN [2005]: 403) .
Para Morin, o problema consiste num desenvolvimento a duas velocidades: “A mundialização política, cultural e social avança muito menos depressa que a do mercado ou das redes (idem, ibidem).
Por outras palavras, os meios de difusão adiantam-se, ultrapassam a velocidade de assimilação de novos conceitos pela sociedade e esse desfasamento produz uma certa impressão de caos, de incongruência.
Lipovetsky e Serroy chamam a esta sensação de instabilidade A Grande Desorientação: “já não sofremos de escassez de conhecimentos, antes nos sentimos perdidos com a própria abundância de informações (LIPOVETSKY e SERROY: 28, 29). “A desordem já não nasce do que falta mas do híper. É este que é preciso questionar” (idem:31).
É, contudo, premente a observação do escritor peruano sobre a evanescência da crítica no panorama atual da cultura: diz Llosa que o trabalho dos críticos está a ser substituído pelos publicitários, a promoção de uma obra não se pauta pela qualidade mas pela habilidade com que é difundida e vendida, como objeto de consumo que passou quase exclusivamente a ser.
Alberto Mandel define um consumidor como “um cidadão que não reflete sobre aquilo que compra. Para que um cidadão não reflita sobre aquilo que compra é necessário educá-lo na estupidez [fazê-lo crer que não entenderá as grandes obras]” (MANDEL: 88). “A noção que querem inculcar-nos é a de que a criação artística e intelectual deve ser algo que nos ajuda a não pensar” (idem, ibidem).
Neste aspeto, Mandel concorda com Llosa:”o triunfo do trivial e do fácil por contraponto ao que é difícil”(ibidem).
O facilitismo cultural, político e de costumes é impiedosamente atacado pelo escritor. O mesmo sucede com os vários autores citados durante a exposição dos temas tratados e que, curiosamente, são geralmente citados em termos ora sub-reptíciamente irónicos ora utilizando falácias informais, cuja lógica torna difícil a sua identificação, a tal ponto que, a grande maioria das vezes, duvidamos – e com razão - da intenção laudatória do autor.
Llosa atribui também e em grande parte as culpas do estado da cultura aos políticos, que se dissociaram dos pensadores e outros baluartes da alta cultura para, num processo de culto da imagem perante a sociedade, ávida de celebridades mediáticas, se unirem ou aparecerem junto com os ídolos do momento. Nesse sentido, Walter Benjamin, no artigo “A obra de arte na sua reprodutibilidade técnica”, faz uma reflexão sobre a representação teatral em que a sociedade se transformou: “Na época de Homero a humanidade se oferecia em espetáculo aos deuses do Olimpo; ele agora se converteu no seu próprio espetáculo” (MOLES: 254).
Os jornalistas também são visados como instrumento dessa banalização do que é o interesse público, permitindo e incentivando tal estado de coisas que ajudaram a criar. O autor ressalva que eles, ao fim e ao cabo, ao alimentar essa cultura de massas, estão também a tentar sobreviver, pois criaram apetites vorazes que se veem obrigados a satisfazer, se quiserem subsistir no circo de feras em que se transformou a comunicação social. Como Alan Bloom refere: “Agora foi tudo explorado; lança-se luz por toda a parte; o inconsciente foi tornado consciente, o reprimido expresso. E que encontrámos nós? Não diabos aterradores mas a luz do espectáculo (BLOOM: 77).
II. Breve discurso sobre a cultura
Llosa faz notar que, hoje em dia, o tradicional conceito de cultura e as suas fronteiras tornaram-se diáfanos, a ponto de não se conseguir discernir se existem ou não indivíduos cultos e descarrega o peso dessa culpa sobre os etnólogos, antropólogos e sociólogos, como fiadores da inclusão e diluição da cultura popular na ideia original de cultura. A sua crítica mais mordaz é dirigida a Mikhail Bakhtin e seus seguidores, a quem considera responsáveis por essa miscigenação.
Em consequência – diz ele – somos todos cultos porque seguimos as mais variadas correntes de “cultura” que hoje em dia se nos apresentam.
Alan Bloom sintetiza este estado de espírito da sociedade:
“(…) a cultura (…) passou a fazer parte da conversa fiada, chegando ao ponto de se tornar patológica a sua imprecisão original (…) os artistas não têm visão alguma do sublime mas sabem que a cultura (isto é, o que eles fazem) tem direito à honra e apoio da sociedade civil. Os sociólogos e os disseminadores dos seus pontos de vista, os jornalistas de todas as feições, a tudo chamam cultura – a cultura da droga, a cultura rock, a cultura dos bandos de rua e por aí adiante infindavelmente e sem discriminação. O insucesso da cultura é agora cultura” (BLOOM: 179).
O mundo, apesar da crise da cultura, beneficia de um avanço enorme em termos de ciência e de técnica; no entanto, esse desenvolvimento deve-se a técnicos, a especialistas, e não a homens e mulheres cultos. Ao falar de ciência e técnica estamos a falar de conhecimento, e isso não se deve confundir com cultura, pois esta é o seu elemento coordenador, o fiel da balança racional que permite o equilíbrio entre o conhecimento e o que dele se faz.
Da obra Cultura e Sociedade, extraímos uma citação de Agostinho Almiro de Almeida, professor da FFUP, que hierarquiza o processo do conhecimento através da informação:“a informação visa (…), potencialmente, proporcionar conhecimento mas, não é, em si, conhecimento. O que confere (retira) conhecimento à informação é um “transformador” que dá pelo nome inteligência” (NUNES: 30).
Na mesma obra, Vasco Graça Moura, sintetiza o processo de relacionamento entre o conhecimento e a cultura:
“O homem não é um ser científico. A dimensão científica corresponde a uma sua fundamental necessidade de conhecimento, mas não o esgota. A ciência ocupa um lugar cada vez mais importante na sociedade e cabe-lhe um papel cada vez mais decisivo no desenvolvimento e no progresso.
Mas, por outro lado, a ciência, desacompanhada de uma dimensão embebida dos valores do Humanismo, da Ética, da História, da Civilização e da Cultura, não pode produzir conhecimento digno desse nome numa perspectiva humana e socialmente relevante. Há mais coisas no espírito humano do que possa supor uma vã crença científica… A ciência desacompanhada de outras valências redunda, quando muito, nas deficiências insolúveis de uma epistemologia incompleta e até, em certos casos, perigosa para o futuro da Humanidade” (NUNES: 138).
III. Proibido proibir
Mário Vargas Llosa faz acerba crítica a todo o processo que adveio da sublevação estudantil de Maio de 1968, que entende como um movimento fomentado pela juventude burguesa e cujos resultados foram imensamente mais perniciosos que benéficos, no sentido em que a única conquista daí advinda foi o derrube da autoridade e credibilidade do ensino e dos docentes, O resultante igualitarismo forçado e por vezes demagógico, impeliu os estudantes mais economicamente beneficiados a migrar para o ensino particular,permitindo criar um fosso ainda maior no que respeita às diferenças entre classes sociais.
Lipovetsky e Serroy levantam aqui uma dúvida legítima:
“No passado, a escola era uma instância eminentíssima. Continua a sê-lo nos países pobres, onde o acesso à educação, não garantido a todos, é sentido como um privilégio pelos que dele beneficiam, mas nos países ricos tornou-se um direito que o aluno considera que lhe é devido e de que beneficia sem lhe manifestar o respeito que outrora tinha.
O que terá ocorrido? Deveremos acusar a “cultura de 68” e os seus desvios? No entanto, encontramos o mesmo analfabetismo noutros lugares, nos países que não tiveram as barricadas nem as discussões intermináveis da famosa primavera” (LIPOVETSKY e SERROY: 186).
Poder-se-á dar crédito a Llosa naquele seu juízo sobre o Maio de 68 ou a sua análise estará matizada pela aversão declarada que este nutre por Foucault e que associa ao movimento?
Parece-nos que o autor cristalizou as suas opiniões e modelo de cultura algures num período da sua juventude e quase tudo o que a partir daí surgiu deixa de ter valor como cultura “aceitável” ou, pelo menos, digna de análise.
Antecedentes. Pedra de toque – Mais informação, menos conhecimento
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) são, neste artigo, postas em causa, fazendo contrastar as opiniões de Nicholas Carr, especialista em tecnologias da comunicação e o filósofo Joe O’Shea.
Aqui, mais uma vez, o escritor escolheu salomonicamente os exemplos que descrimina: Carr, apesar da sua profissão, é um crítico da internet, que considera, apesar das numerosas vantagens que apresenta, transformadora da nossa forma de pensar e redutora da capacidade de memorização.
Por seu lado, O’Shea, como fanático da Web, defende incondicionalmente a superioridade da informação daí decorrente em detrimento dos anacrónicos livros.O filósofo refere-se aos livros e à Web como informação pragmática e não como veículo de fruição estética, o que, evidentemente, nada abona a seu favor: apesar de filósofo, não passará, afinal, de um técnico.
Llosa admite que a “revolução da informação está longe de ter acabado” (LLOSA: 205) e que nos devemos alegrar se considerarmos que tal representa um progresso. Porém cita Van Nimwegen, um biólogo computacional, que defende que confiar aos computadores a solução de todos os problemas cognitivos apenas diminuirá a capacidade do cérebro humano em adquirir um conhecimento estável, ou seja “quanto mais inteligente for o nosso computador, mais parvos seremos” (idem, ibidem).
Independentemente da atualidade dos temas expostos e apurado espírito crítico, Vargas Llosa peca por rigidez formal e uma isenção amiúde tendenciosa. Apresenta, é certo, opiniões opostas às suas convicções, criteriosamente selecionadas e rebate-as com razões válidas, mas por vezes também com paralogismos. Na nossa opinião, o escritor expressa com honestidade as suas crenças, porém cai no erro de uma certa parcialidade e do conservadorismo das suas opiniões.
No computo geral e apesar da irredutibilidade com que o escritor critica impiedosamente alguns nomes consagrados que fizeram e fazem parte da tentativa perene de elaboração de uma teoria do conhecimento e cujos contributos são imprescindíveis, consideramos Mario Vargas Llosa um marco, também ele incontornável, pelo seu contributo, em prol da história da cultura.A sua obra, talvez eivada de alguns exageros tem, contudo, um aspeto positivo a considerar: alerta para o perigo de uma involução cultural que é necessário prevenir e reverter.
A barbárie que o autor receia está também presente nas nossas preocupações pois, embora acreditemos na transitoriedade da crise que a cultura atravessa, tememos sempre que este e Anna Arendt tenham razão: « Le propre de la barbarie de l’Occident et ce qui lui confère sa puissance formidable, c’est que ce refuss’est accompli non pas contre toutes les formes de culture mais à l’intérieur de l’une d’entre elles, celle du savoir (MICHEL : 242).
Bibliografia ativa selecionada
ARENDT, Hanna (1972), La Crise de la Culture – Huit Exercices de Pensée Politique, Paris, Galimard.
BLOOM, Allan (1987), A Cultura Inculta, Trad. Francisco Faia, Mem-Martins, Europa-América.
HENRY, Michel (1987), La Barbarie, Paris, Bernard Grasset.
LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean (2010), A Cultura-Mundo – Resposta a uma Sociedade Desorientada, Trad. Victor Silva, Lisboa, Edições 70.
LLOSA,Mario Vargas (2012), A Civilização do Espetáculo, Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Quetzal.
MANGUEL, Alberto, «O temor ao poder do leitor continua até hoje”, Revista LER (2012): pp. 28-35 e 88, Mem Martins, Fundação Círculo de Leitores.
MOLES. Abraham et al.(2005), Teoria da Cultura de Massas, 7ª Ed., S. Paulo, Paz e Terra.
MORIN, Edgar (2005), Cultura e Barbárie Europeias, trad. Ana Paula de Viveiros, Lisboa, Instituto Piaget.
NUNES, Rui [Coord.] (2012), Cultura e Sociedade, Porto, Cordão de Leitura.
Bibliografia crítica selecionada
BARBOSA, Lívia e CAMPBELL, Colin [Org.] (2013), Cultura, Consumo e Identidade, Rio de Janeiro, Editora FGV.
GILSON, Étienne (1970), Cultura e Sociedade de Massa,Trad. Teresa Vasconcelos Saraiva, Porto, Morais Editores.
MORIN, Edgar (1999), O Desafio do Século XXI – Religar os Conhecimentos, Trad. Ana Rabaça, Lisboa, Instituto Piaget
SANTAELLA, Lúcia (1999), (Arte) & (Cultura) – Equívocos do Elitismo, S. Paulo, Cortês Editora.


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L'Oeil Cartographique de L'Art
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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

L’oeil cartographique de l’art
Christine Buci-Glucksmann

Relatório de leitura

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de investigação e síntese, no âmbito da disciplina de Literatura e Estudos Interartes, do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Janeiro de 2019
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Relatório de leitura
BUCI-GLUCKSMANN, Christine (1996), L’œi lcartographique de l’art, Paris, Galilée.

O livro em análise, da filósofa francesa Christine Buci-Glucksmann, especializada em filosofia estética e literatura barroca, debruça-se sobre as relações entre a pintura e a cartografia numa perspetiva, não apenas histórica, mas também e essencialmente estética, abrangendo o espaço que medeia entre o século XV e o presente.
A filósofa invoca o caráter heterogéneo das abordagens cartográficas da arte, na arte e como arte, que passam por uma visão ou, na expressão da autora, num olho, ora alegórico, ora tautológico, entrópico, crítico ou efémero, num processo em constante evolução e, por consequência, “un voyage par nature inachevé, comme le rêve d’un Ulysse cartografe (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 7).
Focar-nos-emos sobre os dois primeiros e o último capítulos da obra, seus conceitos e deduções teóricas: l’oeil-monde ou le fantasme d’Icare, l’oeil descriptif et allégorique e Icare aujourd’hui : l‘œil éphémère.
Ptolomeu, um geógrafo visionário que viveu no século II da Era Cristã, afirma que [l]a géographie est une imitation de la peinture de toute la terre (apud BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 51). Joan Blaeu, cartógrafo holandês do século XVII, autor de um dos maiores atlas do seu tempo, completa a visão ptolomaica ao considerar a geografia como l’oeil et la lumière de l’histoire (idem, ibidem).
Apesar do mapeamento do mundo existir desde o alvor das primeiras civilizações, é só a partir do século XV que as cartas geográficas adquirem uma produção exponencialmente célere com o descobrimento de novas terras, num contexto não inocentemente sincrónico com o esforço humanista de conhecer e compreender o mundo (VALENTIM, passim). Antonio Sanchez Martinez, professor da universidade de Lisboa, explica a importância deste fenómeno:
En tanto que fieles imitaciones de la naturaleza, las imagenes recordaban aquello que previamente habia sido visualizado; hacian visible lo invisible. Las imagenes tenian la virtud de satisfacer la legibilidad del mundo, un mundo que era mas asequible y comprensible por medio de representaciones visuales que a traves de las palabras. La representacion visual permitia leer aquello que hasta entonces era indescifrable. Las descripciones visuales o pinturas se complementaron asi con el arte de la escritura (MARTINEZ:393).
Ambas formas de representacion, tanto pictorica como cartográfica constituian imagenes del mundo (idem:394).
Com Bruegel, a representação pictórica materializada na tela A queda de Ícaro, de 1558, adquire, através de uma perspetiva aérea, um “paisagismo geográfico”, como lhe chamaria Marcel Duchamp, fruto de um olhar-mundo que abarca o espaço da pintura como carta geográfica. É uma visão que atinge um pormenor quase infinitesimal, como se do olhar de um Ícaro atento, no auge da sua viagem exploratória, se tratasse. É esse ponto culminante que Bruegel retrata, o registo final antes da queda, o momento em que o Ícaro-pintor grava a sua paisagem-mapa, após o que, finda a sua missão, se precipita no mar.
Contrariando Duchamp, que encara as representações geográficas como uma forma de arte não retiniana, Bruegel pinta, na obra citada, uma tela-mapa, que não prescinde da representação artística como preocupação estética para mimetizar o mundo num plano, minuciosamente, e que é, de facto, uma planta geográfica do lugar que o pintor idealizou, seja ele real ou ficcionado.O mundo reduz-se a um mapa, este a um fragmento de território e este ainda a um detalhe infinitesimal.
Pascal, a propósito da variedade, escreve: une ville, une campagne, de loin est une ville et une campagne ; mais, à mesure qu’on s’approche, ce sont des maisons, des arbres, des tuiles, des feuilles, des herbes, des fourmis, des jambes de fourmis, à l’infini. Tout cela s’enveloppe sur le nom de campagne. […] Tout est un, tout est divers (PASCAL : 84).
Esta citação do físico francês, dada como exemplo, aponta para a pluralidade e, simultaneamente, unidade do que é representado e que Duchamp apoda de “diagrama de uma ideia”, ou seja, o conceito de que uma carta geográfica ou uma tela, como artefacto, não representam movimento, mas descrevem-no. A estaticidade do jogo de luzes e de cores não esconde a dinâmica do que é representado e concomitantemente sugerido.
A este propósito, a investigadora afirma que deparamos com an unveiling of the frames of representation as illusory: the eye, exposed to its own ways of seeing, recognizes them as a construct, as an artefact. The coincidence of reality “as it is” with the visible no longer holds up (apud D’ERICO {2018}: 62).
Com Bruegel — diz a autora — o olhar-mundo torna-se olhar-cartográfico: la carte ne fera que précipiter sur un plan le regard icarien (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 21). A carta geográfica estabelece uma relação entre o visível-legível da imagem e a invisibilidade de um mundo fisicamente ausente.
No entanto, la carte est si peu le territoire que je peux la vider, et même réaliser une carte vide. Car au fond sur une carte, je ne possède rien. Le monde y est absent (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 25) ou, por outras palavras, mesmo que a carta desapareça, o que ela representa pode perdurar.
Gilles Deleuze e Félix Guattari vêem nas cartas geográficas, não simples decalques, mas modelos abertos e rizomáticos. Por essa razão, e combinando as suas premissas com os conceitos de desempenho e competência introduzidos por Noam Chomsky, afirmam: [c]’est peut-être un des caracteres les plus importants du rhizome, d’être toujours à entrées multiples […], contrairement au calque qui revient toujours «au même ». Une carte est affaire de performance, tandis que le calque renvoie toujours à une « compétence » prétendue (DELEUZE, GUATTARI : 20).
Perante o olhar perspetivista barroco, a carta aceita diferentes entradas e pontos de vista, embora com a condicionante de o fazer num plano ou num globo. O olho cartográfico pratica, segundo a autora, um barroco da superfície que mistura o detalhe com o infinito. Não sendo o território, a carta geográfica exprime-o numa relação não mimética que projeta uma visão icárica deturpada.
Desde o fim do séc. XIV e durante todo o séc. XV, e impulsionado pela descoberta de novos mundos e a redescoberta dos trabalhos de Ptolomeu, assistiu-se a um “furor geographicus” (BOUTIER {2005}) sem precedentes, um pouco por toda a Europa. Em Veneza imprimem-se os primeiros “portraits de ville”, que são une forme nouvelle de représentation de l’espace, qui associe un fond géométrique au dessin en élévation des principaux monuments de la ville (idem, ibidem).
Estes « portraits » propose[nt] une image globale de la ville, qui puisse satisfaire les exigences de mesure et de géométrie sans pour autant faire disparaître la dimension visuelle qui donne à celui qui regarde le plan l’impression d’observer la ville dans sa réalité matérielle (idem, ibidem).
Durante o século XVI os mapas evoluem, modernizam-se, tornam-se descriptio: a planta geográfica é acompanhada por uma descrição do seu conteúdo. Ergue-se aqui uma nova visão do mundo, que se afasta progressivamente dos mapas medievais, de cariz marcadamente simbólico, submetidos à visão teocêntrica cristã. A mudança da visão do olho-mundo origina cartas geográficas cada vez mais secularizadas, como a criada por Martin Waldsermüler, em 1507, onde as figuras de Ptolomeu e Amerigo Vespuccio substituem a iconografia cristã, cuja intenção representativa é muito mais teológica que geográfica.
Durante toda a Idade Média, na Europa, as representações geográficas da Terra tinham como modelo os mapas criados por Isidoro de Sevilha, no séc. VI, vulgarmente chamados T/O, onde a letra T dividia a terra em três continentes (Europa, Ásia e África – os únicos conhecidos até então) e a letra O representava o seu formato , crido como circular e plano.
No início do séc. XVI as cartas geográficas sofreram transformações profundas, com a redescoberta da Geografia ptolomaica e do seu sistema de projeção cartográfico, que excluía qualquer simbologia, apoiando-se apenas na transposição matemática de um mundo, assumido como esférico, numa carta plana ou num globo.
Tal representação apresenta, porém, problemas insolúveis, como o da supressão do horizonte e da ausência de um ponto de vista fixo; a representação é bidimensional, sem espessura,sendo uma miniatura do globo terrestre que aí se projeta. De igual modo, modifica-se de acordo com as fronteiras do mundo conhecido.
A partir de meados do século referido, essas cartas começam a refletir uma tomada de poder político, seja ela do âmbito secular ou do religioso.
Retoma-se uma certa simbologia, uma simbologia do lugar, através de minúsculas representações de locais, edifícios, florestas, etc, onde as cores começam a dominar e os detalhes se tornam visíveis e legíveis, inclusive ornamentais. Como comenta Buci-Glucksmann, [l]a carte peinte est une forme visuelle d’écriture de signes. Signes de langage des toponymes et des inscriptions, signes quasi hiéroglyphiques de montagnes et fleuves très stylisés, signes scénographiques et ornementaux des cartouches (BUCI-GLUCKSMANN {1996} : 37-38). O séc. XVI inaugura um período alegórico nas cartas geográficas, que cedo se transformam em documentos e instrumentos de domínio, de poder. No entanto, estas revelam-se também uma arte de descrever o mundo, atravessando as fronteiras do saber científico, e o seu expoente surge com a aposição de cartouches ou painéis, preenchidos ou não com desenhos ou textos, não apenas informativos, mas também inseridos como ornatos, com a função de causar efeitos de prazer ou de estilo, numa forma de pensar geo-artística pioneira.
Com Vermeer, no séc. XVII, surge uma nova forma de pintura que combina alegoria e cartografia. No quadro L’art de la peinture, além da representação alegórica de Clio, a musa da História, em pose, e a do próprio artista, de costas, a retratá-la, a carta representada, contendo a inscrição Nova […] descriptio, ao fundo, na “parede”, é meta-pictural, representando todo o conjunto um quadro dentro de um quadro, dado que o encaixe e o entalhe das figuras cartográficas engendram dois espaços, dois mundos, em que o quadro central, valorizado como imagem e objecto, se recorta sobre o do fundo.[…] Entre quadro-figural e quadro-fundo, o olho desloca-se, atento e curioso, como sobre um mapa (BUCI-GLUCKSMANN, 1998).
Diferente do estilo pictórico italiano, onde os quadros representam o que vemos, Vermeer representa o mundo que é visto. A imagem perspetivista torna-se imagem ótica. Assim, a Nova Descriptio é a própria pintura, na identidade do olho cartográfico e do olho descritivo. O observador, como olho, não é exterior ao plano do quadro, o olho é o quadro. Assim, o artefacto cartográfico não passará de uma duplicação duplicada da pintura-mundo, num registo descritivo e não-narrativo.
A investigadora ressalva que o olho descritivo não é apanágio de Vermeer ou do século XVII: já é aflorado por Bruegel e mesmo por Jan Van Eyck, no século XV, com a sua preocupação pela representação realista e minuciosa: frontaliser le monde et le mettre en surface, telle est la pulsion originaire du désir cartographique en peinture (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 63).
Esta dialética entre o plano e o frontal, própria do olho cartográfico da arte, encontra-se também na pintura de El Greco (Doménikos Theotokópoulos), um dos expoentes da Renascença Espanhola, no século XVI.
Vista y plano de Toledo é uma obra onde se denotam traços da frontalidade bizantina e do maneirismo romano, com a estilização exagerada da primeira e o capricho nos detalhes, caraterizado por deformações e alongamentos dos corpos, no segundo. O confronto destes dois processos origina, diz a investigadora, um já referido barroco da superfície, onde os diferentes planos se encaixam e desencaixam numa visão múltipla, originando diferentes perspetivas da cidade. Cria-se um diálogo interno entre as diferentes Toledo: a que é vista do alto de um morro sobranceiro à cidade, onde dois edifícios representam o poder — a Catedral e o Alcazar; a alegoria do Tejo, por intermédio de uma “escultura” dourada, em falso relevo; a Toledo do plano que o filho do pintor, retratado na tela, segura, no quadro, à direita, e a Toledo que é explicada num comentário de 17 linhas, ao fundo do referido plano. Resta, pois, saber qual a verdadeira Toledo aqui representada.
Ao simbolismo das duas primeiras, contrapõe-se a descrição cartográfica e écfrásica, dentro da própria pintura, das últimas.
Diversamente do olho-quadro de Vermeer, onde a carta geográfica na parede é vista em fundo, num plano secundário, na Vista y plano de Toledo a carta é, na verdade, a superfície da tela, que aparece como que destacada sobre a cidade, em primeiro plano.
A descrição aí anotada é a própria alegoria da pintura, e obriga-nos a um ponto de vista imposto pelo seu autor. Nos comentários, El Greco ressalva que a vista foi retocada, embora o plano seja exato. A carta em evidência dá-nos a confirmação da veracidade-falsidade da pintura, num jogo entre as três dimensões, onde o plano cartográfico se expõe como que em destaque, aparentando uma veracidade simulada, através da representação de uma superfície vincada nalguns pontos e de fraca legibilidade, como um documento muito usado, onde a tinta se vai desvanecendo.
Enquanto a estrutura das pinturas de Vermeer assenta sobre um sistema de quadros dentro de quadros, El Greco fá-lo através de um espaço duplo, onde se misturam o olhar e o decifrar, ao inscrever o discurso sobre a pintura na própria pintura.
A autora considera que o efeito cartográfico da arte pictural depende de um jogo de planos onde intervenham mecanismos de projeção e transposição. Assim, a superfície da tela, por ação de um processo de enquadramento e por efeito de dobragem e reflexibilidade, encaminha para o que ela designa de plan-tranfert,
Walter Benjamin, citado pela escritora, afirma: […] l’allégorie s’oppose au symbol et au mythe par ses procédures de fragmentation, de montage et de collage […] et préfigurent dès le XVIIe siècle baroque, le moderne des montages-collages (BUCI-GLUCKSMANN {1996} : 61). Temos, assim, a antevisão das abordagens vanguardistas dos inícios do século XX, assim como as dos ultramodernistas.
No último capítulo, a investigadora coloca-nos perante uma questão, firmada num conceito de leveza, de volatilidade, e associada a uma moderna cartografia do mundo, assente na simulação computacional: ter-nos-emos transformado em Ícaros neste mundo mágico dos mapas-mundo virtuais?
Desde as grutas de Lascaux à mitologia grega, passando pelos contos das Mil e uma Noites e pelo trabalho de Dante, os spiriti ou espíritos (assim nomeados pelo poeta do séc. XIII, Guido Cavalcanti, e entendidos como projeções do estado de alma), representavam essa leveza sentida pelo ser, na observação do objeto artístico, liberto do seu peso material e tornado visão, simultaneamente sensorial e metafísica (CALVINO: passim).
Com a evolução do conhecimento tecnológico, a cartografia teve e continua a ter de ser continuamente redefinida, uma vez que os mapeamentos atuais passam por uma virtualização e globalização dos espaços que se estende muito para além da escala planetária.
O encontro de Ícaro com a cartografia já possui uma pré-história artística, que passa pela demanda de um virtual estético que liberte a obra das suas amarras terrenas, da linha do horizonte, por intermédio de um ponto de vista do aviador – conceito tão caro a Malevitch e a Duchamp – e que conduz a uma não-existência da forma, a uma ausência de ponto de observação. Esta arte numérica que suprime o objeto real na sua construção, necessita de um observador que, interagindo com o médio, recupere da abstração a mensagem que esta veicula.
Contrariamente à visão dependente da gravidade, do horizonte, do alto e do baixo e da queda, a arte icárica opõe um” être du trajet”, uma viagem, onde Ícaro ascende ou paira, numa fluidez espacial (BUCI -GLUCKSMANN {1996}: 150-151).
As novas cartografias virtuais, seja através de observações microscópicas ou macroscópicas, permitem construir representações a duas ou a três dimensões da Terra ou mesmo do resto do universo cognoscível, nos seus mais ínfimos ou vastos detalhes. As cartas, como representações virtuais, espelham o olho cartográfico no olho conceptual ao longo da história, na forma de quadros, planos e “portraits de ville” pois, tal como estes, o virtual não passa de uma perspetiva, uma forma de perceção da realidade.
Christine Buci-Glucksmann, apresenta neste livro uma análise multidisciplinar e transdisciplinar sobre a correlação entre a elaboração de mapas e cartas geográficas e as formas de arte, que não apenas a pictórica, mas que englobam todas as abordagens do processo criativo.
Desde o barroco à pós-modernidade, passando pelos Ready-Mades de Duchamp, pelas Vanguardas Russas, com El Lissitsky e Malevitch, pelos trabalhos cinéticos de Takis, o Nouveau Réalisme de Yves Klein, o Espacialismo de Lucio Fontana, não esquecendo a arte fractal de Desmond Paul Henry, a arte New Media de Bill Viola, as instalações de Rebecca Horn, a leveza arquitetural de Toyo Ito ou as obras concetuais e visuais de David Reed, a arte procura uma nova visão do mundo, liberta do peso gravítico que a limita.
A arte procura uma desmaterialização, uma transparência que sugira mais do que mostre e que, ao mesmo tempo, transforme ou subverta a realidade com novos sentidos e novas combinações. Pôr em causa o “ocularocentrismo” que domina a civilização ocidental desde o século XVII é, pois, o objetivo contemporâneo da arte.
Bibliografia
BOUTIER, Jean (2005), Réduire les villes en cartes - L’invention d’un regard non figuratif dans l’Europe moderne, in https://halshs.archives-ouvertes.fr/file/index/docid/55521/filename/J._Boutier-Villes_en_cartes.doc,
visto em 7 de dezembro de 2018.
BUCI-GLUCKSMANN, Chistine (1996), L’œil cartographique de l’art, Paris, Galilée.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine (1998): Texto introdutório, in PAVÃO, Isabel (1998), Cartographies, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
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A Génese do Neoplatonismo - Plotino
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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A génese do Neoplatonismo:
Centralidade do Belo nas hipóstases de Plotino

Ensaio

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de análise crítica, no âmbito da disciplina de Estética Literária, do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais, do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes.
Junho de 2019

A génese do Neoplatonismo:
Centralidade do Belo nas hipóstases de Plotino


Análise crítica da obra :
Ennéades, Tome I, partie VI, PLOTIN (1976), BRÉHIER, Émile (Trad. du grec pour le français), Paris, Société d’Édition « Les Belles Lettres ».

