1. jun, 2016
À espera do paraíso (algures em 2012, talvez Setembro)
Estou sentado no café. Acabei de ler um capítulo de Negras Costas do Tempo, de Javier Marías. É um autor interessante, como todos, à sua maneira, são interessantes. Cada um relata a vida, a história, o conto, como o vê, como o sente, como na sua mente de escritor idealiza, torce, retorce, metaforiza, elide, acrescenta, verte ou vomita a criatividade do seu cérebro. Que faço aqui? Vegeto ou cultivo-me? Já li muitos livros, num esforço heterogéneo de abraçar o mundo (tão cliché!) através dos seus escritores. .....................................................................................................................................................
Leio muito. Porque leio? Para recuperar o tempo perdido, trinta anos de embrutecimento (in)voluntário, três décadas de falta de investimento cultural, 10956 (ou 58) dias de depressão mental (por purismo, contei os anos bissextos), o que não me alivia de um sentimento de perda, de incapacidade parcial em abarcar todo o conhecimento que poderia ter tido se não tivesse estado emparedado tanto tempo na minha incultura consentida. .....................................................................................................................................................
Leio para não morrer estúpido nem de tédio. Tenho 55 anos mas não sou do género de pessoa, como tantos infelizmente que observo, capazes de estar horas num café, sozinhos, em silêncio, em comunhão interna com o seu próprio destino, as suas tristezas, as suas frustrações. Sim, porque quem se comporta assim não está a reviver alegrias e sucessos, está a remoer a porca da vida, um eufemismo pessimista para a existência terrena. Leio porque não tenho nada que fazer, leio porque posso, porque quero e porque acho útil, leio porque tenho oportunidade e para preencher os compartimentos metafóricos que existem metafóricamente na enorme e metafórica mansão que é, metafóricamente, o meu cérebro, a minha mente, a minha alma, o meu espírito ou as mil e uma outras coisas que lhe queiram chamar.
Não é frustrante? Tenho uma licenciatura em línguas, feita com muito sacrifício quando ainda trabalhava, é certo que é Bolonha, não será tão completa como as antigas, falta-me o mestrado para chegar aos calcanhares das outras, das anteriores ao processo, mas é uma licenciatura. É a prova cabal de que me esforcei por ser algo mais, por saber mais, por sair do marasmo cultural dos tais 30 anos. O que é que eu sou agora? Sou um entregador de refeições licenciado.
Segunda folha; esta dista 4 horas e meia da outra. Outra disposição, outro estilo. Será que me estou a tornar existencialista? Espero que não, os existencialistas são pessimistas em demasia, não bebem um copo de água sem considerarem as implicações que isso poderá ter na sua saúde, os milhões de micro-organismos assassinados pelos nossos sucos gástricos e aqueles que porventura escaparão e nos poderão prejudicar. A vida não pode ser só considerações sobre a razão da existência, há que vivê-la também com uma certa despreocupação. Quando vamos ao cinema, dar um passeio a um local desconhecido ou visitar um museu, fazemo-lo porque queremos e gostamos e não para questionar a nossa breve passagem no orbe.
Estou a divagar – apetece-me utilizar uma corruptela que uso muito, de um conhecido ditado: a divagar se vai ao longe. É verdade, vivemos numa divagação constante e duramos, por norma muitos anos. Saí, está frio para andar de mota. Como sofro de uma doença que começou a aparecer pelo mundo há cerca de 40 anos, tenho que ter cuidado, é uma virose, e veio substituir as gripes, constipações, laringites, amigdalites e faringites da minha infância. É uma espécie de genérico, tem características de todas as anteriores, mas não é nenhuma delas, o que facilita sobremaneira o nosso vocabulário médico: “O que é que apanhaste?” “ Uma virose.” Sempre sonhei ser escritor. Claro que em pequeno queria ser montes de coisas, desde médico a...sei lá! Porém, o sonho que nunca me abandonou foi o de ser escritor, fui-me apercebendo ao longo de todos estes meus não muito fáceis anos de vida que ser e querer estão separados por distâncias às vezes impossíveis de percorrer.
Não desisto, árvores já plantei, filhos já tive, só falta mesmo escrever um livro, seja ele bom ou mau. Seco. Não sêco, séco - de secar, de apanhar seca. Que pena simplificarem a língua, os acentos faziam tanto jeito. Aos menos para os chineses não há ambiguidades, não há duas palavras com o mesmo significado, todas são compostas por outras. Claro que é complicado, mas não é ambíguo. Seco e escrevo, seco e escrevo, já não me apetece ler, pelo menos hoje. .........................................................................................................................................................
2ª FEIRA
É engraçado imaginarmos o nosso corpo como um campo de batalha: um exército de anticorpos a combater várias alianças de inimigos – vírus, bactérias, fungos, toxinas, colesterol ldl, etc. Tudo se passa como se de exércitos não microscópicos se tratasse: há os abastecimentos, os reforços, o recurso às armas (também as há de destruição maciça) como obuses de cápsulas, metralhadoras de comprimidos, o fogo de contenção das drageias e profiláticos, os raides aéreos de injeções de antibióticos, etc. Felizmente não estamos na Idade Média, aí as forças do mal levavam geralmente ou muito frequentemente a melhor sobre os exércitos do Rei Saúde. Também não admira, tratamentos à base de publicidade enganosa e de crendices, falta de higiene e fanatismos, não levavam a lado nenhum.
Talvez tivesse sido melhor assim, senão teríamos uma terra hipersuperpovoada ou, mais provavelmente, não teríamos quase ninguém, pois a humanidade, em casos de excesso de população, arranja sempre maneira de se auto-exterminar. É fácil falar e ajuizar quando “não estamos nela”, botar faladura e dizer que eram males necessários (as guerras, as pestes, etc.). Pois, era necessário porque não estivemos lá metidos, senão era uma barbárie, uma injustiça, um crime, só coisas lamentáveis. Porém, a história e os seus acontecimentos irreversíveis têm que ser vistos com os olhos da sua própria época, do tempo em que as coisas aconteceram. Criticar a inquisição, as cruzadas, os métodos cruéis de contenção e castigo do povo, do clero, da nobreza, de todos, é demagógico, será sempre demagógico. Nunca poderemos, em consciência, avaliar, ajuizar; imaginar talvez, mas com uma bem atestada margem de erro. ..............................................................................................................................................
O passado já lá vai, em vez de o utilizarmos como bode expiatório, olhemos por nós abaixo. O meu pai, a minha mãe, o ambiente social, a inquisição, D. Afonso Henriques e Carlos Magno, Mao e Confúcio, todos me afetaram, me pintaram com uma cor. Se não gosto da cor que é produto deste blend, então pinto-me das cores de que gosto, altero-me, modifico-me.
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19H37
A mesma velha rotina. Estou sentado na mesa que tenho reservada no restaurante, à noite, só a largo se não houver lugar para sentar os clientes. Neste meu canto (é logo a 1ª junto à porta, não é um canto), leio, escrevo, falo pouco. Que pensarão de mim os clientes habituais, diários, a quem já vou cumprimentando, ao observarem aquele gajo de meia-idade – o que leva as refeições – sempre a ler e pouco comunicativo? Sei que não interajo muito, prefiro emmimmesmar-me, sinto-me bem assim.
Preocupa-me um pouco esta minha atitude, antigamente era muito social, muito dado à conversa, agora só quero o meu cantinho no mundo, onde não me incomodem nem incomode ninguém. Estarei a tornar-me antissocial, esquizofrénico, bipolar ou qualquer outra desordem mental, da qual não me apercebo? Diz-se que os doidos não se vêm como doidos e eu também me considero normal. Normal! O que é isso? Chove bem, um senhor que acabou de entrar e pediu um copo ao balcão: “O senhor desculpe, letras tão pequeninas! Não me leve a mal”. Claro que não, por que o hei-de fazer? Achei piada, se calhar os homens escrevem geralmente com letras maiores, as mulheres não, pelo menos as minhas filhas. Será também uma questão cultural, o senhor parece ter uma escolaridade básica, ou mesmo uma questão sociológica onde o tamanho importa. Não estou a ser freudiano, não me refiro ao tamanho do pénis, não quero ser tão redutor; os homens gostam das coisas grandes, um reflexo talvez do seu ego e do seu espírito competitivo, intrínseco. Vês, sou mais homem que tu, a minha letra é maior… Mariquices (ou marialvices).
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Estou num daqueles dias em que apetece estar vivo. Este sol outonal, um ligeiro calor excessivo para o pullover e o casaco, um não-sei-quê de nostálgico no ar, como uma despedida de solteiro do Verão que teima em fazer face à chuva e ao frio do seu sucessor, tudo isso de uma alegria triste, uma sensação como que de perda de algo que sabemos voltará. Não é que eu goste do Verão a 100%, detesto muito calor; só gosto dele porque permite praia (não para o bronze, é para estar de molho), ar livre, luz, liberdade de movimentos, eventualmente um passeio até mais longe que o habitual. Olho pela montra, vejo muito trânsito, mais do que imaginava, antes de parar por aqui. Esta Rua de Camões tem um movimento enorme, além do trânsito normal passam imensas ambulâncias, carros de polícia, GNR e até judiciária, é constante. Também nunca vi tanta mota de grande (e pequena) cilindrada como aqui. É a carótida da cidade, diretamente ao coração do Porto. Os mesmos clientes, os mesmos cromos, as mesmas figuras típicas, já quase conheço de cor a sua rotina, como eles conhecem a minha.
Será que se importam, será que me importo, ou fixamos apenas os automatismos porque é da nossa natureza fixar, memorizar tudo, mesmo aquilo que nada importa? Que lhes interessa, que me interessa o que eu/eles fazem ou faço, desde que não prejudique o curso da minha/sua existência. Às tantas interiorizámos a teoria da borboleta, às tantas já nascemos com ela impressa no nosso ADN, já viemos de fábrica com uma espécie de Windows 8 ou 10 já instalado e que não podemos desinstalar sob pena de ficarmos vazios e inúteis, uma máquina sem alma, sem sentido, sem esperança porque não tem expectativas pré-instaladas. Se nos pudéssemos formatar para retirar esses pequenos vícios, hábitos, atitudes aparentemente inúteis, vãs, retiraríamos também a nossa personalidade-matriz e já não seríamos os mesmos, apenas uma cópia, um clone melhorado mas vazio dos defeitos que nos fazem ser quem somos e nos impedem de viver naquele mundo perfeito, demasiado perfeito, onde a única esperança é o suicídio, o não-ser.
E quem nos diz que não-seríamos? Provavelmente apenas mudaríamos de estado, seríamos algo mais…quê? Perfeito? Sensível? Consciente? Tudo isso, nada disso? Estou a assustar-me, parece que afinal o existencialismo está a minar a minha mente e eu não quero, quero apreciar a vida, dentro do possível, das minhas limitadas posses. Não me apetece ficar macambúzio, pessimista, descontente. Acho que fico pelo realismo que, embora sendo um pré-existencialismo não sofre de uma depressão tão grave, apenas observa o mundo tal qual ele é sob os nossos olhos e o nosso entendimento. Sempre gostei de filosofia - e de escrever. Agora entendo um Saramago ou um James Joyce, eles não utilizam muito a pontuação, escrevem ao correr da pena como Jack Kerouac, deixam fluir o pensamento sobre o papel, sem o espartilharem com pontos, vírgulas ou parágrafos. O pensamento é rápido demais para a escrita, quando se escreve, o primeiro corre mais e não o apanhamos. As ideias fogem e não se conseguem fixar, a memória é curta e a torrente muito forte e heterogénea, não há uma linha contínua nem um gravador de pensamentos que possamos fazer voltar atrás e, mesmo que o conseguíssemos, o ruído de fundo seria demasiado forte para poder entender o fio condutor, a linguagem da mente é irrepetível, é como escrever numa sopa de letras em ebulição. Esta sopa de letras é um lugar-comum muito engraçado e também fácilmente moldável, com um pouco de criatividade imaginativa, é como plasticina.
Aliás, um escritor é um arrumador de palavras com talento. Esta aqui, aquela ali, um comboínho com as carruagens certas para cada fim, para cada viagem. Ficção-científica? Pega-se nesta palavra, naquela, duas destas, repete-se a primeira, etc, etc, etc e ponto final. Recomeça-se com outras palavras. Uma tese de mestrado? A fórmula é igual, às vezes quase com as mesmas palavras, mas seguramente com muitas repetições. O que muda é a criatividade, o sentido, a intenção do escritor. Talento? Não só, grandes escritores podem fazer péssimas obras, maus escritores excelentes obras-primas. O momento conta, a ocasião conta, o ambiente conta, o estado de espírito conta, conta tudo, tudo.
4ª Feira, chove, pouco mas chove.
Já estou a ser repetitivo como o tempo. Afinal, tudo vem do hábito, acomodamo-nos ao tempo porque ele nos impõe a sua rotina e nós, habituados a ela desde que nascemos, aceitamo-la sem reclamar, isto claro, descontando a nossa eterna insatisfação com o que temos: “Que chatice, está a chover, que frio”; vem calor: “Que chatice, não se pode andar na rua com o calor, fazia falta uma chuvinha… “ Mas se eu for repetitivo, chamam-me chato, que não sei falar de outra coisa, falta de imaginação, uma seca; pois é, não sou o tempo, não nasci no hábito dos outros, sou um corpo estranho que aparece do nada num determinado momento das suas vidas, não me chamaram, apareci sem licença. “Que vem este cá fazer, alterar as nossas rotinas com uma rotina nova, não, não o aceitamos na sua repetitividade, tem que se adaptar a nós e diversificar ou pomo-lo de parte, quem é que ele julga que é, o tempo? Não queremos a sua chuva persistente ou o seu sol que nunca se põe, vá molhar ou secar outros, foge que ele vem aí, finge que não o vês, senão não te larga sempre com a mesma conversa.” O tempo não, aceitamo-lo como ele é, dá-nos as couves e o bronzeado, é bom e não é chato, só às vezes quando não muda de humor e persiste em molhar ou queimar e apanha-nos desprevenidos. E se agora houvesse um terramoto? O pânico, a destruição, o estupor causado por algo invulgar a que não estamos habituados! A terra abre as suas pústulas, treme de frio e nós, os seus ácaros, fugimos, tentamos escapar, morremos esmagados, recomeçamos tudo de novo. Triste vida a de um ácaro, quando não se auto-exterminam, o seu próprio hospedeiro aplica um acaricida. Sim, porque um excesso de ácaros só pode trazer doenças, epidemias, tem que existir um método de regulação populacional. Os anticorpos da terra fazem o seu trabalho, eliminam por reação ao elemento perturbador o excesso de microorganismos que a atacam.
Pois é, cá estou de novo sentado no café à espera de entregas, a escrever. Afinal o dolce fare niente também custa, é melhor o dolce fare qualche cosa, esse ao menos custa mas é mais útil. Este ciclo que se repete é mais uma aprendizagem na roda da vida, afinal todos os dias se aprende, sem excepção, nos bons e nos maus e os efeitos da fricção entre nós e a dita servem de esfoliante para o cascão de negatividade que nos envolve e do qual nos temos, nesta ou na outra ou noutra, que libertar, é a lei do universo, caminhamos impreterívelmente, inexorávelmente, iniludivelmente e sem apelo nem agravo para uma perfeição longínqua que ainda não vislumbramos e para a qual temos que nos ir, progressiva e lenta, caracolmente, preparando.
Eu acredito na reencarnação, quem terei sido no passado para que a lei do carma me castigue como só eu sinto, diferente de todos os outros, que também só eles sentem o que sentem e pagam o que têm que pagar. É a lei da causa e efeito, toda a acção tem uma reacção diretamente proporcional, afinal não fui assim tão velhaco, não sofro tanto como vejo muitos sofrerem. Não posso dizer que seja agradável mas não tão é horrível, ao menos. Terei que evoluir muito para poder apreciar a beatitude, a comunhão com o divino propalada por S. João da Cruz ou Santa Teresa pois acho para já que isso é uma grande seca ou uma grande pedrada, onde estás bem, estás no céu ou onde seja, estás em contemplação, não precisas das mãos, pés, olhos, ouvidos, nada, é só mente, ausência de sentidos, morte física. Pode ser muito bom, pode ser o máximo mas para o meu estádio de evolução não vale nada, estou muito apegado à existência física, quero comer, rir, cheirar chorar, doer, defecar, quero sentir-me, só sentir-me e aos outros. Raio de vida que nos vicia, esta droga que nos consome e alimenta desde o primeiro sopro.
Tenho um pouco a mania de que sou original, digo muitas patacoadas, palavra que, etimologicamente, significa (pausa de alguns minutos, para ver na internet no telemóvel, que está lenta) feito disparatado, impensado ou tolo, asneira, disparate, patetice, tolice, dito cómico ou espirituoso, brincadeira, piada, ostentação ridícula, bazofia, jactância, patarata (Bras.), endromina, pantominice. Ora, aqui está uma palavra que já quase não existe no dicionário interiorizado dos portugueses, caiu em desuso, era muito utilizada no tempo do meu pai, da minha avó. É quase como o porreiro, que foi sendo substituído por bué da fixe e outras e que muitos jovens já nem sabem o que significa.
A minha avó e mesmo o meu pai e a minha tia, utilizavam termos, expressões, muitas já esqueci, outras, ouço-as de vez em quando e acordam memórias enterradas. Essa minha avó – Ernestina de seu nome, nome fino na época entre os médio-burgueses a que ela pertencia, utilizava muitas vezes quando se irritava com alguém o termo canhão, que só há muito pouco tempo tive a curiosidade de decifrar, e que significa(va) pessoa má, pessoa feia, prostituta e outros nomes igualmente positivos. Há ainda nomes e expressões que perduram na mente coletiva, como anda mouro na costa - velha de séculos – ou coisas do arco da velha, ou qualquer coisa a minha avó torta, ou dar às de Vila Diogo ou chamar o Gregório ou estar no seu estado interessante, ou cair o Carmo e a Trindade. Outras há cujo significado, talvez devido a modismo perdido, caduco, já nada dizem como dar vivas à republica, que eu já nem sei bem o que quer dizer ou armado em Fângio ou à Fângio, assim como o seu equivalente Fittipaldi, que as novas gerações desconhecem. As mais eruditas, essas não se perdem mas estão reservadas para um extrato mais culto: a espada de Dâmocles, a vitória pírrica, o calcanhar de Aquiles, a Odisseia, o Eldorado, o tosão de ouro. Os trabalhos de Hércules, o cavalo de Tróia, a razoira de Occam, a lanterna de Diógenes, etc. Já não chove, a rua quase que secou e eu estou a secar também.
19h13,
a minha mesa do café acolheu-me friamente, como em todas as vezes que me sento, aqueço-a com o corpo. Por outro lado, e utilizando uma metáfora, acolheu-me calorosamente, esperando que lhe faça companhia até ao fecho, outra que aceita as rotinas paulatinamente. A nossa tendência de personalizar tudo é engraçada – como o pensativo cigarro de Eça – embora isso constitua uma hipálage: atribuição a um ser ou coisa de uma qualidade ou ação logicamente pertencente a outro ser, muito típico deste escritor, assim como de Latino Coelho.
Ao fim e ao cabo é uma espécie de personalização, os carros resfolegam, os motores tossem, o giz guincha, as portas fecham-se preguiçosamente ou com urgência, a chuva é impiedosa, o sol é cruel, a lua esconde-se timidamente. Será uma hominização inocente, criada para facilitar a compreensão do mundo ou trata-se apenas de uma classificação redutora, egocêntrica, antropocêntrica, chauvinista e escravizadora do mundo que nos rodeia? Ou ambos? Costumo fazer muitas perguntas a mim próprio (quando não aos outros, embora mais raramente) àcerca da minha pessoa, do que me rodeia, do mundo, dos porquês, do como, das razões. Ainda ontem falei no carma (ou karma, num estrangeirismo mais acentuado), será que abrange tudo, os homens, os animais, as plantas, os minerais, as partículas subatómicas, os seres unicelulares, tudo? Então o carma é o efeito borboleta, tudo tem ligação com tudo, cada gesto, cada pensamento, cada grão microscópico de poeira que cai, cada micróbio que se desloca, cada átomo, provocam uma reação em conformidade.
Estou então aqui a escrever exatamente isto porque há – usemos números mensuráveis – um bilião de anos e a um trilião de anos-luz uma partícula finíssima de pó caiu em cima de um micro-organismo originando desse modo o término da sua existência como vida ou pré-vida, dando origem a uma sequência infinita e em todas as direcções, de não-acções, as quais teriam sido executadas pelo falecido, o que deu origem a outra sequência de acções que provavelmente não existiriam e que hoje condicionaram aquilo que estou agora a escrever devido a todo este conjunto inimaginável e incomensurável de circunstâncias e não-circunstâncias. Complicado, não é? E ao mesmo tempo tão simples!
12h30, dia 29,
as datas não interessam, a escrita é intemporal, a não ser que seja histórica ou jornalística, tudo o mais é ao sabor do escrevente, tanto faz relatar um dado ficcionado, uma história de amor ou mesmo uma vivência hoje ou ontem ou daqui a uma semana. A escrita é o pensamento feito matéria, é o gravador que envia para a posteridade (qualquer momento após um acto é posteridade) as ideias do seu autor, sem o qual este seria mais um anónimo, apagado, no meio de outros incógnitos. O génio está em todos nós, todos somos génios, não o sabemos, não o sabemos expressar, o que distingue os génios conhecidos de nós – génios desconhecidos – é o seu testemunho escrito, o que não pudemos, não podemos, não conseguimos, não sabemos ou não nos damos ou demos ao trabalho de transpor em símbolos, para que os vejamos, para que outros os vejam, para legar ao futuro, qualquer que ele seja, o que pensámos um dia.
A escrita é como o carimbo numa carta, marca a nossa individualidade, impressa para sempre. Ou até que, como as cartas, alguém um dia a deite fora e destrua essa nossa marca para sempre, nos apague da memória como se de um ficheiro de computador se tratasse. Quando a minha tia adoeceu passei muito tempo com ela, sentado na cama a ver fotos antigas, as tais que ninguém sabia de quem eram, guardadas por quem sabia. Ela - a minha tia - estava com um cancro que sabíamos que a mataria mais tarde ou mais cedo, havia urgência em preservar as suas memórias que eram e são também as nossas. Mostrava-lhe as fotografias e perguntava-lhe quem era, grau de parentesco ou amizade, ligações ainda existentes ou quebras de continuidade e escrevia nas costas das ditas fotos esses dados. Só assim, pela minha previdência, foi possível criar uma cópia de segurança gráfico-fotográfica das memórias que em breve seriam apagadas. Mesmo assim: a tua avó é que sabia quem era, não sei, já não me lembro, era por vezes a resposta. Que pena, informação histórico-genealógica tão importante e tão irremediávelmente perdida!
Dizem que o universo regista no éter todos os seus acontecimentos, como uma gravação, o registo akáshico. A ser verdade, um dia talvez pudesse rever todos esses dados, encontrar hiperligações e memórias perdidas, mas também estou convencido que, se tal for possível, quando essa altura chegar, evos-luz no futuro, já estarei numa fase de desenvolvimento na qual essas curiosidades serão ninharias, não tal como a primeira camisa que vesti (há quem dê valor a isto) mas como o copo de água que bebi ou o arroto que dei há 37 anos, 3 dias, 17 horas e 23 minutos. Tudo é relativo, cada vez mais e cada vez mais vago, como as tais cartas que deitamos fora ao fim de alguns anos, importantes no momento, diluindo-se no futuro até se tornarem etéreas, esfumando-se na não-importância.
13H00,6ª FEIRA
Saudades da infância. Boa ou má, a infância marca, deixa o sabor nostálgico de uma ignorância e irresponsabilidade idílica, de uma descoberta do mundo feita de surpresas, dor, alegria, desengano. As ilusões, o faz-de-conta, o mundo de fantasia onde um pau ou uma pedra, um insecto, uma semente, um fruto, eram um personagem, um actor no nosso - só nosso - teatro imaginário, feito de histórias sem nexo, sem guião, feito das nossas alegrias, desilusões, ressentimentos, aprendizagens. Locus amoenus, a Arcádia infantil, as histórias de amor e sexo sem amor e sexo, platónicas, irrealidade intensamente vivida e gozada e sofrida. Não há noção do bem e do mal, os insetos são soldados-escravos das nossas guerras, bonecos que desmembramos a nosso bel-prazer, cruelmente, sem crueldade. Pobres insetos que torturei! .....................................................................................................................................................
Segunda-feira, 29 de Outubro de 2012
Ex. mos(as) Senhores(as) Escrevo esta carta para que saibais (que fino!) que estou aqui, estou vivo e de boa (?) saúde. Sou um desempregado, licenciado, aborrecido, pré-deprimido, pré-obeso, hipertenso e hipercolesterólico (é assim que se diz?), mas não farto da vida, esperançado, positivo (às vezes), otimista (às vezes), à procura de um sentido na vida e de um ataque de força de vontade. A Esperança é a minha amante e a minha mulher não se importa, afinal ela (a Esperança) é a amante consentida de toda a gente, é aquela a quem recorremos quando estamos sós no mundo ou sós com outros “sós”.
O Outono apareceu de mansinho, chove, faz sol, faz calor, está fresco, as folhas vão caindo controladamente, nada de urgências, há muito tempo para hibernar. Nós não hibernamos, por isso não nos despimos progressivamente como as árvores, a nossa hemolinfa, a nossa seiva é quente, podemos congelar. Os animais cobrem-se de pelo, as árvores despem-se de folhas. Há um turbilhão de ideias, de ideias dentro de ideias, de não-ideias, de ideias em germinação e de ideias caducas que me atravessam o compartimento de comando. Se todas fossem viáveis, se todas fossem escrevíveis, decifráveis, passíveis de descodificar, que obra-prima teria pela frente! Seria o escritor dos escritores, o filósofo dos filósofos, um hiper-Platão ou hiper-Confúcio. Os mestres, os génios, existem para se contraporem à mediania, para se destacarem, não de um modo egocêntrico mas altruísta, messénico. Se todos fôssemos génios, qual o sentido da vida?
O “ignorante” esclarecido absorve, aprende sofregamente os ensinamentos – qual ovelha sôfrega de relva; o mestre, o sábio, saboreia-os lentamente, com paciência e discernimento, pachorrentamente como uma vaca numa pastagem, que rumina o seu pasto. Há pois que dar graças por existirem mais ovinos que bovinos na humanidade. Símbolos, símbolos, símbolos, somos um animal muito complexo que vive de signos, metáforas, parábolas, ditados, projecções e comparações. É bom sinal, não estamos satisfeitos, no bom sentido, com a vida que temos, queremos mais e melhor, queremos chegar ao fundo para saber o que lá se encontra, mais, mais, sempre mais.
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21H15
Sol de Outono, tempo ameno. O dia promete ser bom. Vejo na rua o movimento dos meus congéneres, é uma lufa-lufa constante, para onde irá, o que irá fazer, quem é o dono deste carro parado nos semáforos? E a senhora que está aqui sentada no café, e a que entrou? Este é pintor ou trolha, nota-se pelas calças, é intervalo do trabalho. Todos passam por mim, ignoram-me, ignoram-se mutuamente, que importa para as suas vidas aquele ou aqueles que passam, desconhecidos, gente sem nome nem profissão, gente que não tem individualidade, é uma massa amorfa, um cacho de uvas feito por muitos bagos anónimos, impessoais, indiferentes.
Eu sou, eu tenho individualidade. Puro engano, eu sou só para mim, os outros Eus olham-me sem ver, também sou amorfo, indiferente. Só dois opostos nos fazem sair da não-existência: as afinidades e os antagonismos; os primeiros porque tentamos alargar um conjunto de Eus que contam, semelhantes, os outros porque tentamos destruir os estranhos, os diferentes, aqueles que não nos partilham. Causa e efeito. Por vezes admiramo-nos com as pessoas que nos rodeiam e que não conhecemos de parte nenhuma. Claro que as conhecemos da convivência de café e eventualmente começamos a cumprimentar, mas nada mais.
Ontem, após observação da minha incapacidade física temporária (o joelho inchado - caí) um desses tais anónimos acercou-se de mim e perguntou-me o que se passava, após o que me começou a dar determinados conselhos e indicar produtos para friccionar, como o álcool canforado. Agradeci e, entretanto, ele ausentou-se, voltando alguns minutos depois com um frasco do referido produto, que tinha entretanto ido comprar na farmácia e ofereceu-mo. Esta manhã, outra ilustre desconhecida diária a quem nunca cumprimentei até hoje, liberta a sua até então fechada solidariedade e pergunta-me se estou melhor. Faz-nos sentir bem esta onda de interesse desinteressado pelo nosso estado de saúde e, ao mesmo tempo, permite-nos uma parte de remorso por muitas vezes não sermos capazes de agir do mesmo modo. As situações passam por nós e não agimos, às vezes fazêmo-lo já demasiado tarde ou pensamos que poderíamos ter feito algo mas não fizemos, é uma espécie de desculpa dizermos que estávamos para o fazer mas lembrámo-nos demasiado tarde, é um certo aliviar de consciência dizer a nós próprios que afinal não somos assim tão maus diabos, até estivemos para o fazer. Pois, hipócritas, auto-hipócritas, embora esse termo não exista.
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Outro dia, outra noite, as minhas conversas com o papel estão a ficar mais espaçadas e curtas. Não é que não queira, às vezes não dá ou estou ocupado com outras pequenas ninharias. No meio de tudo isto, sinto-me feliz porque estou vivo, por ser quem sou, por ter quem tenho, por suportar os meus problemas – o sal da vida, como se diz. Bem, às vezes a vida fica demasiado salgada e isso faz mal ao fígado e à tensão arterial, mas lá se vai conseguindo pôr água na fervura para que o caldo não entorne. Se eu fosse mais novo e sem filhos, correria mundo, tenho pena de ter sido tão trengo, tão provinciano, tão inseguro quando era jovem. Tanto para conhecer e eu metido no meu canto, tentando sentir-me confortável, que tremendo desperdício.
Agora lamento as oportunidades perdidas, o suor não derramado, o frio não tremido, a dor não sentida, a alegria não experimentada, a vida que nunca vivi e que é já demasiado tarde para que nasça. É a nostalgia das vivências desperdiçadas, a saudade de um tempo que nunca existiu. Experiência é evolução, toda a experimentação, positiva ou negativa, traz consigo um novo passo, um novo degrau para o conhecimento. Lamento. Lamento mas sigo em frente, o leite já está derramado, não presta, não importa, mais à frente há mais leite, há mais oportunidades para beber ou derramar.
5 de Novembro, um primaveril dia de Outono.
Está fresco mas o sol brilha, não vai chover hoje. Estou um pouco vazio de pensamentos, de anseios, hoje, e isso preocupa-me. Não ter objetivos é stressante e preocupante, nada se faz sem eles. Falta-me a pica, a força de vontade para prosseguir, estou a seguir ao sabor da maré, assim não vou a lado nenhum. Quem não tem remos, rema com as mãos. Estou mesmo num dia de “guarda para amanhã o que podes fazer hoje”, porém não o vou fazer, tenho que iniciar ou continuar algo para não entrar no marasmo de um dia sem sentido, sem produção, sem nada que o distinga dos outros dias improdutivos e inúteis que ensombram a minha existência, aqueles para os quais olhamos mais tarde e dizemos para nós próprios que foram desperdícios estúpidos e que estamos tão longe dos nossos objetivos ou realizações como se eles nunca tivessem existido. Se eu retirasse todos esses dias “não existentes” da minha vida, teria só 5 ou 7 anos de idade, o resto teria sido uma total inutilidade uma não-existência amorfa, uma dor de alma de esbanjamento de acção.
Afinal queixamo-nos da vida mas nada fazemos para a melhorar, ou pouco, demasiado pouco. Nem tentamos, limitamo-nos a pensar na dificuldade em atingir os objetivos e concluímos que nem vale a pena tentar ou que é muito moroso ou mesmo penoso prosseguir e então desiste-se antes mesmo de começar. .............................................................................................................................................
17 de Outubro, sábado.
Dia calmo a ameaçar chuva, vento fraco, temperatura amena. Pareço o boletim meteorológico (metriológico, como ouço frequentemente, até na televisão, aquela caixa que deveria educar o mundo). Curiosamente, tudo aquilo que deveria educar o mundo, torná-lo mais “apetecível”, mais próprio para viver, aligeirar a carga pesada que viver representa hoje e sempre, apenas tem utilidade diametralmente oposta, o mundo está cada vez mais burro (que me perdoem estes inteligentes animais), mais cruelmente individualista, um local onde um humanismo podre empurra todos para a sarjeta, tenta rebaixar todos os que não se chamem “eu”, sejam amigos, inimigos, desconhecidos ou familiares, homens, mulheres ou crianças, brancos amarelos, vermelhos ou negros. Num mundo onde mesmo diferentes espécies de animais por vezes se entreajudam, voltámos à lei do mais forte, do mais apto, onde não há lugar para falhas, voltámos à animalidade, à bestialidade dos predadores.
Desde a Revolução Industrial (desde sempre) o progresso humano visou retirar carga laboral, reduzir a percentagem temporal do esforço e aumentar a sua homóloga do saber, do lazer e da família. Infelizmente, a raça humana destrói o que constrói, não reformula, caotiza, complica, monopoliza o bem-estar em detrimento de todos. A sociedade pré-revolução industrial era má, vivia-se mal, sobrevivia-se mal. Mas, e agora? Será que vivemos melhor? Sim, é certo que vivemos muito melhor, mesmo os pobres. Segundo os nossos padrões, vivemos muito mal, estamos mal habituados, queremos água encanada, eletricidade, telefone, uma casa, dinheiro para esses luxos e para comprar alimentos.
Há 500 anos nada disto era necessário (nem existia, quase tudo). Cada um construía a sua casa, caçava ou cultivava o que comia, fazia as suas próprias roupas, buscava a água no rio ou ribeiro, alumiava-se com gordura animal ou numa fogueira. Seria esta época assim tão má como a história a pinta ou os relatos desses tempos estão tintados pelos nossos luxos pós-adquiridos, por uma visão moderna de uma vida onde se tinha que trabalhar (no real sentido do termo) para poder sobreviver? Só o registo akáshico o poderia dizer…
19 de Novembro, céu encoberto.
No meu canto do café vejo confortavelmente (é pena a cadeira ser tão dura) o movimento da rua. Não se passa nada (em sentido figurado, claro). Caras conhecidas que passam, caras desconhecidas que passam, rotinas repetidas, movimento incessante. Sinal verde, arrancam todos, os raros (?) peões esperam, do outro lado os peões avançam e os carros estão impacientemente em ponto morto. Uma corrida, os veículos já avançam quase ainda no vermelho, parece que estão atrasados e têm que recuperar as centenas de metros que perderam ao esperar um minuto no semáforo. Aceleram… e param logo no próximo sinal vermelho. Há que chegar depressa a esse semáforo fechado para poder stressar com mais tempo ou, quiçá, escrever aquele SMS ou passar os olhos por qualquer literatura, seja jornal ou documento ou perder-se, embrenhar-se nos pensamentos, uma espécie de dormir acordado que o despertador da buzina do carro de trás se encarrega de interromper.
Pé no pedal, que as nossas cogitações não interessam a ninguém, está a dormir ou quê??, vêm estes nabos para a rua estorvar os outros, se não trabalhas, há quem trabalhe!! E passou. Daqui a segundos já ninguém se lembra que estava irritado com aquele gajo que nos impede de curtir os sinais vermelhos, já passou à história. Se calhar esse que insultámos estará posteriormente sentado à nossa beira ou perante nós, em qualquer negócio, qualquer transacção, a conversar amigávelmente, ambos sem a mínima consciência daqueles insultos trocados ou recebidos entre anónimos automobilísticos.
Essa selva temática é igual a tantas outras como a política ou o futebol onde, após as mais insultuosas trocas de mimos, tudo está bem, os amigos voltam a ser amigos, nada se passou, ninguém se lembra de nada. O sinal abriu, ruído dos motores, eventualmente pneus a chiar, uma aceleradela para passar o amarelo porque assim conseguimos atingir o próximo vermelho para sentir o nosso stress de estimação. Passar com o verde não tem graça, fica tudo livre e lá se vai o gozo. ..................................................................................................................................................
Não estou muito inspirado, sinto-me cansado, vazio, esgotado de forças, não sinto grande impulso anímico para escrever ou seja o que for. Não posso, porém, esmorecer, desistir, parar é morrer. Escrevo então para me manter vivo, a mim e às minhas memórias, fruto de outras e raiz de muitas mais. As memórias das minhas filhas passam por mim, há nelas algo do meu passado, algo que lhes leguei, mais que o meu ADN ou talvez parte integrante deste, uma partícula, um micro-chip das memórias da família, da raça, da humanidade, todas as suas experiências, todos os seus medos, todas as suas esperanças e destinos.