Definir o Belo foi uma das preocupações dos filósofos da Antiguidade Clássica, onde este conceito significava, não apenas o belo, mas o justo, o bom, o virtuoso, a cor, a luz e, em suma, todos os atributos considerados positivos.
Em grego, o termo Kalocagathia – que poder-se-á traduzir, grosso modo, como perfeição -, provém de kalos kai agathos – “belo e bom/virtuoso” –, a essência do Homem Ideal, para Platão e Aristóteles.
Ao longo dos tempos a conceção do Belo foi-se modificando, adotando novas formas, confundindo-se ou mesclando-se com o Feio, numa subversão da ideia original. Tal não significa que belo e feio sejam hoje ou venham a ser no futuro, sinónimos. A evolução do Gosto, numa perspetiva estética, tem-se vindo, no entanto, a distanciar, não só da metafisica, mas também da noção do Uno como condição sine qua non dos conceitos platónico e plotiniano do Belo. O Gosto acompanha a evolução humana e, como ela, transmuta-se, influenciando conceitos e preconceitos.
Plotino (204 – 270 d.C.) foi um filósofo nascido em Licópolis[1], no Egito, mas que iniciou a sua escola em Alexandria e, posteriormente, transferiu-a para Roma. Foi discípulo de Amónio Sacas, que a tradição indica como sendo o fundador da primeira escola neoplatónica de Alexandria (circa 200 d.C.) e de quem viria a colher os fundamentos que dariam origem ao desenvolvimento de uma visão neoplatónica do mundo, centrada numa perspetiva estética e metafísica. Essa postura filosófica está descrita nas Enéiadas, uma obra composta por seis tomos, contendo cada um nove tratados (ennéa em grego significa nove), num total de 54. Constituem a sua única contribuição conhecida para a posteridade e foram compilados pelo seu discípulo Porfírio.
Nesta, o filósofo advoga três hipóstases ou princípios fundamentais, no mundo inteligível: o Uno, entendido como o princípio criador ou Théos, que já na filosofia pré-socrática é associado ou identificado com o Bem, e ao qual a Beleza se subordina. Na cosmologia platónica é o Demiurgo, o Grande Artesão, aquele que retira a matéria do Caos e lhe dá forma através das ideias.
Importa ressalvar que a entidade referida, em Plotino, não se insere em nenhuma plêiade deísta, fazendo apenas parte de um conceito de monoteísmo agnóstico, onde Deus é entendido como uma entidade geradora, isenta de vínculos a correntes teológicas. Será também útil recordar que o filósofo separa os conceitos de Belo e Bem, no sentido em que o último existe independentemente do belo e não necessita deste para se manifestar, ou seja, o bem suscita o desejo de o praticar objetivamente, enquanto que o belo é uma sensação subjetiva, uma qualidade.
Abaixo do Uno está a segunda hipóstase: o Intelecto (Nous), a origem do pensamento, da inteligência, das Ideias, que recebe do primeiro a emanação do Belo (ou contemplação da Beleza) como uma luz, o qual, por sua vez, reverbera-a sobre a alma (Pshyché), que é a terceira hipóstase, dando-se a este processo metafísico o nome de processão.
A alma, como mediadora entre o mundo inteligível ou das Ideias e o mundo sensível ou da Matéria, une-se a um corpo físico a que, através da forma e ideia, dá vida, constituindo assim o que conceptualmente se designa por Homem. Este, embora sujeito à tentação dos apelos inerentes à carnalidade, aos prazeres físicos que o desviam do caminho do Bem, sente as emanações de luz espiritual provindas do mundo inteligível, que o “enamoram” e fazem aspirar à elevação e união com o Theos, simultaneamente arquetípico e teleológico.
Inversamente, a Pshyché recebe do homem (Soma), enquanto matéria, e por conversão, a contemplação do Belo, pois este, não só é emanado por ela como transmissora da Beleza irradiada do Uno e a que o corpo aspira, mas também resulta das belas obras e das belas atitudes que o último tenha eventualmente produzido, assim como da sabedoria que tenha vindo a desenvolver : Não existe beleza mais real que a sabedoria que detetamos em alguém, a qual amamos sem atentar à sua aparência física, que poderá mesmo ser feia. Ignoramos totalmente a aparência externa e focamo-nos na sua beleza interior. [Tradução livre, do francês][2] (PLOTIN {1976B}: 138).
Também na arte, que o Soma, como parte integrante do mundo sensível, produz e experiencia, podemos encontrar o Belo; a visão da arte através dos olhos físicos faz com que o Homem aspire, pela contemplação, às outras belezas não sensíveis de que se apercebe.
Para Plotino, a arte não imita os objetos, mas as ideias a que estes estão subjacentes; a Forma é introduzida no objeto pelo artista, não através dos seus olhos ou das suas mãos, mas porque ele participa da arte [Trad. livre, idem] [3] (PLOTIN {1976B}: 135).
No entanto, como o corpo material tem uma visão limitada pela condição de pertença ao mundo sensível, a sua perceção da Beleza, enquanto irradiação do Uno, limita-se apenas à consciência da emanação do Belo que a alma, em simbiose, lhe transmite e ao qual ele não tem pleno acesso. Deste modo, a cintilação do Belo, emanada pela Pshyché e que acolhe como manifestação da Beleza, indu-lo a almejar a ascensão mística ao mundo inteligível, através da pureza de ações e obras. O corpo físico empenha-se em se libertar da imperfeição das tentações terrenas, dos prazeres e sensações primárias, contemplando a alma. Esta, por seu turno, maravilha-se com a emanação provinda do Intelecto e que este recebe do Uno, a Causa Prima. O fulgor desta emanação vai-se perdendo à medida que o Uno se distancia, donde o homem (que é a última instância desta expansão de luz, pois é consciente da sua Forma e Ideia) apenas recolhe uma pálida reverberação, a qual, ainda bela, impele-o a transpor as dificuldades com que depara na prossecução do seu objetivo.
Neste estágio o amor, inspirado pela perceção da beleza sensível, é um dos principais meios, a escada que conduz à união dos corpos e também das almas e os transporta aos patamares mais elevados, ao êxtase da visão do Belo, ao vislumbre e conúbio com o Princípio Criador.
Embora reconhecendo a validade das premissas platónicas que servem de base à sua teoria filosófica e que são em grande parte partilhadas pelos filósofos estoicos, Plotino recusa que, como os últimos proclamam, o Belo se encontre apenas na simetria das formas e confinado ao Uno, como seu único portador; as formas simples em si podem ser belas e não estarem sujeitas à visão de conjunto para, através da simetria e da proporção, se poderem justificar como tal.
No entanto, para que o Belo se manifeste num todo, é necessário que as suas partes sejam igualmente belas; de outro modo, a heterogeneidade resultante, por ser anómala, redundaria em algo truncado ou deformado e de onde seria necessário extirpar a dessemelhança, sob risco de cair no domínio do feio.
De acordo com estas premissas, o filósofo questiona: Quando vemos o mesmo rosto, de proporções inalteradas, por vezes belo e por vezes feio, como podemos negar que a beleza que está nestas proporções nada tem a ver com elas e que é por algo de diferente que o rosto bem proporcionado é belo? [Trad. livre, idem][4](PLOTIN {1976A}: 96).
A multiplicidade em Plotino é vista numa perspetiva global, de conjunto, onde a soma das partes constitui um todo, que é Belo. Tudo o que é incompleto, partido, destacável, é feio, não faz parte de uma Ideia.
Evidentemente, salvaguarda-se que, embora bela entre belas, uma parte descontextualizada dificilmente poderá fazer um conjunto belo: um belo pé ou uma bela mão não farão sentido num belo rosto. Só nestes casos particulares poderemos aplicar os argumentos estoicos da simetria e da proporção.
É, aliás, esta a refutação que dá início ao capítulo 1 do tratado VI, do livro I das Enéadas, onde o pensador rebate as teorias estoicas referentes à exclusividade da beleza apenas pela sua proporção e simetria, aliadas a uma certa harmonia de cores, em nome da beleza [Trad. livre, idem][5](CICÉRON, XIII-30: 69), demonstrando a fragilidade de tais fundamentos.
Perguntamo-nos aqui onde estão as belas cores na pulcritude da estatuária grega, de monocromia marmórea, não menosprezando, contudo, a sua proporção e simetria. Se aceitarmos esta condição estoica para classificar algo como belo, que dizer então do modelo humano original? A comparação da gradação de cores entre o representado e a sua representação tornará um deles mais belo, menos belo, igualmente belo ou feio?
Poderá haver cópias mais perfeitas que o modelo, mas tal não significa que este seja feio. Contudo, tal implicará gradações na avaliação da beleza, dependendo do observador, o que contradiz o próprio conceito de beleza apresentado pelos filósofos estoicos.
Do mesmo modo, segundo estes, só a soma das partes e não cada parte isolada, poderá ser bela. À luz deste raciocínio, um rosto não pode ser belo, pois é apenas parte de um conjunto maior, que é o corpo, assim como a luz do sol não poderá ser bela porque é simples. De igual modo, um som isolado não será belo, a não ser aliado a outros sons para formar uma partitura.
As ciências, os discursos, as condutas e as leis também poderão ser considerados belos, mas certamente não haverá maneira de encontrar neles qualquer espécie de simetria. Do mesmo modo, a Inteligência é bela, apesar de ser una, não pertencendo a nenhum conjunto nem apresentando, como nos casos anteriores, qualquer regularidade.
O filósofo, embora fixando-se na alma, debruça-se sobre a componente física, o corpo, e a categoria sensível a que este pertence, reconhecendo que estes também podem ser belos e constituírem, portanto, através desta qualidade, um veículo de ascensão aos patamares superiores do mundo inteligível. A Psyché é o interlocutor entre o Nous e o Soma, dando origem a que o último, se for intuído pela alma como belo, será por esta reconhecido como semelhante a si própria e às suas congéneres, partilhando com ela a mesma pureza e a mesma Ideia. A matéria, enquanto amorfa é uma representação da feiura, pois não tem razão nem forma, pela ausência de um plano diretor moldado pela Ideia.
Essa Ideia, a existir, ordena o corpo de modo a que as suas partes se combinem harmonicamente, tornando-se belas na sua unidade, fazendo-se reconhecer pela alma como tal e partilhando com esta uma afinidade estética que a atrai e à qual se une: Deste modo, a beleza dos corpos provém da sua participação numa razão provinda dos deuses. [Trad. livre, idem][6](PLOTIN {1976A}: 98).
Esta atração ou o enamoramento referido por Plotino é, do mesmo modo que a visão da arte ou das qualidades morais de outrem, puramente andrógino e assexuado.
Para o pensador, o prazer estético, e mesmo o prazer amoroso, são formas de elevação da alma, através da qual o corpo, por contemplação, logra aceder ao vislumbre dos níveis superiores e atingir a consciência do Belo e por este imergir no Uno, no Bem, a que a Beleza suprema se subordina.
Segundo o licopolitano, a capacidade de julgar é a principal razão pela qual a Pshyché revê no Soma as virtudes que lhe possibilitam unir-se-lhe em perfeita sintonia, não excluído que as outras partes da alma, embora em menor escala, também contribuem como um todo para essa ligação íntima. Esse vínculo é conseguido pelo reconhecimento da existência de uma Ideia interior, como um cânone, que aglutina as formas dispersas que constituem o Soma, criando assim uma unidade feita de múltiplas partes que partilham a mesma ideia.
A alma, reconhecendo nesta forma multíplice, mas una, uma sintonia consigo própria, comunga com ela a volúpia da contemplação do Belo e o anseio da união, através do Nous, com o Theos, a Unidade Suprema, a fonte de onde emana uma Luz que nunca fatiga ou sacia os seus amantes.
Reportando-nos à composição da alma segundo a doutrina platónica, que a divide em três partes que denomina racional, passional e apetitiva (PLATÃO {1975}, X: 307 et seq.) das quais apenas a primeira é efetivamente focada na obra em análise, concluímos que Plotino se sente em terreno movediço quanto ao acolhimento desta tripartição. O filósofo menciona vagamente essa divisão sem a sujeitar muito a um aprofundamento que poderia expor fragilidades teóricas passíveis de comprometer a sua perceção da alma e o desempenho desta em todo o processo abordado.
Como, porém, não é esse o escopo deste trabalho, deixaremos a especulação tal qual se encontra, pois conduzir-nos-ia a caminhos desviantes da intenção original, ou seja, da crítica do tratado enquanto fundamento de uma teoria do Belo.
Rematando as suas reflexões sobre as belezas sensíveis, Plotino aborda as cores e o fogo, e tece considerações entre a sua beleza intrínseca e os limites do feio. As cores simples serão, no seu entendimento, uma forma que domina a escuridão natural da matéria, através de uma luz imaterial, que é razão e ideia. Essa luz incorpórea é o fogo e está associado por ele ao grau mais elevado das categorias do mundo sensível por ser um corpo quase etéreo, mais leve que qualquer outro, simples por não conter nenhuma outra forma – embora possa ser contido por elas – e que é elevado pelo filósofo à categoria de Ideia.
Plotino considera-o o arquétipo da cor, através do qual a matéria recebe a cor, a forma e a luz. Ofuscada pelo seu brilho, a matéria amorfa, não comungando da Ideia da cor, torna-se feia.
Aqui o pensador desvia-se da teoria das cores e da luz, de Platão, embora as considere igualmente uma categoria do mundo sensível: Chamamos-lhes cores. É uma chama que se escoa dos corpos e que contém partículas que são apreendidas pelo olho, de modo a produzir uma impressão visual. [Trad. livre, idem][7] (PLATON {1970}: 193).
As conclusões de Platão sobre a composição das cores, da luz e do fogo, divergem das de Plotino por este as encarar numa perspetiva metafísica (no seu sentido neoplatónico), enquanto o primeiro as teoriza sob um ponto de vista científico, semelhante às conceções atomistas veiculadas pelos filósofos Leucipo e Demócrito, seus contemporâneos.
Em relação à música, o filósofo alexandrino afirma que as harmonias musicais sensíveis provêm de sons cujas harmonias são impercetíveis aos sentidos físicos e permitem à alma captar a sua beleza através da Ideia que lhe está subjacente. Como na matéria, o som ou conjunto harmónico de sons, unidos pela ideia que lhes preside, torna-se belo e é reconhecido pelas almas como tal.
Concordando com Plotino, entendemos que um som isolado poderá ser harmonioso (belo) ou desagradável (feio), tudo dependendo do seu timbre, altura e intensidade. Podemos referir, a título de exemplo, o som provindo de uma flauta de Pan ou de uma harpa, comparado com o de uma trompa de caça ou a buzina de um comboio.
Referindo-se às belezas das categorias superiores ao mundo sensível, apenas percebidas pelas entidades do mundo inteligível, visto não poderem ser captadas pelos sentidos do mundo físico, o pensador afirma que a alma as contempla com adoração, com deleite, com amor, mesmo com frémitos de prazer.
No Fedro, Sócrates afirma que […] o Amor é um desejo e […] mesmo as pessoas que não amam desejam sempre o belo (PLATÃO {1981}: 43). As almas sentem essas emoções, principalmente e com mais intensidade as que estão enamoradas. Mesmo o corpo, ao contemplar o belo em outros corpos e desejando-os intensamente, sente a sua beleza com maior acuidade: todos a vêm, mas não sentem o seu ferrão de igual modo. Os que mais o sentem são aqueles a que chamamos enamorados [Trad. livre, idem][8] (PLOTIN {1976A}: 100).
Em nosso entender, há uma certa nebulosidade na identificação do amor em Plotino. Numa perspetiva estritamente agnóstica, essa indefinição conduz-nos por vezes à incerteza sobre se o pensador se refere ao êxtase místico, ao Ágape, similar aos de S.ta Teresa de Jesus ou S. João da Cruz, ou se alude ao Eros – o amor físico -, embora não no sentido de um prazer puramente sensorial mas sim numa perspetiva tântrica, de equilíbrio dos opostos pela comunhão do intelecto e dos corpos, cujo objetivo é, em ambos os casos, o ascenso ao extrafísico, ao mundo inteligível.
O filósofo (ou, mais propriamente, o seu compilador, discípulo e amigo, Porfírio) tenta aclarar no tratado a relação entre a alma, o amor e a beleza, e a importância do expurgo pela Pshyché das impurezas decorrentes do seu contacto com o mundo sensível, por via do corpo físico e das tentações daí advindas. O pensador, através de uma sequência de perguntas e respostas, introduz-nos no cerne da sua teoria sobre o Belo (PLOTIN {1976A}: 100-101):
A beleza do mundo superior, do mundo sensível, depende exclusivamente da pureza da Pshyché, pois só através dela o homem poderá atingir o êxtase, aquilo que está acima da matéria e da própria alma, a perceção da Beleza intangível pela contemplação do Belo. Nessa condição, a alma compraz-se com tudo aquilo em que se revê, como um reflexo, uma congeneridade.
Ao “olhar” para si própria ou para as outras, a Pshyché sente a beleza, a sublimidade dos sentimentos, do caráter nobre e da dignidade, próprio das almas imaculadas. Estas, não delimitadas por cor, forma ou grandeza, nem conspurcadas pelas baixas sensações provenientes do contacto íntimo com a matéria e as suas emoções e sensações primárias e animalescas, são iluminadas pela irradiação resplandecente da Inteligência, de essência divina.
Tais qualidades são belas e reais para a alma livre de impurezas, do mesmo modo que o ouro retirado da terra mostra o seu esplendor após se libertar das sujidades que o envolvem.
Dando seguimento ao raciocínio precedente, o licopolitano explica mais pormenorizadamente como esta, pela prática das virtudes, se eleva ao nível do seu Criador. Não despiciendo os benefícios que poderão advir da sua ligação ao Soma, como uma relação pura, de enamoramento pelas qualidades e virtudes superiores que este apresente, como belas e dignas de serem experienciadas, Plotino refere também os perigos dessa ligação, no sentido de que ela é suscetível de ser influenciada pelas sensações inferiores e emoções primárias do mundo sensível que, tentando apoderar-se do corpo e estando este unido à alma, a podem contaminar.
Tais sensações são por ele referidas metaforicamente como imundícies, que arrastam a alma para a rendição aos instintos básicos, próprios da carnalidade, afastando-a da contemplação e da comunhão com as virtudes que a aproximam do Uno. A alma, cega pelos prazeres inferiores, afasta-se cada vez mais da emanação da luz divina, embrenhando-se na escuridão em direção ao Hades, à perdição, como se caminhasse por um lameiro, onde se vai atolando e de onde dificilmente se conseguirá libertar.
A alma é, em si, bela; a sua cedência aos gozos sórdidos e amorais é que a conspurcam e degradam. Despojando-se dos vícios a que se subjugar, voltará à sua inocência pristina.
Só, portanto, o sacrifício, o exercício da disciplina moral, a sabedoria e todas as virtudes próprias do Intelecto a afastarão da impureza da matéria e elevá-la-ão aos estádios superiores do mundo inteligível.
Para isso contribuem a coragem e a prudência, que são atitudes que engrandecem a alma; a primeira permite-lhe não temer a morte, pois esta é apenas a separação definitiva do corpo e que a liberta das tentações de que, por intermédio da prudência, se tenta afastar, constituindo estas virtudes uma prova da sua grandeza. É pela morte que a Psyché se afasta da materialidade, libertando-se das amarras físicas que a condicionam.
Purificada, a alma torna-se Nous, imerge na inteligência pura, funde-se com ela e, rendendo-se à Beleza que emana da instância máxima ou Uno, aproxima-se e assemelha-se a este, a Deus.
Neste ponto da sua reflexão, Plotino reporta-se ao Fedro de Platão onde, tal como o autor, se assume a Beleza como real e à qual a alma, encontrando-a nas suas reminiscências e associando-a ao Bem, ambiciona retornar (PLATÃO {1981}: 76-80).
O filósofo alexandrino caracteriza o Bem em direta associação com o Belo e como resplandecência do Uno, do qual ele provém, tal como todo o ser, vida e pensamento.
A alma perde-se na sua contemplação, desprezando tudo aquilo que, ligada ao corpo material, achava digno de ser tido por belo pois, ao contemplar o Uno, está a reverenciar a Beleza absoluta, a qual, como o autor afiança, por ser verdadeiramente pura, encontra-se acima da terra e do céu. [Trad. livre, idem] [9](PLOTIN {1976A}: 103).
De tal sublimidade, as outras belezas mundanas, embora dela provindas, como cópias ou imitações, não a diminuem nem a acrescentam. É desta superior e verdadeira beleza que a Psiché se reveste e que a enche de amor, fazendo com que ela seja de igual modo amada pelos seus pares.
A partir do momento em que a alma experiencia a contemplação extática do Ser Supremo, inicia também o seu maior desafio que é, aplicando sua perseverança e força de vontade, a conservação da visão beatífica e da união efetiva com o Belo e que constitui simultaneamente a sua provação e o seu prémio. Tal como Plotino, assim também o afirma Sócrates, no Fedro: […] para o homem que pretende atingir o belo, belo será […] ter de enfrentar os obstáculos que a conquista da beleza exige! (PLATÃO {1981}: 144).
Essa, diz, é a verdadeira felicidade, pois para os demais, para aqueles que ainda não se libertaram das amarras da matéria e das suas tentações, só restará perseguir as imagens, silhuetas e sombras da beleza material, continuando a ater-se aos bens e poderes terrenos que os cegarão e mistificarão, fazendo-se passar pelo Bem e pela Beleza real, e os conduzirão ao abismo.
Plotino assinala o caminho para a prossecução e realização do objetivo supremo da alma, quais os passos que o homem necessita de seguir para levar a bom porto o seu desígnio:
Para tal é mister que este, através da Psiché, consiga “ver” o que está escondido, enxergar para além do que os seus olhos físicos lhe mostram e que não passa, como atrás referido, de meros e rudimentares reflexos da verdadeira Beleza.
Fazendo uma analogia com o retorno de Ulisses à sua pátria, o pensador afirma que não é o apelo às coisas sensíveis que conduz a alma ao reto caminho, mas sim a procura pelo retorno à origem, à união com Deus ou o Uno, de onde tudo provém. Não é com meios terrenos ou com os sentidos que esta alma conseguirá atingir o seu objetivo, mas sim com a visão interior, com os olhos da alma, que tal será possível.
Ao dar por encerrado o tratado, Plotino resume a senda a percorrer para a união mística das 3 hipóstases:
Em primeiro lugar a alma necessita, como um neófito[10], de se habituar a reconhecer as belas ocupações e as belas obras que são produzidas pelos homens de bem. Estas belas ocupações e obras deverão ser entendidas, não como algo físico (mesmo que por intermédio da arte), mas como as obras, atitudes e posturas moralmente elevados, feitos por homens espiritualmente pulcros. Terá em seguida de olhar para dentro de si e reconhecer a sua própria beleza interior, que deve estar em sintonia com as almas com que se identifica. Caso não a encontre, terá de aperfeiçoar-se, libertar-se de toda a imperfeição e fealdade moral por todos os meios ao seu alcance. Só aí, olhando-se e admitindo-se bela, sem nenhuma mácula, sem nenhum resquício de ligação à materialidade que renegou, poderá reconhecer e ser reconhecida pelas outras almas suas semelhantes e estará apta a contemplar e unir-se ao Todo de que faz parte.
Porém, se não estiver totalmente expurgada do mal, da imperfeição, os seus olhos nada verão de belo, porque a visão da luz está toldada pelas impurezas de que ainda não se libertou e, mesmo que o belo esteja perante ela, não o conseguirá enxergar. É necessário que o olho que vê se emparelhe, se una totalmente ao que é visto: Nunca um olho verá o sol se não se tornar igual a ele nem uma alma poderá ver o belo se não se tornar, ela também, bela [Trad. livre, idem].[11] (PLOTIN, {1976A}: 106).
Neste estágio a alma torna-se luz, pois não estará sujeita a nenhuma medida nem nenhuma forma; ligar-se-á ao Intelecto e ascenderá à contemplação das grandes obras e da grande beleza daí decorrente, pois é necessário tornar-se divino e belo se se quiser contemplar Deus e o Belo. Ao ascender ao plano superior, o Nous, a alma aperceber-se-á da beleza das ideias que ele contém, pois que o Intelecto, esse lugar das Ideias, é também a morada do Belo.
Acima deste encontra-se a natureza do Bem: o Uno, o derradeiro e mais elevado patamar do inteligível, fonte e princípio de tudo o que existe. Aí, e a ele subordinado, veremos a Beleza que, emitindo o seu esplendor sobre toda a pirâmide da qual compartilha o vértice, induz por seu intermédio toda a organização cósmica que tem por base o Homem, enquanto impregnado pela alma, à fruição e êxtase da visão do seu Criador.
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[1] Atual Assiute, no Médio Egito, capital da província com o mesmo nome, junto à margem do Nilo, sensivelmente a meio caminho entre o Cairo e Assuão.
[2] […] il n’y a pas de beauté plus réelle que la sagesse que l’on voit en quelqu’un, on l’aime sans égard à son visage, qui peut être laid ; on laisse là toute son apparence extérieure, et l’on recherche sa beauté intérieure.
[3] […] non parce qu’il a des yeux ou des mains, mais parce qu’il participe à l’art.
[4] […] lorsque l’on voit le même visage, avec des proportions qui restent identiques, tantôt beau et tantôt laide, comment ne pas dire que la beauté qui est dans ces proportions est autre chose qu’elles, et que c’est par autre chose que le visage bien proportionné est beau ?
[5] […] joint à certain charme du teint a nom de la beauté […]
[6] Ainsi, la beauté du corps dérive de sa participation à une raison venue des dieux.
[7] Nous les appelons toutes couleurs. C’est une flame qui s’écoule de chacun des corps et qui comporte des parties proportionnées à la vue, de manière à produire l’impression.
[8] […] tous la voient, mais tous n’en sentent pas également l’aiguillon¸ ceux qui le sentent le mieux son ceux qu’on appelle les amoureux.
[9] […] pour être tout à fait pur, est au-dessus de la terre et du ciel.
[10] Há, nas Ennéades de Plotino, múltiplas referências a escolas herméticas, nas quais este terá sido iniciado. Daí os termos mistérios, neófito ou iniciação serem recorrentes na sua obra.
[11] Jamais un œil ne verrait le soleil sans être devenu semblable au soleil, ni une âme ne verrait le beau sans être belle.


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Claudio Magris
Publicado na revista electrónica do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa:
http://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/prosadores-escrevem-a-europa/
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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