Estou a ler O meu livro secreto de Francesco Petrarca. É um livro interessante, adaptado à leitura moderna, porém num estilo que não aprecio muito. Os ensinamentos são interessantes, muito ao estilo dos diálogos moralistas da época, mas talvez um pouco massudos, por divagarem demasiado. Mesmo assim, vale a pena ler. Ao fim e ao cabo, é um clássico e devemos ler os clássicos, são a base do conhecimento e da literatura moderna, além de que são essenciais para uma boa base de cultura geral (um bocado confuso, mas vou deixar assim).
Back to life, ou antes, back to creative (?) writing. Eis-me a tentar ser original de novo a tentar fazer valer a tinta com que escrevo. Bem, a caneta foi oferecida, por isso a prosa não deve ter muito valor. Não interessa, como em jovem não consegui pôr em prática o projeto de escrever um diário, processo abortado, agora que estou a caminhar para velho deu-me para isto. Pode ser que após algumas resmas de papel estragado e alguns milhares de quilómetros de tinta gasta, surja algo que valha a pena ter sido escrito. Todas as vezes que escrevo tenho a sensação de que estou a criar algo aproveitável, quando releio apercebo-me que ainda acredito no Pai Natal, mas não desisto, desistir é assumir a derrota e isso nunca se deve fazer, há que ser persistente e lutar por um sonho, seja ele qual for, dentro da normalidade e moralidade, claro.
O meu sonho é ser escritor e, “c’um raio!”, hei-de conseguir, nem que seja no caixote onde serei confinado para servir de adubo orgânico ou de fertilizante em pó, vulgarmente chamado caixão. Talvez daqui a 500 anos estes desabafos apareçam algures, no meio de umas ruinas e serão tratados por biólogos, químicos, psicólogos, linguistas, arqueólogos, psiquiatras, filósofos, etc., e sejam considerados matéria de estudo, quiçá uma análise sociológica ou até uma obra-prima do período X. O mundo dá muitas voltas e o que hoje não tem valor, amanhã não tem preço. De nada me valerá, porém. A minha memória ou qualquer memória de mim provavelmente já não existirá, será como aquela tal carta que deixa de ter valor, que ninguém sabe de quem é e que vai para a reciclagem ou nem isso, para o oblívio dos cacos velhos, restos de uma bela habitação, demolida e despejada no entulho. Com um pouco de sorte será reciclado e transformado em papel higiénico – o produto final dos livros, dos jornais, das teses, das revistas, das bulas, das embalagens, dos poemas e dos tratados, a suprema igualdade e suprema ironia. Depois junta-se a mim e aos outros antes de mim e àqueles que me sucederão e será de novo árvore e pasta e papel e caderno e livro e lixo e reciclagem e papel higiénico, um ciclo talvez eterno. Ou seguirá o rumo alimentar e será adubo de plantas que alimentarão os homens que alimentarão os animais, que alimentarão outros animais, que alimentarão insetos que adubarão a terra que alimentará as plantas que alimentarão os homens que alimentarão……. O mesmo ciclo, visto de outra perspetiva.
Para quê escrever, então? Por vaidade? Por gosto? Por necessidade? Porque não tem nada que fazer e há que ocupar os tempos mortos? Por vocação? Será a escrita uma forma de ADN pelo qual tentamos projectar, legar ao futuro os nossos genes feitos símbolos a descodificar pelos vindouros? Talvez nada disso, talvez tudo isso. Meras conjecturas. Pergunta a 10000 pessoas e terás 8743 respostas diferentes, umas parvas, outras originais, possivelmente nenhuma próxima da verdade, se ela existe. Cada cabeça, cada sentença.
22h11, em breve vou para casa.
Os últimos minutos são sempre os piores de passar, desdobram-se, triplicam-se, incham, passam a ter 80 ou 90 segundos e, depois do alívio da saída, voltam ao normal ou encolhem, geralmente encolhem. 1
3h15, 21 de Novembro,
dia solarengo, fresco, com uma frescura a sugerir mais frio. É curioso que, embora o outono esteja nos antípodas da primavera, logo com características meteorológicas similares, também está nos antípodas da nossa perceção mental do fenómeno, ou seja, no outono o frio sugere mais frio, a chuva mais chuva, enquanto na primavera o mesmo frio e a mesma chuva sugerem mais calor e menos precipitação. O frio é o mesmo, a chuva é a mesma, a interpretação da mente é que diverge, como se o seu termómetro e o seu pluviómetro se invertessem. .................................................................................................................................................
É 2ª feira,
grande seca, como de costume. Nem uma refeição saiu. Dá-me tempo para pensar na minha vida e tentar dar-lhe um sentido. Não é fácil, o pensamento tende a esvair-se, a deambular por parvoíces sem utilidade, a distrair-se com insignificâncias, sem ir ao âmago das questões, sem realmente analisar e sintetizar, sem decompor e dissecar os problemas e imaginar soluções. A utilidade do pensamento, o pensamento útil é aquele que produz algo, que soluciona, que desenvolve; não é meramente retórico, pensamento mecanicista, pensamento vazio, sem limites, desfocado, inútil, por não dirigido.
3ª feira, dia neutro e frio.
Reparei que estou a ficar velho e que já não me importo muito. Há 10 anos fiquei chocado, chocadíssimo, quando, por um acaso e por uma circunstância que não vale a pena expor, me apercebi que estava a protelar o meu envelhecimento. A velhice é como uma doença grave, só acontece aos outros, nós somos sempre jovens. E, um dia, ela dá-nos um grande estaladão e acorda-nos. Dói, magoa bastante, mas passa. O indesejado passa sempre por aquelas três fases: o estupor, a negação, a aceitação ou resignação. Ser velho tem as suas vantagens, as suas constatações, é-se mais sábio, mais ponderado, mais experiente. É também um espelho desfasado onde miramos a nossa imagem do passado e vemos o que deveríamos ter sido e não fomos. Não por estupidez, mas por juventude. Vamos criticar um jovem por ser jovem? Não. É da sua natureza fazer asneiras, perder oportunidades, correr perigos, ser cego e surdo aos conselhos dos mais velhos, desbaratar energias, desperdiçar tempo. Agora roo-me todo ao ver as minhas filhas fazer os disparates que fiz, é natural, sou agora o que todos deveríamos ter sido em novos, lamento o inevitável que faz parte da natureza humana e de todos os animais jovens, em geral. Haverá em tudo isto a sensatez da idade e, quem sabe, uma pontinha de inveja por já não poder fazer o mesmo, por já não poder ser irresponsável, despreocupado, enfim, liberto do peso da gnose que a vida mais longa nos proporcionou.
Ser jovem é (geralmente) ser livre e ser livre implica riscos elevados que já não quero ou posso correr e que tenho pena de não poder. A minha vida é o que é, foi o que foi, tenho que me contentar e sentir feliz por isso, há muitos que ficaram pelo caminho.
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A ociosidade traz consigo a falta de tempo, o cansaço, a depressão, a frustração, a obesidade, a doença e muitos outros substantivos preocupantes mas, neste momento, o mais problemático é a proposição substantiva “falta de dinheiro para mandar cantar um cego”. Raiz de todos os problemas do nosso atual estado “civilizacional”, esta premissa tem a cabeça a prémio em quase todas as mentes e, apesar de poucos países adotarem a pena de morte, todos eles louvam o seu assassínio, não importa com que requintes de crueldade. Guantanamo, Carandirú para ela, cremação, extermínio, limpeza étnica, solução final. Seria um bem para todos. Utopias, desabafos de uma mente desocupada, ou talvez não. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce, lá diz o poeta. Se Deus quiser… nesse sentido Deus não quer nada, ele é uma entidade global que corresponde à lei da causa e efeito, do carma.
Mas, demos voz ao poeta: Se Deus quiser e o homem aspirar fortemente, os resultados aparecem, não rapidamente, como por milagre, mas muito gradualmente, ao sabor da vontade de gerações incontáveis. Os resultados são lentos, lentíssimos para a nossa limitada capacidade de medir o tempo, baseada no nosso próprio tempo médio de vida. Contudo, para o Universo, que não tem tempo nem necessita dele para nada, as coisas surgem num ápice, um estalar de dedos, just like that! A nossa limitação temporal comporta impaciência, vontade de ter e fazer tudo “enquanto o diabo esfrega um olho”. Mas… quanto tempo leva o diabo (se ele existisse, para além de mera metáfora) a esfregar o dito? Como o Universo, o infinito, não tem tempo, não tem essa unidade de medição própria dos seres vivos e consciente apenas (?) para o homem, esse esfregar tanto pode ser considerado algo que antes de ser já era ou um movimento cuja concretização “dure” tanto ou mais que a formação do próprio Universo. E aqui estamos a falar de valores e conceitos muito para além da nossa limitad(íssim)a compreensão.
Este raciocínio é muito interessantemente frustrante ou muito frustrantemente interessante, ou os dois. Quanto mais se tenta concluir, atingir o mais ínfimo grão de verdade, mais nos afundamos em areias movediças constituídas por um areal infinito de grãos de, cada um, uma verdade possível ou, quem sabe, uma verdade real, incontestável. Chegamos a um ponto em que cada grão que analisamos é uma verdade indiscutível e, ao sê-lo, contrapõe-se, anula todo o vasto areal indiscutível circundante, transformando por oposição todas essas verdades indiscutíveis em mentiras indiscutíveis.
Onde está a verdade então, se por oposição, é tudo mentira? Vivemos ou não existimos, pensamos ou é tudo pura ilusão? Mas nós sabemos que estamos vivos e que pensamos. Ou não? Será que sonhamos que vivemos? Há quem diga que a vida é um sonho e os que morrem é que acordam para a verdadeira vida. Em que ficamos? Um círculo vicioso do qual não sairemos, a não ser que nos agarremos a uma aresta, uma qualquer, que passará a ser a nossa verdade, a verdade verdadeira. Por isso todos temos a nossa verdade e que difere da verdade dos outros. É uma tábua de salvação a que nos agarramos para sobreviver, para não cairmos num estado vegetativo ou de loucura, produto da incapacidade de escolher uma verdade para seguir. Ou uma mentira.
Dia seguinte ao dia anterior, 13h11.
Por vezes penso que o que escrevi numa outra data ou circunstância, à luz dos factos, da minha lógica do momento, não faz muito sentido, é confusa ou um total disparate. Temo reler o que escrevi para não me arrepender de o ter escrito. Será que o meu raciocínio é compreensível para os outros, para mim próprio, ou tudo não passa de um devaneio, de uma loucura ou descarga momentânea, anárquica, irregular, disparatada, de pensamentos sem nexo, cheios de pontas soltas e inconsistências? Voltamos ao velho círculo vicioso de pensamento, onde as certezas são escorraçadas como um cão tinhoso (velha e já pouco usada expressão), local onde a verdade e a mentira, a certeza e a incerteza, o real e o imaginário se confundem. Pois, só nos resta escolher uma verdade (ou mentira) plausível, pelo menos para nós, e seguir em frente com a nossa vida ou não-vida. A existência é uma charada chalada. ....................................................................................................................................................
Por que escrevemos, que impulso nos leva a transpor para o papel os imperfeitos símbolos que transmitem o que nos vai lá em cima, na sede, na central? Há uma necessidade quase física de testemunhar, de tentar materializar o pensamento em algo não etéreo, palpável, nem que seja para escrever e deitar fora ou guardar bem no fundo de um qualquer esconderijo indetetável, com a certeza de que não nos servirá rigorosamente para nada, nem sequer os iremos reler no futuro.
Para quê, então? Autoafirmação? Quero, posso e escrevo? Descarregar a estática do espírito, feita escrita? Dizem que gritar alivia tensões, é verdade, sentimo-nos outros quando o fazemos. Vivemos em sociedade, não seria muito prático andarmos aos gritos na rua feitos tolinhos, só para queimar stress. Então a escrita é um grito silencioso que emitimos e que só é ouvido se nós quisermos. Há muitos esconderijos, muitas gavetas cheias de preciosos gritos que ninguém ouvirá e que pena que isso representa. Imensos gritos anónimos em prosa, em poesia, verdadeiros tratados, romances, testemunhos, dramas que nunca verão a luz do dia nem a luz de nenhuns olhos. Gritos inúteis, perda de tempo? Não, cumpriram a sua missão, ajudaram alguém a gerir a sua mansão intelectual e a aliviar a tensão dos alicerces da sua componente física.
Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, lá dizia Lavoisier. O homem e os seus gritos voltarão ao pó original e de lá reerguer-se-ão incontáveis vezes, enquanto existir o Universo. O pensamento é como a bexiga: quando está cheia, temos que urinar. Uma mente cheia tem que se aliviar de qualquer modo, senão rebenta. Quando está vazia, por mais que se tente, não sai nada. Há às vezes um bloqueio, uma pedra na bexiga que impede a micção. Aí dói e nada sai. Acho que, de vez em quando ou permanentemente, cada um de nós humanos tem a sua pedra na bexiga, que não dói mas pode matar, ou seja, dói, dói uma dor que nos pode levar à loucura e à morte. ...................................................................................................................................................
O dinheiro, ou antes, a necessidade que criámos dele, origina muitos problemas e, tal como uma droga, provoca ressaca, crime, mal entendidos, ruturas, discussões, zangas, um sem número de males. Ele tolda-nos a visão, faz-nos agressivos, por vezes injustos. Diz-se o que não se quer dizer, faz-se o que não se quer fazer. Que é feito da pureza original, do Éden perdido, da comunhão com a natureza, da partilha, da comunidade? Infelizmente, para o nosso mundo, para o meu mundo circundante, morreu, não volta, não tem condições para voltar, tornou-se um mal necessário para, paradoxalmente, a tentativa de conquista da felicidade .....................................................................................................................................................
Como será (a haver, o que acredito) a reencarnação? Alguns apontam para um intervalo médio de cerca de 700 anos, mas eu não creio. A meu ver, a reencarnação ocorre sempre que estejam reunidas as condições mínimas de causa e efeito que constituem a lei do carma; ou seja, sempre que determinado ambiente, determinada família, determinadas circunstâncias físicas e espirituais estejam reunidas, a dita consuma-se. Acredito também que, no interregno, o espírito vestido do corpo etéreo que é a alma, sofre intensamente as consequências dos vícios que adquiriu, por não ter o corpo físico como filtro atenuador.
Em suma, uma reencarnação é algo extremamente complexo, impensávelmente complexo para nós, apenas concebível e executável pela suprema inteligência que rege o universo. Voltando a uma conversa anterior, esta é a minha verdade, aquilo em que, mais ou menos, acredito e me mantém são de espírito num mar de contradições impossíveis possíveis. Acredito com dúvidas no que afirmo, apresento-o como uma teoria credível e adoptável, pela qual não ponho as mãos no fogo. Será falta de fé, insegurança, inconstância, ou apenas uma visão realista, onde o mundo é visto como algo em que os sentidos não podem confiar, que existe, palpável ou em sonho, mas existe. Se, enquanto sonhamos, sentimos odores, tacto, vemos, ouvimos, pensamos, sentimos dor, alegria ou tristeza, náuseas ou tonturas, medo, desequilíbrio, fé ou insegurança, quem me garante que não estou a sonhar, quem me nega que, como diz Lope de Vega, la vida es sueño?
Penso, logo existo – acredito. Mas, penso acordado ou a dormir? Sim, porque, tanto naquilo que consideramos vigília como no que consideramos sonho, nós temos pensamentos. Qual é a diferença? Só porque, quando “acordamos” nos apercebemos de que tudo era irreal e algumas situações eram experienciadas como disparates, não significa que estivéssemos a dormir, pois também quando “sonhamos” a vida física nos parece irreal. E a quem não sucedeu já, saber que está a sonhar? Então, se se sabe que se está a sonhar, isso é sonho? Ou realidade? Confuso, muito confuso.
Faltam 5 dias para o Natal, não parece. O espírito natalício está ausente, não sei se de mim se de tudo o que me rodeia. É um natal austero a todos os níveis, o meu mundo está a mudar imenso. Já não o reconheço, é triste. Parece que se nota uma certa melancolia no ar, as pessoas andam preocupadas, macambúzias, quase tristes, no mínimo, indiferentes. A quadra já não é uma época de alegria e paz, é uma fonte de preocupações e stress, um período de tensão acumulada onde os sentimentos negativos, sedentos de protagonismo, cevam, ébrios de prazer, o sangue psíquico dos desfavorecidos, banqueteiam-se de dor e desespero, empurrando para o abismo aqueles que se deixam convencer pelos seus argumentos falaciosos. Observo o meu mundo da montra do café, esse meu mundo que é, afinal, o mundo dos outros, onde sou um mero figurante de um palco incomensurável, um grão na praia humana. Eles passam, como formigas, num vai e vem constante, atarefados, transportando as suas larvas, nos seus casulos, levando alimento e materiais para os seus ninhos. Ocasionalmente encontram-se, tocam as antenas, comunicam, recomeçam o ritual, dia após dia, momento após momento. Metáforas, metáforas…
É noite e chuvisca, uma espécie de solstício de verão, mas invertido, um S João invernal. Estamos a dobrar a fasquia da noite mais pequena do ano, a partir daí os dias crescem de novo e voltamos a caminhar para o verão em contagem decrescente. O que mais gosto nestes momentos de solidão (se é que se pode chamar solidão ao ato de estar sentado num café com gente a entrar e a sair) é a possibilidade de me interpretar, de pensar um pouco na vida, no passado, no futuro, nas pessoas, em tudo. Faz-me ter uma consciência relativa de onde, quem, como, porque sou e, likewise, aonde me insiro, pertenço, interajo. Digamos que me permite ler o manual de instruções que me acompanha a mim e ao mundo e que, tal como todos os manuais de instrução, descuramos, deitamos fora, procurando-o em vão em caso de avaria. Tarde de mais, perdeu-se, reaprendemos ou reescrevemos o manual por empirismo, esbanjamos o nosso pouco e precioso tempo em reconstruções e remendos. Conhece-te a ti mesmo – já diziam os filósofos antigos, a máxima gravada no templo de Delfos. É esse o nosso manual de instruções, aquele que nos faz – e ao mundo – funcionar em pleno é esse o manual que perdemos num passado longínquo (ou que nunca escrevemos) e que temos que elaborar, pedra basilar do conhecimento do Universo. .................................................................................................................................................
28/12
Mais 4 dias, já passou o natal, ano novo à vista, bom tempo. A vontade é como as marés, vai e vem, sobe e desce, tem que se aproveitar a maré para mover o moinho de ondas que nos dá energia. Sento-me aqui parado, a vaguear, a tentar engatar um fio de pensamento útil, qualquer coisa válida pela qual valha a pena perder tempo e escrever. Nada, estou vazio, só estática, a estática básica que todos temos diariamente, pensamentos vulgares, fúteis, corriqueiros sobre as coisas vulgares, fúteis, corriqueiras que pensamos diariamente e que compõem mais de 90% da nossa atividade mental, aquela que nos mantém no rebanho de carneiros que somos até termos algo de diferente saído da nossa massa cinzenta, do representante físico do nosso espírito, daquilo que realmente somos e que raramente transparecemos. Ideias, faltam ideias, as originais, aquelas que vale a pena ter, aquelas que nos mudam e ao mundo que nos rodeia.
O grande problema é pensar, temos que aprender a pensar, é tão difícil, não sabemos como, temos que aprender, a maioria das vezes é empírico, é difícil, custa e por vezes desiste-se. Somos todos poços de sabedoria, arcas, bibliotecas de conhecimento enterrado que esgravatamos com as mãos nuas para pôr a descoberto. Raros são aqueles que usam uma pá e a sabem utilizar, raríssimos os que têm acesso a uma retroescavadora, esses são únicos, verdadeiros sábios, seres extraordinários, raros. A maioria diz que não vale a pena o conhecimento pois nunca conseguiremos amealhar senão uns reles grãos de areia, e desistem, preferem o embrutecimento da ignorância, a sua falsa felicidade. Nunca se aperceberão que não há felicidade sem sede de conhecimento, ser feliz por amealhar outro pequeno grão para construir a nossa pequena praia que, por minúscula que seja, é nossa, pequenas conquistas que nos alegram, nos preenchem.
Os outros, os ignorantes voluntários, experimentam a felicidade oca, falsa, do seu conhecimento inexistente, da sua existência vegetativa. Muitos desses são os que, quais ervas daninhas, tentam converter os mais esclarecidos à sua ignorância, procuram subverte-los, convertê-los às suas limitações, ao seu vazio. Dia solarengo, apetece ir para a praia, sentar numa esplanada e ver a vida a passar, não no sentido temporal mas no sentido espacial. O mar a espraiar-se no areal ou a bater nos molhes, as pessoas a passar, a correr, a fazer exercício, a passear os cães ou simplesmente a observar, como eu. Locus amoenus, o ideal pastoril versão marítima, não tempus fugit mas tempo parado, contemplativo, beatus ille na esplanada. E à noite? Uma bela noite escura, longe da fotopoluente cidade, local alto, mais perto do céu estrelado, límpido, lua cheia exuberante e bela, um raro meteorito, roupa quente, espreguiçadeira, um telescópio, eventualmente uma bebida reconfortantemente aquecida, o silêncio entrecortado por um ou outro pio de ave noturna ou chamamento de inseto; alguns pirilampos no ar seria o ideal, porém tal só seria possível no verão. Não faz mal, teríamos perante nós um enxame incomensurável de pirilampos brancos no firmamento, tremeluzindo, competindo entre si em beleza, em esplendor. Raros momentos de beleza gratuitos, apenas eventualmente com custos de deslocação, mas que valem a pena pois constituem um relaxante SPA para o espírito.
Vi agora na rua uma cena que me foi vedada: um encontro entre três gerações, pai, filho e netos. A alegria do reencontro, a harmonia. Nunca tive essa possibilidade, era muito novo quando a minha última ancestral morreu. Quanto a sogros, pior, nem para os próprios filhos. Alegrias desconhecidas, frustrações, importantes frustrações… Adiante. Véspera da véspera de ano novo, café. Aguardo entregas, tem estado muito fraco. Estou com uma virose de todo o tamanho, apetecia-me antes estar em casa do que aqui. Já me perguntei, se eu morresse sem dar a conhecer a ninguém que escrevi estas linhas e mais 29 páginas que já estão no computador? Seria mais um grito silencioso, ouvido por ninguém.
Eventualmente, um dia, alguém lá de casa abriria o ficheiro por casualidade, só por descargo de consciência, antes de o mandar para a reciclagem e descobriria este testemunho breve de umas memórias, curtas de 55 anos. Sim, porque estas memórias – se assim se podem chamar – apenas se reportam a 3 ou 4 meses, há milhares de páginas de memórias por escrever e que, possivelmente, nunca serão escritas, irão comigo para o oblívio. Mesmo que escrevesse umas memórias, não haveria papel suficiente para transcrever tudo, a vida, o pensamento, a personalidade, os milhares de pequenos episódios que fazem uma existência, que a caracterizam. Isso, só mesmo o pensamento, a memória, o poderia descrever. Cada ser humano é único e a sua vivência é indizível, inenarrável, impossível de copiar. Gostaria de poder narrar a minha história, a minha verdadeira história e a da minha família, sem medo, sem receio de ferir susceptibilidades, isso sim, seria algo que valeria a pena. Porém, a minha visão deles, do seu mundo como eu o vejo, seria muito ofensiva por vezes, só narrável por aqueles que já não existem.
2 de janeiro, começou com muito nevoeiro, agora está um sol frio, de inverno.
Reli o que escrevi da última vez e notei que a frase final está pouco ou nada explícita, no mínimo ambígua. Quando digo que a história da família só é narrável pelos que já não existem, quero dizer que, para não ferir susceptibilidades, para não criar uma crise familiar, só seria possível publicar algo do género se eu já estivesse morto, caso contrário seria crucificado em vida pelos visados. Um morto pode bem acarretar com as críticas, os epítetos, a fama de ter sido um ingrato ou um fdp, e ter, ele também, muitas culpas no cartório, mais do que aqueles a quem visou nas suas críticas. É sempre assim, se fosse eu o visado, faria o mesmo, pois é bem sabido que só vemos os ciscos nos olhos dos outros. Sei que tenho imensos defeitos os quais me recuso a ver ou evito pensar, mas os outros também os têm.
Quando escrevemos (a não ser que sejamos como Jean-Paul Sartre), as nossas críticas recaem sobre os outros, espetamos-lhes na cara, por escrito, o que não podemos ou não temos a coragem de dizer pessoalmente. Geralmente temos razão, por vezes exageramos, eventualmente fazemos juízos erróneos de personalidades e situações. Somos assim, somos humanos, podemos errar. Há muitos mal-entendidos que estragam amizades, que criam tragédias, porém, a atitude contrária de crença ou confiança também faz muitos ou mais estragos. Não nos podemos recriminar muito por errarmos, temos é que evitar fazê-lo e esforçarmo-nos por não fazermos os tais falsos juízos. Tudo o resto é uma questão de bom senso.
4 de janeiro, estou a curar a minha grande constipação anual.
Houve um período em que não tive nada, talvez 2 ou 3 ou mesmo 4 anos; o ano passado tudo mudou, por alturas do natal apanhei uma de caixão à cova e passou. Este ano estou com outra. Bem, diz-se que estas doenças, de tempos a tempos, são boas, pois imunizam-nos durante algum tempo, espero que sim. Em criança, perdi um ano por faltas: ia às aulas uma semana, ficava doente na 6ª feira, em casa uma semana, voltava às aulas até 6ª feira, ficava doente… Dá para pensar se não seria psicossomático, possivelmente sim.
Tive uma infância pouco feliz, uma espécie de neto único, criado no meio de velhos, sem liberdade, sem convivência com a minha faixa etária ou outras, rodeado de paranoias e das suas consequências, quase acreditando, quase me tornando um deles. Foi muito difícil libertar-me do pensamento, das crenças destes perdidos no tempo, fossilizados, de crenças inflexíveis, olhos com palas crescidas pela idade e por um tempo e vivências há muito falecidos e enterrados. Ainda hoje conservo essas marcas, misto do melhor e do pior das gerações que me antecederam. Verdade seja dita: cultos, porém fechados ao raciocínio, à inovação, educadores, porém demasiado rígidos, quase dogmáticos, velhos, velhos demais para uma criança que ficou sem infância, sem culpa deles ou minha. Os ídolos, esses meus ídolos de meninice e juventude, até de idade já bem adulta, começam a esboroar-se, a perder a forma, como as velhas imagens de algumas igrejas, já comidas pelo tempo e que começam, também elas, a tornar-se massas amorfas, sem significado, as quais, perdida a sua forma original, não passam já de pedras deformadas, imperfeitas.
Os meus ídolos já só existem por hábito, por tradição, por um vago respeito fracamente alicerçado pelas minhas vestigiais crenças, semiapagadas na matriz. Sei que por isso fui moldado imperfeito (como se já não bastasse a intrínseca imperfeição humana) e sei que, por imperfeito, serei tratado do mesmo modo que trato os meus ancestrais. Serei apenas objeto de um respeito tradicional, dissecado, analisado, criticado e rotulado. É isso que eu serei para os que me sobreviverem, uma anotação tendencialmente negativa, uma análise psicossociológica. Cedo ou tarde serei uma peça defeituosa, gerada por peças defeituosas que, a seu tempo, serão também peças defeituosas para os seus descendentes.
Pois é, passei do existencialismo para a mecânica, já falo de defeitos em peças. Bem, é a minha maneira de ver as coisas num determinado momento, as minhas metáforas, escolhidas dentre um sem número de possibilidades como animais, plantas, deuses do olimpo, citações da bíblia, marés, minerais ou outra coisa qualquer. São uma coisa engraçada estas metáforas, animaizinhos que se escondem sob muitas capas e que surgem à superfície num dado momento, cavalgando contextos ou surgindo despropositadamente do nada. Contudo, nada a apontar, elas simplificam o nosso pensamento, transmitem conceitos que por vezes seria muito difícil traduzir por palavras sem utilizar muitas linhas e muitos parágrafos, são o nosso tradutor Google (mais uma metáfora). Um dia mais na história da humanidade e do universo, um dia mais na minha história de vida, um dia menos na minha vida e na de todos os seres vivos existentes, um dia menos na não-vida de todos os seres que estão para nascer. O que se chama ao período que antecede a vida? Não pode ser morte, pois esse conceito aplica-se por vício, por defeito, por hábito, ao período pós-vida. E antes deste? Que nome pôr? Ante-vida, pré-vida, pré-existência? Ou a vida não existe enquanto não existe, nem que seja num conceito? Quando algo deixa de viver, chama-se morte, algo que já existiu e cessou atividade: Mas algo que ainda não existe não tem nome, é ignorado como inexistente, só se pensa nele depois do início do ato de viver. Mas, pela lógica (um pouco retorcida), se existe vida tem que existir uma pré-vida, assim como existe uma pós-vida. Ao falecimento de uma casa chama-se ruina, derrocada, aluimento, abate; à sua pré-vida chama-se projeto, idealização. O que existiu antes do Big Bang, se é que este existiu? O que formou o universo, se nada existia? A nada haver, nada se pode criar, isso é a negação de toda a lógica, tal como a conhecemos. Porém, ao negar algo, estamos a aceitar a sua (não) existência, a considerar algo como nomeável, substantivável, adjetivável. Como podemos fazê-lo a algo que teimamos que não existe? Se o nada existe, se lhe damos um nome, então é alguma coisa, não pode ser nada. Neste caso, nada é uma forma de existência. Se o conceito de ante-vida é formulável, então existe.
Se nos debruçarmos sobre os conceitos que regem a nossa vida, reparamos que estes não são tão lineares como aparentam. Tomando como exemplo a saúde e a doença, assumimos automaticamente que saúde é o oposto de doença e que, quando uma existe, a outra deixa temporariamente de existir. Ora, tal não é verdade. Se tivermos um abcesso, à parte a zona afetada, poderemos gozar de uma saúde de ferro. Uma laringite centra-se na laringe, todo o resto do corpo pode estar com saúde. Se tiver uma catarata ou um glaucoma, tenho uma doença ocular, mas não estou doente, pois até poderei estar na posse plena, até excecional, de todo o resto das minhas capacidades, “vender” saúde. Se utilizarmos esta linha de raciocínio em relação à vida, então, por reasonable doubt, poremos em causa o conceito de que, antes da vida, nada existe.
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11/02
Vida à minha volta, movimento implica vida, um frenesi de acção, gestos,automatismos biológicos, um incessante vai e vem de fluidos, sangue, linfa, hemolinfa, seiva. Movimentos invisíveis que, se observados a olho nu, assustariam, aterrorizariam, de tão incessantes, anárquicos, catastróficos, numa sucessão de biofagias, autofagias, mortes, nascimentos, hemiparidades, cissiparidades, desenvolvimentos zigóticos, caos assustadoramente ordenado segundo uma lógica que por vezes nos escapa. Tenho agora uma nova visão, um novo entendimento da premissa que sustenta que é feliz quem é ignorante. Sim, porque é poupado ao terror do movimento que não compreende e o assusta. Os gatos são assim; não suportam alterações do seu ritmo, da sua pacatez inata, assustam-se com ninharias que fogem ao seu quotidiano. É certo que evolução é movimento, é vida, é mutação, mas assusta. Muito.
Sábado fresquinho mas agradável,
apetece voltar ao passado, ao dolce fare niente de quem era jovem e não tinha muitas preocupações na vida, a não ser meter a semana de trabalho num saco, fechá-lo e curtir um fim-de-semana de lazer, cuja única preocupação era o que fazer para se divertir e passar o tempo. O bem-aventurado, desresponsável, revigorante lazer.
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2ª Feira, nem carne nem peixe, fresco, indeciso.
A minha disposição está igual (excepto o “fresco”). 3ª Feira, igual. Tenho à minha frente uma folha de papel, esta onde escrevo. É interessante imaginar o que este bocado de papel pode representar na história do mundo. Tanto pode mostrar um desenho pueril como uma obra-prima, tanto um rascunho sem valor como um documento de valor inestimável, um testamento, uma confissão, um desabafo, uma descoberta. Nisto as folhas de papel são como as pessoas: tudo depende do conteúdo, não da qualidade física do papel. Dá para pensar, se eu fosse um documento, o que seria? Ou antes, o que quereria ser? Melhor ainda, ambos, assim saberia o meu valor atual e tentaria transformar-me num testemunho valoroso.
Não queria ser uma bíblia – demasiado religioso e simbólico para mim. Também não queria ser O Capital de Karl Marx nem o testemunho de um grande guru capitalista, seria demasiado materialista. Os Lusíadas? Não, muito épico e muito sofredor. Nem Saramago. Fernando Pessoa? Demasiado críptico e existencialista. Talvez um Robert Heinlein ou Júlio Verne, uma pitada de Salgari, um pouco de Torga e Agostinho da Silva, a simplicidade inteligente de Alice Vieira, um toque de Italo Calvino. Impossível? Talvez não. A mistura ideal? Nunca, isso retiraria toda a originalidade do meu ser, seria um Frankenstein de personalidades, com pouco ou nenhum espaço para o livre arbítrio, para ser quem realmente sou, com todos os meus defeitos e virtudes, medíocre talvez, mas minimamente feliz por pensar por minha cabeça e não ser ou tentar ser uma colagem de outros. Logicamente, todos tentamos ser ou copiar alguém que nos marque, é bom, é benéfico, faz-nos subir a fasquia do nosso desempenho, mas nada de exageros. Nós somos nós e não Camilo ou Gandhi ou Neruda ou Cristo ou Maquiavel.
Copiar? Óptimo. Camões e outros grandes poetas copiaram Vergílio mas imprimiram-lhe um cunho pessoal e foi isso que os distinguiu dos demais e os tornou mais ou menos imorredouros. Ciclos, ciclos, ciclos. Infelizmente para nós, estamos no fundo (?) da curva descendente de um deles, levamos com os destroços que nos caem das suas paredes. Quanto mais fundo descemos, mais difícil se torna desviarmo-nos dos calhaus, evitarmos ficar soterrados. Muitos, exaustos, já não acreditam na salvação e resignam-se à sua sorte, deixando-se lapidar; outros, ainda mais assustados, incapazes de lidar com as situações que se lhes deparam, não só desistem como se precipitam para a morte, uma solução (?) que creem rápida e eficaz. É eficaz, é rápida, mas não é solução, é fuga, é negação do instinto básico de sobrevivência da espécie, é dizer ao resto da humanidade que não lute, que não vale a pena, que é mais fácil desistir. Um acto de coragem? De certo modo, não é fácil tomar tal decisão. Um acto de cobardia? Sim, mais forte que o anterior. Tal acto significa trair todas as gerações que, desde os primórdios dos tempos, se esforçaram, lutaram para dar aos seus descendentes algo (quanto mais não seja, a vida) e verem o seu produto (nós) destruido voluntáriamente num acto de desperdício dos seus por vezes heróicos, martirizados esforços para nos legarem a vida, esse bem precioso, passado de pais para filhos. Se um dia o farei? Não conheço o futuro, não posso jurar. Mesmo os heróis acobardam-se por vezes, traem os seus princípios. Correcto, não; possível, sim. ................................................................................................................................................
6ª Feira, tempo incerto; neste momento chove.
Diz-se que somos um país de brandos costumes, a prova está na paciência com que aturamos toda a carga negativa imposta pela troika e pelo governo. Noutros países, como a Espanha, a reacção popular é muito maior, as acções resultantes são muito mais agressivas. A que ponto essa brandacostumice nos beneficia ou prejudica? Estou em crer que demasiada reacção trará anarquia e a falsa ideia de poder popular se traduzirá em excessos, principalmente das camadas menos esclarecidas da população, acirradas por alguns partidos.
Por outro lado, demasiada inércia dará aos governos a sensação perigosa de que o povo aguenta tudo. Perigosa para o governo e perigosa para o povo, o primeiro porque um dia, uma gota de água poderá provocar uma catástrofe, um banho de sangue, uma revolução espontânea (ou não) e destrutiva; para o segundo porque será cada vez mais facilmente manipulável por forças políticas que, ou por ânsia de poder ou puro fanatismo, tudo farão para promover levantamentos. Onde está a virtude, onde está o meio? No atual estado de coisas já impera mais a emoção que a razão, o que impele perigosamente à intolerância, aos juízos de valor facciosos, à procura de bodes expiatórios, à criação ampliada de vítimas-heróis e verdugos forjados. Tempos perigosos… Sábado radiante de inverno, frio mas agradável. Apetece nada fazer mas tenho que resistir à tentação. A sensação de optimismo decorrente de um dia assim tem que ser aproveitada, manipulada de modo a fazer com que a sensação de perda de um dia de lazer perdido seja transformada num sentimento de boa disposição, uma pulsão interior que guie a nossa energia para o trabalho e nos dê forças redobradas, positivas, produtivas. Arbeit macht frei – excluindo a negra sombra de Auschwitz, é uma grande verdade.