CLAUDIO MAGRIS

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Verbete subordinado ao tema Europa face à Europa
Trabalho académico no âmbito da disciplina de Literatura Comparada – Questões e Perspetivas, do ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes.
Janeiro de 2018
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CLAUDIO MAGRIS (1939 - )
Professor, ensaísta e romancista italiano, nasceu em Trieste, uma cidade proeminente no antigo império Austro-Húngaro, que foi e continua a ser, entre auges e quedas, uma urbe cosmopolita, local onde se entrecruzam ideias e civilizações, ponto de passagem de caudilhos, artistas e pensadores e um dos cadinhos das ditosas ou arriscadas e, por vezes, desastrosas experiências que, desde Carlos Magno, têm formado e transformado a Europa.
Magris defende o conceito de Mitteleuropa como entidade geopolítica e cultural de relevante importância para a coesão interna do continente europeu, em sintonia com o postulado de Jacques Le Rider: “The idea of a Holy Roman Germanic Empire, guarantor of equilibrium in the middle of Europe reappears in intellectual discussion every time Central Europe faces a crisis” (LE RIDER: 159).
O autor tem dedicado a sua vida como docente e escritor a refletir sobre uma Europa histórica, política, social e cultural de jure. Germanista assumido, defende o primado cultural alemão, isento de perspetivas nacionalistas ou imperialistas, cosmopolita, aberto à comunidade, não como uma imposição identitária alemã, mas como parte de um saber que deve ser universal. O escritor sustenta que “(a) nacionalidade é cultura, não biologia” [MAGRIS, 2011, 158], que pensar alemão não significa ser alemão, uma vez que “o reconhecimento de pertença/não pertença (…) não tem nada que ver com o parentesco étnico, mas sim com a afinidade a uma cultura e a um estilo de vida” [idem,159]. O autor acrescenta ainda que os maiores pensadores dos últimos séculos, as influências políticas e culturais europeias e mesmo mundiais, mais marcantes, provêm da cultura alemã. Nomes como Marx, Hegel, Heidegger ou Nietzche, foram determinantes na formação do pensamento moderno. [apud CASTELLVÍ, 1989].
Escreve regularmente para algumas publicações periódicas e jornais, com particular incidência para o Corriere della Sera e é detentor de vários prémios literários nacionais e internacionais, tendo sido várias vezes proposto ao Prémio Nobel da Literatura. Escritor de fronteira apercebe-se e explora criticamente o jogo de tensões que a sua situação privilegiada lhe oferece, o que o torna uma autoridade no seu campo.
Claudio Magris assume-se defensor convicto de uma Europa confederada. Este escritor italiano que, a ter nascido duas décadas antes seria, por fatalidade temporal e histórica, um súbdito do Império Austro-húngaro, - o qual marca uma presença importante no seu pensamento político, - acredita na construção de uma Europa una e coesa na diversidade, ou seja, com a força que “poderia e deveria ter, se soubesse entesourar a sua multiplicidade dispersiva de energias e as unificasse em vez de as desperdiçar numa evasiva perpétua, numa desaceleração permanente” [MAGRIS, 1992: 279].
Na sua obra icónica, Danúbio, Magris faz um périplo pelo percurso do rio homónimo, desde a(s) sua(s) imprecisa(s) nascente(s), o seu término igualmente indistinto e a sua vaga periferia. É um documento híbrido, misto de livro de viagens, autoficção, relato histórico-geográfico e antologia de parábolas, onde o curso de água serve de metáfora para a Europa Central e suas conotações com uma Mitteleuropa de forte influência germânica e ambas também de limites indefinidos (vide MEDEIROS: 141-149, LE RIDER: 155-169). Este rio, lugar de separação, mas também de encontro, espetador de tensões constantes, consequentes da contiguidade com os países de Leste, - os Eslavos, - outrora considerados bárbaros,” aqueles a que a conceção oitocentista chamava ‘nações sem história’ “[MAGRIS, 1992: 232]. São povos de diferentes etnias e fronteiras flutuantes que, no decorrer dos séculos, mudaram e ainda mudam de limites e governos, ao sabor das correntes hegemónicas. Mais recentemente, até ao fim da década de 80 do século passado, eram dominados ou influenciados pela extinta União Soviética.
Espetador de guerras titânicas, mas também protagonista das correntes de pensamento que revolucionaram o mundo, o rio faz o escritor cogitar “se, seguindo-o até ao delta, entre povos e gentes diferentes, entramos numa arena de recontros sangrentos ou no coro de uma humanidade apesar de tudo una na variedade das suas línguas e das suas civilizações” [MAGRIS, 1992: 32].
Magris desconstrói a Europa fazendo uma leitura das suas origens e do seu percurso histórico, social e político, disseca a influência civilizadora do Sacro-Império Romano-Germânico e a sempre presente e marcante influência da dinastia dos Habsburgo e demarca através delas a importância da cultura germânica, asseverando que “(…) a presença alemã na Mitteleuropa foi um grande capítulo de história e o seu eclipse uma enorme tragédia, que o nazismo, responsável pela sua degradação e derrocada, não pode fazer-nos esquecer. Interrogarmo-nos sobre a Europa significa, hoje, interrogarmo-nos sobre a nossa própria relação com a Alemanha” [MAGRIS, 1992: 31]. ”A este universalismo alemão (…) está ligada uma grande página da civilização europeia, a intensidade de uma Kultur que assumiu sobre os seus ombros a tensão entre a vida e o valor, entre a existência e a ordem” (idem, ibidem).
É nas ondas do Danúbio, no seu percurso, no recorte das suas margens, nesse rio viajante, que “é e não é, que nasce de vários lugares e vários progenitores” [MAGRIS, 1992: 34]., onde existem “os pragueses de nome alemão ou os vieneses de nome checo”[idem, ibidem], que a Europa a que Magris dá voz, tenta encontrar uma identidade ainda indefinida e, quiçá, utópica.
Até à queda do muro de Berlim, mítico ícone da Guerra Fria, em 1989, Claudio Magris entrevia a região – e, no fundo, toda a Europa – ameaçada pela então crescente hegemonia soviética, a Leste, a qual cria que, a breve prazo, poderia destruir o projecto de união europeia preconizado por, entre outros, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Jean Monnet. As alterações entretanto produzidas (a reunificação da Alemanha e o fim da URSS) criaram-lhe novas, porém cautelosas, espetativas.
A atual visão crítica do autor sobre a Europa coincide com a sua visão microcósmica da cidade-natal, Trieste, austro-húngara num passado ainda recente e que no pós-segunda guerra mundial, sob a égide dos Aliados e até 1954, se manteve tecnicamente um Estado independente, aguardando a decisão das Nações Unidas entre a submissão à extinta Jugoslávia de Tito ou a adesão à Itália: “Soy pesimista com la razón, optimista com la voluntad. He nacido com esa fe en la utopia y com el precoz desencanto que me daba la historia de Trieste, esa espécie de no future (sic)” [apud ROJO, 2017].
É essa fé na utopia de uma Europa Federada que dá a Claudio Magris a força necessária para se opor ao ceticismo generalizado, apesar dos vários fracassos (resgates, Brexit, movimentos independentistas) de uma Europa Confederada, vulgo União Europeia ou UE.
Danúbio não servirá por si só para caracterizar o desvelo e preocupação do autor perante a Mitteleuropa e, afinal, o Velho Continente; outras obras de sua autoria, como A História não Acabou, completam-na. Nesta, Magris, através das crónicas aí reproduzidas e quase todas publicadas anteriormente no Corriere della Sera, faculta o complemento essencial para a compreensão global do seu sonho europeu. Neste manual de pensamento humanista, o autor não se foca num Estado ou região (não obstante o seu país ser o ponto de partida) mas alarga-se à Europa e ao próprio orbe, reconhecendo e respeitando sempre a miríade dos diferentes Outros que a constituem. Essa visão do autor carateriza o seu ideário europeu, o que (des)espera da Europa, lugar de no future, de vazio sem perspetivas, mas da qual não abdica, não deixa de acreditar com a força da vontade, embora a razão se lha negue [apud CASTELLVÍ, 1989].
Nessa sua coletânea de crónicas, o autor alerta para os perigos de uma sociedade globalizada e que podem fazer perigar ainda mais os esforços de unificação: “Na globalização toda a identidade se sente ameaçada, com o temor de se dissolver e desaparecer, e então exaspera a sua particularidade, faz dela uma diferença absoluta e selvagem, um ídolo – que, como todos os ídolos, impele facilmente à violência e ao sacrifício de sangue” [MAGRIS, 2011: 12].
A esperança de uma Europa federada assenta na existência de um destino comum, com todas as promessas e ameaças que lhe são inerentes. Se, por um lado, o escritor vê com apreensão o perigoso recrudescer dos nacionalismos exacerbados, receosos pela sua perda de identidade, pelo outro teme ainda os “inimigos hegemónicos” [MORIN: 136), os países cujas influências económicas culturais e políticas exercem pressões relevantes no processo de globalização.
Tal como George Steiner (STEINER: 26-28) o autor afirma que, na Europa, os Cafés fizeram e ainda fazem história, pois a sua importância como Ágoras modernas, como locais de discussão e refinamento cultural e reflexão política, são marcos incontornáveis da cultura europeia, são locais “onde se misturam trabalho e lazer, onde nos entregamos a certas rotinas, a certa preguiça, a certa reflexão, e onde podemos ler, discutir, e depois escrever” [apud MOURA, 2016).
Por vezes Magris cede ao seu pessimismo com a razão, temendo “que a Europa tenha terminado, província secundária de uma história que se decide noutros lugares, nas salas de comandos de outros impérios”. Porém, logo em seguida, riposta, otimista com a vontade: “(…) a familiaridade com o elenco da Mitteleuropa (…) leva-nos a não acreditar em destinos irreparáveis (…), justamente porque a Europa ainda existe, o seu sol está ainda suficientemente alto no horizonte e ainda aquece” [MAGRIS,1992:278-279].
Citações
“Pienso que esta fiebre identitaria, que conduce a una continua obsesión por identificar todas las naciones y todos los idiomas y todos los grupos étnicos, y que sin duda son un valor sagrado, cuando la lleva a cabo un Estado es un delirio, porque también puede arrastrar a la guerra y a las persecuciones. Una minoria amenazada, cuando se convierte en Estado, también se convierte en mayoría, y entonces comienza a amenazar a la minoría dentro de ella” [apud CORONA, 2008].
“Eu sou um patriota europeu, que sonha pelo momento em que a Europa será um único Estado e os atuais países serão regiões” [apud SILVA, 2016].
“O Danúbio corre, largo, e o vento da tarde passa pelo café ao ar livre como a respiração de uma velha Europa que talvez esteja hoje nas margens do mundo, sem já produzir mas apenas consumindo história. (…) A Europa é este café, no qual já não vêm sentar-se os administradores delegados do Espírito do Mundo, mas quando muito funcionários de alguma sua filial subalterna, que não tomam decisões mas as executam (…)” [MAGRIS, 1992: 277-278].
“Todo o herdeiro dos Habsburgos é um verdadeiro homem do futuro, porque aprendeu, antes de muitos outros, a viver sem futuro, na interrupção de toda a continuidade histórica, ou seja, aprendeu não a viver mas a sobreviver” ([MAGRIS, 1992: 279-280].
“O rio (…) arrasta a civilização alemã, com o seu sonho da odisseia do espírito que torna a casa, para oriente e mistura-a com outras civilizações, noutras tantas metamorfoses mestiças em que a sua história atinge a consumação e a queda” [MAGRIS, 1992:16].
Bibliografia ativa selecionada
CASTELLVÍ, Miguel Pedro, 09/08/1989 in https://literatura283.wordpress.com/2016/06/07/claudio-y-su-danubio. Visto em 03/12/2017.
CORONA, Clemente, 2008, in https://www.tugranviaje.com/entrevista/claudio-magris-el-viajero-a-pie/.
LE RIDER, Jacques, in Mitteleuropa, Zentraleuropa, Mittelosteuropa A Mental Map of Central Europe. http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1368431007087471: pp 159. Visto em 10/01/2018.
MAGRIS, Claudio, 1992, Danúbio, Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Dom Quixote.
MAGRIS, Claudio, 2011, A História Não Acabou, Trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Quetzal.
MEDEIROS, Carlos Alberto, 2003, Europa Central: ambiguidades de um conceito, imprecisões de delimitação, Revista da Faculdade de Letras – Geografia I série, vol. XIX, Porto, 2003, pp. 141-149. In http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/311.pdf. Visto em 08/01/2018.
MORIN, Edgar, 1987, Pensar a Europa, Trad. C.Santos, Mem-Martins, Europa-América.
MOURA, Paulo, in https://www.publico.pt/2016/05/23/culturaipsilon/noticia/claudio-magris-1732207. Visto em15/11/2017.
ROJO, José Andrés, 06/02/2017 in http://elpaissemanal.elpais.com/documentos/claudio-magris/. Visto em 15/11/2017.
SILVA, João Céu e, 30/05/2016, in https://www.dn.pt/artes/interior/estamos-a-viver-a-iv-guerra-mundial-5198812.html. Visto em 17/11/2017.
STEINER, George, 2013, (5ªEd.), A Ideia de Europa, Trad. José Manuel Durão Barroso, Lisboa, Gradiva. Visto em 13/11/2017.
Biografia crítica selecionada
GERNER, Kristian, 1999, Australian Journal of Politics and History, Volume 45, Number 1, pp 3-19: A Moveable Place With a Moveable Past: Perspectives on Central Europe, in http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-8497.00050/pdf.
KATZENSTEIN, Peter J. (Ed.), 1997, Mitteleuropa – Between Europe and Germany, An Introduction, Providence and Oxford, Berghahn Books.
PRADO, Bernat Castany, 2015, Anacionalismo y Anarquismo en el Siglo XX. seguido de una traducción del "Manifiesto de los Anacionalistas" (1931), de Eugène Lanti, in http://revistas.um.es/cartaphilus/article/view/247571. (Link direto: http://diposit.ub.edu/dspace/bitstream/2445/96205/1/657459.pdf).Visto em 12/11/2017.
QUIÑONERO, Juan Pedro, 17/11/2014, in http://www.abc.es/cultura/20141117/abci-entrevista-claudio-magris-201411161843.html. Visto em 03/12/2017.
World Heritage Encyclopedia, 2017, in http://self.gutenberg.org/articles/Cultural_hegemony. Visto em 28/11/2017.
http://www.ibe.unesco.org/sites/default/files/gramscis.pdf (2001). Visto em 11/12/2017.


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Almada Negreiros: Nome de Guerra - Um romance que pode não o ser

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Almada Negreiros: Nome de Guerra
Um romance que pode não o ser


José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de investigação no âmbito da disciplina de Literatura Portuguesa e Hibridismo de Géneros, do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Junho de 2020

Almada Negreiros: Nome de Guerra
 Um romance que pode não o ser.


Não foi impunemente que os mais conhecidos Artistas de todas as épocas estabeleceram entre si esse heróico serviço d’estafeta através do tempo para nos trazerem hoje, aqui, a Arte, Única e em toda a sua pureza e essência, iluminando a própria História da Humanidade.
Almada Negreiros
(apud GOUVEIA, Teresa [2017]: pp 5-6)

Nota biográfica

José Sobral de Almada Negreiros nasceu em 1893 no arquipélago de S. Tomé e Príncipe, no Golfo da Guiné, que, à época, era colónia portuguesa. Educado na metrópole, inicia publicamente a sua atividade artística como desenhador e escritor ainda antes de completar 20 anos, tendo em 1915 fundado a Revista modernista Orpheu, em parceria com Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa.
Almada Negreiros teve, durante toda a sua vida, e como resultado da sua assumida apoliticidade[1], uma atividade prolífica largamente reconhecida, alternando maioritariamente a produção desenhística com a literária. Faleceu em Lisboa em 1970.
Ser ou não ser um romance
Gaspar Simões, em 1938, por altura da primeira publicação de Nome de Guerra, e embora salvaguardando o génio do homenageado, considera a obra datada, e afirma que, mantendo, todavia, a originalidade, o livro retrata, à data da publicação, uma visão da Lisboa de 13 anos antes. (GASPAR SIMÕES, “Duas palavras de introdução” in ALMADA NEGREIROS {1}: 7).
Segundo o ensaísta Osvaldo Manuel Silvestre, a obra mantém o seu valor literário malgrado o hiato temporal, o qual apenas criou um efeito de “descontextualização” porque desligou-se da sua necessidade enquanto romance modernista e criação autoral (SILVESTRE [2017]: 20).
O que está em causa no romance não é o retrato naturalista, a visão da Lisboa de 1925, mas o contexto situacional e a interação dos personagens, que contam uma história, e esta, considerando-a como um bildungsroman, será intemporal, pois representa a maturação de uma personagem, independentemente da época e da paisagem, tanto geográfica como socialmente.
No entanto, a classificação genológica daquele que, por muitos, é considerado como o único romance modernista português, não é unânime pois, tanto na classificação como na singularidade, revela-se problemático:
Nome de Guerra é o único romance publicado por Almada e, com A Confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro (1914), conta-se como um dos dois únicos romances produzidos pelo modernismo português (SAPEGA [1992]: 91).
Nas palavras de José-Augusto França, [Nome de Guerra] é «o único «romance de aprendizagem» que se escreveu em Portugal» (MOREIRA [2013]: 78).
[…] Almada reescreve Nome de Guerra, existente numa primitiva versão desde 1925 como romance de costumes que, entretanto, se transforma em romance de tese; por intermédio da inserção de comentários, metalepses de autor e uma série de títulos de cunho frequentemente aforístico, a ação primitiva converte-se agora em mero exemplo demonstrativo da libertação do protagonista, relativamente à alienação de si mesmo, mediante o acesso à individuação (SILVA [2015]: 151).
Numa literatura como a nossa, em que o romance “de tese” teimosamente tem persistido, Nome de Guerra viria a ser, logo na década de 30, um dos primeiros grandes romances “problemáticos” (o outro é o Jogo da Cabra Cega, de José Régio), e, concretamente, naquele sentido em que R.M. Albérès estabelece a distinção entre uma literatura “de tese” e uma literatura “problemática”: “A primeira prende-se a problemas estritamente humanos e sociais, solúveis pela humanidade, a segunda interessa-se pela ressonância metafísica e moral dos nossos actos e pelo nosso destino (SILVESTRE [2017]: 20).
Romance finalmente sem tempo, quer dizer metarromance, para fora das dimensões físicas da narrativa. Nome de Guerra é um romance conceptual e metafísico e, como tal, único na literatura portuguesa moderna [...] (FRANÇA [1987] Introdução in ALMADA NEGREIROS {2}: XXI).
No âmbito do modernismo, no qual José de Almada Negreiros se insere, essas ambiguidades genológicas são, contudo, recorrentes. Mais especificamente, em Nome de Guerra, o artista manipula a história, metamorfoseia-se alternadamente num Eu ou num Ele, escritor, autor implícito ou narrador, gerando dúvidas constantes sobre a classificação ficcional da obra, onde surge também um cunho veladamente autobiográfico.
Jacinto Lucas Pires comenta esta indefinição de Almada: Por um lado, há nele um carácter lúdico – essa apetência de brincar com a linguagem, de brincar com a forma para dizer coisas muitas sérias; por outro, o romance é feito de capítulos curtos, e cada um parece brincar com a ideia de ser um mini-livro autónomo (PIRES [2017]: 5). No entanto, Almada aproxima-se e distancia-se de todas estas categorizações, num labirinto semântico e estrutural que mistifica as expectativas de leitura que vai sucessivamente criando.
A narrativa gera indefinições no tocante à legitimidade da classificação da obra como romance, pois esta apresenta uma estrutura simples, embora com alguma complexidade psicológica, uma ação temporal reduzida e uma mancha gráfica mais consentânea com a classificação do texto como novela. Neste sentido, o crítico literário João Pedro de Andrade admite ser possível que, “perante um juízo crítico ortodoxo, Nome de Guerra não pertença em absoluto ao género do romance”, pois a ação representa nela um papel secundário. Este crítico refere ainda a existência de uma tese pressuposta no livro (ANDRADE apud SOUSA [2003]:14). No entanto, a relativa complexidade de algumas sequências permite gerar reflexões extraliterárias, que poderão ir de encontro às expetativas do autor no que refere a receção da obra.
Todo o pontilhismo aforístico da mesma, visível fragmentariamente em diversos capítulos que se assemelham a uma montagem cinematográfica e em títulos cuja leitura sugere estarmos perante os atos de uma peça de teatro, completam este painel, o que corrobora a afirmação de que Almada Negreiros é extremamente pictórico ou cinematográfico quando escreve e é também muito narrativo quando pinta (PINTO DOS SANTOS [2017]).
Fernando Cabral Martins[2] , em consonância, afirma que, em geral, o tom de todos os textos do autor Almada Negreiros – manifestos, poemas, ensaios, artigos e romance incluídos – obriga a esquecer a “condição verbal” deles, para sugerir antes a presença de um performer (MARTINS [2017]: 22). E, citando Agustina Bessa Luís, acrescenta: Escrever tem muito a ver com a arte cénica. O escritor tem muito a ver com o artista que se apresenta no palco, que se projecta para algo (idem, ibidem).
Acima de tudo, a dimensão visual que o autor imprime nos seus múltiplos e multiformes trabalhos é condição sine qua non da sua expressão artística. O olhar, o ver como fonte de conhecimento e como premissa imprescindível do espetáculo – pois como espetáculo entende todas as formas de arte -, o Ver enfático que expressa nas suas palestras e nas suas entrevistas, é a sua sempiterna preocupação[3].
Eduardo Lourenço, num texto publicado na Folha de S. Paulo, em 1997, reconhece essa característica no artista: Na poesia ou na ficção Almada permanece um visual. Concebe os seus personagens com a mesma nitidez estilizada, sintética, que caracteriza os seus desenhos (LOURENÇO [1997]).
As transmutações ecfrásticas de Almada Negreiros, também designadas como transferências amodais por Daniel Stern (apud GIL e PINTO DE ALMEIDA [2016]: 46), são traduções intersemióticas, onde o efeito performativo que lhes é impresso pelo autor se esforça por anular as barreiras interartísticas através da tentativa de dissipação da semântica linguística, na busca de uma linguagem visual universal.
Romance de aprendizagem ou romance de tese?
Debruçando-nos sobre os três primeiros capítulos – curtos e aforismáticos - da obra em estudo, damo-nos conta de que Almada Negreiros faz uma introdução pouco consentânea com as expectativas de leitura que, geralmente, um leitor encontra num romance padrão.
No primeiro capítulo, intitulado “As pessoas põe nomes a tudo e a si próprias também”, o autor faz uma reflexão em volta das implicações dos nomes de espécie e de género, próprios e de família, e tece considerações sobre a influência da árvore genealógica e da carga íntima que tal implica: Nós todos, inclusive os expostos, temos todos as nossas árvores genealógicas do mesmo tamanho (ALMADA NEGREIROS {2}: 12).
Mais à frente, no mesmo encadeamento reflexivo, o escritor faz passar uma advertência sobre a igualdade genética de circunstâncias em que todos os seres humanos se encontram: […] Não somos um fruto qualquer, somos como qualquer outro fruto (idem:13). Toda esta abordagem inicial, acutilante e nada narrativa, sugere uma aproximação didática e moralista que inicie um tratado sobre as origens e desenvolvimento da nomenclatura da espécie humana e as suas implicações na vida e futuro dos visados: Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E se o João é Sousa e a Manuela é Pereira, então, à natureza e à vida junta-se-lhes ainda por cima a existência e complicou-se o problema (idem, ibidem).
A perplexidade apodera-se do leitor, pois este aguardava que, à denominação genológica de romance, correspondesse uma expectável introdução, se não à trama, pelo menos ao tema ou às personagens diretamente implicadas na ação. No entanto, recomeça a leitura, na esperança de que este primeiro capítulo seja apenas uma nota à margem da obra.
O segundo capítulo, “A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um”, continua a não corresponder ao tão esperado romance. Em vez disso, amplia as considerações ao íntimo humano, às relações deste com a sociedade e a inter-relação entre ambos, como se de uma tese sociológica se tratasse. Disserta ainda sobre o papel dos genes, da educação e da sociedade no comportamento de cada um e, de novo num discurso moralizante, exorta indiretamente aos que o leem a ação de criarem o seu próprio destino: O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a entregar-se a si próprio. Sem [o seu íntimo pessoal], nem para fazer número se aproveita ninguém (ALMADA NEGREIROS {2}: 14).
Começamos então a dar-nos conta de que, possivelmente, o artista nos está a prover indícios para a criação de uma personagem da tão aguardada narrativa, introduzindo a importância do atributo de nome de guerra, que titula o livro, e do nome a ele adstrito, assim como de toda a carga fática que os une, e que ainda desconhecemos.
Chegado ao fim deste capítulo, Almada, autobiográfica e performativamente (pois de uma performance se trata)[4], informa que [o] autor destas palavras também desenha e não sabe expressar por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa (ALMADA NEGREIROS {2}: 16).
Ao introduzir a categorização de performance, cria-se mais uma indefinição genológica em relação à classificação de Nome de Guerra, dando relevo à opinião de Fernando Cabral Martins, aqui anteriormente citado.
Passando ao terceiro capítulo, “Uma Judite que não se chama assim”, o tema da individuação e dos nomes a ela associados estreita bruscamente e singulariza-se num nome: Judite.
Nesse momento, logo após a leitura das primeiras linhas, confirmamos as suspeitas que já nos perseguiam desde as considerações do capítulo anterior: Judite é uma personagem que serve de base ao desenvolvimento da história que se seguirá e que, para não nos alongarmos em considerações e discussões genológicas, convimos chamar romance.
Os dois capítulos antecedentes - como se poderá observar no desenvolvimento da história, a que apenas aludimos, por não fazer parte diretamente do nosso escopo específico - visam estabelecer um retrato psicológico dessa pessoa fictícia a quem poderemos considerar – e não apenas a Antunes – uma das personagens mais importantes da obra.
O cuidado e ênfase com que o autor tece considerações sobre o nome de Judite aguça a curiosidade do leitor acerca do significado real da sua atribuição: Judite é um nome de mulher a quem a Bíblia fez cortar a cabeça de Holofernes (ALMADA NEGREIROS {3}: 11).
No entanto, o escritor não facilita a receção da obra, não descodifica o significado que imprime na nomeação da personagem. David Lodge fornece-nos um esclarecimento sobre as razões que subjazem a esta decisão de Almada: Não é habitual os romancistas explicarem as conotações dos nomes que dão às suas personagens; tais significados devem-se desenvolver no subconsciente de quem lê[5]:(LODGE 1993: 37).
De facto, Almada, já em 1916, fiel à cripticidade (perdoe-se o neologismo) que imprime à maioria da sua criação literária, afirma: Todos [os meus] livros devem ser lidos pelo menos duas vezes prós muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar (ALMADA NEGREIROS {1}).
Não será por mero acaso que Almada Negreiros outorga a Judite o privilégio de, em pseudonomia do que já de si é um pseudónimo, titular o livro, não o atribuindo ao suposto “herói”, àquele que é o objeto de evolução. Quanto a este, o autor vai deferindo importância à medida que vai “apagando” Judite.
Judite é um catalisador, uma personagem sem a qual não há transformação, não existe processo de aprendizagem nem, consequentemente, romance, nos moldes que o escritor visa imprimir. E, tal qual um catalisador, desaparece de cena quando deixa de ser indispensável, deixando o “estrelato” a Antunes, que se vai lentamente destacando da penumbra.
É, pois, da apresentação e da construção de uma protagonista ficcional e da própria história, o que podemos auferir da súmula destes três capítulos iniciais.
Nome de Guerra é, no entanto, maioritariamente narrativo. O fluxo e refluxo dos acontecimentos imprime à obra uma ação […] fragmentária percebida através da sobreposição de imagens desligadas da corrente do tempo. São imagens estáticas, pois de outra maneira não seria possível sobrepô-las, e a sua associação, que parece prescindir de uma causalidade explícita, torna-se responsável pela dimensão fragmentária da narrativa (SOUSA [2003]: 42).
João Paulo Sousa vai mais longe, afirmando ainda que:
Se a fragmentaridade assim exposta é um factor decisivo para a inclusão do romance de Almada Negreiros no vasto panorama da prosa da modernidade, os processos e as técnicas daí decorrentes estabelecem uma aproximação a outras disciplinas artísticas, na sequência desse desejo tão caro à vanguarda de estabelecer uma íntima comunhão das artes (SOUSA [2003]: 44).
O desenvolvimento da obra sugere, na sua generalidade, uma disposição cinematográfica, pois apresenta cada capítulo como se de um fotogramase tratasse, e onde as analepses e metalepses que Almada frequentemente utiliza têm um papel preponderante.
Conclusão
Como se pode deduzir pelas premissas apresentadas nesta breve exposição, e tendo em linha de conta as opiniões expressas pelos diferentes especialistas mencionados sobre a classificação genológica da obra Nome de Guerra, de Almada Negreiros, e onde se incluem escritores, críticos literários, encenadores e poetas, podemos concluir que não existe uma opinião consensual e, consequentemente, a possibilidade de atribuição de qualquer categorização normativa definitiva.
Como texto modernista, Almada imprime-lhe uma mudança no paradigma de como escrever um romance. Essa subversão da norma literária provocou e continua a provocar as mais variegadas reações, desde a aclamação ao repúdio. Foi a aposta do autor como artista irreverente e inconformado e, nesse sentido, Nome de Guerra cumpriu, pelo menos parcialmente, o desejo de José de Almada Negreiros: quebrar os cânones, quebrar qualquer cânone.
Bibliografia
ALMADA NEGREIROS (1), José (2007), Litoral. A Mário de Sá Carneiro, Gutenberg. In http://www.gutenberg.org/ebooks/22802 . Visto em 12/06/2020.
ALMADA NEGREIROS (2), José (1938), Nome de Guerra, Lisboa, Edições Europa.
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[1] Vide Sudoeste N1, in http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Sudoeste/N1/ N1_master/SudoesteN1.pdf. p.13.
[2] Professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, onde ensina Literatura e Cultura Portuguesa.
[3] Vide https://www.youtube.com/watch?v=4DdMz5U3qTc – a partir dos 3 min. 40 seg.
[4] Vide AUSTIN, J. L. (1962), How to do Things with Words, Oxford University Press : pp 6-7.
[5] [It is not] customary for novelists to explain the connotations of the names they give to their characters: such suggestions are supposed to work subliminally on the reader's consciousness (tradução livre, do original).


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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Novas Cartas Portuguesas: um retrato e denúncia da(s) violência(s) como fenómeno globalizado.
Ensaio

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@edu.letras.up.pt

Trabalho de investigação no âmbito da disciplina de Estudos Feministas e Estudos Queer, da Especialização em Estudos Comparatistas e Relações Interculturais, do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Junho de 2021

Novas Cartas Portuguesas: um retrato e denúncia da(s) violência(s) como fenómeno globalizado.

O menosprezo pelo papel das mulheres na sociedade, a sua desvalorização familiar, política e artística, fomentada durante inumeráveis séculos pelas sociedades patriarcais, baniu-as quase totalmente do cânone ocidental, onde em geral apenas figuram como meros apêndices dos homens. Iguais parâmetros ditam os modelos civilizacionais da esmagadora maioria das sociedades organizadas do mundo. Ao ignorar as mulheres, eles — os homens e os seus cânones — determinam a sua irrelevância, a sua invisibilidade.


Resumo
Neste ensaio, ideamos fazer uma ligação entre Novas Cartas Portuguesas e o multíplice campo da violência, nos seus mais variados moldes. O caso português, a que as autoras pretenderam dar visibilidade, é por nós utilizado como ponto de partida para mapear e decifrar esta temática, que é extensível a todo o universo humano. Buscamos, assim, um fio de Ariadne que nos conduza pelas ligações entre os diferentes fatores sobre os quais recai tão funesta responsabilidade.
Palavras-chave: Novas Cartas, cânone, género, violência, guerra.
Abstract
In this essay we tried to create a bound between Novas Cartas Portuguesas and the multifaceted field of violence, in its diferent moulds. We took the, then Portuguese reality that the authors intended to focus on, as starting point as well as a bridge to the maping and decoding of this topic, which can be stretched throughout the whole human universe. Thus, we seek to find a leading thread that can guide us among the connections of the diferent elements upon which falls such a dismal burden.
Key-words: New (Portuguese) Letters, canon, gender, violence, war.
As Novas Cartas Portuguesas, escritas em parceria (diriam elas: sororidade) por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa — obra publicada em abril de 1972 e prontamente embargada pela Censura (renomeada Exame Prévio, no início do mês seguinte)[1], então existente no período hegemónico do Estado Novo português (um regime totalitário, nacionalista e patriarcal, sob a presidência de Marcelo Caetano desde 1968, por incapacidade física e psíquica de Salazar), foi uma pedrada no charco do falogocentrismo[2] política, religiosa e socialmente legitimado. Profundamente interligada com essa subjugação milenar de género, a guerra nas colónias, a fome e o desemprego foram também as causas basilares da sua produção. Através dela, as autoras, cuja intenção visava a desconstrução e denuncia da conjuntura nacional, acabaram por, inesperadamente, criar elos de ligação com contextos transnacionais equivalentes. A projeção do livro no estrangeiro — saído clandestinamente do país — gerou movimentos de solidariedade, um pouco por todo o globo.
A obra, no entanto, foi reputada como pornográfica pelo aparelho censório do Estado português, numa tentativa velada e parcialmente infrutífera de abafar as mensagens subliminares, metafóricas ou, por vezes, explícitas, aí veiculadas. O intuito do livro era expor o estado depauperado e caduco da Nação: um país de Marialvas, mergulhado em guerras coloniais, em desigualdades sociais, empobrecido e inculto.
De acordo com o antropólogo Miguel Vale de Almeida, [as] expressões “marialva” e “marialvismo” podem ser vistas como símbolos-chave que nos falam de formas históricas e culturais de construção da desigualdade, alicerçada sobre uma retórica da masculinidade (VALE DE ALMEIDA, 1997; p. 3) ou, por outras palavras, um machismo à portuguesa. A subalternização e violência sobre as mulheres era exercida através de um conjunto de atitudes normalizado de domínio do então denominado sexo forte (os homens) sobre o sexo fraco (as mulheres) – definições estas ainda comuns em alguns grupos sociais, aparentemente minguantes, das sociedades ocidentais. No entanto, atendendo ao aumento generalizado de ideologias nacionalistas, populistas e conservadoras, um pouco por todo o planeta, poder-se-á questionar, a médio prazo, essa tendência decrescente da hegemonia masculina ainda em dominância.
Em Carta de um homem chamado José Maria para António, seu amigo de infância, é descrito o pensamento falocrata, predominante à época da publicação das Novas Cartas e, contudo, ainda presente na atualidade:
[A] tua irmã Joana […] a fazer-se senhora lá porque tem estudos e agora já não lhe sirvo que eu na altura disse à tua mãe minha madrinha “ponha-a é na costura se tem saúdes fracas e nasceu fina demais para o campo”. Isso de estudos não me agrada. Mas ela teimou e a fidalga a D. Mariana toda finuras e falinhas doces a puxá-la lá para casa a pôr-lhe laços e vestidos a dar-lhe livros…a estragá-la estragá-la que nunca mais foi a mesma (BARRENO, HORTA, COSTA {2019}; P. 178).