Domingo, sol, frio, ponto, parágrafo.
Apetece dar uma volta de tarde, apetece estar no choco. Dicotomia, antagonismo, paradoxo, indecisão que paira sobre a capacidade de escolha e embota o livre arbítrio. Bom e mau sinal – bom porque evita que sigamos as emoções às cegas, sem ponderação; mau, porque sinaliza uma deficiência de personalidade, onde as decisões são fracas, inconstantes, medrosas, inconvictas. (???!!!) Preso por ter cão e preso por não ter, uma preocupação que nos assalta sempre que surge uma situação similar. Uma chatice
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4ª FEIRA
Rios de tinta… Já alguém terá tentado contabilizar o consumo/litro de tinta de um ser humano, ponderando evidentemente o grau de escolaridade, a frequência da escrita, a sua necessidade laboral e cultural, etc.? Lógicamente que um estudo desses seria muito falível, porém abrir-se-ia um leque de possibilidades e implicações desse acto, que passariam pela ecologia, marketing, consumo, literatura, literacia, medicina, sociologia, psicologia, enfim… imensos itens poderiam ser explorados. Dia seguinte, voltando à vaca fria: quais terão sido as implicações ecológicas que o uso e fabrico da tinta terá tido na evolução e/ou alteração genética da vida na terra? Se a tinta – nas suas mais diversificadas vertentes –não tivesse sido inventada, a escrita, tal como a conhecemos, não existiria, o retrocesso seria notório, com o pouco desenvolvimento da inteligência e da tecnologia, da história, das ciências em geral. Ou dar-se-ia o contrário, gerando super-cérebros capazes de memorizar de um modo para nós inconcebível, transformando cada ser humano num génio potencial? Segundo os padrões estabelecidos, a humanidade não poderia ter atingido o nível em que agora se encontra sem o auxílio da escrita. Porém, os padrões poderão estar errados, como essa possibilidade nunca existiu, o conhecimento é empírico, ou antes, nem é empírico pois não se pode ter experiência ou utilizar termos de comparação para algo que nunca existiu. A tendência é chamar impossível ao que, no momento e de acordo com os parâmetros estabelecidos pela nossa mente ou pela sociedade não é viável ou não parece viável.
No entanto, há pouco mais de 100 anos, os grandes entendidos na matéria, os renomeados físicos, eram categóricos em afirmar que nunca um objeto mais pesado que o ar poderia voar. Esqueceram-se dos pássaros… Há 500 anos a terra era plana e ai de quem dissesse o contrário. Vendo bem as coisas, hoje em dia escreve-se sem tinta, através dos sistemas eletrónicos, o que retira um pouco da utopia a este meu raciocínio.
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13/03
A fé move montanhas, diz a sabedoria popular; o problema é que, quando atingimos o grau de fé necessário para mover a montanha, já ela entretanto cresceu para além da nossa fé. É como se calcorreássemos uma estrada para atingir o seu fim mas a estrada fosse construída mais depressa do que nós a palmilhamos, o fim da estrada fica cada vez mais longe; a grande dificuldade é apressar o passo. .....................................................................................................................................................
Assaltam-me pensamentos de sorna, há dias em que nem me apetece sair da cama, em que o anjo mau da preguiça me segreda ao ouvido o quão maravilhoso seria deixar-me estar na cama, no conforto, no calor. Nessas alturas convoco o anjo bom, aquele chato que nos expõe ao frio e ao trabalho, que não nos deixa um momento de sossego e ele encarrega-se, a custo, de me expulsar sem dó nem piedade, da minha zona de conforto. Porque será que o que é bom é, paradoxalmente, desagradável? Parece que todos somos intrinsecamente masoquistas e incontornavelmente sádicos. .................................................................................................................................................
22/05
Hoje estou muito metafórico, parabólico, simbólico, lírico. Voltou ao de cima o meu velho desejo de escrever um livro, a minha necessidade de extravasar o que sinto ou dizer nem que sejam baboseiras. Escrever liberta, é a homeopatia do espírito e, tal como a homeopatia do corpo, é lenta, demora o seu tempo a fazer efeito mas é muito mais benéfica; em vez de partir alguma coisa, escrevo; em vez de gritar, escrevo, em vez de chorar, escrevo, em vez de tomar atitudes irrefletidas, escrevo, em vez de destruir, escrevo, construo algo, liberto a minha capacidade criativa, faço nascer um testemunho de vida, digo ao mundo que estou cá, que vivo e que deixo a minha pégada. ....................................................................................................................................................
19H20
Retomei temporáriamente os meus hábitos de leitura, é uma maneira culta de fazer passar o tempo, do mal, o menos. Afinal, a única coisa que me aborrece, que me dói na alma, é ter que morrer sem ter lido todos os quase 4000 livros que possuo ou tenho à minha guarda. Tanta cultura parada, desaproveitada e, infelizmente, sem nenhum descendente interessado, que lhe tire a poeira, que areje as suas folhas com os olhos, que beba as suas letras. Os meus, lá em casa, tratam os livros como os medicamentos: só os usam em caso de necessidade. A minha maior felicidade seria que eles fossem todos hipocondríacos, que os tomassem por tudo e por nada, só pelo prazer de ler e conhecer. É um desgosto que me acompanhará sempre. Sei que sou parcialmente responsável, que não lhes criei hábitos de leitura, que não insisti o suficiente, que não me importei como devia. A sua relativamente pouca cultura é fruto da minha não insistência. Talvez um dia elas me leiam e se choquem e me recriminem e não me perdoem por esta crueza, mas é a verdade, deixemo-nos de eufemismos e de festinhas na cabeça para não ferir ninguém. Chamem-me nomes, já não me importarei, mais vale reconhecerem a realidade e, se não for muito tarde, emendá-la. Ámen.
5ª Feira, 12h20, óptimo dia,
bom como o milho, expressão relativamente recente, se fosse no séc. XIV, seria bom como a castanha pois essa era a base de subsistência da época, muito antes da batata, do tomate e do milho. Não sei se o feijão faria parte da dieta mediterrânica, provavelmente sim, então seria uma festa, antes de termos importado o fogo-de-artifício e a pólvora dos chineses, já havia foguetes por estes lados: tanto o feijão como a castanha produzem gases intestinais em quantidade suficiente para propulsar um barco à vela. Não era tão perigoso como os explosivos mas seria decerto explosivamente malcheiroso. Há sempre no ser humano uma tendência estranha, uma coprofonia ou uma coprografia, como é este o caso. É curioso como muitas conversas e considerações terminam em merda e seus derivados. Porquê? Qual o impulso, a pulsão que impele as pessoas a falar em dejectos ou mesmo outros fluidos corporais? Porque é que a grande maioria dos insultos não pornográficos e mesmo alguns deles, se reporta às excreções humanas? Será que é porque se trata de algo que produzimos de desagradável, algo que expelimos por inútil ou sinal de anomalia e que, metafóricamente, identificamos com o objeto da nossa repulsa? É tudo isto então uma forma de homocentrismo, uma focalização egocêntrica, um assumir que tudo o que se passa à nossa volta se foca em nós e só em nós.
Estranho animal somos, com a mania que tudo gira à nossa volta! Bem, ao fim e ao cabo, nós somos o centro do nosso micro-mundo, o núcleo de um pequeno e insignificante átomo. Mais estressado ou mais calmo, não sei qual das hipóteses hei-de escolher, nestes dois dias de “criação literária”, as ideias surgem mais fluidas, a escrita corre com mais facilidade que em todos os meses anteriores. Estarei mais estressado e, portanto, mais necessitado de extravasar o conteúdo gráfico-mental acumulado após um prolongado jejum ou, pelo contrário, estarei calmo e, como tal, o fluir do pensamento feito grafia é mais escorreito, mais fácil? Ou nem uma coisa nem outra? Talvez esteja mais inteligente ou espírito literário encostado, ou psicografia ou não ter mais nada que fazer senão estragar tinta contra uma superfície celulósica plana e uniforme cujo verso já foi impresso e que, doutro modo, se tornaria inútil e faria parte do lixo, doméstico ou não, ou de reciclagem selectiva.
Bem, de uma maneira ou de outra, estou a fazer reciclagem ao reaproveitar a folha na sua parte não afectada pela incursão de grafismos que já tiveram a sua importância, o seu tempo de vida e agora jazem, inúteis e indeléveis no seu túmulo branco imaculado, aguardando a solução final, o oblívio, a transformação, a transmutação, fazendo jus a Lavoisier que diz que nada se perde e tudo se transforma. Quem sabe se um dia não veremos algures, num qualquer artefacto reciclado, uma letra, um desses pequenos ossos de escrita, restos de um esqueleto desmembrado feito de caracteres simbólicos que já foram corpo, já deram corpo a um documento, uma fatura, um poema, um devaneio da mente. Nada é perene, tudo é transitório, não há obras imorredoiras, há transmutações, transmigrações, mudanças de forma e utilidade. 5 de junho, abri mais um capítulo de filosofia de café, como já é hábito sempre que venho trabalhar para o restaurante.
É nesta altura que posso dar largas, fazer fluir a minha linha de pensamento enquanto trabalho, pois é sentado no café sem fazer nada que eu trabalho quando cá estou. Agora compreendo os escritores, só através do ócio é possível criar, só assim podem nascer obras literárias. A inacção cria, do nada nasce obra, a inércia é acção, é trabalho, é criação. Curiosamente, até para nada fazer é necessário algo que nos obrigue, que nos force. Se eu quisesse manter-me inactivo por desporto, por vontade própria, escrever por querer escrever, não o conseguiria ou não seria fácil. Neste momento escrevo porque sou obrigado a estar parado, acto involuntário que me faz criar. Para mim, criação é obrigação, não é lazer ou prazer, ou antes, é prazer mas nascido por obrigação.
Conceito curioso este, ter prazer por obrigação. Não deixa de ser agradável e apesar de forçado é igualmente gratificante ou até talvez mais do que se fosse voluntário, é lógico mas paradoxal. Li há tempos que o mínimo de esforço provoca o máximo de resultados, que a concretização de pequenas ações redunda numa maior produtividade. É verdade, dezenas de pequenas coisas que protelamos e são fáceis de fazer representam, globalmente, uma enorme produção. Em contrapartida, há outras acções de maior envergadura que ocupam imenso tempo e nada de útil trazem. Resultado: trabalha-se muito para nada fazer e trabalha-se pouco para apresentar obra.
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28/06
Escrevo o meu “esporário” (diário escrito esporádicamente) para não perder o hábito e para não perder a serenidade mental, não quero acabar os meus dias a olhar estupidificado para um écran de tv para viver a vida dos outros e meter-me na pele e/ou as aventuras dos heróis de Hollywood ou similares. Estupidificante, puramente estupidificante. Não é que não goste de ver de vez em quando, não quero é ficar addict, a pior coisa que pode suceder a qualquer um. Prefiro ser um book addict a um tv addict; no segundo escolho o que tenho, no primeiro, escolho o que EU quero. ...............................................................................................................................................
23H47 DEPOIS
Acho que o Alzheimer é uma tendinite cerebral, o cérebro não está habituado a pensar ou pensa sempre de um modo muito limitado e o que é a tendinite senão uma limitação de movimentos a um determinado padrão? É possível, mas nunca ouvi falar de um escritor ou cientista ou estudioso com Alzheimer, será um caso raro. Não sei, não tenho conhecimentos suficientes, ou por outra, nunca tive curiosidade em aprofundar a relação entre esta doença e a bagagem cultural, ou pelo menos, a actividade cerebral das pessoas, mas a única pessoa fora da média de que ouvi dizer que morreu com Alzheimer foi o Ronald Reagan. Não sei até que ponto, lá por ter sido um presidente da república, teria sido inteligente. Sempre ouvi dizer que foi um actor medíocre e um presidente pouco melhor.
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07/09DOM Domingo, hora de almoço.
É impressionante o que a ausência de um hábito regular de escrita pode causar ao próprio acto, ou seja, a que ponto a inércia, a inacção do ato de escrever produz uma corrosão, um embotamento na capacidade criativa, na fluidez, no próprio correr dos pensamentos que o acto de escrita pressupõe. Estas paragens cárdio-escrito-criativas, produzem danos cerebrais muito significativos.
A escrita, a criatividade, a alma (o coração) que apomos nas nossas manifestações literárias, sofrem baques tremendos, embotam as nossas capacidades de transposição dos pensamentos através do grafismo simples das apenas 26 letras do alfabeto, tão poucas e tão produtivas. O nosso mundo está nesses 26 caracteres que aprendemos em pequeninos e que nos permitem descrevê-lo em pormenor. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras mas acho que há palavras ou conjuntos de palavras que valem mais que mil imagens. A imagem capta o momento, a intenção, o significado, mas a palavra agarra o espírito, algo que a visão dificilmente absorve. E, contudo, escrever é tanto mais difícil como pintar: as palavras certas são como as cores certas, o pincel e a caneta partilham o mesmo drama, encontrar a nuance, o arabesco, o tom perfeito.
Escrever é como andar de bicicleta? Talvez, porém sei por experiência própria que andar de bicicleta também esquece, apenas fica o básico. Andar sem mãos requer treino e muito, escrever bem é semelhante, brincar com as palavras é muito custoso, exige muito esforço. Há muitos meses atrás escrevi algo como “tempo fresco que sugere primavera”, ou semelhante, neste momento digo o mesmo, mas ao contrário, tempo fresco que sugere outono, um dia que prenuncia o frio que há-de vir em breve. Pena, o verão não prestou e os poucos dias que tive disponíveis, estive ocupado. Agora que estou mais livre, está mais frio.
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5ª FEIRA
Carros e pessoas, carros e pessoas e, contudo, consigo encontrar alguma paz nesta esplanada a 3 metros da rua, tudo vem do hábito. Da mesma maneira que, quem nasceu na cidade não suporta o barulho do silêncio da aldeia, quem veio da aldeia dificilmente suporta o silêncio barulhento da cidade. Eu sou híbrido, ou antes, plástico, adapto-me bem a ambas as situações, embora cada vez mais aprecie a quietude do deserto, seja ele verde ou de outra cor, é a idade, fecha-nos os sentidos e abre-nos a vida interior, a inércia do corpo e a agilidade do espírito. Tenho que escrever mais vezes, a minha mente está obesa, a criar barriga de inacção, não quero ter Alzheimer quando for velho. Quero deixar um testemunho de mim para os vindouros, quero ser imortal pelas minhas acções, pelas minhas obras. Agora que estou a acordar para a vida é que a vida está a adormecer para mim. É sempre assim, quando estamos preparados, já é tarde para começar, ficamos com os leftover na nossa passagem pelo mundo.
Muitas vezes penso: “ah, se eu fosse jovem de novo e soubesse o que sei hoje, tudo seria diferente!” Mentira! Refinada e descarada mentira! Faria exactamente ou quase igual! Erro grosseiro de todos os que querem re-viver o passado, re-fazer o futuro! Não temos emenda, não aprendemos com os erros e, se o fizermos, é residual, de boas intenções está o mundo cheio. Tempus fugit nos locus civitas amoenus, há-que carpe diem porque a mors propínqua est. Que culto! Que profundo, fica bem na fotografia! Só é pena que a ligação das alocuções seja em português… ...................................................................................................................................
6ª feira,
pulcritude, vi esta palavra no “diário XII” de Miguel Torga e, embora não me fosse totalmente estranha, não me recordava do seu significado, significa beleza física. Que nome tão feio para algo tão belo, tão agradável! Faz, por similitude fonética, lembrar podridão, sugere algo negativo, mau: “Ele exalava pulcritude por todos os poros” ou “a sua pulcritude incomodava os menos dotados”. Há palavras que soam mal, como putativo ou outras quejandas. Mais um dia maravilhoso, nem frio nem calor, uterino, amniótico. Olho pachorrentamente à minha volta, como uma vaca que se deita após comer o pasto para fazer o repasto (um trocadilho), para ruminar. Seria prático, até útil e saudável para nós se fôssemos como esses bovídeos. Ao menos nunca nos queixaríamos de digestões mal feitas, é certo que em detrimento da estética e das boas maneiras, pois passaríamos a vida a ruminar, no trabalho, na cama, na rua, em qualquer lugar.
Claro que se fôssemos assim, os conceitos de estética e de boas maneiras seriam diferentes, ruminar seria tão natural como piscar os olhos ou sorrir. Fecho os olhos de sono, não sei porquê se dormi bem. Escrevo então para despertar, a carne e o espírito. Gosto de jogar com as palavras, os conceitos, as parábolas, os símbolos, os aforismos, as metáforas. Ache que reside aí muito de um escritor, do que ele tem a dizer, do que ele pode dizer, são as suas muletas, sem elas não pode andar, arrasta-se no meio das palavras, dos verbos, substantivos, adjetivos, numerais e pronomes, das partículas e dos advérbios, das orações e das alocuções, da gramática e do dicionário. Os grandes aliados de um homem de letras são os processos pelos quais ele diz o que não escreve, transmite por implícito o que o leitor não lê, abre o espírito por alusões obscuras e ambiguidades consentidas. Escrever é um jogo do qual, sem o saber, sabemos o desfecho, onde o leitor, o nosso oponente, perde sempre. Nós ganhamos, estamos sempre um passo à frente dele, o epílogo é o xeque-mate. Nós temos o segredo, nós ditamos as regras do jogo, ele perde sempre. No dia em que o leitor nos ganhar, deixaremos para sempre de ser escritores. Já me estou a assumir como escritor, o que está muito longe da verdade, porém é necessário ter altos sonhos para poder ter altos voos. Assumir o futuro é torná-lo real.
Estou feliz hoje, à minha nostálgica maneira estou feliz. A felicidade é como o vinho: não é o mais caro o melhor, é aquele que nos sabe bem. Não há medida para a felicidade de cada um, pode-se ser feliz na miséria ou na solidão, o que não é certamente o conceito da maioria. Para o paciente de uma mialgia grave, felicidade é não ter dores, para o membro de uma família problemática é todos se darem harmoniosamente, tudo é relativo e muito, muito pessoal. Pedras no caminho? Guardo-as todas, um dia vou construir um castelo. Para Fernando Pessoa, não é também o somatório de dificuldades uma forma de pré-felicidade, uma antevisão do gozo que será construir algo no futuro? Pois é, uma felicidade einsteiniana.
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24/09
Procrastinação, outra palavra esquisita com uma aparência muito negativa. Não é bem negativa afinal, é neutra para o negativo e apenas significa protelar indefinidamente e é o que quase todo o comum dos mortais faz. Já li há meses um artigo sobre isso com umas boas dicas sobre como não procrastinar, simples, fácil de pôr em prática, simplesmente tenho procrastinado a sua execução. Baseia-se em fazer primeiro as coisas pequenas, se calhar mais importantes e que tomam muito pouco tempo e deixar os grandes projetos, aqueles que nunca passarão do papel, para segundo, terceiro plano, ou adiá-los tácitamente ad eternum.
Os grandes sonhos impraticáveis consomem-nos a maior parte do tempo útil, stressam-nos, fazem-nos sentir incapazes e esgotam a nossa força anímica. Quando toca a fazer algo mínimo, como aquele parafuso que falta numa dobradiça há 2 anos, o buraquinho na parede que é preciso tapar ou a tábua solta que há meses queremos pregar, já a vontade se dilui, a energia desapareceu, a preguiça e a tal procrastinação estragaram irremediavelmente o pequeno contributo para melhorar a nossa qualidade de vida e, inconscientemente, baixaram sobremaneira o nosso amor-próprio. Será que um pintor de paredes se poderá transformar num pintor de quadros, será que um escritor de pichagens poderá evoluir para um nível superior, para o ato de verdadeira escrita, onde o espírito e não a tinta saem do bico da caneta? Ninguém nasce ensinado, tudo tem que ser aprendido e nunca é tarde, pode-se ser um génio apenas aos 90 anos, a realização pessoal é que conta. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. O Supremo Arquiteto que é a junção de todas as acções do universo, não tem pressa, será quando tiver que ser e será para todos, cada um a seu tempo. A obra, o rasgo, o génio, tocam a todos, hoje ou daqui a um milhão de anos, a pressa é inimiga da perfeição. O homem de hoje é a amiba do passado, a amiba de hoje será o homem de amanhã, ou qualquer outra forma evolutiva similar ou não.
Fim do dia “en attendant Godot” ou que me chamem para uma entrega. Não descansei nada, estive a mandar o cimento (não o barro) à parede exterior do meu quarto para ver se deixa de entrar humidade quando chove. Contudo, parece que me fez melhor do que se tivesse descansado pois sinto-me mais energético do que se tivesse sornado a tarde toda. Todos os dias luto com 2 sentimentos antagónicos (direi antes, sensações): por um lado custa-me estar parado sem fazer nada porque sinto como que raiva pelo tempo perdido e desaproveitado, por outro lado a mesma sensação por ter perdido um precioso tempo de descanso. Isto é quase como o vício de fumar: por um lado sentimos raiva por não termos força de vontade suficiente para deixar de fumar, por outro sentimo-nos frustrados por não sorvermos uma unidade desse voluptuoso e cancerígeno produto da combustão das folhas de tabaco, que, mal inalamos, sabe-nos mal! Preso por ter cão e preso por não ter, lá diz o velho e desusado ditado.
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3ª FEIRA
Sou por tendência, por natureza, reservado ou a vida ter-me-á tornado assim? Tenho a impressão, mas não a certeza, de que há uns 20 ou 30 anos a minha maneira de ser era mais aberta, mais terra-a-terra, mais social. O que me terá feito mudar? Os problemas com que me deparei ao longo destes anos, uma transformação natural, ambos, outra coisa qualquer? Não posso dizer que me sinto mal assim, a maior parte das vezes até prefiro que não me passem cartão ou não passar cartão a ninguém, estou só mas não me sinto só, sinto-me bem. Um lone ranger, um solitário que faz do mundo o seu canto reservado onde, rodeado, está feliz porque está sozinho. A chatice é quando ele se apercebe que está sozinho e aí a solidão dói-lhe.
O seu isolamento não passa afinal de um grito silencioso de socialização, uma ânsia de partilha de quem, um dia no passado, perdeu da memória como se partilham os sentimentos e se criam amizades. Culpa minha? Talvez, agora já não dói tanto. Há vantagens, os solilóquios, as introspecções, o dissecar narcisista dos sentidos, não se perdem na troca vã de conversa de chacha que representa 80 ou 90% da conversação social. Eu não me digo que o tempo está bom ou que vai chover amanhã nem discuto comigo próprio se o jogador A ou B foi um nabo e podia ter marcado aquele golo. As minhas considerações do mundo são mais sartrianas, mais existencialistas, menos falsas e superficiais. Chamo-me burro, insulto-me com razão, elogio-me sem pudor, adulo-me sem vergonha, posso fazê-lo sem cortar relações comigo próprio nem pensar que, ao tecer-me loas, o faço com segundos sentidos. Não tenho que me esconder de mim, sei quem sou e dispo-me, revelo-me a mim sem preconceitos. Sou o meu réu, o meu juiz e os meus jurados, condeno-me ou absolvo-me sem problemas de consciência. Contudo, os amigos fazem falta, falsos ou verdadeiros, puros ou interesseiros eles aligeiram o peso na consciência que nos auto-infligimos, a consciência de não sermos perfeitos. As suas perfeições e imperfeições espicaçam e acalmam a nossa auto-estima, balsamizam a dor de estar vivo.
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4ª, 25/09
E ela segue feliz, despreocupada, vai para a escola. Na sua pré-adolescencia não há lugar para tristezas, segue o seu instinto de animal jovem, sem responsabilidades e sem lugar para as ter. Claro que há obrigações impostas pelos pais, os representantes da sociedade e essas, aos poucos, roubar-lhe-ão a inocência; claro que há aversões, antipatias de colegas, grandes dramas de amor que se curam em 2 dias. No geral, é feliz.Aprende todos os dias, não a instrução que lhe é imposta mas a outra, a da vida. Tabula rasa onde se insere o futuro. Dói aprender, dói adquirir experiência, dói existir. Também dói dar à luz mas esse é o primeiro passo para a felicidade de ver uma pequena criatura que vai seguir os mesmos passos que nós demos e sentir os mesmos bofetões que sentimos na procura da felicidade. Ser feliz dói..
É estranho, quando estou só – só, mesmo só, o fio dos pensamentos como que emperra, não flui como quando estou só no meio da multidão, como se me alimentasse deles, dos seus pensamentos fugidios, efémeros, casuais, como uma galena capta as ondas de rádio que lhe estão próximas. Haverá alguma espécie de simbiose entre os humanos, um intercâmbio de pensamentos, um facebook etéreo, mental, cheio de likes e partilhas no qual participamos quando estamos em proximidade? ................................................................................................................................................
30/09
Acho piada, ainda agora entrou aqui uma senhora a perguntar sobre o guarda-chuva de que se tinha esquecido e aproveitou para desfiar o seu rosário de maleitas: esta noite não consegui dormir, tinha a perna cheia de dores, como se interessasse a alguém as doenças que a senhora tinha. Mas nós somos todos, uns mais outros menos, assim, gostamos, dá-nos satisfação, prazer, alívio, partilhar as nossas desgraças com os outros, como uma espécie de heróis, mártires que devem ser recordados como tal e vêem os outros como uma espécie de periódico onde são postadas as notícias, boas e más, da nossa existência e da dos outros. Assumimos o papel de repórteres e imprimimos nas colunas sociais (os nossos concidadãos) as crónicas das nossas doenças crónicas ou dos nossos sucessos, esperando que sejam difundidos para o público em geral que nos apontará a dedo nas nossas costas e comentará o sortudo que nós somos ou a vítima que mete dó. São os nossos pequenos minutos de fama, aqueles que criamos nós próprios para colmatar a frustração de não sermos famosos, de não necessitarmos de criar condições para que falem de nós porque somos colunáveis. Bem ou mal, falem de mim – já dizia Henry B. King.
5 de outubro, ex-feriado, dia de sol.
Tirando um ou outro cliente ocasional, eis-me aqui a pensar na morte da bezerra. E entretanto questiono-me: será que esta inércia forçada é, em certa maneira, benéfica para mim, ajudar-me-á a exercitar, muscular o meu cérebro, dando-me novos horizontes de pensamento? Será que estas introspecções forçadas permitem-me expandir o raciocínio, entrar num círculo vicioso de auto-didatismo mental que mantém o meu sótão conservado, limpo e arrumado? Inércia cria inércia, movimento cria movimento, inércia mental é estupidificação, movimento é desenvolvimento, progresso, inteligência.
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E assim, questiono-me: será que esta inércia forçada é, em certa maneira, benéfica para mim, ajudar-me-á a exercitar, muscular o meu cérebro, dando-me novos horizontes de pensamento? Será que estas introspeções forçadas me permitem expandir o raciocínio, entrar num círculo vicioso de autodidatismo mental que mantém o meu sótão conservado, limpo e arrumado? Inércia cria inércia, movimento cria movimento, inércia mental é estupidificação, movimento é desenvolvimento, progresso, inteligência.
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7 de outubro, solzinho, um certo calor abafado, céu limpo sem vento.
Conversa de velhas, 72 degraus, diabetes, faz bem, faz mal, já tive isto, tenho aquilo. Qualquer dia, quando der conta, estou como elas, passo a vida no Sickbook. Kant! Eu e ele nunca tivemos uma boa relação, foi por causa dele que chumbei no 11º ano. Dele e não só, mas isso são outros factos, outras histórias, outros caminhos da história… Pois é, passaram-se quase 40 anos e eu ainda não consigo engoli-lo completamente, há muito da sua filosofia que me deixa confuso. Contudo estou a lê-lo, fiz a mim próprio a promessa de ler toda a coleção dos grandes filósofos que tenho em casa.
E ele deambulava pelas ruas, triste como a noite. O acidente fora inesperado, apanhara-o de surpresa. Já se sabe que, cedo ou tarde, poderia acontecer mas pensamos que isso só sucede aos outros, nós não podemos pertencer a esse grupo, a probabilidade é infinitesimal. Porém, esse infinitesimal calhou-lhe na rifa, colheu-o de chofre, esmagou-o com a sua crueza, pô-lo de rastos. Raciocinando com frieza, nada dura para sempre, tal desfecho é inevitável, as feridas hão-de curar lentamente, é a vida. Porém, ainda é cedo para tais pensamentos, neste momento soam a egoísmo, a traição, a insensibilidade, há que fazer o luto, a perda é grande. “Há nele um pouco de mim que se perdeu e que nunca conseguirei recuperar”.Ao fim e ao cabo depositara neste smartphone 36 Gb de informações e nem um backup fizera!
Paz ao seu hardware. De vez em quando faço pequenas histórias naïf para treinar, para desenvolver a capacidade de me iniciar na escrita criativa. É um sonho que tenho, difícil ainda de concretizar. Um dos meus maiores problemas é a sensação de urgência que tenho em todos os meus actos, parece que me falta o tempo para fazer o que quer que esteja a fazer. Mais uma vez me proponho: será defeito meu ou inculcado pelas minhas anteriores atividades laborais? Não quero arranjar desculpas, apenas pretendo verdadeiramente saber a causa de tal problema. Depressa e bem há pouco quem e isso reflete-se em tudo, mesmo na criatividade. Afinal não consegui aguentar Kant, não é possível. Mudei para Leibniz.
Dia de apetecer viajar. Dinheiro, boa disposição, tempo, companhia e relaxamento, que conjunção ideal para que tal sucedesse! Tal como as conjunções planetárias, tal é raríssimo, limito-me a ficar sentado no café.
A terra estava árida, difícil de escavar. Assomar à superfície era um risco tremendo, o buraco denunciar-me-ia, expondo-me aos mais temíveis predadores. Aliás, não era lá que conseguiria encontrar alimento, aqui por baixo sempre existem raízes comestíveis, esperemos que este verão invulgarmente quente não tenha morto tudo, seria o fim.
Subitamente apanho uma zona mais húmida, a esperança renasce, o meu corpo ressequido, faminto, estremece, ainda há esperança.Ao cabo de alguns minutos de um escavar frenético, estaco abruptamente, há movimento a poucos centímetros da minha cabeça. Sinto suores frios por baixo do meu revestimento de pele, não vejo mas sinto a proximidade, só me resta manter-me imóvel, petrificado.
Senti-lhe o cheiro antes de ele me tocar, é um verme enorme, sai lentamente do túnel que escavou. Respiro de alívio. Aguardo mais uns momentos e ataco-o, mais de metade do seu corpo já deslizou para fora, não pode escapar.
Estou salvo.Cravo-lhe os dentes e começo lentamente a comê-lo, a saboreá-lo. Um manjar como este, qualquer toupeira que se preze, como eu, não pode perder.
Outra pequena história naïf para praticar. Agora que estou a ler Leibnitz, pergunto-me se ele não terá razão, se não seremos todos farinha do mesmo saco, ou seja, provindos de uma alma mater comum. Deste modo poder-se-ia explicar porque é que, mesmo em atrasados mentais há rasgos de génio e vice-versa; afinal o conhecimento ou a falta dele proviriam de uma mesma origem, explicando esses paradoxos aparentes: o “nabo” e o “alho” alimentar-se-iam da mesma terra, dos mesmos nutrientes, da mesma matriz. Não há nada como ler filosofia adoptamos o ponto de vista daqueles a quem estudamos.
6ª feira
Sou um pombo, não me lembro onde nasci nem como sobrevivi à infância.
Vivo na cidade, um oásis de comida, nunca passei fome. Como não há bela sem senão, vivo também rodeado de perigos: gatos, automóveis, redes de pesca à beira do rio. Sim, porque as redes estendidas são um perigo, enleiam-se nas patas e, por vezes, só a amputação voluntária nos livra da morte por inacção ou pelos predadores. Os gatos também são perigosos, mas os automóveis….! Esses são o verdadeiro perigo, quase não há rua em que não se veja um congénere meu esmagado. Alguns humanos, os condutores dessas máquinas, são “humanos” e travam ou desviam-se para nos permitir escapar, postos em perigo pela nossa distração ou erro de cálculo, outros ignoram-nos, são menos “humanos”, não pesamos na sua moral, somos bichos, nojentos, dispensáveis ou indiferentes.
Por que me tratam assim? Sou tímido, afável. Por isso me escolheram para símbolo da paz.
Sou um pombo.
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Sábado, tempo encoberto, fresco.
Seguindo à beira da estrada, é o mote de hoje. Nada me ocorre que permita desenvolver este tema, não sou nenhum Rodrigues Lobo ou Luís de Camões para o desenvolver cabalmente.
Seguindo à beira da estrada
Ao início da alvorada,
Vai tenaz e decidido.
Às costas leva a sacola,
Um guarda-chuva de mola,
Que o tempo está muito incerto;
Nos bolsos um canivete, sabão e uma Gillette,
Um livro p’rás horas vagas.
Evita fendas e fragas,
Seguindo à beira da estrada
De noite, pela calada.
Não está longe nem está perto,
Não tem pr’onde ir, decerto,
Limita-se a caminhar.
Passam-se meses e anos,
Vê países, oceanos,
Desertos e estepes sem fim.
Cansado já da viagem
Faz derradeira paragem,
É tempo de descansar.
Tornou à terra natal,
A volta ao mundo, afinal
Transporta-o de volta ao lar.
Seguindo à beira da estrada
Ao início da alvorada,
Para de caminhar.
Cumpre-se o destino assim.
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2ª à NOITE
Ele era bom no que fazia, era um mentiroso compulsivo, mentia tão bem que até a si próprio enganava.
3ª feira
Veio-me à ideia Italo Calvino, um escritor realista-surrealista. Acho os livros dele extraordinários, com uma riqueza imaginativa fora do normal. Há 2 dias que não faço os meus exercícios de escrita criativa, circunstâncias alheias à minha vontade têem-me impedido de o fazer. O mote é o mote (como é que eu vou sair desta?)
Vazio de ideias, possivelmente em estado de pré-depressão, esforçou-se por espremer da sua mente enfraquecida algo que lhe permitisse desenvolver um tema.
Nada, rigorosamente nada. Pequenas, ínfimas sequências de ideias assomaram-lhe ao espírito, como uma perceção impercetível de uma trovoada longínqua, para lá do horizonte. Tão fugazes que duvidava que sequer tivessem existido. Talvez pensasse que tinha pensado, que houvera uma ínfima centelha, mas insuficiente para constituir sequer uma faísca iniciadora.Nada!
É desesperante, sente-se frustrado, como um doido consciente da sua loucura. E contudo sabe que é uma reacção natural, que nem sempre a mente está aberta a devaneios, passeios, viagens, excursões pelo mundo. Por vezes caseira, introvertida, aninha-se na sua não-existência física, deixa-se adormecer. Noutras ocasiões salta, estrebucha, ferve de actividade.
A mente tem múltiplas personalidades, imprevisíveis, contraditórias, convergentes, é bipolar, esquizofrénica, coerente e incoerente, única.
Ora aqui está um mote sem mote, um tergiversar, um subterfúgio, um volte-face da produção do espírito para justificar a ausência de atividade criadora, gerando uma atividade criadora substituta, um mote sobre o mote que responde não respondendo ao exercício mental requerido. Confuso? Não na minha mente.
Quando a vontade acontece
A alma exprime-se e bem,
A imaginação surge e cresce ,
A criação aparece...
Nasceu a obra de alguém.
Pobres versos naïf, ingénuos (tautologia), pobre métrica, pobre conteúdo. Não interessa, estou na 1ª classe, tal como as crianças, a aprender as 1ªs letras também eu titubeio, claudico, tropeço e levanto-me de novo. Dou tempo ao tempo, um dia serei um escritor. ..................................................................................................................................................
6ª FEIRA
Esta manhã reparei que a minha rua está extremamente envelhecida, parece um lar de idosos. A começar pela minha mãe e vizinhos, deparo-me com muletas, cabelos brancos, cansaço e sofrimento. Quando me olho ao espelho vejo o futuro e não me agrada. Vejo os meus familiares seniores e os meus vizinhos, a degenerescência, antes um ponto imperceptível no horizonte, a tomar forma, a ganhar contornos definidos, demasiado definidos para o meu gosto. E, por detrás desta, uma avantesma vestida em negro e com uma foice, tentando passar despercebida na penumbra e pronta a atacar sem aviso, visão pouco agradável que tentamos erradicar, trancar nos recônditos da nossa mente sem muito sucesso.
Não fora essas imagens tétricas, o futuro não apresentaria uma visão negativista tão latente e tão patente. O nosso grande problema é a aceitação, a transmutação do horrível em belo, em pacífico, em natural, a satisfação de uma vida vivida em pleno e não o desgosto de uma vida que começamos a perder. Há que largar mão, quando damos algo, por muito que gostemos, o coração põe-se naturalmente ao largo, sem remorso, sem pena. Morrer é como dar (filosofia barata, quero ver quando chegar a minha vez).