O advento da obra coincidiu com o auge da segunda vaga do feminismo[3] e com profundas transformações sociais que então iam surgindo em muitos pontos do globo. Os conflitos raciais, os movimentos de libertação de antigas colónias dos países europeus, assim como o derrube ou tentativas de deposição de governos totalitários, maioritariamente na América Latina, na Europa e em África, estavam no seu auge. O surgimento da obra numa época de tão grandes mudanças (re)começou a (re)criar uma consciencialização e uma reflexão sobre os papéis de género e sobre o impacto da violência a eles associada, assim como as suas origens, ramificações e consequências no mundo. Como seria expectável, o cânone ocidental vigente, já de si fechado a estas ou quaisquer outras mulheres, cerrou-se ainda mais a uma obra que poria escandalosa e inequivocamente em causa a sua própria valência.
Considerando que as autoras escreveram Novas Cartas Portuguesas como denúncia, não apenas do “estatuto” da mulher, mas também e muito relevantemente da repressão social e política e da guerra colonial como veículo de violência, desigualdade e morte, focamo-nos um pouco mais pormenorizadamente nestes dois últimos itens (repressão e guerra) numa perspetiva globalizante. Não porque o feminismo seja elidível ou destacável dos fatores citados, nem porque seja desprezável, mas porque ele é um elemento que, nimiamente interligado com os anteriores, torna implícita e visível a sua presença neste trabalho. A análise do fenómeno bélico como causa e efeito do papel dissemelhante dos géneros, assim como da violência que estes sofrem e provocam, é um ónus suportado maioritariamente pelos homens – seus produtores, realizadores e intérpretes.
Pierre Bourdieu defende que é por intermédio da libido dominandi, ou desejo de dominar, […] que os homens (por oposição às mulheres) s[ão] socialmente instituídos e instruídos de maneira a deixarem-se tomar, como crianças, por todos os jogos que lhe são socialmente fixados e cuja forma por excelência é a guerra (BOURDIEU, 1999; p. 64). [O] homem é também uma criança que brinca ao jogo de ser homem (idem, p. 65). Falamos, portanto, de relações infantis de poder. No entanto, não querendo desviar-nos demasiado do escopo do nosso trabalho, ao partir para análises e considerações de cariz psicológico ou mesmo psiquiátrico, cingimo-nos mais aprofundadamente à sociologia e aos estudos sobre o género que lhe estão direta ou indiretamente associados. No entanto, não podemos deixar de referir esta infantilidade freudiana que o referido autor aborda, no que concerne às suas mais graves consequências: a guerra — que aporta consigo morte, destruição, injustiça e sofrimento físico e psíquico; os seus efeitos não se restringem apenas aos intervenientes individuais ou coletivos diretos, mas a todos os outros que, na generalidade, são vítimas inocentes, e comummente ignorantes da causa última do seu sofrimento. Desta categorização não podemos excluir os próprios homens, embora as mulheres e as crianças sejam os sacrificados por excelência. Para aliviar consciências, estas vítimas são eufemisticamente definidas pelas forças beligerantes como “danos colaterais”, e despersonalizadas.
Na sua tese de mestrado, Maria Eduarda Treis e Pâmela Samara Morais abordam uma das consequências mais extremas e gravosas dos conflitos bélicos: a violação como arma de guerra, e assim denominada de facto já no conflito bósnio, em 1992, mas apenas reconhecida de jure pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) para a ex-Jugoslávia no mesmo ano. Este Tribunal, cumulativamente e na mesma data, designou-a crime contra a humanidade. O TPI para o Ruanda, em 1994, considerou-a também um ato de genocídio.
O fato de, por longas décadas, a mulher ter sido considerada uma propriedade, um “bem” a ser possuído por seus pais e posteriormente por seus maridos, ajuda a compreender o porquê de o abuso sexual ser uma prática comum. Ao interpretá-las como posse masculina, essas mulheres transformavam-se em alvos, sendo o estupro muitas vezes um meio para atingir os homens a quem a “propriedade” pertencia (TREIS e MORAIS, 2018; p. 107).
Numa sociedade como a ruandesa, fortemente marcada por um regime étnico e patriarcal, a violação das mulheres constituía um aviltamento para a sociedade na qual elas se inseriam, o que implicava o seu egresso e a perda de identidade perante os seus concidadãos e, por consequência direta, perante si próprias. Tendo a guerra do Ruanda sido fundamentada em conflitos rácicos, as crianças eventualmente nascidas destas violações eram consideradas “geneticamente impuras” e também fortemente marginalizadas.
Autoras de um artigo versando o mesmo tema (a violação em cenário de guerra), as investigadoras Haula Hamad Timeni Freire Pascoal Pereira e Sabrinna Correia Medeiros Cavalcanti, embora fundamentalmente em sintonia com Treis e Morais, apresentam uma perspetiva um pouco diferente:
[…] os estupros estratégicos têm o objetivo de atacar não só a vítima, no caso, a mulher, mas, por intermédio dela, atingir a estrutura social na qual ela está inserida, dissolvendo sua comunidade por intermédio da violência sexual, uma vez que, em tempos de guerra os corpos dos indivíduos tornam-se metaforicamente um só corpo social (PEREIRA e CAVALCANTI, 2015; p. 11).
Temos, deste modo, duas visões que não são antagónicas nem excludentes; pelo contrário, completam-se: considerando que, por um lado, Treis e Morais mencionam que a violação é assumida como um processo de desagregação de um grupo social por via do ataque à “propriedade”, Pereira e Cavalcanti referem a sua importância como um ataque direto à sociedade per se. São duas abordagens convergentes, embora partindo de premissas um pouco distintas. Acrescentamos ainda uma terceira perspetiva que ajuda a compreender melhor os mecanismos de destruição societária que, neste contexto, os atos de abuso sexual contra as mulheres pretendem espoletar: Júnia de Vilhena e Joana Novais defendem que os atos de violação em cenário de guerra visam ferir e destruir mortalmente o inimigo pelo estupro continuado de suas mulheres, incidindo então ao mesmo tempo no registro subjetivo da autoestima e nos dos processos de filiação do inimigo, o que implica uma estratégia de transformação dos corpos das mulheres em campo de batalha (VILHENA e NOVAIS, 2018; p.300). Este registo subjetivo de autoestima é, pois, após um processo de aviltamento, interiorizado e ampliado pelo grupo, que configura, como corpo social, uma perda de identidade e uma subversão dos processos de filiação, retirando aos últimos, perante as vítimas, a sua significação genealógica ancestral. Ao fazê-lo, transforma-os em aberrações decorrentes de atos considerados socialmente contranatura, relegando-os para representações vivas do inimigo, o que realimenta o ódio e mantém sempre presente a afronta, continuando assim a minar a estrutura da comunidade. Os “bastardos” daí resultantes serão muito dificilmente aceites pelo grupo a que as suas progenitoras pertencem, o que representa, não apenas uma atrocidade para com os visados, e que redunda por vezes no seu abandono ou mesmo infanticídio, como — caso estes sobrevivam — poder-lhes-á também potenciar fortemente a reiteração da violência sob esta ou outras formas, numa tentativa distorcida e infrutífera de sublimação.
Em cenários de guerra, as violações e agressões dos ofensores às suas vítimas são legitimadas pela despersonalização ou coisificação daqueles contra quem combatem ou a quem atacam. Para eles, estes inimigos — homens, mulheres ou crianças — não são humanos, não sendo, portanto, passíveis de qualquer espécie de piedade ou sentimentos de remorso, por mais graves ou cruéis que possam ser os atos que lhes sejam infligidos. Sobre este tema, a filósofa Judith Butler afirma:
Podemos pensar na guerra como algo que divide as pessoas em dois grupos: os que são dignos de dó e os que não são. Estes últimos são aqueles que não podem ser chorados porque nunca estiveram vivos, ou seja, nunca foram considerados como tal. Podemos imaginar o mundo como estando dividido entre os primeiros e os segundos, na perspetiva daqueles que travam a guerra para proteger as vidas de uma comunidade e defendê-la contra as vidas de outros – mesmo que isso signifique matar os outros [Tradução livre] (BUTLER, 2010; p. 38)[4].
Ainda num contexto de violência bélica, embora referindo-se mais às vítimas indiretas, a investigadora Susana Martinho de Oliveira, numa tese de mestrado direcionada para o stress de guerra e o caso português, refere que os ex-combatentes de cenários de guerra experienciam inevitavelmente muita dor, medo, zanga, depressão, falta de intimidade emocional e disfunção a nível sexual, deparando-se ainda muitas vezes com situações de abuso de substâncias e violência doméstica (OLIVEIRA, 2008; P. 59). Este tipo de violência, embora seja exercido preeminentemente sobre as suas companheiras, poder-se-á, com muita probabilidade, alargar ao resto do agregado familiar, incidindo principalmente sobre as crianças:
Em alguns casos, as memórias de guerra também podem suscitar no ex-combatente sintomas ambivalentes relativamente aos seus filhos, quando eles se aproximam das idades das crianças que eles mataram ou viram morrer na guerra. A criança vai sentir este distanciamento como rejeição, como sinónimo de não ser amada ou aceite, observando-se muitas vezes um isolamento das próprias crianças (idem, p. 73).
Relativamente aos filhos, tal como acontece noutros meios familiares, mesmo que a criança não seja directamente envolvida na violência, ela sofrerá danos psicológicos por ver a mãe a ser agredida. Por outro lado, a violência doméstica tende a entrar em escalada com o tempo e a criança pode vir a tornar-se num adulto vítima ou agressor (idem, p. 85).
Nesta última citação encontramos pontos em comum com os observados no caso ruandês anteriormente relatado, onde as crianças, por via do trauma sofrido, poder-se-ão tornar, eles próprios, ofensores.
As autoras das Novas Cartas, ao fazerem uma crítica às políticas coloniais do então vigente Estado Novo, propõem-se, ao mesmo tempo, alertar para os episódios recorrentes de violência doméstica provocados por uma patologia traumática — o stress pós-traumático de guerra (cuja existência, à época, ainda era pouco conhecida e diagnosticada) —, assim como para a prevalência e consequências devastadoras deste problema. Monólogo de uma mulher chamada Maria é um texto em registo de oralidade que denuncia esse tipo de brutalidade e os traumas familiares decorrentes:
[…] mas como é que eu podia saber que o meu António havia de vir assim das Áfricas, ele que era uma pessoa, não desfazendo, de tão bom coração e desde que veio das guerras anda transtornado da cabeça e me mete medo grita noite e dia, bate-me até se fartar e eu ficar estendida. […] Foi assim que me começaram a dar estes ataques […] (BARRENO/HORTA/COSTA, 2019; p. 191).
E, no tocante às crianças:
[…] só não dando cabo de mim porque o menino coitadinho, se foi botar agarrado ao meu corpo e ele então de vê-lo tão fraquinho e assustado, teve vergonha e abalou, deixando-me assim sem conhecimento, sozinha com a criança, e voltou um mês depois para me pedir desculpa […] (idem, p. 191).
Embora o stress de guerra seja consequência de políticas bélicas, das quais os visados não terão responsabilidade direta, pois são geralmente forçados a exercer o seu “dever patriótico de matar”, toda a espiral de violência potencialmente subsequente e virada para o seu próprio agregado familiar revela uma pré-existente “formatação” dos géneros e dos seus atributos socialmente instituídos: Foi sina ser infeliz, não vale a pena lutar contra o destino,[…] o homem pode revoltar-se sempre que quer mas a mulher está presa a eles, a um filho e depois? (idem, pp. 191-192). Esta atitude de apatia estoica de uma larga faixa de mulheres, condicionadas pelas sociedades patriarcais das quais fazem parte, e onde, à nascença, lhes é inculcada uma postura de passividade, de ataraxia perante os poderes e hábitos instituídos, terá uma quota-parte significativa no predominante estado da desigualdade de género no mundo. Segundo a visão de Bourdieu, […] torna-se necessário “reconstruir a história do trabalho histórico de deshistorização” ou, se se preferir, a história da (re)criação continuada das estruturas objectivas e subjectivas da dominação masculina que se realizou de modo permanente desde que há homens e mulheres, e através da qual a ordem masculina se viu continuamente reproduzida de época em época (BOURDIEU, 1999; p. 72).
Para o sociólogo, é muito importante investigar a história dos agentes e instituições que concorrem de modo permanente para garantir essas permanências (idem, ibidem). O que poderá ter sido entendido no passado como um processo “natural” de dominância do fisicamente mais forte sobre o mais fraco, ter-se-á tornado, ao longo dos tempos, um processo “artificial” de controlo psicológico por via das instituições socialmente reconhecidas ou impostas (e.g.: Estado, Igreja, Escola, etc.).
Há, porém, outras violências no orbe além da guerra; podemos dar como exemplo a coerção política nos países não democráticos, que é veiculada geralmente pelos seus braços, armados ou não, como as milícias e as forças da ordem — a polícia e o exército —, que limitam ou suprimem as liberdades dos cidadãos. Estas entidades operam, não apenas por intermédio do abuso físico, mas também da brutalidade psicológica. Recorde-se a este propósito o modus operandi da polícia política do Estado Novo (PIDE-DGS), assim como de outras sociedades não democráticas (e.g.: STASI, na antiga Alemanha de Leste; KGB, na ex-União Soviética, ou GESTAPO, a polícia política – e racial – da extinta Alemanha Nazi). Este tipo de violência, no caso português, não era exercido num registo de confronto aberto, de procedimento ostensivo, como no contexto Nacional Socialista, mas inscrito numa atuação geralmente mais dissimulada: um clima de aparente “guerra fria” que possibilitava, ainda que parcialmente, camuflar o jogo de ataques e contra-ataques promovido por ambos os intervenientes – o aparelho repressivo do governo salazarista - por um lado, e uma faixa da população, mais esclarecida e politizada, mas ainda impotente para afrontar eficazmente o sistema - pelo outro.
Neste ponto, podemos também referenciar as situações de racismo, amplificadas pela guerra colonial e pela ação propagandística do Estado Português que, direta ou indiretamente, estimulava estes sentimentos, usando-os como instrumento bélico contra um oponente cuja cor de pele servia de pretexto para incentivar a aversão ou o ódio. Embora num tom quase apologético, encontramos essa referência na obra que nos serve de base, em Carta de um homem chamado José Maria para António, seu amigo de infância: […] às vezes a gente fica tão doido que não se interessa do cheiro ou da cor delas… que somos todos iguais… bem sei... mas faz-me impressão e fico cá a remoer depois de me pôr nelas estes pensamentos… (BARRENO, HORTA, COSTA, 2019; p. 178).
À época da edição do livro, o problema rácico não era, na então denominada metrópole (Portugal), mencionável ou, no mínimo, tão visível como atualmente, o que poderá justificar parcialmente a pouca relevância que o tema tem em todo o percurso da obra. Ademais, a presença de africanos negros em Portugal ainda não era tendenciosamente encarada como um “problema”, não nos permitindo assim fazer uma análise de fundo da questão – razão provável por que este tópico seja apenas aflorado à vol d’oiseau pelas autoras. Contudo, o passado colonial e esclavagista do país contribuiu significativamente para este sentimento de superioridade racial e de exclusão, e que poderá ter sido agravado pelas vagas de imigrantes africanos e lusodescendentes de cor, que demandaram o país, principalmente a partir da década de 60 — cabo-verdianos como mão-de-obra na construção civil e, na década de 70, com os regressados das ex-colónias, assim como luso-descendentes miscigenados e cidadãos negros que se queriam manter portugueses ou que imigraram com o intuito de conquistarem melhores condições de existência[5]. Aqui, e no que concerne à vertente que focamos, os então chamados “retornados” eram vistos, não tanto como uma consequência direta de fuga aos que eram acintosamente denominados “terroristas negros”, mas, segundo uma falsa perspetiva, direcionada para um ressentimento perante quem vem “roubar” postos de trabalho e, como justificativo dessa animosidade, por quem andou a “explorar os pretos”.
Não deixa, no entanto, de ser um problema grave em todo o mundo e fonte de violência, não apenas de cariz racial mas ainda podendo adquirir características de interseccionalidade, pois é por vezes exponenciado em termos de identidade sexual, xenofobia ou outras formas de exclusão.
A situação política, social e de género vivida no país, no período pré-revolucionário, é abordada com particular acutilância no texto O Cárcere, onde se retratam casos de pobreza extrema: Num canto estava um pequeno fogareiro e a marmita amolgada, bens com muito esforço conseguidos (BARRENO, HORTA, COSTA, 2019; p. 169). Surgem também referências à violência doméstica: […] buscando o mínimo pretexto que lhe permitisse passar ao ataque, à brutalidade, e o que foi o seu gesto ou resposta não interessa, talvez lhe tenha chamado efectivamente polícia ou bruto ou polícia bruto ou coisa parecida, mas se não fosse isso o pretexto seria outro […] (idem, p. 170). […] e porque me trata ele assim, a mim, que lhe cozo as batatas, que lhe trato da roupa e que pari os seis filhos que ele me fez? (idem, p. 171). Deixa ainda transparecer, a olhos mais atentos, os casos de repressão política: […] lembrou-se de tudo, sim, porque dissera aquilo, lembrou-se de quando o José fora preso e sovado, sovado na prisão, e como eles tinham protestado então, com alarido e com ódio aos polícias […] o José ainda tinha feito qualquer coisa, rixa, ou propaganda contra a polícia ou assim (idem, p. 171).
O Cárcere apresenta assim, de acordo com a nossa interpretação, uma tripla metáfora:
1 – O retrato de uma enxovia imunda, o reduto possível para aqueles a quem a sociedade negava o direito ao trabalho, à educação, à dignidade humana e a uma cidadania de pleno direito. Para estes, cada dia era uma pena a cumprir, e esse sentimento de aprisionamento e impotência trazia consigo o desleixo, o desespero, a miséria social, a sensação de que nada valia a pena, de que restava somente esperar pela morte redentora e niveladora.
2 – Um ergástulo[6] e referimo-nos aqui aos “trabalhos” das mulheres, cujos parceiros obrigavam a uma subserviência própria de escravos, sofrendo toda a sorte de sevícias injustas e gratuitas. Para elas, e mesmo para os seus filhos, se os tivessem, era um aguardar que o amanhã doesse menos do que o hoje e, quiçá, aspirar ao abandono por parte do companheiro ou o seu passamento fortuito que, mesmo que não desejado, seria pelo menos emancipador.
3 – Uma prisão ou calabouço – para aqueles que, revoltados com as condições sociais, políticas e económicas, se insurgiam contra o statu quo opressor das classes dirigentes e sofriam destas as consequências das suas reivindicações justas mas denegadas, o que geralmente redundava em detenções e torturas físicas e psicológicas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência como o uso intencional da força física ou de domínio, efetivo ou sob a forma de ameaça, autoinfligido ou contra outra pessoa, grupo ou comunidade, que possa resultar ou que tenha fortes probabilidades de resultar em lesões, morte, dano psicológico, desenvolvimento deficiente ou carência [Tradução livre] (KRUG et al.2002. p. 5)[7]. Neste trabalho, embora o suicídio ou o sofrimento autoinfligido sejam também considerados formas de violência e possam ser decorrentes das questões que focamos, apenas os nomeamos, pois divergem ligeiramente do enfoque que pretendemos. Não podemos, no entanto, deixar de mencionar um outro tipo de violência, reconhecido pela OMS e claramente visível em algumas das referências por nós citadas, mas que, talvez por ser demasiado vulgarizada socialmente e geralmente interiorizada desde a infância, pode passar despercebida ou considerada como “normal”. Referimo-nos à violência verbal, à força agressiva e negativizante que as palavras lograrão conter, podendo veicular agressões psicológicas concretas, assim como promessas de agressão física iminente ou efetiva, em qualquer das suas formas (violência de género, doméstica, bélica, política, etc.). Esta será, provavelmente, a forma mais relevante e virulenta de agressividade, e fonte — direta ou indireta — de todos os atentados à pessoa humana que mencionámos ou eventualmente de outros que, embora não fugindo ao tema tratado, seriam demasiado vastos para as limitações de extensão deste trabalho (e. g.: violência económica ou ideológica).
Daniel Welzer-Lang[8], no livro Les Hommes Violents, dá voz a um dos seus entrevistados sobre o tema da violência psicológica:
Quando me falam de violência, a imagem que à partida me surge é a da violência física, ‘tás a ver é a pancada, é a violência física…mas eu tinha também outras formas e talvez esta não fosse a mais forte, a violência física. A violência mais forte é talvez a violência moral, aquela…que…que…tentava mesmo atingir o outro no que ele era, no seu ser, mesmo no mais íntimo, por isso era mesmo mais forte que a violência física [Tradução livre] (WELZER-LANG, 1996. p. 40) [9].
O investigador define este tipo de brutalidade como toda a ação que visa minar a integridade psíquica do outro: a sua autoestima, a sua autoconfiança, a sua identidade como sujeito [Tradução livre] (idem, p. 41)[10]. A violência verbal pode diferir da violência psicológica nos processos de atuação, pois é passível de tomar a forma de insultos, gritos, mudanças de tom de voz, sobreposição ou interrupção contínua dos discursos de quem fala, reparos humilhantes ou pressões sobre o visado para que continue a falar ou interrompa a elocução, ordens desabridas, etc.
No texto O Cárcere, que já abordámos anteriormente, identificamos algumas destas formas: Tens isto que é um nojo, nem sequer lavaste o chão […] despeja isso depressa que não admito porcarias aqui. […] Depressa, ouviste, o que são esses modos, a arrastar os pés, quero respeito […] é isso que pensas, que te atreves a dizer, é isso? (BARRENO, HORTA, COSTA ,2019; p.170).
Em O Pai, podemos também encontrar a exemplificação destes dois processos, não apenas pela reiteração de termos ofensivos, (como perversa), mas também pelo uso de expressões ou afirmações insultuosas ou acusatórias:
Foste a culpada de tudo, bem sabes que foste a culpada de tudo, eu sou homem; sou homem e tu és provocante, perversa. É perversa. Uma mulher sem vergonha, sem pudor. Não te quero ver mais, enojas-me, repugnas-me, envergonhas-me. Tu percebias, sei que percebias, que sabias como me punhas. Eu sou homem minha puta. […] — Grande cabra — chamou-lhe a mãe quando ela se dirigia para a porta da rua, agarrada às paredes para não cair. — Grande cabra. (idem, p. 130).
Conclusão
As Novas Cartas Portuguesas foram pensadas e escritas pelas suas autoras num contexto nacional, como testemunho e manifesto de revolta perante o estado deplorável da nação. Serviram também como grito de alerta dirigido à passividade feminina e de repulsa a uma consciência masculina sexista, podendo assim ser entendidas como uma interpretação e exposição das diversificadas formas de violência existentes, não apenas no país, mas no mundo. Embora alguns críticos possam ter considerado a obra datada, devido ao seu posicionamento espaciotemporal específico, ela pode ser também entendida como um retrato atemporal e disfórico da situação sociopolítica planetária, e nessa perspetiva a abordámos.
Neste breve ensaio, o nosso ponto de partida foi a violência de género como motor e consequência dos episódios bélicos, de onde ramificámos para outras formas correlatas de opressão física e psicológica.
Platão, Tomás de Aquino e Diderot, entre outros, teceram, durante séculos, considerações inconclusivas sobre a antiquíssima questão por todos sobejamente conhecida: Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O Concílio de Florença, por sua vez, discutiu durante anos (1431-1445), o sexo dos anjos sem conseguir chegar a nenhum resultado palpável.
Não pretendendo como eles ceder a longas e estéreis dissertações, apenas abordámos os diferentes fenómenos de abuso, ignorando a sua sempre discutível origem ou categorização. Fizemos uma breve análise da violência num esforço de compreensão dos seus mecanismos, com vista ao seu controlo e eliminação, independentemente das máscaras sob as quais se esconda. Ela é rizomática e espalha-se, transmuta-se em novas formas a que a fértil imaginação humana dá requintes de malvadez; por isso as atrocidades estão em constante evolução, acompanhando o desenvolvimento social e tecnológico do mundo.
Podemos e devemos encontrar soluções e é isso que devemos exigir a nós próprios, individualmente e como comunidade.
Nota Biográfica

O autor deste ensaio, José Luís dos Santos Freitas, nasceu em 1957, em Oliveira de Azeméis, de onde, muito jovem, se mudou para Esmoriz, aí residindo durante cerca de 20 anos; daí transitou para o Porto, onde casou e onde habita há 40 anos. Ingressou em 2007, junto com sua esposa, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo ambos concluído em 2012 e 2011, respetivamente, a licenciatura em Línguas, Literaturas e Culturas. O primeiro no plano disciplinar de Inglês/Espanhol e a companheira no plano de Francês/Espanhol. Tem duas filhas: a mais velha, licenciada em Psicologia, com pós-graduação em Estudos Juvenis, e a segunda a concluir uma Licenciatura em Geologia.
Exerceu funções em diversas unidades ligadas à hotelaria, onde iniciou a sua vida profissional, tendo sido gerente de cantinas, chefe de mesa, sócio-gerente de café-restaurante, chefe de armazém e escanção, entre outras atividades do setor, que abandonou por saturação e desencanto ao fim de 28 anos.
A razão fundamental da sua licenciatura tardia prende-se com uma aspiração velha de três décadas: a possibilidade de, tendo apenas logrado concluir o ensino liceal, prosseguir os estudos que interrompeu por razões pessoais e laborais. Não o fez por necessidade profissional, pois seria já demasiado tarde, mas por uma ânsia de Conhecimento, que nunca o abandonou no decorrer desses anos de interrupção do aprendizado.
Mais tarde, já em 2016 e após uma estadia de um ano em Paris, reiniciou o seu percurso na mesma Faculdade onde, à data desta nota bibliográfica, está a concluir o primeiro ano do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, com Especialização em Estudos Comparativos e Relações Interculturais.
Atualmente exerce a atividade de Porteiro de Condomínio numa unidade da gama média/alta, durante o período noturno — única possibilidade viável para poder continuar a estudar, embora com limitações, pois necessitou de se inscrever como aluno extraordinário, por disciplinas, tendo posteriormente requerido a agregação, como forma incontornável de validar e concluir o Mestrado.
Durante este período, e no âmbito da disciplina de Literatura Comparada – Questões e Perspetivas, em 2018, elaborou um verbete subordinado ao tema Prosadores escrevem sobre a Europa, visando o escritor italiano Claudio Magris, que foi publicado no recurso eletrónico do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, e visível para consulta em https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/claudio-magris/.
Leitor compulsivo desde criança (que muito deve e agradece ao pai), interessa-se por quase todas as áreas do Conhecimento, embora possa destacar, entre outros, os estudos sobre Literatura de Viagens — a primeira cátedra do seu Renascimento académico e que profundamente o impressionou — e os Estudos feministas e Estudos Queer – um tema que, para um “pré-idoso”, foi uma surpresa pela sua diversidade e riqueza de sentido, e que desvendou estimulantes e insuspeitados horizontes.
A título não académico, interessa-se sobremaneira por genealogia, que considera um campo de conhecimento que ultrapassa em muito a vertente pessoal e leva a (também) viagens pelo mundo da História, sendo esta última outra das suas paixões de longa data.
Lema de vida? Cito Sócrates, o Filósofo:
Só sei que nada sei.
 
Bibliografia
BARRENO, Maria Isabel/HORTA, Maria Teresa/COSTA, Maria Velho da (2010). Novas Cartas Portuguesas – edição anotada. Alfragide, Publicações Dom Quixote.
BOURDIEU, Pierre (1999). A Dominação Masculina. Oeiras, Celta Editora.
BUTLER, Judith (2010). Frames of War. When is Life Greavable? London and New York, Verso.
Krug, E. D., Dahlberd, L. L., MERCI, J. A., ZWI, A. B., LOZANO, R. {Eds.} (2002). World Report on Violence and Health, Geneva, World Health Organization. In https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf?sequence=1.
Visto em 26/05/2021.
OLIVEIRA, Susana Martinho de (2008). Traumas de guerra: traumatização secundária das famílias dos ex-combatentes da guerra colonial com PTSD. In http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/803/1/16853_Tese_-_Susana_M_Oliveira.pdf. Visto em 06/05/2021.
PEREIRA, Haula Hamad Timeni Freire Pascoal/CAVALCANTI, Sabrinna Correia Medeiros (2008). In http://revistatema.facisa.edu.br/index.php/revistatema/article/view/232. Visto em 07/05/2021.
TREIS, Maria Eduarda Jark/MORAIS, Pâmela Samara Vicente (2018). Estupro Genocida: como a tática de guerra marcou a sociedade ruandesa. In http://seer.ufrgs.br/revistaperspectiva/article/view/87176. Visto em 06/05/2021.
VALE DE ALMEIDA, MIGUEL (1997). Fado, Touros e Saudade como Discursos da Masculinidade, da Hierarquia Social e da Identidade Nacional. In http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2008/06/marialvismo1.pdf. Visto em 29/05/2021.
VILHENA, Júnia de/NOVAIS, Joana de Vilhena {Org.} (2018). O Corpo que nos possui, Corporeidade e suas Conexões. Curitiba-Brasil, Editora Appis. In https://pt.scribd.com/read/405695258/O-Corpo-que-nos-Possui-Corporeidade-e-Suas-Conexoes# . Visto em 11/05/2021.
WELZER-LANG, Daniel (1996). Les Hommes Violents. Paris, INDIGO & Côté-femmes Editions.
[1] A 5 de Maio, o governo de Marcelo Caetano publica o Decreto-Lei nº 150/72, sobre o estatuto da imprensa, fundado na Lei 5/71 da Assembleia Nacional. in http://www.museudaimprensa.pt/galeriavirtualdacensura/cronologia.htm. Este decreto tenta “branquear” a Censura, tal como já tinha sido feito em 1969, com a então PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado, renomeada DGS – Direcção-Geral de Segurança.
[2] Na crítica feminista, o termo denota a dominação masculina, evidente no facto de o falo ser sempre aceite como o único ponto de referência, o único modo de validação da realidade cultural (in E-Dicionário de Termos Literários - https://edtl.fcsh.unl.pt/).
[3] A segunda vaga feminista (circa 1960-1980) começa a encarar o sexo para além da procriação, como fonte de prazer, e debruça-se sobre os problemas familiares, com relevância para o tema da violência doméstica, luta pela igualdade e pelo fim da discriminação.

[4] We might think of war as dividing populations into those who are greavable and those who are not. An ungrievable life is one that cannot be mourned because it has never lived, that is, it has never counted as a life at all. We can see the division of the globe into greavable and ungreavable lives from the perspective of those who wage war in order to defend the lives of certain communities, and to defend them against the lives of others – even if it means taking those latter lives.

[5] Vide CASTRO HENRIQUES, ISABEL. A Presença Africana em Portugal, uma História Secular: Preconceito, Integração, Reconhecimento (Séculos XV-XX). Passim. Visto em
https://www.acm.gov.pt› Presenca_Africana_pt.pdf/f330d2d0-5f61-40be-93f2-d38d9fb35359. Lido em 17/05/2021.
Vide também VEIGA, Sandra Maria (2012). Trabalho de Projecto de Mestrado:
Os Emigrantes cabo-verdianos em Portugal: Identidade construída. Passim. Visto em https://run.unl.pt/bitstream/10362/8104/1/sandra.pdf. Lido em 17/5/2021.
[6] prisão destinada, entre os antigos Romanos, aos condenados a trabalhos forçados. In ihttps://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa.

[7] . [T]he intentional use of physical force or power, threatened or actual, against oneself, another person, or against a group or community, that either results in or has a high likelihood of resulting in injury, death, psychological harm, maldevelopment or deprivation (em inglês,no original)..

[8] Socio-antropólogo, membro do Grupo de Estudos sobre a Divisão Social e Sexual do Trabalho, sediada em Paris, dedica-se ao estudo das construções sociais do género masculino e é professor e investigador da Universidade de Toulouse Le Mirail.

[9] Quand on me parle des violences, l’image qu’on a tout de suite c’est la violence physique, tu vois c’est les coups, c’est la violence physique…mais je prennais bien d’autre formes aussi et c’était peut-être pas la plus forte, je dirais la violence physique. La violence la plus fort, c’est peut-être la violence morale, celle…qui…qui…cherchait vraiment à atteindre l’autre dans ce qu’il était, dans son être, vraiment au plus profond, donc ça a sûrement était plus fort même que la violence physique (em francês, no original).

[10] […] comme toute action visant à porte atteinte a l’intégrité psychique de l’autre: son estime de soi, sa confiance en soi, son identité de sujet (em francês, no original).



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Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Especialização em Estudos Comparativos e Relações Interculturais

José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
José Luís dos Santos Freitas
M
2022

José Luís dos Santos Freitas

José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
2022

José Luís dos Santos Freitas
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho
Membros do Júri
Professor Doutor José Domingos de Almeida
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professor Doutor Maria Luísa Malato
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Professor Doutor Maria de Fátima Outeirinho
Faculdade (nome da faculdade) - Universidade (nome da universidade)
Classificação obtida: 16,2 Valores

Dedicatória
Ao meu pai, cuja bibliofagia insaciável moldou o meu caráter de leitor felizmente compulsivo.
À minha mulher Diva e minhas filhas Sofia e Cristina, pelo “mutualismo facultativo” que nos une e enriquece culturalmente.

Sumário
Declaração de honra------------------------------------------------------- 3
Agradecimentos----------------------------------------------------------- 4
Resumo------------------------------------------------------------------- 5
Abstract-------------------------------------------------------------------6
Introdução-----------------------------------------------------------------8
1. Das descobertas às opções -----------------------------------------------13
1.1. Génese de uma consciência----------------------------------------------13
1.2.Sensibilizaçãosocial------------------------------------------------------15
2. Apre(e)nder o Mundo-----------------------------------------------------25
2.1. Pobreza e sofrimento----------------------------------------------------25
2.2. Revolta ----------------------------------------------------------------28
2.3. Compreensão da humanidade.------------------------------------------30
2.4. Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu-------------------32
3. Castro e a Verdade: ficção e censura---------------------------------------43
3.1. A questão da ficcionalidade.----------------------------------------------44
3.2.Postura de um novel humanista-------------------------------------------47
Considerações finais -------------------------------------------------------68
Referências bibliográficas---------------------------------------------------74


Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 22 de setembro de 2022

José Luís dos Santos Freitas

Agradecimentos
À minha família, pelo apoio que me deram e pelo orgulho que demonstraram pela prossecussão dos meus estudos, constantemente interrompidos pelas vicissitudes da vida. As suas manifestações de encorajamento foram importantes para vencer os obstáculos que se me foram deparando.
À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima da Costa Outeirinho, pelo Saber que partilhou comigo, pelo apoio demonstrado e — muito importante – pela sua jovialidade: um verdadeiro lenitivo que ajuda a, por vezes, restabelecer a auto-confiança perdida. A sua paciência, estímulo e boa-vontade ajudaram-me a lutar contra a maré, apesar de a corrente ser por vezes forte. Nunca foi uma tábua de salvação; em vez disso, ensinou-me a nadar.
A tod@s @s professor@s que me foram acompanhando no calcorreio pelos caminhos do Conhecimento, e com quem aprendi incontáveis e insuspeitadas singularidades. Bem hajam, também.


Resumo
Abordar José Maria Ferreira de Castro é, até certo ponto, repetir o que já foi questionado pelos investigadores que nos antecederam na árdua tarefa de decifração do autor e da sua obra. No entanto, a nossa investigação, se (assim o esperamos) bem conduzida, acrescentará algumas – embora ténues - centelhas de luz, que poderão guiar os biblionautas castrianos vindouros na demanda da razão para um projeto estético do escritor. Um objetivo desejável, mas de conclusão lenta e imprevisível.
Não nos podemos arrogar o privilégio do solevar definitivo do diáfano véu que cinge essa razão, a força e a mensagem de um daqueles que fazem parte do restrito grupo de ínclitos escritores portugueses que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Não podemos emular o Grande Arquiteto, arrogando-nos um Fiat Lux que afaste as trevas e dissipe quaisquer dúvidas sobre esta questão fulcral que abordamos. Poderemos, porventura, contribuir modestamente para a compreensão do trabalho ímpar e multifacetado de Ferreira de Castro, como ímpares e multifacetados serão os trabalhos de todos os grandes vultos literários da Humanidade.
A nossa focagem no autor de A Selva visa analisar a génese e o percurso ético do escritor, rendido à perspetiva de um novel humanismo universalista, ou seja, afastando a visão renascentista do homem como centro de um universo de etnia exclusivamente branca e masculina, onde os negros, os índios, as mulheres, as crianças e os escravos não tinham expressão. Em suma, um humanismo não democrático e excludente.
Seguindo os seus passos pelo planeta e pela literatura, tentaremos dissecar as causas e efeitos das suas ideias e credos, avaliando a sua — arriscamo-nos a dizer — pegada civilizacional e ética, a sua humanidade e os seus sonhos edénicos. Aventurar-nos-emos, em suma, a explicar quem foi Ferreira de Castro, qual a sua utopia e qual o seu legado às letras e ao Mundo.
Palavras-chave: Ferreira de Castro, ética, humanismo, estética.


Abstract
To address José Maria Ferreira de Castro seems to repeat what has been questioned by preceding researchers in the hard task of deciphering the author and his work. Still, our investigation, if successfully conducted (so we hope), may add some – certainly tenuous – sparks of light that may guide the future Castrian Biblionauts on the quest for the reason of the writer’s aesthetic project. Although rather desirable, it may have a slow and unpredictable conclusion.
We cannot brag from the privilege of lifting the light veil that covers that reason, the force, and the message of one of those men that are included among the strict group of illustrious Portuguese writers that due to great deeds have been freed from death. We cannot emulate the Great Architect by arrogating a Fiat Lux that dissipates the darkness and solve all the doubts about this central question. Nevertheless, it might be possible that we modestly contribute to the understanding of his unique and multifaced work – once unique and multifaceted are the works of all the great writers of Humankind.
When addressing to the author of The Jungle we try to analyze his genesis and ethic course rendered to the perspective of a universalist humanism that moves away the Renaissance look of Man as the center of an exclusively white and male universe where the Black, the Indian, the women, the children and the slaves had no expression whatsoever. In short, a nondemocratic exclusionary humanism.
Following the writer’s steps through planet and literature we shall try to dissect the causes and consequences of his ideas and beliefs, assessing his — we dare say — ethical and civilizational footprint, his humanity and his Edenic dreams. In the end, we shall try to explain who Ferreira de Castro was and which were his Utopia and his legacy to Letters and to the World.
Keywords: Ferreira de Castro, ethics, humanism, aesthetics.



O homem não é um animal solitário, e enquanto perdura a vida em sociedade, a realização de si mesmo não pode ser o supremo princípio ético.

Bertrand Russell



Introdução
O nosso escopo ao elaborar esta dissertação é o de procurar interpretar o modo como Ferreira de Castro, no seu percurso existencial, observa, interioriza e expõe a visão do seu mundo contemporâneo e dos lugares que visitou através do planeta, como ser humano e como europeu, assim como avaliar em que medida as questões intemporais como as injustiças sociais, a insensibilidade e a desumanidade de alguns sobre uma maioria ou minoria, consoante cada situação particular[1], se refletem nos seus testemunhos de viagens — Pequenos Mundos e Velhas Civilizações e A Volta ao Mundo, assim como nos romances Emigrantes, A Selva, Terra Fria, A Lã e a Neve e Eternidade
Não despiciendo, o restante conjunto da sua produção literária reflete também essas preocupações éticas, embora tenhamos escolhido prioritariamente as obras acima discriminadas por elas constituírem o grupo onde as questões focadas têm mais visibilidade. Hoje, como então, testemunhamos a pobreza, a miséria, a exclusão, a discriminação e mesmo a escravatura. Estas máculas sociais têm permanecido quase imutáveis e continuam a fustigar inexorável e generalizadamente o globo.
Ferreira de Castro não é um escritor renascentista; os seus ideais não se regem apenas pelo Humanismo medievo. Para ele, o sentido de Humanidade abarca os conceitos coetâneos a Thomas More e Petrarca, embora os exceda largamente, pois amplia a sua esfera a todos aqueles a quem esse humanismo primário excluiu: as minorias (étnicas ou outras), as mulheres, os escravos, e mesmo as crianças. O humanismo do autor é universalista, no mais cabal sentido do termo[2]. Garcia e Silva[3] resume assim as suas qualidades:
Ferreira de Castro manteve ao longo da vida grande coerência em matérias éticas e ideológicas fundamentais. Anarquista, antimilitarista, antirracista, anticlerical, antipatrioteirista, anticapitalista; anticolonialista, anti pena de morte, anti eleições[4]; pró-eutanásia, pró-amor livre”. (SILVA apud CARVALHO, 2017: 66-67)
Assim, procuraremos compreender a ética do escritor e determinar a sua postura estética através do seu percurso vital, ponderando que contribuição poderá ter tido o nascimento e infância breve no seio de uma família humilde, inserido num panorama social de quase analfabetismo, de uma típica aldeia beirã nos fins do século XIX. Mais importante ainda, em que grau a sua emigração para o Brasil, mais concretamente, para um local de morte iminente, de desenraizamento provável e de penúria garantida, denominado Seringal Paraíso, no Amazonas — local onde estabeleceria contacto com outro tipo alienígena de miséria e de exploração social —, contribuiu para a formação da sua personalidade humanista e para o seu apurado sentido de justiça.
Terá sido talvez esta abordagem primeva com um mundo que não o seu, o que incentivou o jovem Ferreira de Castro à produção livresca e, posteriormente, ao jornalismo. Assim, foi na sede do distrito, em Belém do Pará, local a que se dirigiu após abandonar a selva, desiludido e padecente de enorme incompletude existencial, que tomou o primeiro contacto com o mundo mediático das letras.
Farto da exploração e das injustiças que presenciou durante os quatro anos da sua permanência no seringal, Castro, prenhe de sonhos e parco de dinheiro, tentou progredir nesta cidade através do seu anseio de menino: a atividade jornalística – após desmistificado, na selva amazónica, o logro de um Eldorado impossível. Em entrevista a Álvaro Salema, amigo e um dos seus principais biógrafos, afirma: “Logo nesses dois primeiros anos da minha estadia ali, eu havia modificado muito. A ideia que levara ao Brasil o meu final da infância, que era a de enriquecer, desaparecera completamente. Eu perdera o espírito de emigrante e só desejava ser escritor.“ (CASTRO, 2021: min. 12.04)
Em “Pequena história de A Selva”, José Maria, na sua fuga de há muito desejada, para longe do Paraíso a bordo do navio Sapucaia, que o levaria para um futuro incerto, mas conscientemente decidido, relembra: “Eu tinha, então, dezasseis anos. E dos quatro que passara ali, não houve um só dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir!” (CASTRO, 1970: 18)
Foi uma decisão arriscada, mas de que o autor nunca quis abdicar, mesmo atendendo a que poderia tornar-se um fracasso— o que, felizmente, não sucedeu, como está claramente demonstrado no término da citação autobiográfica que reproduzimos: “A luz do farol ia diminuindo ao longe, um ponto único e vermelho na noite da floresta — um ponto final da minha vida ali.” (Ibidem)
Inicialmente, este jovem, recém-chegado e desconhecido, e em complemento de outros díspares mesteres, empregou as suas aptidões literárias como meio de sobrevivência, ao publicar artigos em jornais e iniciar-se como escritor, produzindo obras literárias em formato folhetinesco, que ele próprio chegou a distribuir porta a porta. Sem embargo, a sua ainda incipiente produção literária denotava já uma preocupação social focada nos pobres, nos oprimidos, naqueles verdadeiros vencidos da vida, que em nada se assemelhavam àqueles que, de apodo homónimo, constituíram os ilustres escritores da Geração de 70, do século que acabara de findar. Para esses, contavam os ideais; para os primeiros, a sobrevivência.
Feita a introdução do escritor, origem criadora do objeto do nosso estudo, e de onde partimos para a análise da sua ética pessoal e da razão estética da sua obra, começamos por expor os pontos que julgamos pertinentes para a compreensão do raciocínio que preside às conclusões que obtivemos.
Deste modo, no primeiro capítulo, exploramos a génese do seu pensamento humanista, fazendo uma breve resenha da sua infância - em Portugal e no Brasil - e de como esta influenciou a sua visão político-social futura. Analisamos a evolução destas caraterísticas a partir da sua estadia e aprendizagem em Belém do Pará, agora numa perspetiva mais maturada, onde veremos o jovem Ferreira de Castro entregue à sua sorte, ao seu sonho e aos estímulos que constituíram a base do seu pensamento humanista.
Visitamos também a sua inscrição no quadro emigracional da época, deparando com os obstáculos que o escritor teve de vencer perante um cenário de insucesso quase por certo garantido. Para finalizar o capítulo, apontamos as referências anarco-libertárias que canalizaram com êxito o seu percurso ético e a sua inscrição no movimento do Realismo Social, de que falaremos posteriormente.
O segundo capítulo incide sobre a forma como Ferreira de Castro interioriza a sua perceção do Mundo, os seus sentimentos perante os males e fragilidades da Humanidade, a sua visão da miséria, das suas causas, dos dramas que, incessantemente, assolam os mais desfavorecidos e cuja raíz vai encontrar – não na Natureza e suas calamidades, mas no seio dos seus pares. Apontamos ainda para a convicção de Ferreira de Castro na grande responsabilidade dos países dominantes do Ocidente — com particular ênfase, da Europa — pelas atitudes exploradoras e preconceituosas que se abatiam e abatem sobre os desfavorecidos de todo o Mundo.
É contra esse comportamento antinatural que o autor manifesta o seu repúdio, a sua revolta; mas, “(...) homem generoso e de profundos afectos, uma pomba sem fel, como lhe chamou carinhosamente Vitorino Nemésio, reconhecendo num comovido tributo o seu pecado de não lhe ter dado em vida a atenção que merecia” (SAMUEL, 2017: 30-31), Ferreira de Castro vê a Humanidade, no seu conjunto, como uma criança que, inconsciente da sua maldade, a exerce, não apenas entre seus semelhantes, mas alargando-a aos seres que lhe são tantas vezes vistos como evolucionalmente inferiores; no geral, a toda a Natureza. Reabordamos, deste modo, a ética castriana, já não como resultado de influências políticas específicas, mas como produto acabado das suas vivências e convicções humanísticas.
Referimos a sua extrema afeição ao reino vegetal, particularmente às árvores, das quais guarda sensações intensas, que cambiam do respeito temeroso ao êxtase quase místico, que espelha nas suas obras e acompanham-no até ao fim da sua passagem terrena.
Apontamos também o modo como o escritor intui o planeta e o transporta para a literatura e, depois, através dela, o devolve a si próprio, explicado, transformado, transmutado numa utopia improvável feita, não apenas de humanidade, mas de um amor incondicional por todos os seres humanos, que o autor acreditava ser possível, embora certamente não no seu tempo, mas num futuro indeterminado.
No terceiro capítulo tentamos demonstrar o papel que a construção ficcional escolhida por Ferreira de Castro tem na narrativa de viagens — que neste ponto tratamos com mais acuidade —, assim como considerar a sua eficácia como processo de transmissão dos valores éticos com que o autor pretende sensibilizar os leitores. Referimos também quais as bases dessa mesma ética, as fontes e influências recebidas pelo escritor, aludindo ainda à polémica em torno da sua pertença ou exclusão do movimento neorrealista, não nos esquecendo de mencionar as dificuldades experienciadas pelo romancista na sua produção literária, provocadas pela coação constante da Censura estatal.
Fixamo-nos assim no escritor e na sua obra. Tentamos expor o que consideramos os pontos mais importantes e já definitivamente consolidados, não apenas do seu sentido ético e de justiça, como também os objetivos estéticos que o nortearam e ao seu legado escrito, no decorrer de toda a sua existência. É com esse objetivo que incidimos, neste capítulo, nas influências basilares do seu Novel Humanismo[5].


1 -Das descobertas às opções Sem querermos entrar em demasia em abordagens biográficas, talvez ganhemos em lembrar as bases político-sociais que presidem à formação e consolidação da ética de Ferreira de Castro, e é o próprio escritor que nos aponta alguns caminhos.

1.1 - Génese de uma consciência Eu era uma criança muito tímida, muito melancólica, já com fervores românticos. Os demais garotos não me compreendiam, a minha família também não. Sofri bastante com isso. Eu mesmo não compreendia a mim próprio e lamentava não ter a alegria e o à-vontade dos outros. Vivia permanentemente com uma sensação de inferioridade. Foi com essas características que eu desembarquei na selva amazónica, ainda não tinha 13 anos. A minha adaptação àquele meio, tão diferente do da terra nativa, constituiu um tormento quotidiano, e nunca mais me adaptei completamente. (CASTRO, 2021: min. 6.42)

Já com uma experiência na elaboração de pequenos textos, que redigia, muito novo, de motu proprio ou a pedido, no seu rincão natal, e em defesa da sua (sobre)vivência infante num ambiente estranho e hostil, longe de tudo e de todos os que lhe eram familiares e queridos, José Maria apoiava-se no único bordão a que se podia permitir, durante os parcos momentos de ócio — a escrita. Numa gravação datada de fins da década de 60 do século XX, o autor narra: “Mas, poucos meses depois de chegar ali, comecei a escrever, a escrever sobre os meus estados de alma, os meus desesperos, os meus sonhos.” (CASTRO, 2021: min. 7.39)

Quanto aos motivos que espoletaram a sua atividade literária e jornalística, pouco haverá mais a dizer sem repetir as palavras do escritor, citadas acima. As características com que se reveste nestas poucas palavras, encontramo-las facilmente quando percorremos a sua vida e as suas obras, mesmo que com visão pouco atenta. Ferreira de Castro escrevia, não pela fama ou fortuna, mas por vocação; a esta, o seu talento jornalístico foi, ao longo da existência, elevando o sentido de justiça, em paridade com um humanitarismo crescente. O seu percurso mundano foi sempre pautado por uma recusa das honrarias que lhe foram sendo oferecidas, não somente na sua pátria, mas também por outros países e organizações não nacionais.
Convém lembrar que, embora mais tarde se destaque como escritor de realismo social[6], surgem traços românticos em algumas das suas produções literárias mais primitivas, que o autor posteriormente repudiou[7], e notam-se ainda vestígios nas descrições paisagísticas e humanas com que emoldura a componente mais importante de toda a sua produção literária – A Selva – e por seu intermédio, a Humanidade, com os seus problemas, venturas, misérias e virtudes. O naturalismo também está aí presente[8], com todo um rol de mazelas humanas; no entanto, o realismo social torna-se relevante e constituirá, a partir desta obra, o epicentro da sua arte.

Em A Lã e a Neve, considerada por muitos dos seus críticos como o mais representativo e mais bem-sucedido romance de realismo social do autor, a sua postura ética, já plenamente desenvolvida, aponta para as consequências nefastas de um sistema onde as elites industriais sobreviviam comodamente à custa de uma oferta de trabalho incerto e mal remunerado. No “Pórtico” da obra, Ferreira de Castro descreve as vicissitudes da força operária dos lanifícios da Covilhã que se sujeitava a condições precaríssimas e desumanas e que, não raras vezes, produziam desfechos lamentáveis:

A indústria sofria (...) bastantes oscilações. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matéria ou pouco consumo, diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à lã haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria mais descarnada ainda do que o normal. Com seu fabrico reduzido, a Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas para o meretrício de Lisboa. (CASTRO, 1949a: 18)

1.2. Sensibilização social
Nota-se em Ferreira de Castro, desde o momento em que o escritor abandonou o seringal, onde poucas probabilidades de desenvolvimento pessoal lhe seriam viáveis, o nascimento de uma consciência social até então em latência, e uma vontade forte em instruir-se com o fito de desenvolver e pôr em prática todos esses sentimentos de equidade e justiça que desabrochavam no seu ainda jovem espírito:

[A Selva é] [a]cima de tudo uma grande obra de arte, o romance é também o testemunho da vivência do autor e veicula, como seria de esperar, a sua mundividência, a perspectiva pessoal com que o escritor encarava a vida e os problemas que se levant[av]am[9] ao ser humano.
 De que forma poderemos enquadrar essa mundividência? Claramente através de um conjunto de ideias e sensibilidades que dotaram a totalidade da obra castriana de uma mensagem coerente e consistente da emancipação do Homem. Não se trata de uma simples amálgama de sentimentos piedosos, vulgo “humanistas”; está para além disso, e tem uma designação bem definida na história das ideias políticas e sociais: chama-se anarquismo, e Ferreira de Castro foi um dos expoentes literários do século XX, em Portugal, dessa forma mais livre de encarar o mundo e a vida. (ALVES, 2007a: 87-88)


O narrador omnisciente d’A Selva alterna com um narrador personagem, e constitui, no fundo, um romance autobiográfico. Esta alternância de realidade com ficção permite a Ferreira de Castro um distanciamento crítico que facilita o processo narrativo, sem, contudo, se afastar demasiado da realidade que o escritor experienciou. A chegada de Alberto, o seu alter-ego, ao Paraíso, rememora o desembarque de José Maria no seringal:

   A chegada dos “brabos”, os novos legionários que o Ceará e o Maranhão enviavam à selva, provocava sempre risos e chocarrices daqueles que já se tinham amestrado na vida da terra insubmissa e de costumes singulares. E se o recém-vindo se melindrava, humilhado pela recepção imprevista, os algozes folgazões não o largavam mais, deleitando-se em persegui-lo com todas as facécias que podiam inventar contra a sua inexperiência. Enervava-os, inconscientemente, que alguém acreditasse ainda naquilo de que eles já descriam; e os remoques só terminavam depois do “brabo” se ter familiarizado com os segredos da vida local e resignado ao extermínio das suas próprias ilusões. (CASTRO, 1970:  95)


Circunstâncias similares a estas terão constituído o seu primeiro choque civilizacional, assim como uma das primeiras constatações desse fosso social entre os seres humanos que tão intensamente marcaram o escritor ao longo da sua vida e delinearam o percurso que a partir daí sempre se esforçou por percorrer.

Poucos dias após a publicação de A Selva, morre Diana de Liz; e Castro, em “Pequena história de A Selva” [10], confessa aos seus leitores a dor da partida, aliada à dor da sua passagem pelo sertão brasileiro:

Dir-se-ia que A Selva, drama dos homens perante a injustiça doutros homens e as violências da natureza, estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para o seu próprio autor, uma pequena história, uma pequena parcela da grande dor humana, dessa dor de que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão. (CASTRO, 1970, 28)

A investigadora Ana Cristina Carvalho afirma que a emigração de Ferreira de Castro, inicialmente instigada pelo anseio de melhores condições de vida e subsistência, transmutou-se, por força das circunstâncias, não num progresso financeiro, mas num enriquecimento espiritual que marcaria o futuro do escritor:

[A] emigração para o Brasil, escape à pobreza mais comum na época, terá necessariamente influenciado a decisão de José Maria; porém, e não obstante os parcos recursos da família, em declarações e memórias futuras o escritor apontaria outros motores da sua emigração. E neles valoriza um diferente conceito da “fortuna”, decorrente dessa aventura: as vivências que fundaram a sua consciência humanista. (CARVALHO, 2017: 35)
Convém realçar o extrato de um artigo da autoria do investigador Eugénio dos Santos[11], para que possamos compreender melhor o conjunto de circunstâncias adversas que acompanharam o futuro escritor na sua estreia emigratória e que, por razões óbvias, dificultaram extraordinariamente o início do seu percurso literário. Foi muito provavelmente a sua força de vontade, aliada ao sonho de se tornar jornalista, que o acompanharam desde Portugal, o que lhe gerou o estímulo necessário para se libertar das grilhetas que a sociedade lhe impusera:

Sabe-se bem que em certas regiões do país, de tradição emigratória mais forte, alguns jovens eram “preparados” para partir e poderem ter acesso rápido no lugar de acolhimento. Cuidadosamente alfabetizados, senhores do ofício de caixeiro, aprendido nas casas comerciais das grandes cidades, antigos seminaristas, padres inconformados, jovens de famílias com posses, mas a quem eram impostos casamentos contra a vontade, descontentes com partilhas desiguais, ou rapazes insubmissos ao poder autoritário do pai, alguns com consideráveis meios de riqueza, todos estes tipos de pessoas estavam em condições psicológicas de partir.(...) Há que distinguir, contudo, dois tipos de emigrantes para o Brasil ao longo do século passado e já nos inícios deste: aqueles de que acabamos de falar e que se perfilham para entrarem no comércio, nos serviços, na complexa teia da vida urbana e os outros, que o jovem país prefere acolher, para irem trabalhar nos campos, no interior, como substitutos da antiga mão-de-obra escrava. No café, na borracha, no cacau ou no tabaco o que importa que estes demonstrem é força braçal e resistência às agruras do clima. Por isso, aí não importa ser alfabetizado. Pelo contrário, convém não o ser. Desse modo, se evita a cidade, o desejo de ir à procura de novidades.[12] (SANTOS, 2000: 23)

Ora, Ferreira de Castro era minimamente alfabetizado; chegado ao Brasil, lia tudo a que pudesse ter acesso e, volvidos apenas dois anos, almejava sair do seringal para Belém do Pará, à procura — não de novidades, mas de algo bem específico, bem calculado: a possibilidade de, não só tentar exercer o tão almejado jornalismo, como ter acesso às fontes de informação e conhecimento que lhe permitiriam exercer essa profissão de acordo com a ética anarquista que, ainda embrionária, se ia fortalecendo. Teve assim início a sua penosa, mas triunfadora saga.
Deste modo, mais além do Utilitarismo do filósofo e feminista John Stuart Mill que advogava a soberania individual sobre corpo e mente, e de Pierre-Joseph Proudhon, também filósofo, que defendia uma sociedade sem autoridade, Ferreira de Castro acabou adotando como norma de conduta e postura ética, perante si próprio e o Mundo, o Anarquismo Libertário do revolucionário Bakunine, que se encontra muito próximo do pensamento do anarquista William Godwin, no qual figura, essencialmente, a crença de que só o conhecimento poderá ser o veículo de libertação da Humanidade:

 Como outros filósofos libertários que vieram depois de­le, Godwin via a sociedade como um fenômeno que se desenvolvia na­turalmente, capaz de funcionar independente de um governo, mas não compartilhava da fé que outros anarquistas depositavam nos ins­tintos espontâneos da massa inculta. Nesse sentido, permanecia um homem do Iluminismo, acreditando que a educação era a verdadeira chave da liberdade e temendo que, sem ela, as paixões incon­troláveis do homem freqüentemente não ficariam satisfeitas em obter a igual­dade, mas os levariam a desejar o poder. (WOODCOCK, 2002: 69)


Deste difere, no entanto, na sua convicção de que a humanidade necessita apenas de estímulo e compreensão para poder, eficazmente, gerir a sua conduta e criar o seu próprio destino. Em Eternidade, Juvenal, um dos avatares da extensa produção romanesca do escritor, acredita que para o ser humano apenas é necessário consciencialização e senso comum para que ele se transforme num pilar da sociedade, compartilhando com todos os outros os direitos e deveres que lhes são naturalmente inerentes: “O rancho inteiro, desde que promovera a homem responsável cada escravo da enxada, criara amor-próprio e portava-se a contento.” (CASTRO, 1948: 268)
Juvenal, engenheiro silvicultor, responsável pela arborização das serras na ilha da Madeira, depara, ao tomar posse, com um sistema de trabalho exploratório e ditatorial; após ter despedido um capataz desumano, acede, perante os trabalhadores rurais, em nomear outro do agrado destes. A citação que reproduzimos, em complemento da anterior, demonstra o sucesso da sua atitude, antes duramente criticada pelos membros da sociedade industrial a que estava vinculado, que defendiam que só à força de imposições e castigos – que incluíam os despedimentos – seria possível
fazer trabalhar eficazmente os jornaleiros, que viviam e eram pagos miseravelmente. Vieira, o novo capataz, faz o ponto da situação:

— Há alguma novidade? — perguntou-lhe Juvenal.
 O capataz respondeu negativamente. Tudo corria bem — acrescentou. Os homens iam dando boa conta de si. Com mais gana só em fazenda própria se trabalharia na Madeira. Ainda na véspera, como um madraceasse, os camaradas, por expontânea decisão, tinham-no afastado do serviço, durante uma semana, para ver se nele crescia a vergonha. Com pessoal assim, tão agradecido ao senhor engenheiro, até dava gosto trabalhar. (CASTRO, 1948: 291)


Na verdade, um dos grandes mentores libertários de Castro foi Piotr Kropotkine; Ricardo Alves afirma que a influência deste ideólogo, juntamente com as de Zola e Raul Brandão, é já visível no Mas…, — uma das obras embrionárias do escritor. (ALVES, 2002: 69-70) Este investigador refere ainda que a viúva de Castro, Elena Muriel Ferreira de Castro[13], o informou de que, ”quando o conheceu, em 1936, a obra e a personalidade do doutrinário russo exerciam nele um grande fascínio. Interesse que já vinha de tempos mais remotos, numa clara referência ao Mas…“ (ALVES, 2002: 126)
Ferreira de Castro foi um homem sensível ao sofrimento alheio; tentou minimizá-lo sempre que possível e indignava-se com a sua existência, principalmente quando provocada por outrem. As suas críticas eram duras, porém de uma contundência isenta de agressividade. À medida que o escritor foi evoluindo, o seu intelecto foi divisando as razões subjacentes ao intrincado entrelaçamento entre culpa e sofrimento, como se encarnasse simultaneamente o papel de acusador e o de advogado do diabo.
Jorge Amado dá-nos também a sua visão de como o escritor influenciou a humanidade:

Com a arma da literatura ajudou a transformar o mundo. Foi verdadeiro escritor da nossa época, sendo, como queria Gorki, ao mesmo tempo coveiro e parteiro, coveiro de um mundo caduco, de um tempo podre, parteiro de um mundo novo, de um tempo alegre e livre. O menino saído do fundo da floresta cumpriu a sua missão grandiosa[14].  (AMADO, 1966: 172)

É extenso o rol dos intelectuais seus contemporâneos ou posteriores que tecem louvores ao autor consagrado. O seu trabalho como escritor, a sua humanidade e humildade, assim como o seu mecenato e o igualitarismo isento de qualquer tipo de discriminação, ditaram o grande número de homenagens que recebeu e continua a receber na atualidade. Assim o descreve Fernando Aguiar-Branco[15]:

                   Ferreira de Castro foi um humanista. Nos seus livros pulsa, com vigor, a tensão circunstancial e o drama das circunstâncias adversas. N’A Selva, um livro que ressalta da sua autobiografia, bem como em Terra Fria ou em A Lã e a Neve, a problemática do comportamento humano, face a situações limite ou inesperadas do quotidiano, está ali presente. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 15)


António dos Santos Pereira[16] faz o retrato de um homem preocupado com o bem-estar social e em constante luta contra as situações de desigualdade e desfavorecimento dos seres humanos, independentemente do seu género, etnia ou idade: “Vê-lo-emos atento a denunciar a falta de higiene, de habitação digna, de educação, a mendicância, o abandono infantil, a prostituição em expressões bem realistas desde o Funchal às serras do Barroso e à Covilhã, no sentido militante de denúncia para a mudança.”[17] (PEREIRA, 2017: 108)
Um dos textos mais exemplificativos deste esforço de denúncia, encontramo-lo no capítulo inicial de Os Fragmentos : “Historial da velha mina”. É uma memória jornalística datada, segundo o autor, de 1928 ou 1929. Ferreira de Castro, então colaborador d’O Século, acreditava que a publicação de uma reportagem que expunha as condições miseráveis dos mineiros das minas de S. Domingos, em Mértola, apelaria para o sentido de justiça e piedade do recém formado Estado Novo, uma vez que “[h]avia ainda alguma tolerância, embora cada vez mais rara e encolhida.”(CASTRO, 1974: 17) Vai disfarçado de caixeiro-viajante, a pedido dos mineiros, para não levantar suspeitas. Nas instalações da mina depara, entre outras situações pouco ou nada edificantes, com as habitações exíguas e miseráveis dos trabalhadores – meros cubículos de uma única divisão, sem janelas, onde morava uma família inteira:

O quarto servia de cozinha, de sala e dormitório; e à noite, nessa promiscuidade absoluta de corpos e de frangalhos, os pais, se eram respeitadores, apagavam a luz ou voltavam as costas, quando as filhas já crescidas se despiam.
                 Todas as imposições da vida, as sua intimidades, os seus odores, as suas emergências, se desenrolavam entre estas quatro paredes. Aqui se procedia à sementeira de crianças, aqui elas nasciam, aqui a maioria delas falecia, por carência de higiene e de alimentação adequada aos seus corpitos tenros e indefesos. As sobreviventes gatinhavam no soalho encardido, sujas, babadas, entre farrapos avulsos, colchões estendidos no chão, cobertores amarfanhados sobre eles; e nos seus arrastares iam tombando as panelas sob a chaminé existente ao fundo ou fazendo tremer a pequena mesa onde a mãe preparava os alimentos para o lume e mais tarde a família os comeria. Algumas conseguiam emergir de toda essa mondongaria até o rebordo da cama dos pais, onde assomavam os seus rostitos inocentes, os seus olhitos duma curiosidade embrionária, como se nos mirassem do peitoril duma janela que lhes faltava. (CASTRO, 1974: 21)