A vida é apenas morte lenta:
Um mal de nascença que não tem cura.
A vida é uma fruta sumarenta
Que esprememos sedentos até à sepultura.
A vida tem-nos (ou somos nós quem a segura?)
Por mais que bebamos dela, é pouca, não chega,
Esvai-se lentamente como que em transpiração.
Mirramos, definhamos, a morte avança cega,
Perdemos a vida por desidratação.
Tétrico, gótico, gosto.
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SABADO
Sou prisioneiro do meu tempo,
Clausura imaterial e indissociável de mim.
Sonho com a liberdade,
fugir do abraço sufocante de Cronos,
o meu assassino.
Haverá alma?
Pois se houver, anseio despi-la das roupagens carnais
E escravizar o meu algoz para sempre.
Só morto serei livre.
A acreditar na reencarnação e atendendo à produção literária apresentada, devo ter vivido na 2ª metade do séc. XIX, no período romântico. Só assim explico esta fixação pelo gótico, pela morte, pela saudade, nostalgia, revivalismo. Não que eu subscreva totalmente, em termos de crença, os ensaios que apresento, porém sinto-me bem, confortável a criá-los.
Defendo que se podem criar obras que reflitam uma determinada tendência que não necessáriamente aquela em que acreditamos, ou seja, pode-se, por exemplo, escrever ficção científica sem crer que as situações relatadas venham a existir, ou uma obra de cariz religioso, sendo ateu. Sou romântico sem realmente o ser ou existencialista, realista, gótico, saudosista ou outras tendências que não subscrevo. Faço o papel de advogado do diabo literário, assumo a tendência sobre a qual escrevo no momento.
São 22h05, não fiz a ponta de um corno.
Limitei-me a vegetar no balcão do restaurante por não me sentir à vontade para escrever estando rodeado de gente com olhos curiosos. Os olhos humanos são como os de um gato, sempre atentos ao mínimo pormenor, ao mínimo movimento; com a diferença de que os gatos fixam-se no que, de alguma maneira, poderá afectar a sua vida, seja positivamente (comida, conforto) ou negativamente (perigos vários) ou ainda pelo seu instinto de caça, enquanto os humanos o fazem, não só pelas mesmas razões mas também por inveja, cupidez, estupidez ou simples curiosidade mórbida. Mas isso é intrínseco, pavloviano (dêem-me algo para onde olhar e eu coscuvilharei descaradamente, esquecendo a noção das conveniências). O homem é o único animal que espia sem justificação, sem uma razão para espiar.
2ª feira, tempo incerto, muito vento.
Por vezes fico embasbacado com as apreciações de obras literárias feitas por críticos: a maioria das vezes encontram numa obra um sem fim de ilacções que até o próprio autor desconhece. É caso para pensar se toda a apreciação literária feita por críticos não passa de uma grande mentira, uma convenção unilateral que somos (ou não) obrigados a engolir. Tenho visto apreciações críticas que conseguem encontrar num simples texto complexidades monstruosas, conclusões rebuscadas, tendências insuspeitadas. Se eu fosse escritor preferiria consultar um crítico a um psicólogo; os primeiros dissecam-nos sem levar dinheiro, ficamos a conhecer coisas insuspeitadas sobre a nossa personalidade. Um crítico tanto pode construir-nos como destruir-nos. A caneta de um crítico mata mais escritores que o bisturi de um cirurgião. Está-se a preparar uma noite tempestuosa, pelo menos aparenta.
A chuva bate lenta, compassada,
Escorregando suave na superfície negra e rugosa de uma estrada
Mas o vento, ciumento, arrebata a chuva num ápice, num momento.
E o que era uma chuva lenta, ordenada
Assusta-se, cavalga selvagem pela estrada.
O vento acalma, a chuva volta lenta, compassada
Caindo mansa na beira de cimento
Como se o vento violento não tivesse enviado uma rajada…
Descalça vai para a fonte Lianor pela verdura; Vai fermosa, e não segura. Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata, Cinta de fina escarlata, Sainho de chamelote; Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura. Vai fermosa e não segura. Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entrançado Fita de cor de encarnado, Tão linda que o mundo espanta. Chove nela graça tanta, Que dá graça à fermosura. Vai fermosa e não segura. |
De calças vai para a noite
Leonor pela frescura;
Cheira a fritos, a gordura.
Vai com um grande decote,
Anéis nos dedos, de prata,
Cinto com chapas de lata
Tamanquinhos de taxote;
Vai branca, não tem pintura.
Cheira a fritos, a gordura.
Vê-se o sarro na garganta,
Tem cabelo emaranhado.
Dá o braço ao namorado,
Nunca vi sujeira tanta.
Obesa, uma elefanta,
Das calças rompe a costura.
Cheira a fritos, a gordura.
(Coitados do Camões e do Rodrigues Lobo, se fossem vivos, matavam-me.) Tanta conversa de chacha, tanto cortar na casaca, tanta vaidade egocêntrica! Nós, humanos, àparte as relações laborais (e mesmo nessas) só estamos bem a falar mal dos outros ou a falar dos outros ou a pintar o retrato maravilhoso de nós próprios. Nesse aspecto somos bons, melhores que os retratistas da Idade Média e mesmo dos posteriores que, ou escondiam os defeitos físicos dos seus modelos, ou revestiam-nos de uma pulcritude (!!) que eles nunca possuíram.
Em suma, somos uns falsos, por hipocrisia, por piedade e mesmo (principalmente) por interesse. Só ouço: fulano fez, fulana é assim, beltrano é assado, eu fiz isto (de bom), eu sou assim (positivo). Estou a criticar mas não escapo à crítica, enfio bem o barrete como quase todos, é a nossa natureza. 4ª feira, dia assim-assim, pelo menos ainda não chove. Vejo milhares de pessoas todos os dias sem sequer me aperceber da enormidade do número, a cidade é um formigueiro humano sempre em movimento.
Noite, prepara-se borrasca, alerta laranja (até no mau tempo o PSD tem culpa).
Muita gente na rua, muitos carros, vai tudo para casa descansar, uma lufa-lufa constante, o último stress do dia (com sorte). Às vezes há mais stress em casa, há tempo para fazer contas à vida e olhar para as mãos vazias, pelo menos no trabalho não há tempo para isso.
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5ª feira,
folga de manhã, formação de tarde, restaurante à noite. Estou com mais sono que um bebé recém-nascido. Cair nos braços de Morfeu, não haverá outra expressão, outra divindade onírica? Soa um bocado gay, eu que sou hétero ou tomo-me como tal, sinto-me um pouco constrangido cair nos braços de um deus masculino; há a morfina mas além de ser uma droga, não é deusa nenhuma e não se cai nos braços dela, apanha-se uma pedrada. É interessante conhecer os recursos que os antigos utilizavam para explicar, justificar a vida, com as suas benesses e os seus problemas: os deuses. A mitologia grega, não fosse a Grécia considerada o berço da civilização ocidental, é riquíssima em deuses e explicações das suas funções, como se interligam, os seus ódios, os seus amores, as suas ligações com os humanos, os semideuses, a gestão do universo.
Explicação histórico-religiosa completíssima, onde nada é deixado ao acaso. Tal feito exige inteligência e imaginação. Olimpo, Hades; Caronte, Zeus, Hércules, Minotauro, Hidra, Medusa, Neptuno, Úrano, Mercúrio, Vénus, Marte, a Terra de quem somos os ácaros, os parasitas, Saturno e tantos outros que conheço desde a minha meninice. Felizmente nasci, não num berço de ouro mas num berço de papel encadernado, sempre convivi com livros, com as mais variadas espécies de literatura, congratulo-me por ter uma cultura geral lgeiramente acima da média (sem falsas modéstias), não uma cultura da política ou do futebol ou do cinema ou da televisão, mas aquela que se obtém da leitura heterogénea, do prazer de ler por ler, por gosto.
Felizmente deu-me uma guinada em 2007 e comecei uma licenciatura, estava a ficar com a mente esclerosada e os olhos enferrujados por falta de leitura, estava imperceptivalmente a embrutecer. O drama é que as pessoas embrutecem sem dar conta, vão-se afundando na incultura, vão perdendo o que tantos anos lhes custou a aprender, só lhes restando no fim ir jogar cartas com os velhotes no tasco ou no jardim ou agarrar-se a um computador, jogando jogos inúteis, estupidificantes ou ver novelas e outros programas estúpidos, descendo cada vez mais de nível ao longo dos anos até à cave, até à cova.
É horrível nascer-se estúpido e morrer-se estúpido, é horrível perder pelo caminho o pouco que se consegue aprender nesta vida. Um burro carregado de livros é um doutor, lá diz o ditado, mas só é burro se alombar com eles sem os ler, pois todos os burros podem e devem ser doutores.
6ª feira, pelo menos não chove nem está frio.
Como sempre, no café com as gossip old ladies. Falam umas com as outras a 3 mesas de distância e falam ao telemóvel como se os interlocutores fossem surdos e como se toda a gente quisesse saber da vida delas. Mal uma sai, tem início uma vivissecção, diária e impiedosa, a vítima é estraçalhada, esquartejada e posta no caixote do lixo. Fora isso, amigas de peito.
Ainda há pouco passei pelo liceu Filipa de Vilhena e pelo António Nobre; vi dezenas de jovens e perguntei-me quantos terminarão tragicamente, quantos terão sucesso, quantos viverão só mais um ano e quantos viverão mais 70 ou mesmo 80. É triste olhar para eles e ver tantas vidas goradas, tantas expectativas fracassadas, tantos sonhos desfeitos. Mete pena. Para consolo, sei que haverá longevos, homens e mulheres de sucesso, criaturas felizes que nunca chamarão a vida de madrasta. Mas o que é a felicidade e o sucesso, a mediania ou a pobreza e a infelicidade?
Há dias li uma reportagem ou um artigo em que o autor ou autores encontraram pessoas felizes no meio da maior miséria, neste caso nas camadas inferiores da sociedade indiana, onde se sabe que os párias são, para as outras castas, seres intocáveis e com um estatuto pouco diferente do de um animal. Aliás, há zonas na Índia onde animais como a vaca ou o macaco são idolatrados ou os insetos são respeitados como uma manifestação de vida. Será isto atraso cultural? Se sim, o que dizer da burka ou do chador, do desrespeito cultural e religioso pelas mulheres na maioria das grandes civilizações? Que dizer do celibato religioso ou da exploração sexual, das penas de morte para homossexuais em certos países muçulmanos, nos quais ter sexo com jovens machos até à idade púbere é aceite? Que dizer da excisão, que dizer da escravatura, que dizer da exploração capitalista ou da democratização falsa de alguns países socialistas onde a palavra exploração é substituída por igualitarismo? Que dizer de uma sociedade que trata os animais como objecto ou como lixo, que os adopta e abandona a seu bel-prazer? Que dizer de uma sociedade que confina galinhas em espaços diminutos quase desde o nascimento para usufruir dos seus ovos? Que dizer de uma sociedade que mata por prazer ou por desporto?
Quem é atrasado afinal, são só os indianos? Quem é que faz ou fez limpezas étnicas – índios, judeus, incas, aztecas, maias, albaneses, Checoslováquia, China, Irão, Uganda? Tem que se criticar e condenar mas, atentando ao atrás exposto, que moral temos para o fazer? Quem estiver isento de pecado que atire a primeira pedra, foi alegadamente dito por Jesus Cristo.
Mas voltemos à vaca fria, o que é a felicidade? É a prova de que Einstein tem razão, tudo é relativo. Não é o dinheiro que dá a felicidade, não é a miséria, não é a saúde ou a doença, é o modo como encaramos a vida que nos dá o dom de sermos felizes, em graus, intensidades muito pessoais, feitas como que por um alfaiate à nossa e só nossa medida.
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21/10 3ª feira, muito sol, algum frio.
As velhas do Restelo estão aqui ao meu lado, tesouras afiadas para cortar na casaca, olhos e ouvidos atentos, língua oleada, relatório em execução, o equivalente de bairro do crítico literário, só que este é social. Também, o que seria dos momentos de ócio sem a má-língua? Pedaços sensaborões de existência sem nenhuma gratificação sensorial ou espiritual. Bem-aventuradas as más-línguas, poderoso destressante gerontológico. Como serei – se for vivo – daqui a 20 anos? Serei como estas velhotas, passarei a vida a falar dos outros ou farei algo mais construtivo? Serei um chato, ranzinza, monolítico, esclerosado, turrão, ou uma mente aberta, pronto a aceitar as diferenças e as opiniões dos outros? Por mais aberto que seja, sei que a idade me condicionará a flexibilidade de pensamento, terei algumas ideias fixas, não serei tão permeável às inovações dos mais diversos níveis.
Que havemos que fazer, querer ser diferente é contrariar um pouco a ordem natural das coisas, as pessoas de idade são uma tabula rasa muito gasta, os carateres já não se apagam com facilidade. A história repete-se, a vida repete-se, o que hoje criticamos aos nossos velhos, amanhã o faremos ou pior, este atrito mútuo é eterno e inaprendível por ser sempre novo.
4ª feira, 30 de outubro.
Mais uma vez o concílio das velhas, faz lembrar as bruxas de Macbeth mas sem a componente malvada: ”quando é que nós as 3 nos encontraremos outra vez?”.
6ª feira, 1 de novembro, dia de fiéis defuntos e de todos os santos.
Tradição católica, dia laicizado e troikizado, retirado dos feriados a que o país estava habituado. Tal como aquilo que representa, o dia está triste, melancólico, cinzento, com uma chuvinha fraca como se a natureza se juntasse aos sentimentos de quem neste dia faz a visita de cortesia aos seus defuntos. Não que eles queiram saber, já ultrapassaram todas essas veleidades terrenas, mas os que cá vão ficando, não. Para esses, as visitas fúnebres representam uma homenagem, um agradecimento, uma saudade mais presente ou mais residual que perdura geralmente enquanto eles mesmos não vão engrossar o rol dos homenageados. Para outros, o medo da crítica, o ver e ser visto, o apego às tradições despidas de significado ditam estas visitas hipócritas. Contudo, não se pode criticar quem pertence a este último grupo; todos nós – todos (quem disser o contrário mente, mesmo que não saiba) – acabamos por ser também um bocadinho hipócritas a respeito dos nossos ex-viventes. O medo da crítica, o pensar o que os outros poderão pensar, o sentimento de culpa por abandonarmos um espaço onde estão depositados os resíduos sólidos ou nem por isso dos nossos antepassados ou contemporâneos, motiva-nos a visitar e cuidar da nossa sucata, do armazém onde se encontram os resíduos não perecíveis do material genético que utilizámos enquanto funcionávamos e que agora são refugo inútil que teimamos em armazenar como se viesse a ter um dia alguma utilidade. Se calhar ainda à espera do juízo final, onde os mortos se levantarão de novo para serem julgados.
Como se fizesse sentido, na religião católica há muitas discrepâncias, muitas contradições, muitas ambiguidades. Então se quando as pessoas morrem vão logo para o céu ou para o inferno, para que é que vão ser julgados outra vez no fim dos tempos? É alguma espécie de supremo tribunal a que se apela para ver se a sentença é comutada ou, pelo contrário, agravada? Um Julgamento!? Então isso pressupõe que Deus pode enganar-se, se calhar fomos para o inferno durante uma eternidade e afinal estávamos inocentes? Vamos então ser indemnizados? E os que foram para o céu sem merecerem, não podem ser castigados mais que os outros, uma eternidade é uma eternidade. Isto além do conceito pouco abonatório para a religião de que um deus pode ser falível.
Deixemo-nos de parvoíces o homem criou um deus à sua imagem e semelhança e não ao contrário, Deus existe e comporta-se de acordo com a cultura e os dogmas de um povo. Que ele exista, não o nego, tem que existir algo que imponha ordem ou seria um caos, uma desorganização total e essa ordem teve que ser criada, não surgiu do nada, espontâneamente. No entanto, o conceito hominizado de deus não corresponde em nada â complexidade da sua existência.
As 3 perguntas primordiais mantêm-se: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Todo o resto são subcapítulos ou subsecções desta incógnita. Eu não sei quem sou e muito menos quem fui, ainda menos (se tal é possível) quem virei a ser, qual o papel que desempenho na engrenagem do universo e para quê. Não faz sentido um deus criar seres extraídos de si próprio, refiná-los ao longo de incontáveis reencarnações ou outros processos, para fazê-los voltar a si, à unidade. Qual o propósito?
A religião diz que é o amor infinito de deus que faz com que todas as criaturas voltem ao seu seio. Se já pertenciam ao seu seio, para que as criou ou transformou para sofrerem, de modo a poderem sublimar-se e voltar ao seu seio? Soa a sadismo despropositado e, ao mesmo tempo, a masoquismo. É como se cortássemos um dedo, que é parte de nós e o cozêssemos de volta porque lhe temos amor e assim sofremos todas as dores inerentes ao processo para que volte para nós, para a unidade, algo que já era nosso. Totalmente despropositado, louco! Há algo que nos escapa mas não são estas explicações simplistas, fruto de um antropocentrismo descarado que me vão satisfazer.
Talvez nunca saiba, nunca saberei, decerto, neste estágio evolutivo, mas um dia, um metafórico dia, tudo será de novo metafóricamente claro como água. Sábado, afinal hoje é que é o dia de fiéis e eu andei enganado durante 56 anos. Ainda chove mais que ontem.
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DOMINGO, 4/1, PARIS
Curiosos estes franceses, passam a vida a cumprimentar-se, mesmo que já tenham estado juntos há 10 minutos. Bonjour, bonne journée – geralmente os 2 juntos, agora nos primeiros dias do ano: bonne année, meilheures voeux, bonne santé.
Por outro lado o Carlos disse-me que aqui os bretões, ao contrário dos americanos, vêem com maus olhos quem está melhor do que eles, são invejosos. Ao contrário dos primeiros, que sonham ser como os mais bafejados pela sorte com quem eventualmente se cruzam, os franceses têem inveja, não podem suportar alguém que esteja financeiramente melhor; enquanto os americanos exibem o seu exito, os franceses escondem-no para evitar os ciúmes dos seus conterrâneos.
O Carlos disse-me que não leva o carro novo para o trabalho para evitar perder clientes. Pelo que vejo, estou numa zona em que é preciso desconfiar de quase tudo e de quase todos, árabes, negros, judeus, chineses e outros orientais, até mesmo portugueses. É uma espécie de “Bairro do Cerco” francês.