Castro, humanista convicto, vê o seu artigo recusado; poucos anos volvidos, em 1934, após numerosos textos e inúmeros cortes, decide, amargurado, abandonar definitivamente o jornalismo em Portugal. Não obstante ter-se dedicado, a partir dessa data e exclusivamente, à tarefa de escritor, continuará a sofrer, até à sua derradeira publicação, as influências da cisalha do aparelho ideológico do Estado Novo. Neste caso particular, embora não se aplicasse a Censura Prévia, também conhecido como o “Lápis Azul”, vigorava uma Censura a posteriori, que funcionava de acordo com a ótica volúvel dos revisores: caso se justificasse, seria feita a apreensão das obras já depois da sua publicação. Atendendo aos prejuizos materiais elevados, aos riscos de perseguição, vigilância, processo criminal ou mesmo cárcere que essa situação poderia implicar, tanto editores e livreiros como os próprios escritores tinham cuidados redrobrados em relação aos livros a imprimir.
Em 1945, Castro é perentório. Numa entrevista assaz acrimoniosa, tece o panorama da literatura no Portugal do seu tempo: “ É ingénuo um governo imaginar que, por decretos ou pela força ou pela censura, consegue impor a sua mentalidade ao povo e aos seus homens de pensamento.”(CASTRO, 1945)[18]
Quarenta anos depois da sua decisão de interromper a atividade jornalística, é publicado a título póstumo, em “Origem de O Intervalo”, um desabafo tardio sobre o cárcere ético que até então o oprimira: “É muito difícil alguém, a menos que tenha alma cínica, falsificar-se a si próprio.” (CASTRO, 1974: 78)

2. “Apre(e)nder” o Mundo
Após o choque de, ainda muito jovem, sentir-se separado da sua família e do seu mundo-berço, Ferreira de Castro teve de, emocionalmente, evoluir. Como criança tímida e introvertida que era, ter-lhe-á sido extremamente difícil superar esses traumas; no entanto, a convivência com o seringal, o seu sofrimento e dos seus companheiros de infortúnio, fizeram-no amadurecer muito rapidamente. A noção das injustiças que viveu e presenciou foram as partículas ígneas que, pouco a pouco, atearam o rastilho que acabou por, definitivamente, ativar a sua conceção idealizada do mundo.
Assim também no-lo diz Ana Cristina Carvalho, quando afirma que

 [o] testemunho direto do sofrimento humano, os momentos de funda incerteza e as angústias suportadas na Amazónia, antecedidos do desenraizamento prematuro do meio familiar e aldeão, contribuíram, pois, para moldar a personalidade, bem como a visão do mundo, do Ferreira de Castro adulto. (CARVALHO, 2017: 61)

2.1. Pobreza e sofrimento

O escritor, nas viagens pelo mundo do seu tempo, valeu-se de uma apurada visão jornalística, aliada a uma elevada capacidade memorialista, sem as quais não teria sido possível escrever A Selva ou Pequenos Mundos e Velhas Civilizações com uma acuidade tão pormenorizada, uma vez que já se tinham passado vários anos após as suas estadias nos locais descritos: A Selva foi publicada 16 anos após a saída do Seringal e Pequenos Mundos constitui uma antologia das diversas viagens que efetuou de 1929 a 1935. A sua sensibilidade emotiva assumiu-se também como fator determinante para a riqueza e prolixidade do conteúdo.
Por ocasião das comemorações do cinquentenário da obra literária de Ferreira de Castro, Alberto Figueira Gomes[19] afirma que “(é) no estudo do homem e do seu drama que Ferreira de Castro põe o melhor do seu génio de pintor de almas, de situações e de lutas.” (GOMES, 1967: 37) Efetivamente, logo a partir da sua primeira obra reeditável[20] — Emigrantes, nota-se no escritor uma necessidade de “ser o Mundo”, de libertar-se da individualidade para melhor o compreender, e à Humanidade que dele é parte integrante.
Ferreira de Castro, como propõe Alves (2003: 16), tenta interiorizar o Orbe e pensar-se enquanto seu constituinte indissociável. De cada vez que deparamos, nas suas obras, com as injustiças humanas, notamos no escritor como que remorso e mortificação por não poder remediar ou anular as deformidades sociais que as provocaram: “Não é fácil debruçarmo-nos sobre a História sem lamentarmos a Humanidade e sem sentirmos horror pelo que fizeram os poderosos de todos os tempos.” (CASTRO, 1949c: 210) Esses sentimentos acompanharam-no desde a infância, pois o autor já os refere numa carta endereçada a Winifred L. Chappell[21], em 1953: “(…) entre os 14 e os 16 anos, tive ocasião de ler várias obras de sociologia, que constituíram, para mim, uma explicação dum mundo que eu sofria, mas não sabia julgar”. (CASTRO, 1953: 195)
Bigotte Chorão afirma que, para Ferreira de Castro,

(...) a literatura não era tanto uma expressão religiosa ou estética como um relato de vida vivida e sofrida. Daí que, em alguns dos seus melhores momentos — como na clássica A Selva —, haja um predomínio da reportagem, isto é, da captação directa de uma realidade conhecida na própria carne.” (CHORÃO, 1967: 148)

Ferreira de Castro revê-se em cada ser humano padecente de injustiças pois, como diz Chorão, também ele sentiu na carne e no espírito o peso de uma dura realidade. Jovem que era, as marcas psicológicas foram profundas e refletiram-se nas suas obras e na sua existência sob a forma de uma rebelião surda, de uma identificação com o Outro que sofre e de um sentimento involuntário de culpa eivado de esperança num melhor porvir.
Por estas razões, o autor de A Volta ao Mundo sentia-se particularmente afetado pela extrema pobreza e desigualdade de algumas regiões, nomeadamente a Índia e outros países asiáticos, muitos deles devendo essa situação de subdesenvolvimento e miséria à cupidez insensível da civilizada Europa:

Não se pode olhar para o ser humano na Índia sem se ter a sensação de que ele é infinitamente desgraçado, mesmo quando, individualmente, não o é. Pelo seu atraso, pelos seus habitantes e pelo próprio abandono a que o votaram, ele oferece, a cada passo, imagens imprevistas, algumas das quais constituem regalo dos frívolos viajantes que buscam no Oriente apenas o pitoresco. (CASTRO, 1950a: 24-25)

O escritor não deixa de responsabilizar, direta ou indiretamente, o mundo ocidental pelo segregacionismo e exploração patentes nos países que, à época, e na esmagadora maioria dos casos, se encontravam sob o domínio das grandes potências europeias, não excluindo, evidentemente, a crescente influência dos Estados Unidos da América. As suas críticas incidem, não apenas na sujeição física desses povos, mas também sobre as visões preconcebidas e aviltantes que sobre eles os referidos impérios fazem recair:

Tem-se clamado muito sobre a imundície na China e os que o fazem parece esquecerem que na Europa há muita imundície igual. Tudo quanto vimos nestas pobres aldeias não é pior do muito que temos visto na maioria dos países latinos, incluindo o nosso, em todas as terras árabes e outros centros de gordo turismo. (CASTRO, 1950b: 101)

Ressalve-se que o humanista não se insurge contra o turismo como atividade lúdica e cultural, que ele próprio praticou, e que constitui, no fundo, não apenas uma mais-valia económica como, simultaneamente, uma relevante janela aberta do Mundo e para o Mundo; opõe-se – isso sim – a quaisquer atitudes amorais, gananciosas ou sectárias sobre povos ou grupos sociais, que possam resultar desse mester.
Ao mesmo tempo, Castro, universalista irredutível, idealiza um Planeta uno, onde cada ocorrência, benéfica ou prejudicial, não pode ser entendida como um caso particular de uma determinada região ou país; apenas mudam as circunstâncias, não devendo existir, portanto, juízos de valor unilaterais. É este conjunto de valores que constitui - mas não apenas - a sua ética, que desenvolveremos mais à frente.

2.2. Revolta

Sou profundamente revoltado. Espiritualmente insubmisso. (CASTRO apud CARVALHO, 2017: 63)

Os Fragmentos é, na nossa opinião, e enquanto escrito na primeira pessoa, ou seja, até à página 83 da edição consultada, e a partir da qual tem início o romance O Intervalo, um livro de confidências, uma espécie de pequeno diário íntimo de um escritor que, desilusão após desilusão, quase já acredita que a sua utopia não passará de um mito. E assim, deixa para os vindouros o seu testemunho, pois que eles, um dia, num futuro longínquo, talvez possam ver cumprido o sonho que ele sonhou. Esta obra contém o seu manifesto de revolta, de inconformidade e desencanto, mas também de esperança, não é uma declaração de desistência. Nela, diz o autor o que não pôde ser dito… até um dia de abril de 1974:

Estes fragmentos são filhos das insatisfações estéticas, tantas vezes torturantes e secretas, que sentem os escritores do Mundo inteiro e também das cancelas cerradas perante a liberdade de pensamento que dificultam, há já muitos anos, os passos espontâneos dos escritores portugueses.” (CASTRO, 1974: 13).

Seguindo a mesma intenção investigativa, Ana Cristina Carvalho[22] reforça-nos a ideia de que o escritor aguardava expetante a ratificação do início dos tempos futuros que profetizara, onde a liberdade de expressão, a justiça e, simultaneamente, a fraternidade universal, deixariam de ser ilusórias:

Os textos reunidos em “Os Fragmentos”, vários deles os últimos escritos por Ferreira de Castro, são passíveis de formar a etapa de “Declínio” declínio no sentido não de decadência mas de perda natural de vitalidade. Enquanto alguns textos são recuperações importantes, caso de O Intervalo, que durante quarenta anos aguardou na gaveta a abolição da censura, outros servem-lhes de enquadramento, e o conjunto, preparado pelo autor para se publicar quando esse momento chegasse, mas editado postumamente, resulta numa espécie de balanço de seis décadas de atividade literária. (CARVALHO, 2017: 127-128)

Ferreira de Castro pôde ainda celebrar o fim da ditadura do Estado Novo, em 25 de abril de 1974. Contudo não chegou a presenciar a publicação do seu último livro, pois morreu 2 meses depois, a 29 de junho. Desta obra citamos um exemplo das suas exteriorizações sarcásticas que, não sendo explicitamente violentas, demonstram uma enorme incisividade e que, durante muitos anos, dormiram numa gaveta à espera da libertação:

E como Portugal era, nessa época (anos 30), uma pátria oficialmente ditosa, que se afirmava ser invejada por todas as outras e por alguém velada dia e noite, à luz eficaz dum candeeiro medievo, para felicidade de todos os filhos, não se justificava alusão alguma aos bairros de folha de Flandres enferrujada e tábuas apodrecidas, tão-pouco às crianças esfarrapadas e de pés nus, que enxameavam nas províncias nortenhas, ou mesmo a outros incontáveis aspectos de miséria dum povo ingrato que desfrutava de muita sorte; tudo isso constituía a nossa originalidade turística, no fundo riqueza da nação. [23] (CASTRO, 1974: 55)

2.3. Compreensão da Humanidade

O escritor invoca os seus pares para que, respeitando uma ética ambiental — da qual terá sido um dos pioneiros no nosso país — se unam em concordância com os valores de igualdade que defende.
Ciente das diferenças entre os povos, exorta-os a dissipá-las, na demanda de um entendimento mútuo que proporcione o tão almejado cosmopolitismo, com pleno respeito pela Natureza, em todas as suas formas:

(…) o universal é a fusão e a compreensão solidária de todas as aldeias, vilas e cidades, planícies e montanhas do Mundo, se há alma para a todas abarcar e se na alma existe sítio propício aos mastros e às velas que nos levem a unir-nos, pelo amor fraternal, a todos os seres humanos, nas suas diversas pátrias.(CASTRO,[24] 1974: 54)

Ferreira de Castro é um universalista em cujo âmago se repercute o pulsar de toda a humanidade, e afirma-o com uma convicção inabalável que constitui, aliás, o corolário de toda a sua existência:

(…) por cima da condição de europeu, de latino e de português, sinto na minha alma uma grande identidade com a alma de todos os outros povos. Creio, aliás, que isso acontece com quase todos os homens, mesmo sem eles darem por isso, mesmo sem eles o saberem... (CASTRO, 1953:197)

No segundo volume d’A Volta ao Mundo essa identidade de alma, esse espelhamento de sentimentos, está bem presente no seguinte fragmento:

A maioria dos costumes hindus apresenta-se melancolicamente absurda ao primeiro contacto; mas quando, descendo às raízes, se chega à compreensão, a melancolia torna-se muito maior. Na Índia, compreender é mais triste ainda do que julgar pelas exterioridades. (CASTRO, 1950a: 33)

Em toda a extensa descrição da Índia n’A Volta ao Mundo, deparamos constantemente com essa preocupação humanitária, acompanhada por uma sofrida amargura, que provém da sua impotência por pouco ou nada poder fazer para atenuar tamanha miséria: “Antes de virmos à Índia, amávamos o povo hindu pelo que havíamos lido e ouvido sobre o seu sofrimento; agora, que o vimos face a face, amamo-lo muito mais, porque ele é muito mais desditoso do que tínhamos imaginado.” (idem: 149)
O mundo que Ferreira de Castro vê, é, aos seus olhos, imperfeito e injusto. Ele tem plena consciência de que não será durante o período da sua existência terrena que se atingirão os objetivos de justiça social e equidade que defende. Considera a sua postura e a sua missão como escritor um ato impulsionador desses ideais, na direção de um futuro que ambiciona para a humanidade.
Numa impossibilidade de, isolado, fazer desaparecer, omnipotentemente, os males do Mundo, também exclui a hipótese de emular um deus ex machina, que os dissipasse parcialmente, ignorando o todo, numa solução imperfeita e enganosa; Para Castro, a solução passa pela consciencialização e libertação de toda a humanidade, num processo que sabe lento, mas que crê possível; é essa a sua utopia, é esse o seu sonho: “Eu tenho tanta pena do homem que me aflige a certeza de que já não vivo quando a vida for apenas amor, amor que a compreensão nos dá.” (CASTRO apud MOREIRA, 1967: 104)

2.4 Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu.
Numa revisitação literária à selva amazónica brasileira, Ferreira de Castro, no romance intitulado O Instinto Supremo, e baseado em factos históricos sobre a vida do Marechal Rondon[25], a quem admirava, reproduz os esforços deste militar brasileiro para proteger e civilizar os indígenas. Por ocasião das comemorações do cinquentenário da vida literária do escritor, Peregrino Júnior[26] escreveu:

[Instinto Supremo é] um romance cuja figura principal é Rondon, o desbravador, o homem de quem Ferreira de Castro aprendeu, em uma frase, toda uma filosofia. Esta frase é a seguinte: “Morrer se preciso, matar nunca”. Toda a obra de Ferreira de Castro está impregnada desta filosofia, que deseja para os seus semelhantes trabalho, liberdade, fortuna e, finalmente, uma vida digna e melhor. (PEREGRINO JÚNIOR, 1967: 23)

Do mesmo modo, a caraterização feita por Ricardo Alves foca a vertente humanitária e de proteção dos que, pelas mais variadas circunstâncias, se encontram em desvantagem perante os seus pares no Mundo. É para isso que aponta Óscar Lopes quando afirma que a obra Emigrantes inicia uma nova fase do realismo social em Portugal e releva, em A Lã e a Neve, algumas das situações mais emocionantes dessa mesma fase literária. “Em Ferreira de Castro viu este ensaísta [Óscar Lopes], ‘desde sempre, em literatura, um advogado’ das camadas que neste século foram conquistando a sua emancipação: as mulheres, os assalariados e os povos.” (ALVES, 2002: 79)
Observa ainda o investigador que

[r]aramente (…) Castro foi explícito quanto às fontes matriciais do seu pensamento político. Assumia-se como autodidacta e produto das suas múltiplas leituras. A obra, todavia, espelha e veicula eloquentemente as ideias libertárias que perfilhou durante a vida inteira: afirmação de liberdade individual, postura refractária à autoridade, internacionalismo, antimilitarismo, tolerância que excluía conciliação em face de valores essenciais, feminismo e, inclusive, o respeito e comunhão com a natureza, atitude que hoje designaríamos genericamente como ecologista. (ALVES, 2002: 118)

Alves refere também que “Castro foi um contemplativo da Natureza, em especial da natureza vegetal; e esta ocupa também um lugar de primeira importância na sua obra (...).” (ALVES, 2014: 4).
Assim, para além da atenção votada, Alves não é o único a aperceber-se desta consonância com a natureza em toda a sua plenitude. Também Bernard Emery refere em Castro “o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais” (EMERY, 2016: 229), tal como Ana Cristina Carvalho que, no estudo que temos vindo a citar, refere a grande afinidade que Castro teve com a Natureza, em todas as suas manifestações vitais e no respeito pelas caraterísticas físicas da mesma, sejam elas orológicas, oceânicas, fluviais ou meteorológicas.
É, no entanto, à árvore, à floresta, que Ferreira de Castro rende preito e homenagem. Desde a selva amazónica, passando pelos lugares que visitou, recordando o seu torrão natal ou deliciando-se com a Serra de Sintra, as árvores estão sempre presentes nos seus livros.
Trata-se, no caso da Amazónia, de uma relação de amor-ódio, com componentes que, por vezes, ora se confundem, se misturam ou individualizam: a floresta onde os índios se acoitam, a lembrança do trabalho rude e desgastante, a solidão de um lugar estranho e longínquo e a sensação de uma grandiosidade verde e opressiva, são fortes contributos para guardar no mais recôndito da sua memória essa fase da sua vida. O autor, perante a imensidão da selva e a estreita relação que esta tem com a fração terminal da sua infância e início de adolescência, num misto de sofrimento, medo e deslumbre, mas também de aprendizagem, confessa que evitou por muitos anos escrever qualquer obra que abordasse a sua lembrança, mesmo que num registo ficcional. Castro, referindo-se à sua vinda para Belém do Pará, fugido da sua experiência deprimente, e perante a recusa do seu “protetor” em acolhê-lo, relata:

Foi esse momento, tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio. E quando o terrível pesadelo me faz acordar, cheio de aflição, tenho de acender a luz e olhar o quarto até me convencer de que sonho apenas – eu que, nos derradeiros tempos, tanto desejo retornar à selva, para a ver um último dia e dela me despedir para sempre.
Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente.[27] (CASTRO, 1970: 20)


Bernard Emery recorda uma entrevista concedida por Ferreira de Castro em 1939, onde este explica a razão pela qual a selva lhe impunha tão respeitoso temor:

Todas as florestas têm o seu segredo e mesmo os pequenos bosques têm a sua luz. (...) mas nenhuma guarda um segredo tão perturbante como a floresta da Amazónia. Um mundo nos seus primórdios, onde cada silêncio é uma ameaça, cada árvore um inimigo, onde o estremecimento das plantas apodrecidas e espalhadas pelo chão, um fruto que cai, provocam mais receio do que se uma bomba explodisse na rua. (CASTRO apud EMERY, 2016: 128)

No entanto, nessa entrevista, Ferreira de Castro não expõe totalmente os seus medos e a razão dos seus pesadelos. Criança ainda, chegado a um mundo novo e inóspito, repleto de perigos insuspeitados e entregue às descrições cruas e, por vezes exageradas de quem, já experiente, atemorizava os novos candidatos a seringueiros, os “brabos”, com histórias supostamente reais e assustadoras, não seria de admirar que tivesse ficado psicologicamente traumatizado.
No “Pórtico” de O Instinto Supremo, o autor confessa a mais impactante razão do medo que o acompanhou intensamente durante quase três lustros e que provavelmente deixou algumas sequelas, mesmo depois do exorcismo da escrita:

Eram o meu terror esses índios. Quase criança ainda, arribada dum meio diferente, quando caminhava pelos varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearenses e maranhenses, dispersas na brenha, muito, muito longe umas das outras, esperava sempre ver os Parintintins surgirem por detrás das árvores, as flechas já nos arcos retesados, a abaterem-me num momento e cortarem-me a cabeça e sumirem-se de novo, deixando regressar o pesado silêncio da mata, que só por si me atemorizava intensamente. (CASTRO, 1968: 14-15)

No conto Young Goodman Brown, Hawthorne[28] apresenta-nos, plena de simbolismos, uma descrição assaz negativa da floresta:

The whole forest was peopled with frightful sounds; the creaking of the trees, the howling of wild beasts, and the yell of Indians; while, sometimes the wind tolled like a distant church-bell, and sometimes gave a broad roar around the traveller, as if all Nature were laughing him to scorn. (HAWTHORNE: 6)

Não fosse esta ilustração um produto da visão puritana do autor americano, onde a Natureza era encarada como algo maléfico de que o homem teria de se libertar e afastar — portanto, uma narração que obedece a um intuito religioso e moralista —, poderíamos supor que teria sido escrita por Ferreira de Castro.
Essa fobia paralisante que impedia o escritor de se referir ao seu “degredo” de quase quatro anos numa idade em que quaisquer circunstâncias adversas marcam mais profundamente, deixando vestígios por vezes indeléveis, tinha de ser sublimada. Como afirma Jaime Brasil, a primeira etapa da libertação passará pela redação de A Selva — uma libertação pelo Verbo: “A selva possuíra-o, enfeitiçara-o. Os pavores e angústias do adolescente habitavam o homem como demónios atormentadores. Só o Verbo, que é luz e vida, os poderia afugentar. Esse Verbo só encarnou quinze anos depois.” (BRASIL apud EMERY, 2016: 130)
Como jornalista de O Século, o autor foi destacado para a cidade de Paris durante dois meses, o que o forçou a interromper a obra libertadora; foi uma experiência bem-vinda, “sem desgosto algum, antes com um prazer todo febril e exultante [.]” (CASTRO, 1970: 21), pois visitar a França, “(...) o velho país literário que se incrusta no nosso espírito desde os anos infantis e parece não ser um trecho do Mundo, mas o próprio Mundo concentrado num sonho para quem vive longe e nunca o viu” (idem: 22), era a suprema aspiração de qualquer escritor ou artista. Esse interregno foi benéfico para Castro, que relembra:

A vantagem de me libertar, por algum tempo, da atmosfera do livro, do passado que ressuscitava e se tornava presente com uma vitalidade angustiosa, pois se é verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto, que algumas noites suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu próprio criara. (CASTRO, 1970: 22)

Aparte este “amor” ambíguo por uma Amazónia que, simultaneamente, o repele e o atrai, Ferreira de Castro envolve o Mundo inteiro num amplexo indiscriminado. No entanto, será ao seu semelhante que, por razões humanitárias, por saber que ele é um dos seres mais desprotegidos, mais explorados da Criação, dará uma atenção mais pronunciada.
O “escritor-povo” (FREITAS[29], 1967: 186) tem para com a humanidade uma atitude de compreensão pelos erros que esta comete, na assunção de que essas faltas resultam maioritariamente das pressões a que está sujeita. Tal não implica, porém, que perdoe as ofensas dolosas, praticadas por quem quer que seja, contra quem quer que seja. Os pobres, os excluídos, os explorados, têm nele um defensor incondicional:

[Ferreira de Castro possui] a piedade pelo semelhante, a compreensão das suas deficiências, a atribuição de uma culpabilidade relativa quanto aos erros que pratica, num clima que frequentes vezes lhe desobedece e não hesita em esmagá-lo na primeira encruzilhada. Percebemos nele um debruçar caritativo, fraternal, sobre as suas mazelas, a compaixão que sente por essas turbas desgarradas, tragicamente imóveis, que esperam apesar de tudo um milagre salvador. A sujeição apassivou-as e arrebatou-lhes a consciência do que representam neste minúsculo planeta, assoberbado por gigantescas paixões desnaturadas. (MOREIRA, 1967: 103)

Notamos no autor um aumento de perceção e atitude benevolente perante as falhas da humanidade a partir do início do seu relacionamento com Diana de Liz[30], em 1927, e até à morte desta, em 1930, — sentimento que se prolongou pelo resto da sua existência, como homem e como escritor. António dos Santos Pereira[31] afirma que qualquer referência à autora não deverá ser feita com ligeireza, “pois percebemos quanta humanidade de forma única ela aportou a Ferreira de Castro, intensificando a sensibilidade deste aos grandes problemas da vida.” (PEREIRA, 2016: 106)
A nossa interpretação é reforçada pelos prólogos de Ferreira de Castro às obras póstumas da escritora e reproduzidos por Manuel Ferro[32] no seu artigo de investigação. No prólogo de Pedras Falsas lemos que,

(…) partilhando da mesma ansiedade, [d]a mesma chama inquieta e infinita de Florbela Espanca, Diana de Lis enlanguescia em ternura e em compreensão. Era mais humana. As suas páginas, de onde brota uma suavíssima ironia, uma crítica amena aos preconceitos que lutam com irrefragáveis impulsos, estão cheias de piedade, de absolvição. Pautavam-lhe essa atitude compreensiva, o seu coração, onde residiam todas as generosidades, a sua sensibilidade delicadíssima e a sua grande cultura. (Castro apud FERRO, 2009, 389-390)

No prólogo seguinte, em Memórias duma Mulher da Época, Ferreira de Castro refere que os últimos trabalhos desta autora “são páginas onde a compreensão e a justificação da existência como ela é e não como nós gostaríamos que ela fosse, se envolvem em fraternal melancolia para com os nossos semelhantes.” (ibidem)
Não podemos, na verdade, ignorar as alterações que foram surgindo na produção literária do escritor após o seu casamento com Mimi Haas. O que era antes uma prosa cheia de humanidade e compaixão por todos os povos e em todos os personagens das suas obras, para os quais – bons ou maus – não existiam admoestações ou observações condenatórias explícitas, começou a, lentamente, transformar-se em reflexões analíticas sobre a personalidade dos seus intervenientes: Ferreira de Castro – defensor dos bons, dos justos e dos explorados, adquire outra parceria; surge Ferreira de Castro – advogado do diabo, remissor dos maus. Evidentemente, não falamos apenas da análise que o autor faz das suas criações, que adquirem, no computo geral, um cariz marcadamente autobiográfico, como extensões de si próprio, da sua vivência, da sua personalidade e, em consequência, do seu espírito humanista; o escritor debruça-se também sobre a maldade subjacente à espécie humana na generalidade, tentando compreender a sua existência, as suas manifestações e a sua génese.
Em Diana de Liz encontrou Castro uma alma gémea, cheia de perdão e compaixão pela humanidade. Esse entendimento mútuo terá expandido o já existente pensamento filantrópico do escritor, surgindo, em plenitude, no seu mundo literário e pessoal. Bernard Emery é taxativo ao referir que foi esta escritora, “sua companheira desde 1927, que teve uma influência muito positiva na evolução do estilo do autor.” (EMERY, 2016: 95)
Amplia-se em Ferreira de Castro uma compreensão dos dois opostos que não se inscreve num registo aristotélico, ou seja, em função do Bem e do Mal, e muito menos contemplando os seres humanos sob uma perspetiva plotínica, onde a Beleza abarca apenas o Belo. A estética de Ferreira de Castro suplanta essa separação entre o Bem e o Mal, entre o Belo e o Feio.
Segundo Alves, há, no espólio do autor, um sem-número de pedidos de ajuda por parte de viúvas e familiares de escritores e jornalistas, que se viram em dificuldades por força do desaparecimento dos seus entes queridos e que viam em Ferreira de Castro uma alma caridosa, pronta a auxiliar os seus semelhantes em momentos críticos das suas vidas. O crítico refere que Bernard Emery, ao inscrever essa solidariedade num franciscanismo que se revela na obra castriana, considera Castro como um “escritor ateu, mas impregnado de cristianismo.” (ALVES, 2002: 157)
Do mesmo modo, Aguiar-Branco retrata esta faceta humanitária do escritor: “O dinheiro que ganhava com [os prémios literários que recebia], segundo relatam as biografias, usava-o para fomentar obras de cultura ou de socorro a necessitados, na sua maior parte do jornalismo e do teatro.” (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)
Emery explica como Castro, sendo ateu, age em sintonia com uma perspetiva tão consentânea ou, pelo menos, similar à moral cristã:

[…] o escritor de Ossela nunca vê a imagem do Cristo no próximo por quem ele se compadece e se solidariza. Pelo contrário, não podemos negar que nele existe uma atitude franciscana na sua preocupação constante de diálogo, de compreensão e de compaixão. Se reduzirmos o espírito franciscano ao seu componente mais conhecido, e sem dúvida também o mais original, a saber, o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais, podemos efectivamente encontrar pontos comuns entre o escritor ateu e o santo cristão. (EMERY, 2016: 228-229)

O investigador aponta para uma transmutação da fraternidade, sempre presente em Castro, para algo mais intenso, mais íntimo; o escritor revê-se em todos os seres humanos e, ao fazê-lo, encarna a Humanidade, apieda-se e compreende-a, nos seus defeitos e nas suas virtudes:

(…) Também é verdade que a noção de fraternidade tem sempre em Ferreira de Castro uma forte intensidade sentimental, é assim que se explica a evolução que se deu nele da fraternidade para o amor pelo homem. Na génese deste amor, tal como a encontramos em Emigrantes, em A Selva, e depois em Eternidade, em que ela parece definitivamente realizada, há, além da compaixão, um sentimento de culpa face àquele que sofre, àquele que esquecemos, e ao ser que, pela sua insignificância, foi abandonado a uma espécie de inexistência. (idem: 229)

Reafirmamos, face ao exposto por Bernard Emery, o papel de Diana de Liz no desenvolvimento e maturação dos parâmetros definitivos que regem a elaboração das obras posteriores de Ferreira de Castro, que o crítico admite estarem definitivamente realizados em Eternidade.
É o próprio escritor, citado por Dias de Melo[33], que nos explica o juízo estético que rege toda a sua obra e, inseparavelmente, toda a sua vida:

Para mim parece-me que a maior aquisição foi compreender e amar o meu semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus erros e nos seus acertos, e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas realizações e nos seus heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, os limites inumeráveis, as aspirações sempre adiadas, impõem a tantos deles com implacável frequência. Compreender os problemas que afligem a maioria dos homens, que os afligem há milhares de anos, enquanto esperam pela justiça que tem demorado tanto. Compreender e fraternizar com os homens, sejam do Barroso ou da Serra da Estrela, da cidade em que vivo ou da aldeia em que nasci, de todas as cidades e de todas as aldeias de todos os países da Terra, por cima de todas as fronteiras e de todas as pátrias. Este acto de compreensão e de solidariedade, que emana não só do muito que sofri, mas também das observações feitas ao longo da minha existência, tantas vezes movimentada como a dos nómadas, sobre a Humanidade de várias latitudes: foi, sem nenhuma dúvida, a melhor aquisição que fiz. (CASTRO apud MELO, 1966: 94-95)

Ana Cristina Carvalho resume em poucas linhas o principal objetivo ético pelo qual Ferreira de Castro lutou, na firme convicção da vitória dos seus pares: “Um dos mais relevantes emblemas castrianos é a irredutível esperança na capacidade da Humanidade para sanar as suas imperfeições, gerar a própria redenção e construir um futuro brilhante. Bernard Emery chamou-lhe a ‘filosofia de esperança’.” (CARVALHO, 2017: 67)

Castro e a verdade: ficção e censura
A construção ficcional é explorada pelo autor como processo de enriquecimento dos seus textos de viagens, dando-lhes, não apenas a consistência narrativa necessária para descrever a sua experiência erradia, como também a utilizando como veículo para expor a sua visão inconformada dos erros e injustiças do mundo.
É evidente que também os seus romances, à semelhança de quaisquer outros de díspares autores, carecem da ficção para que a narrativa exista como tal e, identicamente ao acima exposto, possam conferir aos textos toda a carga dramática de que estes necessitam para transmitir as críticas e valores defendidos por Castro.

3.1. A questão da ficcionalidade

O investigador Ricardo António Alves apresenta uma definição da ética e dos objetivos do labor literário do escritor e que se projetam na globalidade da sua produção escrita:

[A obra de Ferreira de Castro encerra]:
1) uma tentativa de compreender o mundo, pensar os seus problemas e de o questionar.
2) a consciência de que o Homem é um ser complexo e contraditório.
3) inconformismo perante uma organização social injusta que está na origem duma maioria de deserdados que, então como agora, vivem nas margens do sistema. Para Ferreira de Castro, no entanto, os homens não são — não podem ser — uma massa que se conduza como um rebanho, mas indivíduos com realidades específicas e detentores duma dignidade que lhes advém da sua condição humana — que nunca poderá estar desligada da liberdade (...) (ALVES, 2003: 16-17).


O processo de criação dos textos de viagens de Ferreira de Castro obedece a um encadeamento de géneros e subgéneros literários como, por exemplo, romance, crónica e narrativa de viagem que, associados à investigação jornalística, longe de tornarem as obras confusas pela miscigenação genológica ou massudas pela profícua informação acrescentada, clarificam e tornam a leitura gratificante.
Ao lermos Ferreira de Castro nas suas descrições de viagens pelo mundo da época, deparamos com uma informação cuidada, fruto de autodidatismo e apurada visão jornalística, cultivados com denodo. Quando descreve um lugar, o autor provê-se de minuciosos dados históricos, a que acrescenta profícuas informações etnográficas e, se necessário, esclarecimentos sociológicos e acuradas descrições relativas à mitologia ou lendas a ele associados.
Alves ressalva a intenção estética do autor que, afirma, não tem mais pretensões de didatismo que não sejam apenas aquelas que sugerem um caminho evolutivo que conduza ao desenvolvimento racional da humanidade, em direção a um porvir por si idealizado:
Mas Ferreira de Castro era um romancista, não pretendia ser um historiador. A sua intenção era a de escrever uma nova “epopeia”: a das “classes populares em busca duma redenção colectiva. Uma epopeia que não teve ainda o seu épico” [34].
Há, no entanto, em Ferreira de Castro, um gosto da História, um perscrutar do passado que tem de ser visto à luz da sua matriz ideológica. Não se trata de amenizar a leitura, distrair o leitor, transportando-o para séculos recuados, mas perspectivar a evolução da humanidade no sentido do progresso, por contraste com políticas e mentalidades ancestrais, forçosamente superadas, “num trabalho lento de pua furando granito”[35] — para utilizar uma imagem de Terra Fria.[36] (ALVES, 2002: 37-38)
O cunho, por vezes fortemente autobiográfico, percetível na sua produção
literária, sobrepõe-se à ficcionalidade romanesca que o autor utiliza como forma de realçar as situações e vivências que expõe.
Em The Routledge Companion to Travel Writing afirma-se que “[t]here is no way to easily demarcate where fiction ends and anthropology begins” (THOMPSON, 2020: 58). No entanto, é impossível escrever um livro de viagens que não contenha, mesmo que infimamente, traços de ficcionalidade; qualquer descrição que não contemple essa premissa será um mero texto injuntivo, um insípido manual de instruções, que não passará dos pormenores técnicos, sem a mínima ação estetizante.
Embora possam, eventual e legitimamente recair suspeitas de a-historicidade e fantasia no que concerne a ficcionalidade das criações literárias do autor de A Selva, recorremos novamente a Thompson para, se não o ilibar, pelo menos legitimar as opções escolhidas por Ferreira de Castro: “Fiction, it is argued, can play a role in combating one of travel writing’s most ethically troubling characteristics: its persistent failure to promote an egalitarian sense of solidarity with travelees.” (THOMPSON, 2020: 59)
De facto, o uso da ficção permite relatar as experiências viáticas, não como algo por vezes arredio ou aberrante — o que criaria no leitor uma sensação de diferença, estranhamento, ou mesmo repulsa — mas, e mantendo a acuidade expetável, atenuar quaisquer choques civilizacionais ou éticos que as narrações efetuadas possam provocar, criando assim uma sensação de familiaridade ou naturalidade.
O autor demonstra compreensão e empatia para com os povos e as civilizações retratadas; nos seus relatos de viagens não encontramos vestígios de racismo, misoginia, exclusão ou sentimentos de superioridade, salvaguardando, é certo, a sua crença de que só através da instrução e da cultura (ocidentalizada, subentenda-se) será possível estabelecer um patamar de igualdade civilizacional, num total respeito pelos usos e costumes, desde que não colidam com a liberdade dos povos visados ou coibam o seu desenvolvimento.
Em sintonia com o exposto por Thompson, a ficcionalidade de Ferreira de Castro apresenta ao leitor todo um conjunto de novas e, por vezes, perturbadoras noções de povos e civilizações, desmitificando-os da sua aura de incultura e desmistificando conceitos a estes ancestralmente ligados:

For some readers, elements of outright fiction may always seem inappropriate and morally problematic in an ostensibly non-fictional form such as travel writing. However, advocates of fictionalization would suggest that creative-critical forms of travel writing are better able to emphasize writer’s positionality, to relinquish the genre’s customary degree of narrative authority, and encourage more sympathy for the peoples and places being described. (THOMPSON, 2020: 60)

De igual modo, e referindo-nos a outras obras de Ferreira de Castro que, embora já fora do âmbito da literatura de viagens, contêm sempre algo experienciado direta ou indiretamente pelo autor, como A Selva, Emigrantes, Eternidade, A Lã e a Neve ou Terra Fria, assim como aquele que podemos considerar um romance histórico, intitulado O Instinto Supremo, o uso da ficção surge como processo de autentificação do narrado. No ‘Pórtico’ deste último, o escritor justifica o seu uso:

Fiel à realidade literária, que pelo seu poder condensador e harmonizante é, como de há muito se sabe, mais convincente, tantas vezes mais verosímil do que a da vida, em numerosos passos desta obra rompi deliberadamente com a história, em prol da ficção criadora e livre, para que os seus heróis não parecessem mitos, as suas acções não segregassem a incredulidade que brota das fábulas, as suas virtudes emergissem da própria condição humana, como em todas as épocas foi verdade, antes dos factos se decomporem e tornarem lendários. (CASTRO, 1968: 17-18)

A credibilização das narrativas castrianas passa, como o autor indica, pela ficcionalização das suas histórias, dos seus romances; deste modo, as mensagens que os textos veiculam são transmitidas pelas personagens de um modo mais natural, pois o uso do quotidiano, quer nos quadros apresentados, quer na própria linguagem despretensiosa, criam uma relação de empatia com o leitor, que afasta qualquer suspeita de descrições fantasiosas ou inexatas, sob o efeito do processo de verosimilhança aqui construído.
Tzvetan Todorov, citando Oscar Wilde[37], corrobora esta ligação entre ficção e realidade através da literatura:

A vida em si é “terrivelmente desprovida de forma”. Dessa ausência resulta o papel da arte. “A função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo”. Ora, criar um mundo verdadeiro implica que a arte não rompe a sua relação com o mundo. (TODOROV, 2007: 66)

Em consequência, toda a obra do escritor reflete um esforço de legitimação dos seus ideais, mesmo que para isso seja necessário recorrer a uma trama ficcional que reforce e enriqueça literariamente a mensagem que pretende transmitir.

Postura de um novel humanista
Embora possamos assumir que Ferreira de Castro foi, como soía dizer-se, um homem da sua época, ou seja, viveu sob uma ineludível influência dos conceitos sociais e morais então vigentes, o escritor empenhou-se sempre em, à luz da sua filosofia humanista, recusar tudo e todos os que, de alguma forma, revelassem diferença ou discriminação para com os seus semelhantes. O investigador Ricardo Alves afirma:

Não há, conscientemente, uma atitude etnocêntrica por parte do escritor n’A Volta ao Mundo. Mas, enquanto produto da sua própria cultura, constata-se como ele radica nas ideias progressistas ocidentais — com toda a carga positiva e equívoca que esta palavra encerra — a mudança das mentalidades das novas gerações desses territórios para com a tradição, “numa luta contra o passado”, combate de que ele quis ser um dos paladinos e que aplaudia onde quer que ele se manifestasse. (ALVES, 2002: 48)

Esse empenho na recusa de um etnocentrismo que lhe é, por inscrição cultural, inerente, encontra-se visível na sua atitude de autocrítica e no aviso que faz aos seus leitores, aquando da sua descrição da Índia e da sua civilização:

Os tipos, a cor do pigmento e as raças variam de grupo para grupo; tudo isto parece fantasia teatral, coisa imaginada. No primeiro contacto visual, o forasteiro tem de fazer um esforço para aceitar que toda esta humanidade é igual àquela a que ele pertence. (CASTRO,1950a: 19- 20)

Por outras palavras, o escritor alerta o leitor — e referindo-se a alguns países ou regiões e povos que visitou e que, à época, seriam considerados, por variegados fatores, civilizacionalmente atrasados — para a possibilidade de algumas conceções ocidentais preconceituosas e a-históricas se poderem sobrepor a uma renovada visão humanista do Mundo.
De facto, não há como não atentar na mirada europeísta do autor e de como ela influencia a sua perceção da humanidade. Existe efetivamente um olhar civilizador ocidental que Ferreira de Castro lança sobre as regiões intra e extraeuropeias que visitou.
Porém, e em abono da verdade e defesa do escritor, não nos podemos esquecer que esse mesmo olhar recai sobre o seu próprio país, vítima, como muitos outros, de um atraso moral, civilizacional e tecnológico assaz importante. Como Ricardo Alves salienta, “(...) pode dizer-se que a produção jornalística de Ferreira de Castro evidencia já uma preocupação por temas sociais, como as condições de vida dos presos, os meios de acolhimento nos albergues nocturnos (…), a vida dos operários na Mina de S. Domingos” (ALVES, 2002: 30).
Face ao exposto, constata-se que o problema pátrio é também por si analisado; porém, devido à existência de uma censura estatal extremamente repressiva, as suas críticas só muito mais tarde ganharão voz, pois, agastado com os cortes deturpantes, parciais e não raras vezes totais dos seus artigos, muitos deles sem razão minimamente plausível, desistirá do jornalismo até que, eventualmente, a liberdade de imprensa venha a ser restabelecida.
Só regressa às questões do próprio país quando a sua projeção internacional como escritor lhe permite tornar-se relativamente tolerado ou imune às investidas dos opositores, dos que se esforçam por coartar a sua liberdade de expressão e, por extensão, a verdade sobre as injustiças e as atrocidades internas pois, como diz o autor, “(…) os inimigos da liberdade só o são quando dispõem dela, quando gosam de todas as liberdades, inclusivé a de eliminar a liberdade dos outros.” (CASTRO, 1946: 1)
O escritor não é um turista, ávido por exibir cosmopolitismo e colecionar países e regiões no seu passaporte; é acima de tudo, um humanista que viaja para tentar conhecer, sinalizar e, eventualmente, compreender um mundo que, muito embora alienígena, sofre e tem os mesmos erros e problemas de que a sua pátria padece, também ela prenhe de miséria, fome e opressão.
Não procura o pitoresco, se essa singularidade passa pela infelicidade de um povo; para ele, o pitoresco é a originalidade da diferença de uma sociedade para com outras culturas e outros seres que se lhe assemelham na condição humana.
No japão, muito embora tenha feito observações pouco abonatórias dessa sociedade, visto ela constituir, na época, um país opressor, pois dominava a vizinha China com mão de ferro e pela força das armas, não deixa, contudo, de louvar as caraterísticas positivas dos nipónicos, retratando-os como uma etnia literária e artisticamente avançada, cuja capacidade tecnológica considerava, em certos aspetos, superior à dos norte-americanos. O seu espírito crítico não deixa, pois, de fazer um reparo em defesa da sua — cada vez maior — crença de que, afinal, humanisticamente falando, não existe plural na definição de “ser humano”:

Nós próprios, durante esta longa viagem, durante esta longa sucessão de povos, de costumes e de países diferentes, temos verificado, uma vez mais, quanto é absurdo julgar os homens pela sua cor ou pelo desenho dos seus olhos. Passamos duma terra para outra, duma raça para outra raça e, ao cabo de alguns dias, já nos parece natural o que a princípio nos surpreendeu e quase nos esquecemos de que os homens com quem estamos a conviver são, na aparência e nos usos, diferentes daqueles com quem convivemos semanas antes, porque, acima dos costumes e da cor da pele, persiste sempre e sobretudo — o Homem. (CASTRO, 1950b: 290)

Cruz Malpique apercebe-se bem dessa convicção de igualdade e pertença que Castro faz sempre transparecer na sua postura como escritor e cidadão do Mundo e que transporta para os seus livros:

Ferreira de Castro e a sua obra literária constituem um todo. Ele está nela, ela está nele. Consubstanciam-se. Osmoseiam-se. Penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la. Ferreira de Castro foi às vivências pessoais, transladou-as umas vezes na primeira pessoa, outras vezes na terceira, para lhes dar aparente impessoalidade mas, no fundo, é ele quem está sempre, na raiz daquilo que escreviveu. (MALPIQUE, 1976: 172)

É, todavia, notória a proeminência com que Castro tece acutilantes comentários sobre as injustiças que vai observando no seu périplo pelo mundo, assim como sobre a tirania e cupidez das classes dominantes, não se inibindo, porém, de atribuir a alguns dos povos dominados, por via da sua passividade ou excessiva resignação ou, como dirá Ferrão Moreira[38], “[p]or conveniências opíparas de uns e entranhadas covardias de outros” (MOREIRA, 1967: 99), o seu quinhão de responsabilidade:

Quando, há perto de quatro séculos e meio Vasco da Gama chegou a esta costa [Índia], o panorama devia ser o mesmo. Mas cobria-se, então, de mistério. Nós sabemos hoje que, nesta massa escura e ondulada onde finda o mar, reina a miséria e vegetam densas multidões semi-famintas e semi-nuas, separadas por ódios de raças e credos, tão grandes que nem a desgraça comum as une [.] (CASTRO, 1950a: 49)

Do mesmo modo, referindo-se ao povo malaio, o escritor critica o conformismo patente naqueles que teriam sobejas razões para se revoltarem contra um statu quo de milénios:
(…) gentes que labutam aqui, pelo magro arroz de cada dia ou que vêm, das minas de estanho, gastar, em Kuala Lumpur, o pouco que amealharam do muito pouco que receberam — e sempre a sorrir, com optimismo, perante a exploração de que são vítimas. (CASTRO, 1950a: 223)
Mesmo concedendo o devido e imprescindível distanciamento temporal e histórico e atentando às profundas e complexas mudanças políticas, geográficas e sociais que o orbe experienciou desde a criação das obras citadas, torna-se-nos difícil não ver espelhado o contemporâneo nas descrições do autor e nos seus comentários. Aparte o maravilhamento do Viator e a tentativa de compreensão e assimilação de mundos e culturas aos quais é estranho, o escritor faz transparecer frequentemente, de modo assaz incisivo e sem pudores, um misto de piedade, amargura e denúncia. Eurico Gama[39] afirma que Castro “escreveu com o coração, por vezes sangrando perante tantas injustiças praticadas no mundo atroz que vivemos[.]” (GAMA, 1976:145) Como ácrata assumido desde muito jovem e, nas palavras deste bibliófilo e editor elvense,
a sua ideologia política palpita em todos os seus livros, mas nunca neles encontramos palavras recalcadas pelo ódio, pecado em que Aquilino com frequência se deixava cair. Ferreira de Castro está sempre acima dessas misérias, sem, contudo trair os seus nobres ideais. (ibidem)
De facto, o autor de Emigrantes, não obstante a sua mordacidade e demonstrações de revolta perante as injustiças que presenciou ou denuncia, fá-lo de um modo expositivo, jornalístico, sem demonstração de excessiva rudeza ou agressividade. Como afirmou Agustina Bessa-Luís, citada por Pedro Calheiros, “[o]s contrastes da sociedade causavam-lhe uma pena indigna. Nunca agressiva. Ele era um homem de boa índole, não sabia insultar nem se encolerizava facilmente.” (CALHEIROS, 2007: 19)
As observações e relatos que produz, longe de meros apêndices de um livro de viagens, acabam por revelar o estímulo subjacente à criação, não apenas da obra A Volta ao Mundo, mas também da sua outra publicação, Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, dedicado à mesma temática. Alves, referindo-se à primeira obra, afirma:

Ao contrário de alguns orientalistas do século XIX (…), Castro não procurou o exotismo para satisfazer a curiosidade fácil dos leitores. Registou o belo e o feio, o sublime e o medonho, exalçando-os, deplorando-os e relativizando-os de acordo com a sua visão do mundo e da vida. (ALVES, 2002: 48-49)

Ferreira de Castro foi um escritor com uma sensibilidade incomum, cujo espírito crítico tanto condenava como indultava, de acordo com as circunstâncias, os povos e culturas que visitou. Nalguns trechos das suas obras nota-se essa dicotomia censura-louvor, numa maneira muito própria de, como diz Alves acima, registar o belo e o feio, o sublime e o medonho. Na sua visita a Jerusalém – cidade sagrada para muçulmanos, judeus e cristãos, observa:

(…) as gentes, cá fora, falam, gesticulam muito, altercam entre si, num rumor infindável; dentro, porém, dos pequenos estabelecimentos há sempre figuras de árabes, esboçadas na obscuridade, que se mantêm em completa quietude, pensativos, abstractos, os olhos com a neblina da distância, o corpo presente e o espírito ausente. A alma muçulmana, feita destes contrastes bruscos, dá ao pitoresco das ruas de Jerusalém alguma coisa que está por cima do pitoresco, do ruído e da ânsia de quitar proveito do estrangeiro; algo de melancólica espiritualidade, de leve sombra que se estende, indolentemente, sobre o sol que dorme nas vetustas pedras. (CASTRO, 1949d: 157)

Mais à frente o autor revela o seu modus operandi, de que forma ele exorta a observar o mundo, ou seja, a interpretá-lo. Não o avalia apenas com o que em aparência se lhe depara, mas sobretudo com a visão interior, com o perscrutar crítico do espírito: “Perante Jerusalém, como perante as paisagens, o importante não é o que se vê e sim o estado de alma com que se vê. Na Palestina, o principal não é o que está; o principal é o que cada um traz dentro de si próprio.” (CASTRO, 1949d: 169)
Em conformidade, e referindo-nos ao trabalho do escritor, citamos a investigadora Sofia de Melo Araújo, que afirma:

(...) há que reconhecer o extraordinário papel da Arte em geral, e da literatura de ficção em particular, não apenas como veículo de ideias definidas, mas também enquanto gerador de questionações e reinterpretações do Mundo e da Vida, que assumem mesmo papéis de destaque na transformação do Real. (ARAÚJO, 2016: 72)

Para Sofia Araújo essa aceitação traduz-se “na necessidade de constatar que, para além dos efeitos estéticos, a obra de arte é sempre uma representação de valores, de escolhas, e que alguns desses valores não são simplesmente estéticos, mas sociais, políticos e éticos”. (idem: 73)
O escritor esforçou-se sempre por apresentar os episódios da humanidade e, em geral, da vida à superfície do planeta, tal qual elas se manifestavam: sem filtros e sem véus, embora salvaguardando uma narrativa dentro do que considerava socialmente aceitável, tanto nos seus textos literários como nos jornalísticos.
Assim, Adelino Ferreira Neves recorda o desencanto amargo com que Ferreira de Castro acolheu a informação de que um artigo seu tinha sido suprimido pela Censura. Nesse texto, Castro, mais do que a notícia como mero trato jornalístico, impessoal e frio, ressaltava aspetos sociais que apelavam a uma compreensão, compaixão e justiça pelo que se escondia por detrás de um drama humano, provocado por precipitação e abuso de poder das autoridades: em Beja, um homem havia sido acusado de roubo de cereais; para o tentarem condenar, levaram a sua mulher para a cadeia, onde foi torturada, numa tentativa de obter dela a confirmação do roubo. Esta, não resistindo ao sofrimento, enforcou-se na cela. Em desespero, o marido, ao saber de tão terrível desenlace, barricou-se em casa, armado. Cercado pela GNR e pela PSP, durante o tiroteio que se iniciou, matou um chefe das forças policiais, tendo também sofrido ferimentos. Preso e enviado ao hospital numa ambulância, com febre devido às escoriações, pediu água. O guarda que seguia na viatura, enfurecido pela morte do chefe, em resposta e por vingança, alvejou-o, matando-o. Posteriormente soube-se que o homem estava inocente.
Castro faz a notícia, fiel aos acontecimentos. Neves, como correspondente e redator regional d’O Século em Beja, manda-a publicar, enviando-a para Lisboa. Mais tarde, visitando o autor nessa cidade, soube que a notícia tinha sido totalmente cortada pelo lápis azul da Censura:
Passados tantos anos ainda hoje revejo nitidamente o semblante de tristeza e mágoa de Ferreira de Castro, depois de ter lido a reportagem que escrevera!... E. perguntando-lhe eu da sua impressão crítica dos acontecimentos, Ferreira de Castro disse-me simplesmente... ‘O Matos nunca se poderá considerar um criminoso... defendeu-se dos que o queriam matar; nada teria acontecido se não lhe tivessem morto a mãe dos seus filhos e depois o não tivessem perseguido tão ferozmente.’ [40] (NEVES, 1976: 13-14)
Ana Cristina Carvalho reproduz o extrato de uma entrevista do autor ao Diário de Lisboa (1945), onde este, amargamente, mas com fina ironia, refere a sua incredulidade perante os cortes censórios que, amiudadas vezes, sofria nos seus artigos jornalísticos:

Uma vez, cheguei a escrever três artigos sobre o mesmo assunto — sobre o Natal — e todos foram proibidos, porque neles eu aludia aos pobres que, nessa noite, tinham frio. Chega a parecer inverosímil (...) que as esferas oficiais houvessem deliberado fazer acreditar o país e o estrangeiro que em Portugal ninguém tinha frio, nem fome, nem miséria, que havia, portanto, um Portugal que nós não víamos em parte alguma e que era diferente daquele que nós víamos todos os dias e em toda a parte. (CASTRO apud Carvalho, 2017: 130)

Também Ricardo Alves reconhece o ónus sofrido pelo autor – no fundo, por todos os escritores portugueses não alinhados com as políticas do regime — e que reflete na sua constatação de que “Castro escreveu a sua obra sob a pressão da censura, de Emigrantes a Os Fragmentos. Sentiu, portanto, duma forma aguda os constrangimentos e o sufoco dum estado repressivo e policiado.” (ALVES, 2002: 100)
De facto, o escritor refere na sua última obra – Os Fragmentos – essa sensação torturante com que teve de conviver durante toda a sua vida profissional de escritor e de jornalista, de não poder escrever as verdades que lhe brotavam do mais íntimo da sua consciência e com as quais pretendia denunciar os erros e iniquidades do sistema e, por extensão, do mundo: “(…) de todos esses fabricantes de perniciosos silêncios, o mais nocivo de todos (…) não é o censor real, é a sua consequência, o censor abstracto que se instala no nosso cérebro e de lá nos comanda impiedosamente.” (CASTRO, 1974: 39)
Ferreira de Castro relembra a mágoa com que “(…) f[o]i obrigado a vigiar o comportamento das palavras para além das suas imposições estéticas, nesta mesma secretária de onde eles deviam erguer voo, direitos à luz exterior, e quedarem afinal na escuridão das gavetas, como na de um túmulo.” (idem: 11)
São, como já acima foi referido, contínuos os cortes às suas crónicas, e também aos seus livros: depois de já ter publicado A Volta ao Mundo, Eternidade e Terra Fria, tenta dar ao prelo O Intervalo, no que é prontamente impedido pela Censura. Esta obra, publicada postumamente após o 25 de abril de 1974, e inserida no livro Os Fragmentos, aborda a vida de um personagem ficcional, chamado Alexandre Novais, um dirigente anarcossindicalista português, obrigado a refugiar-se em Espanha por ser alvo de perseguição política no seu país.
A ação decorre em 1933, em Cádis, onde o português participa nas insurreições operárias da Andaluzia, que acabam por redundar no massacre de Casas Viejas, onde populares revoltosos sucumbem, independentemente do seu sexo ou idade, às mãos das forças policiais — acontecimento verídico que precipitou a queda da 2ª República espanhola. Tratava-se, assim, de um tema interditado pelo Estado Novo, pois implicava, não apenas a reprodução inadmissível de uma sublevação popular, como indiciava também a existência de atitudes repressivas do Estado, em território luso.
Por razão desse impedimento, e dando voz a Ferreira de Castro: “Mas já então eu vivia exclusivamente da minha pena. Tinha, pois, de trabalhar. E foi por essa exigência que escrevi, com desalento imenso, o meu primeiro livro de viagens, esses ‘Pequenos Mundos’ que nunca pensara escrever quando os trilhara num sonho errante.” (idem: 78)
Não podendo falar abertamente das injustiças e misérias do seu país, o único recurso foi o de o fazer espelhando noutros mundos o mundo em que nascera e que lhe era interdito criticar.
De notar que, na última obra referida, a sua descrição da ilha da Madeira já consegue deixar transparecer os primeiros vislumbres de uma crítica ao imobilismo e segregacionismo estatal, no que concerne ao bem-estar do povo, sem que, em consequência, seja impedido pela Censura:

O nível de vida do povo, sobretudo do camponês, é impressionantemente baixo. Como na Córsega, a existência humana nas aldeias da Madeira caracteriza-se por uma forçada sobriedade na alimentação. Aqui bebe-se aguardente a mais e pão a menos. (…) Até há pouco tempo havia o sonho da emigração; mas fechadas as portas da América, só no álcool o camponês gozará, porventura, fictícia redenção e momentâneo esquecimento. O seu hortejo, o leitezito da sua vaca, que ele vende para lacticínios, e os bordados que faz a mulher, dão-lhe tão fraco rendimento que nenhuma hipótese de vida farta lhe é possível admitir. Como nas aldeias do continente, encontramos na Madeira menos crianças que vão à escola porque os pais não podiam comprar os livros de ensino. (CASTRO, 1949d: 279)

O pitoresco, como expressão genuína do povo, esse casticismo português de primitivismo e miséria, explorado como um exotismo intraeuropeu, atrativo para os estrangeiros e para benefício económico do Estado e de alguns privilegiados, começa a ser referido com mais incisividade:

Não há muito tempo, esta expressão de existência primitiva era apenas vista como “coisa pitoresca”. O forasteiro arribava, fruía o encanto das longas sebes de buxo e de hidrângeas, sorria-se paternalmente das barraquitas, que são graciosas na sua pobreza e abalava a narrar a impressão colhida do povo que vivia na nossa época como nas épocas primárias. Hoje, desde que se tenha o coração e cérebro em bom funcionamento, isto levanta outras sugestões. (CASTRO, 1949d: 281)


A atitude paternalista atribuída aos forasteiros, e a que o autor se refere, poderá ser considerada uma forma de exotismo intraeuropeu, mas a que não podemos atribuir em exclusivo a visão eurocêntrica e depreciativa que os países do Norte do Continente tinham — e mantêm ainda — sobre os territórios soberanos do Sul da Europa. Muito para além disso, trata-se de uma mirada de supremacia social que poderá ser exercida por um qualquer grupo que se autointitule superior, geralmente em termos de classe, económicos, ou mesmo nacionais, independentemente desta dicotomia continental.
Podemos assim falar também de um “microexotismo intraeuropeu” quando abordamos, por exemplo, algumas formas de turismo rural que não se enquadrem em padrões ecológicos ou culturais, mas que se destinem apenas à fruição dessa “existência primitiva” como “coisa pitoresca”. Sob esta perspetiva, um português da Madeira poderia ser visto como exótico aos olhos de um seu compatriota continental.
Apesar da origem da visão eurocêntrica do Norte Europeu, que acima referimos, ter raízes históricas e geográficas muito mais antigas e complexas, é relevante citar Roberto Dainotto:

“With the Reformation, a latitudinal crisis ‘between an increasingly wealthy protestant North and an increasingly impoverished Catholic South’ (Pagden, introduction 13)[41] completed the latitudinal fracture of Europe, shifting its center of influence away from the Mediterranean.” (DAINOTTO, 2007: 44)

Desta crise, e segundo alguns autores – diz Dainotto – nasceu o Espírito da Europa Moderna.
Podemos, assim, compreender um pouco melhor as razões de uma conceção redutora que englobava os quatro países mediterrânicos aderentes à União Europeia nas décadas de 80 e 90 do Século XX – Portugal, Itália, Grécia e Espanha –, e que os países do Norte apelidaram de PIGS[42]: “A modern European identity, in other words, begins when the non-Europe is internalized—when the south, indeed, becomes the sufficient and indispensable internal Other: Europe, but also the negative part of it.” (DAINOTTO, 2007: 4)
Por estas mesmas razões não será de admirar que o autor, profeticamente, se permita, sessenta e dois anos antes das declarações acima transcritas, em 1945, conceder uma entrevista, onde tece críticas ao desempenho governamental e, no geral, ao estrato social dominante sem, contudo, ser demasiado explícito, evitando assim represálias desnecessárias, e para si moralmente desgastantes:

Não sou político. Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos. (CASTRO, 1945) [43]

Por essa altura, a projeção de Ferreira de Castro como escritor, fruto do acolhimento extremamente positivo da crítica e dos leitores, um pouco por todo o mundo, no seguimento das várias traduções e publicações das obras Emigrantes em 1928, e A Selva em 1930, tinha surtido os seus efeitos:

A excepcional recepção internacional da obra de Ferreira de Castro explica grandemente o medo do regime salazarista de proibir as suas obras e de inquietar o escritor. Prender ou censurar Ferreira de Castro, o Soljenitsyne luso, pela sua aura, seria uma autodenúncia internacional dos maus hábitos repressivos do regime e dirigir ainda mais os holofotes para a miséria do povo português.[44] (CALHEIROS, 2017: 35)

Numa carta laudatória enviada ao escritor no seguimento da publicação da novela A Missão, em 1954, Jaime Brasil revela-nos, não apenas a relativa intocabilidade de que Castro gozava, mas também, no que concernia aos editores, o temor de represálias que subjazia a publicação das suas obras:

A novela central é assaz subversiva para lhe ter causado apreensões e aos leões editores. É preciso terem-lhe muito respeito para dos seus acacianos prelos saírem coisas tão atentatórias da ordem estabelecida. Parabéns pela sua coragem, a sua de autor e não a deles editores, pois neles não se trata de coragem, mas de medo. [45] (BRASIL, 1954: 199)

Ferreira de Castro é, como Aquilino Ribeiro, um autor inconformado; o primeiro foi um migrante económico, o segundo, temporariamente um exilado político, posteriormente indultado. Embora separados por treze anos de idade, pois Aquilino nasceu em 1885, partilham o mesmo pensamento ideológico e ideal humanístico: o anarquismo. Nenhum tem qualquer filiação partidária, são republicanos e anticlericais e ambos se insurgem contra o Estado Novo, por questões políticas, sociais e humanitárias; os dois são jornalistas e escritores, mas, ao contrário da suavidade castriana, Aquilino é truculento. Na sua juventude, foi preso por posse de bombas e suspeito de colaborar no assassínio do rei D. Carlos e do seu filho e sucessor, D. Luís Filipe, além de participar em levantamentos e outras atividades ditas subversivas.
No entanto, ambos foram “tolerados” pelo Estado a quem criticavam, pois que o sucesso da sua projeção nacional e mundial exigia um abrandamento ou supressão de medidas punitivas ou restritivas, de modo a salvaguardar a imagem de normalidade e tolerância que o governo pretendia fazer passar ao resto do mundo. De outro modo, seriam hoje, provavelmente, autores quase desconhecidos.
Sem pretender entrar em exageros encomiásticos, achamos, contudo, relevante e pleno de significado o retrato moral que Cruz Malpique faz de Ferreira de Castro: “humano, humanista e humanitário.” (MALPIQUE, 1976: 173) Dois exemplos, para nós, mais marcantes desta afirmação e dos quais não podemos abdicar —sob pena de retirarmos à nossa exposição a alma de Ferreira de Castro —, surgem aquando dos seus relatos das visitas à Índia e, posteriormente, à China. Comecemos pela terra dos Brâmanes:

Maletas feitas, abalamos, um dia, do hotel. A numerosa criadagem formava, consoante o hábito, filas à porta do quarto, atenta à gorgeta (…). Só o “intocável” estava longe, encolhido, isolado, na parte mais obscura do corredor. Ao gratificá-lo, estendemos-lhe a nossa mão, numa pueril mas irrefreável atitude contra o aviltamento do ser humano. Gesto inédito, decerto, na sua vida, ele quedou-se, a contemplar-nos, perplexo. Só perante a teimosia da mão que se lhe oferecia, se decidiu a apertá-la, timidamente, os olhos apavorados, receando não haver compreendido bem e ofender-nos. Afinal, nós éramos iguais em tudo, que para os defensores das castas um europeu e um pária da Índia são ambos intocáveis e impuros… já à porta do ascensor, demos conta de que nos havíamos esquecido dos cigarros e, por eles, volvemos ao quarto. Fomos encontrar o pária a chorar. Ao passarmos, ele soergueu a cabeça e nos seus olhos de grande superfície branca vimos uma submissão e uma inútil gratidão que jamais tínhamos visto noutro olhar…
Pouco depois, o expresso de Agra, levando-nos, partiu da arrogante estação de Bombaim. (CASTRO, 1950a: 74-75)


Na Índia, embora combatido durante décadas, o sistema de castas — no fundo, uma forma de xenofobia e racismo internos —, estritamente ligado à miséria, ignorância e fanatismo religioso de um dos países mais populosos do planeta, pode ainda hoje refletir-se parcialmente no presente, expondo episódios que se poderão aproximar da realidade que Ferreira de Castro presenciou há mais de oitenta anos. Entretanto, na China, o panorama modificou-se radicalmente, embora saibamos que lá, como em qualquer outro país, continua a existir muita miséria escondida e incómoda.
Ferreira de Castro, em 1939, em plena Guerra Sino-Nipónica e no início da II Guerra Mundial, parte da cidade chinesa de Xangai, então ocupada pelos japoneses, para Cobe, no País do Sol Nascente.
Antes de abandonar o cais e embarcar no navio fretado, lembra-se que ainda possui cerca de dez ou doze dólares chineses que, fora do país, nenhum valor terão, devido à extrema desvalorização provocada pelo clima bélico então vigente. Chama o condutor de um jinrixá[46] que acabara de deixar um cliente e oferece-lhos. Ele, após compreender que se tratava de uma dádiva, fica incrédulo e admirado. Castro comenta, não se esquecendo, todavia, de, à semelhança do exemplo que demos sobre a Índia, assinalar subtilmente a exploração e os contrastes sociais:

Com uma só libra se pode fruir um dia de opulência. O trabalhador nativo continua, porém, a receber uns míseros cêntimos. Quis o destino que, para nós, a última imagem humana da velha China mártir fosse a deste sudoroso chinês, de calções curtos e blusa sem mangas, que, com uma mancheia de papéis amarrotados, papéis que nem sequer traduziam generosidade da nossa parte, nos contemplava como se não soubesse ao certo se havíamos perdido o juízo ou se ele estava a sonhar. Na nossa frente erguiam-se os imponentes edifícios de Xangai, catedrais de negócios, e corria a terra chinesa, onde, há já séculos, bandos de alienígenas iniciaram, em proveito próprio, a colheita das riquezas nacionais — e nunca mais a abandonaram. (CASTRO, 1950b: 171)

N’A Volta ao Mundo, da qual retirámos as citações acima, e tal como em Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, Ferreira de Castro divide-se por três tipos de descrição: a geográfica, a histórica e a etnográfica, mantendo em permanência elos de ligação com destaques não menos importantes, talvez mesmo veladamente fulcrais, que serão a injustiça social, as condições desumanas que presenciou no mundo do seu tempo, na sua vivência e nas suas viagens e que, embora aparentem por vezes terem sido extirpadas ou atenuadas nos nossos dias, continuam a surgir mais encobertas e, eventualmente, ainda mais gravosas do que as constatadas à época das descrições do autor. Mesmo considerando que A Selva é um romance de cariz autobiográfico e Pequenos Mundos e A Volta ao Mundo são livros de viagens, seria provavelmente a vertente de denúncia das injustiças sociais, o verdadeiro motivo da sua conceção. No caso de Portugal, o autor recusava-se a compactuar com descrições miríficas que mostrassem um jardim da Europa à beira-mar plantado e habitado por um povo de jardineiros felizes. Seria isso o que o Estado Novo pretendia mostrar aos olhos do mundo, através do controlo da Imprensa, dos poetas e dos escritores portugueses.
Assim, não lhe sendo permitido denunciar o estado da Nação, opta, contra sua vontade e por força da necessidade de subsistência, por escrever os livros referidos. Nestes, não se inibe, todavia, de denunciar as injustiças, expor a miséria, a opressão e as péssimas condições de sobrevivência de cada povo e de cada país que visitou, deixando por vezes, nas entrelinhas, indícios suficientes para se poderem estabelecer ligações com os problemas análogos da sua pátria.
Surge a este propósito uma questão fraturante que tem sido alvo de diversas interpretações: o papel desempenhado pelo autor na génese do neorrealismo português.
No documentário Estado Novo e Literatura, consultável no arquivo online da Rádio Televisão Portuguesa, Luís Augusto Costa Dias (à época, diretor do Museu do Neorrealismo) comenta que, embora Ferreira de Castro possa encontrar-se “dentro do espectro neorrealista”, o seu papel será mais o de “recuperação dos realismos.” (DIAS, 1997: passim)
Segundo o investigador, “a característica basilar do neorrealismo” é “a questão da utopia”, ou seja, “a criação de uma sociedade nova livre de opressões”, através de “uma corrente da arte e do pensamento”, em simultaneidade, e não como “uma literatura exclusivamente política.” (idem)
No entanto, existe uma ligação política que une os pioneiros do neorrealismo: a sua convicção de que só a luta de classes poderá ser o procedimento tendente à criação de uma sociedade mais justa e equilibrada ou, por outras palavras, uma sociedade de inspiração marxista.
Tal não é o caso de Ferreira de Castro: ácrata convicto, nunca aceitaria subjugar os seus ideais a uma qualquer – fosse qual fosse – estrutura de poder, razão por que foi, fiel a si próprio, e até ao fim dos seus dias, agnóstico e apartidário. Como observa Aguiar-Branco, referindo-se ao autor:

[a]firmou sempre que a liberdade de pensar é indissociável da dignidade humana. O seu conceito e prática de liberdade levou-o, inclusivamente, a não professar nenhum credo religioso, nem aderir a qualquer fação ou partido político, apesar de reiterados convites e da sua valia entre os intelectuais neorrealistas e nos meios anarco-sindicalistas. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)

Damos, assim, alguma razão a Ricardo António Alves, quando este afirma que “se ele foi um precursor, não deixa de ser bizarro ter antecipado na estética uma via discordante da sua própria ideologia, tanto mais que quem abre caminhos, trilha-os forçosamente, mesmo que depois acabe por se afastar deles — e não foi o caso.” (ALVES, 2002: 74)
A opinião de João Gaspar Simões é, em parte, concordante com a de Ricardo Alves:

Sem dúvida que são muitas as divergências a assinalar entre o realismo social de Ferreira de Castro e o realismo social dos neo-realistas. A mais evidente é esta: enquanto a literatura do autor de A Selva é fortemente temperada de realidade experiencial, digamos, jornalística, a literatura dos neo-realistas é assinalada por um regresso ao subjectivismo de tipo “Matière de Bretagne”,[47] uma vez que a falta de experiência da realidade evocada conduz à introdução da poesia onde é mister encontrarmos a realidade.[48] (SIMÕES, 1967: 151)

No entanto, no seguimento da sua exposição, Simões volta a reacender a polémica, deixando o leitor num impasse quanto à sua inscrição estético-ideológica:

Copiam-lhe os métodos os novos realistas? Não. Seguem-lhe a filosofia? Tão-pouco. Adoptam-lhe a estética? Também não. Em que é que o realismo social de Ferreira de Castro pode considerar-se, então, precursor do realismo social dos neo-realistas? Apenas em ser realismo social. (…) Os neo-realistas, mesmo que nada aprendam com Ferreira de Castro no ponto de vista da concepção romanesca, têm nele um precursor. E um precursor mais válido do que parece. Enquanto a sua literatura é vivida como experiência humana, a deles — a da maior parte deles — é concebida de cor, elaboração livresca equacionada de acordo com uma estética mais próxima da subjectividade da novela de cavalaria que da objectividade dos relatos quase jornalísticos em que se funda a autêntica novelística de fundo realista. (idem: 152)

Lucas Maia[49]explica este processo de separação de correntes ideológicas, embora de inspiração comum, que poderá fazer-nos entender melhor o motivo das divergências em torno da categorização deste autor:

Durante o processo de afirmação do anarquismo como um movimento social, o aparecimento e influência do russo Mickhail Bakunin é de fundamental importância. Bastante influenciado pelas idéias de Proudhon, Bakunin vai levar às últimas conseqüências as idéias de anarquia como negação da autoridade e do estado. Criou-se deste modo uma polêmica entre Marx e Bakunin ou como entrou para os anais da história do movimento comunista: os socialistas autoritários, discípulos de Marx e os socialistas libertários, discípulos de Bakunin. Os primeiros, amantes da autoridade e do estado, os segundos, a negação racional e direta da autoridade, do estado e dos governos. (MAIA, 2010: 140-141)


Face ao exposto, somos tentados a acreditar que José Maria Ferreira de Castro é um dos escritores mais importantes do Realismo Social no nosso país, movimento artístico então emergente e perseguido. Quanto à sua inscrição no Neorrealismo, limitamo-nos a expor os argumentos teóricos que se nos têm deparado sem, contudo, abraçar qualquer posição estética, pois não consideramos avisado adotar uma decisão definitiva sobre um tema que, pela dificuldade de escolha entre algumas teorias aceites como minimamente válidas e pela dubiedade de outras, não pode exigir uma tomada de opinião sólida sem uma investigação mais aprofundada, e que não constitui o objetivo desta dissertação.

Considerações Finais
No presente estudo, procuramos atardar-nos em pegadas éticas e estéticas de algumas obras de Ferreira de Castro.
Tentámos compreender o autor nos limites de uma multidisciplinaridade, para nós, possível. Aflorámos um pouco da ética, da estética, da moral, do humanismo, da literatura, da sociologia e da política; analisámos o seu percurso vital, quase desde a nascença, o seu desterro compulsório e desvalido, e como lutou para se libertar e à Humanidade, como um todo, de um futuro determinista, não com um intuito biografista, mas colocando tal démarche ao serviço do nosso desígnio, que é o de procurar assimilar a sua ética universalista e o objeto estético por que ansiava. Valemo-nos, à impossibilidade de outros recursos, de livros do autor e de meios audio-visuais e estudos com ele relacionados, assim como obras que selecionámos dentro do quadro multidisciplinar acima referido. Desse modo, peça a peça, capítulo a capítulo, seguimos o seu percurso singular.
Começámos, assim, por analisar as suas origens modestas e os pressupostos de desenvolvimento literário e pessoal, que em nada abonavam a seu favor, e concluimos que, aliado a um anseio de se tornar jornalista, — objetivo preconcebido ainda na infância, em Oliveira de Azeméis —, juntou a uma vontade forte uma visão humanitária, ambas reforçadas pela sua própria experiência e cimentadas pela exploração e condições desumanas a que ele e os seus companheiros de infortúnio se sujeitaram.
Vimos, mais tarde, que o jovem José Maria, ainda adolescente, e pese embora as dificuldades de sobrevivência, aliou o seu desejo de pertencer ao mundo mediático, editando pequenos artigos nos jornais locais — e em paralelo com uma incipiente produção novelística —, a um esforço tenaz de leitura que abarcava as mais diversas e possíveis disciplinas do conhecimento, ao seu alcance. Foi, portanto, um autodidata atento, o que já lhe permitia escrever com acuidade e certa erudição.
Inicia-se nesta fase o seu interesse pelas doutrinas sociais, muito em voga na época, com particular incidência no anarco-sindicalismo, que marcaria o seu percurso até ao fim dos seus dias e que muito cedo se transforma numa forma de realismo social muito própria, que culmina no que apodamos de Novel Humanismo. Este, tendo como pano de fundo várias personagens de referência na sua vida literária e humanística, como Kropotkine, Marechal Rondon, assim como sua primeira mulher Diana de Liz, entre outros, materializa-se numa relação de alteridade “impregnada de cristianismo”, ou, por outras palavras, numa espécie de “franciscanismo” ( Emery apud ALVES, 2002: 157) ateu.
Viajante, sedento de compreender e interagir com o Mundo em que vivia, alargou os seus horizontes e estreitou a sua ligação com povos e culturas próximas e longínquas, sempre atento aos enormes fossos sociais com que deparava, tentando interpretar as razões dessas diferenças com paciência e compaixão.
É, pois, esta, em essência, a sua ética: nem filiado nem acólito, Ferreira de Castro adota uma prática que, passando pela observação, compreensão, denúncia e crítica, atinge o seu clímax num altruísmo transmutado em amor incondicional pelo Mundo, pela Natureza e suas díspares manifestações e, muito particularmente, pela Humanidade.
Antes, porém, e num longo processo, o autor teve de exorcizar-se de visões preconcebidas e fraturantes sobre a sociedade, sublimar as suas conceções do Orbe e pacificar-se com a Natureza. A sua visão da juventude, naturalmente aguerrida e ansiosa pela mudança, foi-se transformando pela ponderação e pela compreensão dos seres com quem partilhava a espécie, acabando por lhe conceder a paz dos que se sentem indivisos com o Universo.
No decorrer da sua vida e como manifestação da sua ética, Ferreira de Castro produziu obras literárias que veiculam a materialização dos seus ideais, da sua visão do Cosmos, da Natureza e da Humanidade que o habita, e que poderão ser consideradas o seu corpus estético.
Pela nossa análise chegámos, porém, à conclusão de que o impacto inicial da sua Obra, pese embora a qualidade literária e o reconhecimento dos valores que encerra, tem vindo a diluir-se por força das suas circunstâncias temporais e situacionais específicas que, na nossa opinião, fazem-lhe perigar a sobrevivência no tempo literário; embora o impacto mundial tenha sido extremamente relevante, à época, as suas descrições viáticas e os seus romances foram perdendo a atualidade perante o público leitor, apesar de toda a sua riqueza como objeto multidisciplinar (histórico, sociológico, político e etnológico, entre outros), apenas resistindo maioritáriamente no seio dos meios académicos e de algumas entidades exclusivamente dedicadas à sua existência e produção intelectual. Na ausência destes, as obras de Ferreira de Castro, embora possuindo uma elevada eticidade, cedo se transformariam em triviais romances e livros de viagens, onde se observariam algumas abordagens à construção social da época, com as suas injustiças e desigualdades, mas que eventualmente passariam despercebidas, e os seus livros acabariam por se tornar textos obsoletos, redundando em meras curiosidades literárias.
A investigadora Sofia Araújo inicia o primeiro capítulo do seu estudo, por nós anteriormente citado, com uma observação, na nossa opinião, muito pertinente:

A aproximação científica da Ética à ficção dá-se na generalidade dos casos pelo estudo da função (ou disfunção) exercida pela Literatura na formação ética dos seus leitores, da forma como o recurso à Literatura, enquanto experiência estética e enquanto reduto de vivências vicariantes, pode influenciar ou mesmo determinar a atitude ética (e respetiva seleção axiológica) do seu recetor. (ARAÚJO, 2016: 33)[50]

Relevamos, assim, a importância da divulgação da obra de José Maria Ferreira de Castro, não apenas como objeto de fruição estética, mas principalmente como somatório dos valores éticos que hoje, como então, é importante difundir. No entanto, não será difícil entender a razão do seu “apagamento” no panorama literário português ou, mais propriamente, no circuito de leitura português; Segundo os dados do Conselho Nacional de Educação, nota-se que
(...)no que respeita à implantação da forma de cultura predominante da modernidade, a cultura escrita, Portugal é, desde meados do século XIX, separado do espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, tornando-se numa periferia da periferia, e tal comportamento agrava-se durante o século XX, quando o país se torna ele próprio numa tendência, ou seja, evidencia um atraso tal que não é “agrupável” com outros países europeus[.][51] (CANDEIAS, 2010: 30)
Assim, a sua ética, embora na essência, imutável, não atinge na atualidade os objetivos iniciais propostos e a projeção que o conjunto do seu trabalho literário pretendia veicular, visto a existência de um público-alvo ser, à época deficitário. Ao mesmo tempo que a anterior, também a sua obra, entendida como objeto estético, foi esvanecendo por falta de leitores sensíveis à perceção estética — circunstâncias que tiveram repercussões negativas óbvias durante as gerações seguintes.
Apesar dos louváveis e insistentes esforços de recuperação das entidades acima referidas que, em continuidade, se debruçam sobre o seu trabalho, Ferreira de Castro, referência literária e ética, tem-se vindo a tornar diáfano à medida que a sua escrita se afunda no passado.
Devido ao complexo entorno que focámos no desenvolvimento do tema proposto, torna-se difícil avaliar com distanciamento e isenção José Maria Ferreira de Castro; é necessário ler atentamente as suas obras e as recensões dos seus críticos mais fidedignos, tapando os olhos e os ouvidos aos modismos, aos gostos das leituras fáceis ou resumidas e a quaisquer tentativas insidiosas de inscrição em cultos ou ideologias.
Apesar da injusta névoa que paira sobre o seu trabalho, os seus livros valem pelo conteúdo, pela coerência e pela mensagem que o leitor consciente e atento identifica, assim como Ferreira de Castro vale pela sua humanidade e universalidade; juntos fazem, como numa transmutação alquímica, a Obra. Nas palavras de Cruz Malpique, que citámos anteriormente: “Consubstanciam-se, osmoseiam-se, penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la.”
Os livros que Castro escreveu são o seu reflexo, e tudo quanto aí deixa transparecer é sincero, sem subterfúgios. Neles apercebemo-nos dos seus medos, dos seus sonhos, das suas amarguras e dos seus momentos de felicidade e familiarizamo-nos com a sua ética (novel) humanista, com o seu grande sentido de justiça e a sua bondade humanitária.
O autor foi um visionário que carregava uma revigorada Utopia, idealizada, iniciada e fortalecida no seio da maior floresta virgem do planeta. Não podemos afirmar que nada sucede por acaso, mas podemos acreditar que as circunstâncias que forçaram o então infante a emigrar para o Brasil e as desventuras sofridas por quem era demasiado novo para sofrer as agruras de um clima estranho, um desenraizamento familiar e pátrio e um labor etariamente impróprio, foram os principais responsáveis pelo desenvolvimento da vocação e da personalidade forte do escritor. Se, porventura, José Maria se tivesse rendido ao propósito original do enriquecimento, se se tivesse deixado influenciar pelo sonhos quiméricos que na época circulavam em muitas aldeias de Portugal, onde o mito do brasileiro rico era recorrente, regressaria (ou não) à sua pátria, imagem viva da sua própria personagem de Emigrantes e de, fugazmente, A Lã e a Neve: o desventurado Manuel da Bouça; ou poderia voltar “brasileiro” e rico e acabaria por morrer, como poucos outros, influente, opulento, não raras vezes benemérito, é certo. Teríamos, contudo, perdido o escritor, a obra, o humanismo, a bondade e a sua grande influência como interventor social.
Felizmente para ele e para nós, a criança já levava consigo para o Brasil os rudimentos de um desejo que aí se tornaria cada vez mais forte: ser jornalista. O resto já é do conhecimento geral.
Ferreira de Castro recusou títulos e honrarias durante toda a sua vida; mas, a sua condição de ser humano, imperfeito como os seus pares, permitiu-lhe uma insignificante, perdoável e justificada vaidade.
Na sua visita ao Egito, o autor comenta a necrópole de Sakkara, declarando: “Os mortos, quando deixaram pedras a falar por eles, viveram sempre mais do que os vivos.“ (CASTRO, 1949d: 138) Na Serra de Sintra, no local da sua sepultura, existe, por sua expressa vontade, um simples banco de pedra que lhe serve de lápida tumular; é a sua Menfis. Nele está gravado o nome, data de nascimento e morte, e a sua profissão: escritor. Não contém epitáfio; esse, foi por si escrito, muitos anos antes:

Meu irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos. Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na serra onde eu e quem o meu coração tiver amado dormimos o último sono e leva contigo um pouco de pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços… (CASTRO, 1948: 9)

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[1] Consideramos, para este efeito, maioria quando se trate de, por exemplo, uma região ou um povo, subjugado aos ditames de um governo ou qualquer outra organização social ou grupo; por minoria, entendemos grupos étnicos ou outros (negros, indianos, homossexuais, transgéneros, etc.), sujeitos às mesmas condições.
[2] Não confundir com o Humanismo Universalista, ou Movimento Siloísta, criado em 1969 pelo escritor argentino Mario Luis Rodriguez Cobos (1938-2010), também conhecido pelo pseudónimo Silo. (Vide https://partidohumanista.cl/mario-luis-rodriguez-cobos/). Embora, possivelmente, não exista qualquer relação, as bases deste movimento são muito similares ao que Ferreira de Castro praticava.
[3] Luís Garcia e Silva (1933-2020) – médico dermatologista e militante libertário, foi editor do jornal A Batalha. (Vide Introdução e Notas da coletânea de artigos “Ecos da Semana”, editada em 2004 pelo Centro de Estudos Libertários de Lisboa in http://ric.slhi.pt/Suplemento_de_A_Batalha/estudos/monografias).
[4] Abstemo-nos de utilizar a referência bibliográfica Sic nas citações apresentadas, visto a sua maioria conter grafia já não utilizada, e corrermos o risco de entrar em exagero na reprodução do advérbio latino. Mantém-se então essas ocorrências, numa reprodução fiel dos textos consultados, e de total responsabilidade dos seus autores.
[5] Expressão que optámos por usar em alternativa a outras designações que, por demasiado utilizadas em díspares assuntos e ocasiões, externos ao nosso trabalho, poderiam induzir os nossos leitores em erro.
[6] O Realismo Social está presente nas mais diversas artes e visa observar e realçar as condições sociopolíticas das classes trabalhadoras com o intuito de denunciar as desigualdades e injustiças provocadas pelas estruturas de poder dominantes.
[7] É o próprio Ferreira de Castro quem assume o romantismo, não apenas nas obras primárias, renegadas por si, mas estendendo-se por toda a sua produção literária: “Eu tinha vinte e sete anos e olhei para trás. Tudo quanto havia escrito, todas as experiências estéticas já realizadas, inclusive as páginas mais audaciosas, que me pareciam, por esse seu carácter, as mais originais, encontravam-se imbuídas de romantismo, sentimento que vinha desde a meninez e me acompanharia pela vida fora, em satélite do meu próprio realismo futuro, me acompanharia tão persistentemente como a Lua acompanha a Terra, mesmo quando não a vemos” (CASTRO, 2007: 20).
[8] Miguel Real afirma que A Selva, “possui[ndo] uma dimensão social, que o conteúdo do romance evidencia, e, porém, quanto ao estilo, mais naturalista do que realista, salientando mais a estranheza e a anormalidade dos comportamentos humanos do que a evidenciação das relações sociais colectivas estabelecidas justa ou injustamente na sociedade” (REAL, 2007: 268).
[9] As chavetas retas figuram na citação.
[10] “Pequena história de A Selva” foi acrescentada a esta edição, extraída da edição comemorativa de A Selva, de 1955).
[11] Professor Doutor Eugénio Francisco dos Santos (1937-2022). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[12] Torna-se evidente que o jovem Ferreira de Castro não pertencia ao primeiro grupo de emigrantes – os Brasileiros de Torna-Viagem -, industriados para atividades que, à partida, lhes garantiriam sucesso profissional e económico, mas sim ao grupo de emigrantes indiferenciados, engodados, não raras vezes, pelas promessas de engajadores sem escrúpulos, para serventia em mesteres inferiores, mal remunerados e amiudadamente escravizantes.
[13] Elena Muriel Ferreira de Castro, pintora (1913-2007). Casou com o escritor em 1938.
[14] Extrato de uma mensagem, publicada no jornal Diário de Lisboa em 09/06/1966.
[15]. Discurso de abertura da sessão de homenagem a Ferreira de Castro por ocasião das comemorações dos 100 anos de vida literária do escritor.
[16] António dos Santos Pereira (1954- ) – professor catedrático da Universidade da Beira Interior, na área de História e Arqueologia.
[17] Conferência pronunciada em 19 de outubro de 2016.
[18] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”. A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[19] Alberto Figueira Gomes (1912-1986) – escritor e jornalista madeirense.
[20] Ferreira de Castro recusou sempre a reedição de todas as obras anteriores a 1928, “aquelas primeiras produções que eu próprio considerava e considero, apenas tentativas” (CASTRO in SALEMA, 2021. Min 17.48) — obras rudimentares que não espelhavam os seus ideais estéticos.
[21] Winifred L. Chappell (1879-1951) foi uma professora, diaconisa da Methodist Federation for Social Action (MFSA), sufragista, escritora e editora norte-americana, muito ativa na defesa dos pobres e dos explorados.
[22] Ana Cristina Leitão Martins de Carvalho (1961- ), doutorada em Ecologia Humana, investigadora integrada do CICSNova (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. É membro do Conselho Editorial da revista C@striana on line.
[23] Esta citação integra o capítulo “A aldeia nativa” da obra Os Fragmentos.
[24] Idem, ibidem.
[25] Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) foi um sertanista e engenheiro militar brasileiro. Foi também diretor do Serviço de Proteção ao Índio e idealizador do Parque Nacional de Xingu.
[26] João Peregrino Júnior da Rocha Fagundes (1898-1983), jornalista, médico, contista e ensaísta, foi presidente da Academia Brasileira de Letras.
[27] Esta edição contém “Pequena história de A Selva”, reproduzida da edição comemorativa de 1955.
[28] Nathaniel Hawthorne (1804-1864) - escritor norte-americano.
[29] José de Freitas - jornalista e escritor (1910-1976).
[30] Diana de Liz (1892-1930): pseudónimo literário de Maria Eugénia Haas da Costa, primeira mulher de Ferreira de Castro, também conhecida como “Mimi Haas” — nome com que assinava as suas contribuições para vários jornais e revistas.
[31] António dos Santos Pereira – doutorado em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor Catedrático na Universidade da Beira Interior.
[32] Manuel Simplício Geraldo Ferro – doutorado em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, exercendo o cargo de Professor Auxiliar na mesma Faculdade.
[33] José Dias de Melo (1925-2008), poeta e escritor açoriano. Conferência proferida em 16 de setembro de 1966, na sociedade literária “Artista Faialense”.
[34] Trata-se de uma afirmação do próprio Ferreira de Castro (1974. p: 60).
[35] Página 17 da edição que consultámos (Alves refere a pág. 15 da edição de 1980, que utilizou).
[36] Citação extraída do capítulo “A Revolta da Andaluzia (1931)” e O Intervalo.
[37] Wilde, Oscar, 1996, Le Déclain du Mensonge, Œuvre, Paris, Gallimard: 791; Le Antique,ibidem, pp 865 e 853.
[38] Dr. Fernando Ferrão Moreira, professor de Língua e História Pátria na, então, Escola Técnica e Elementar Gomes Teixeira, no Porto.
[39] Eurico Gama (1913-1977), bibliógrafo e editor, foi diretor da Biblioteca Municipal de Elvas.
[40] Extraído do artigo “In memoriam de Ferreira de Castro”, de Adelino Vieira Neves – Cascais, 1976.
[41] PAGDEN, Anthony. ‘‘Europe: Conceptualizing a Continent.’’ The Idea of Europe:From Antiquity to the European Union, ed. Pagden. New York, Woodrow Wilson Center Press, 2002. 33–54. Citado pelo autor.
[42] Portugal, Italy, Greece, Spain: “É um acrónimo de clara intenção pejorativa (pig, porco em inglês) criado nos anos noventa do século XX para designar Portugal, Itália, Grécia e Espanha. Esta categorização articula uma dimensão geográfica e cultural – Europa do sul ou mediterrânica – e outra económica – países cronicamente deficitários – para transmitir uma mensagem simples: ‘povos do Sul que sendo incapazes de se sustentarem a si próprios vivem à custa do Norte virtuoso, endividando-se’.“ Extrato do artigo de José Maria de Castro Caldas: “ PIGS – Observatório sobre Crises e Alternativas” in https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7809.
[43] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”,A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[44] Pronunciado por Pedro Calheiros na “Conferência Inaugural”, em 11/10/2016.
[45] Ao referir-se aos “leões editores”, Ricardo Alves esclarece que se trata de uma alusão aos proprietários da Guimarães & Cª, Maria Leonor e Francisco da Cunha Leão.
[46] O mesmo que riquexó.
[47] On donne le nom de « matière de Bretagne » à un ensemble de légendes et de chansons, diffusées à l'origine par des jongleurs gallois et armoricains, et qui alimentèrent, entre 1150 et 1250 environ, un certain nombre de romans appelés romans bretons. In https://www.larousse.fr/encyclopedie/divers/matieres_de_Bretagne_et_romans_bretons/180250.
[48] Extrato de um artigo publicado por Simões no jornal O Primeiro de Janeiro, em 29/06/1966.
[49] Lucas Maia dos Santos, doutorado em Geografia e professor na Universidade Estadual de Goiás, no Brasil. Especializou-se em: Marxismo, Geografia e Sociologia do trabalho e Geografia Urbana.
[50] Araújo explica o que entende por aproximação científica: Ética, enquanto domínio científico, não é o conjunto de respostas que escolhemos dar às questões de valores, mas antes o próprio exercício reflexivo em torno desses mesmos valores. Como tal, uma reflexão em torno dos aspetos éticos de determinada obra ou de aspetos da mesma será sempre uma reflexão aberta e teórica, e não uma classificação objetiva e definitiva, e muito menos um ato normativo. (ARAÚJO, 2016: 73)
[51] Segundo o autor, o declínio do país teve início no dealbar do século XX; até aí, Portugal estava agrupado com outros países (Bulgária, Roménia, Grécia e Jugoslávia) no último patamar da tabela europeia de evolução educativa.