Claro que, em similaridade, há bons árabes, negros, judeus, chineses e outros orientais, até mesmo portugueses, muito boa gente mesmo. Estranho país este onde as pessoas passam a vida a cumprimentar-se e a invejar-se, a dar um caloroso aperto de mão a quem abominam, país onde a normalidade está tão diversificada que quase se perde a identidade nacional. Será correcto, será aceitável, será benéfico a longo ou curto prazo ou apenas servirá, não para eliminar as diferenças mas para exacerbá-las?
Sou muito versátil, muito dúctil mas esta miscelânea racial ainda não beneficia disso, a minha personalidade, a minha normalidade, estão ainda hirtas, não aqueceram o suficiente para poder ultrapassar o choque cultural implícito. ...................................................................................................................................................
20/02
Que acho “destes “ franceses, destes que conheço, os de bairro, miscelânea de raças, “Bairro do Cerco” do Porto misturado seguramente com o “Bairro de Chelas” de Lisboa? Bem, há de tudo como no meu país, mas a maneira de pensar é seguramente diferente.
Acima de tudo está o dinheiro e a inveja do dinheiro dos outros, o teu cliente que te trata e tratas por tu e te dá umas pancadinhas nas costas é o mesmo que se esquece de te devolver o dinheiro que recebeu a mais ou que tenta “esquecer-se” das despesas que fez. É um país onde toda a gente tem dinheiro de plástico e onde todos, todos, usam cheques para pagar nem que sejam 8 ou 10 euros.
É um país onde dizem bonjour, bom soir, bonne soirée, bonne journée, bom courage, à tout(e), merci (isso 3 ou 4 vezes numa frase) a toda a hora e momento e daqui a 5 minutos quando se reencontram de novo e à tarde e à noite, um país onde putain e merde se dizem tão vulgarmente como os americanos dizem fuck, onde se fala em bordel para significar confusão, onde toda a gente tem razão de queixa de tudo.
Li há dias na FNAC um pouco de um escritor inglês que vive ou viveu na França. No seu livro ele diz que a greve é o segundo desporto nacional entre os franceses. Acredito. ..............................................................................................................................................
Torcy, 23 de março de 2014
Estou sentado à beira do lago, são 14h00, está um pouco fresco, contudo agradável. Um abelhão francês paira à minha beira à procura de não sei o quê, uma galinhola nada despreocupada à minha frente, um homem passeia o cão, um rapaz de cor passa com uma mochila às costas, duas outras mulheres também passeiam um cão e conversam, um outro homem passa e a carrinha da manutenção aparece. Dois patos desavindos (mais tarde aperecebi-me que eram galinholas), ouvem-se alguns carros no meio das árvores, do outro lado do lago um verde imenso, mais homens, mais cães, mais crianças, patos na água., insectos a esvoaçar.
É um sossego barulhento, apetece dormir, embalado pelo grasnar, pelo piar, pelo ruido longínquo de um jato ou o rodar abafado de uma autoestrada próxima. Sornas perigosas ao sol de Primavera! Este ambiente neo-bucólico convida ao repouso, à meditação, à introspecção.
Estou sonolento; Morfeu, esse meu melhor/pior amigo/inimigo, não me larga há 4 meses. Mesmo quando aceito de bom grado a sua agradável e revigorante companhia, ele, ciumento, não me quer largar, chega a ser obssessivo.
Não estou muito motivado para escrever, para isso necessito de tempo para me espraiar pelas praias da mente e esse (tempo) é pouco.. Noutro dia, mais programado, darei asas à minha tentaviva gráfica de expressão e criação. Hoje é um deambuleio, uma lixadela na mente enferrujada, uma preparação para melhores dias, mais produtivos, menos espartilhados por Cronos ou Morfeu.
Por hoje chega, é um começo. Torcy, 31 de Março de 2014 Continuo a achar esta gente muito estranha. Será por ser um bairro ou os comportamentos com que deparo são o reflexo de um país, talvez um pouco mais ampliado, devido ao extracto dominante? Há coisas que me deixam perplexo. Por exemplo, os selos, vermelhos, azuis ou castanhos e têm traço simples, monocromático. As pessoas preferem-nos aos selos comemorativos ou temáticos que também recebemos, encaram-nos com estranheza. Outro dia dei um a uma jovem e ela perguntou-me: “isto é um selo?” e preferiu o outro. Internet? Serve para jogar ou para as redes sociais, os pagamentos de multas ou impostos são feitos, ou directamente ou aqui.
Via Verde? Sem aderência. Cheque? Para tudo. Cartão bancário? Para tudo. Não sei como conseguem controlar as contas bancárias, ou seja, sei: Geralmente, quando o cartão não dá, é sinal de que não se tem dinheiro ou de que se ultrapassou o plafond de levantamentos para esse dia (aqui o plafond diário é de 100€, não sei quanto é o total nas caixas automáticas). Tenho a impressão de que o jogo e o tabaco estão acima das compras básicas, como comida. Tenho também a impressão de que, aqui as pessoas funcionam a crédito, a pedir emprestado.
No tabac não é o caso; se fosse, a caixa fecharia todos os dias com saldo negativo. Há gente honesta, muito honesta, que te aparece uma semana depois com um cêntimo que te devia mas há também gente que só não atrofia se não pode e que se enganares num troco a favor deles, não o desfaz, mas se for contra, fala logo, isso já eu sofri na pele. Quanto ao resto, bons dias, tardes, noites, força aí, tudo bem, até logo, até à vista, obrigado, re-obrigado, tri-obrigado, etc, não faltam, até chateia.
Outra coisa que me causa uma certa impressão: num país supostamente dos mais igualitários da Europa, as mulheres estão sempre à espera de elogios, seja pelo que for. Ou se a comida está boa – se não o dissermos, elas perguntam – ou por outra razão qualquer. Eu pertenço a um país onde, se está bom, está bom, não é necessário dizê-lo, ou diz-se apenas uma vez, faz parte da normalidade, não necessita de elogios contínuos. Aqui, caso nada se diga, é notado. Se chamarmos a atenção para esse facto (o de gabar), dizem logo que é uma questão de cavalheirismo. Ah, então aquela coisa de igualdade é só para outros casos! Completamente assincrónico! .................................................................................................................................................
4/5
O que são saudades? Nada mais que a ausência dos nossos hábitos e das nossas paisagens, mas só daquilo de que gostamos, a nossa dopamina que cedo é saciada. Saudades são a nossa ressaca, a síndrome de privação daquilo a que estávamos habituados.
Quando saí de Portugal no dia 26, para lá da fronteira, já em Espanha, olhei pelo retrovisor e vi o crepúsculo já avançado, uma metáfora perfeita, a representação visual e nostálgica do sentimento de alguém que abandona tudo e se dirige para o estranho, o não usual, o “estrangeiro”. .....................................................................................................................................................
18/5
As minhas visitas a Paris já ultrapassaram (por hábito) o adjectivo “maravilhoso” e passaram a ser “muito interessantes”: quem come sempre aquilo que adora, passa ao fim de algum tempo a classificá-lo como “bom”, é perfeitamente normal.
Por vezes temo ser demasiado crítico para com uma sociedade que me acolheu mas, por outro lado, sinto que tenho razão, que esta sociedade merece ser criticada da mesma maneira que, se tivessemos sido criados por alguém que nos dava de comer mas que também nos espancava sem razão, não poderìamos ter contemplações emocionais.
Aqui há 2 maneiras de ganhar dinheiro: ou trabalhar no duro, (arriscando tornarmo-nos capitalistas sem mesmo darmos conta) ou a “trabalhar” para descobrir processos de sacar dinheiro ao Estado sem fazerem nenhum e esse foi o mal do Estado francês : baixaram, a pretexto do bem publico, as calças até aos tornozelos e agora o mal habituado povo e mal habituados emigrantes não o deixam subi-las.
A França vive um clima perigoso: educou mal os seus filhos e enteados e agora não lhes tem mão. Um dia serão eles a bater na mãe, o que trará funestas consequencias. ..............................................................................................................................................
8/6 Parque de la Vilette.
Isto aqui é para os parisienses o que Matosinhos e Madalena são para o Porto, ou seja, o equivalente a uma praia. Como não há praia senão a 400km daqui, toda a gente aproveita para ir para os parques, jardins, praças e outras zonas verdes, onde se “espraiam”, ou antes, “esrelvam-se” com prazer. Eu é que tenho sede de ver, de conhecer o máximo, senão faria o mesmo.
Além disso tenho receio de adormecer e pôr-me a roncar no meio de toda aquela gente.
19H40
Está passar aqui em frente uma familia de pai e três filhos que parece que se passeiam em pijama, devem ser do Sudão. Continuo a achar interessante as expressões culturais dos povos que aqui habitam: os negros são os mais típicos, os mais espalhafatosos; os árabes figuram a seguir , com os seus djbellah, os marroquinos com o fez, as muçulmanas com o chador e os vestidos até aos pés, até por vezes as mãos tapadas,os judeus com a quipa. Os chineses e asiáticos em geral são os mais ocidentalizados, raramente se vêem trajos étnicos, embora os hajam. Depois há as outras minorias, como os romenos, mas esses também os temos em Portugal e sabemos que se vestem “à antiga portuguesa”(quase). Paris, uma cidade de misturas étnicas, onde não há muitas “misturas”. .............................................................................................................................................
Paris (where else?),
Les Halles, mais concretamente Bistrot du Centre, em frente ao Centro Georges Pompidou; que acabei de visitar, 19H36, está a dar na TV a copa do mundo, Suiça – Equador (1-1). Comecei a minha visita pelo Chatelet em cujo pátio interior se encontra a Sainte – Chapelle, mandada construir pelo rei S Luis em 1242, cujos vitrais são espantosos. Daí rumei então ao Centro já referido, visitar a sua colecção de arte moderna e outras pontuais que aí se encontravam. Factor para mim significativo: nem negros nem árabes ou asiáticos, só japoneses. Evidentemente, muitos estrangeiros (àparte os referidos japoneses), ingleses, alemães, italianos, espanhois.
Pena que os interesses de algumas etnias se resuma ao jogo e a alguns negócios menos claros (e não me estou a referir à cor da pele). Para quem quiser, Paris é cultura, é conhecimento (tautológico), é historia. Viver em Paris é mergulhar em cultura, porém há quem opte por usar um escafandro para não se molhar (quem quiser que entenda a metáfora).
A Suiça marcou um golo no ultimo minuto. So é pena que a cultura aqui (e em qualquer outro lado) paga-se caro, gastei 13€ no Centro e 8.50€ na capela (+ café, + cerveja,+ MacDonalds – o mais barato, são quase 40€, não dá para fazer todos os fins de semana.
Paris, perto do Boulevard St Denis, 16h20, 22 de Junho.
Acabei de assistir ao inicio de uma procissão que vai contornar o bairro. Mal ouvi o refrão do cântico que a acompanhava vieram-me logo à ideia as tipicas procissões irlandesas a St Patrick: “Je suis chrétien...” – uma espécie de desafio num bairro onde se encontra a principal mesquita de Paris e o Instituto do Mundo Árabe. É como um reforçar de identidade religiosa, uma afirmação amedrontada de uma sociedade que teme o recrudescimento de religiões que lhe são estranhas, provocando-lhe um sentimento de perda de identidade, de crença.
Digamos que é o gesto desesperado, o apelo por uma Joana D’Arc, equivalente ao nosso mito do sebastianismo. Para mim, o único problema é que esse esforço existencial , esse grito de identidade, soa a provocação, tal como no Ulster ou, pelo menos, poderá assim ser entendido pelas outras comunidades, principalmente a muçulmana. Não que eles tenham o direito de se queixar, ao fim e ao cabo estão numa sociedade maioritáriamente cristã que os acolheu e devem estar agradecidos por isso. No entanto, da mesma maneira que aceitamos os africanos não lhes chamando pretos de caras, também não devemos aceitar que acolhamos outras religiões e lhes esfreguemos a nossa nas trombas. ....................................................................................................................................................
29/6 8 h menos 25,
sinto-me bem, bebi 2 cervejas, estou naquele estado de paz de alma que um (pequeno) toque de álcool dá. Estou calmo, não direi feliz mas melancólicamente contente, homesick mas conformado, lonely mas ao mesmo tempo free, aquele estado de espirito que necessita, ou de uma boa soneca ou de uma alma, gémea ou não, que nos ouça e que dialogue conosco.
É dificil ser estrangeiro, é dificil estar sozinho, é ainda mais dificil sê-lo na meia-idade, é-se menos dúctil, menos adaptável, sente-se mais o choque. Estou vivo, isso importa, Bem, se estivesse morto estava-me marimbando mas, tal como estou, sofro sem sofrer, pelo menos. Será que um dia, quando (se) lerem estas linhas, compreenderão o que quero dizer ou apenas eu o poderei realmente interpretar? O meu grito existencial terá eco ou diluir-se-á no vazio da não-compreensão? Adoraria ser lido e compreendido, embora se já estiver morto não queira saber disso para nada (julgo). Sou afinal tão egoista como um (qualquer) escritor: quero ser lido em vida.Não se trata de ser reconhecido, trata-se de fazer-se ouvir (ler); Quem escreve é como um cão: mija na esquina para marcar a sua presença, a sua existência. ...................................................................................................................................................
Como há dias disse, preocupa-me um pouco a interpretação que um dia, eventualmente, poderão dar ao que escrevo. Não sou culto por aí além mas gosto imenso de fazer locubrações cultas e não é por vaidade, é mesmo por gosto. Para quem não sabe, certas frases, certas observações poderão parecer devaneios, mesmo delírios de linguagem, abstrações ou exercícios estéreis de semântica sem significação plausível ou intilegível.
Não, geralmente escrevo coisas inteligíveis, por vezes crípticas mas decifráveis para quem tem um conhecimento médio da lingua, literatura, história, cultura geral, enfim.
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Saí de casa às 11h00, fui para Clichy, atravessei o Sena para Asnières; visitei o cemitério dos cães (e gatos e cavalos) ,atravessei de novo o Sena na ponte de Asnières, metro na porta de Levalois, saí em Jussig e dirigi-me ao Panteão Nacional, uma igreja dessacralizada, temporalizada.
Para quem foi educado na religião católica, soa quase a blasfémia, são velhos hábitos, velhas maneiras de pensar que eu, inconscientemente, mantive, apesar de ser ateu ou agnóstico, nem sei bem, há mais de 3 décadas.
Muito curiosamente, quando entrei no cemitério dos cães, assolou-me uma tristeza enorme, como se aqueles animais todos tivessem sido meus e me fossem queridos, comovia-me cada lápida que encontrava, cada manifestação de saudade, de amor, gravados na pedra. Como era um local pouco frequentado, sublimei o que sentia, chorei um pouco por eles e por mim, para aliviar tensões acumuladas; Foi bom, foi calmante mas foi triste, muito triste, como se naquele lugar pairasse a tristeza materializada.
Panteão: fiquei desiludido pois esperava ver o pendulo de Foucauld; foi retirado para obras na cúpuia e só volta daqui a 3 anos. No entanto, a visita foi interessante, “vi” algumas figuras importantes de França, vi generais com túmulos sumptuosos, cheios de lápidas, palmas e flores em bronze, faixas tricolores, e vi os verdadeiros grandes de França – os grandes escritores do país e do mundo – com túmulos singelos, apenas o nome e as datas.
Que ironia!
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Paris, 2 de Agosto de 2014, 17H58,
esplanada de um bistrot mesmo em frente aos Invalides. Acabei de visitar o nosso invasor de há mais de 200 anos e os seus sucessores.
O que aos olhos da época era um invasor impiedoso e cruel, hoje em dia é visto como um grande homem – e foi-o, não se pode negar. Usurpador de nacionalidades? Sim, mas quem não o era na época, desde que tivesse poderio militar? Visitei também o museu militar que lhe está adstrito, onde encontrei uma coleção bélica referente em especial aos sec. XVI e XVII, impressionante. Gostei imenso. Começaram as férias dos franceses, li ontem no jornal que se formaram bichas nas estradas que atingiram 975 km. O Carlos disse-me que é a mania tipica dos franceses: vão de férias todos ao mesmo tempo e para os mesmos sítios, como carneiros.
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Versailles, jardins do chateau, 24/08/2014, 14H00 (vive la diférence, de nouveau!)
, um mundo de gente, quase tudo estrangeiro como eu. Está bom tempo, embora um pouco fresco. Tenho algumas saudades do tempo bom português. Desde que entrei aqui puz-me a pensar qual seria a reacção, qual seria o choque se Luis XIV estivesse vivo e visse isto tudo, este mar de plebe e de estrangeiros a invadir os seus ex-dominios. Seria algo tão insólito como depararmos nos nossos dias com uma vaga de extraterrestres a visitar o nosso património, um estilo men in black! Algo mesmo impensável! Acresce o facto de o sentimento por parte dele de invasão, de intrusão, de abuso vindo de uma plebe interdita de por os pés num solo de propriedade real, ainda para mais não franceses. Penso que morreria de desgosto e de raiva. Eu não sou ninguém (àparte a minha propria individualidade), ou seja, não sou socialmente ninguém, ou seja, pertenço à massa amorfa da sociedade anónima; mesmo assim, indignar-me-ia se visse os meus espaços privados, os meus pertences, a minha vida devassada por estranhos sem nenhuma ligação comigo, movidos apenas pela curiosidade.
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Tenho estado a ler o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, aproxima-se muito da minha maneira de pensar e dizer as coisas, embora muito mais elaborado, evidentemente. Como ele, penso por exemplos, por metáforas, por símbolos e comparações; como ele utilizo um certo existencialismo obscuro, um misto de pessimismo depressivo e de, quase tautológicamente, uma visão da vida pelo seu lado menos bom, mais cru. .................................................................................................................................................
Rua do Paraíso, 19H05, 9 de setembro, waiting for Godot ou quase.
Está tudo igual, as árvores, as pessoas, as ambulâncias que passam de vez em quando, tudo. Eu mudei. Sinto um misto de satisfação e de perda, uma quase vergonha de ter voltado, um certo bem-estar por pisar de novo solo conhecido embora pouco promissor. Contudo, estes nove meses em que estive ausente trouxeram um alento novo à sociedade, nota-se ou eu noto.
Mais pedidos de emprego nos jornais, menos insatisfação (resignação?) generalizada. Será um retorno económico, será o começo de uma nova curva ascendente, será apenas uma ilusão, um engano? Não sei, voltei há uma semana, é talvez demasiado cedo para fazer um juízo de valor. ................................................................................................................................................
Tenho medo de estar vivo.
Tenho medo de ser quem sou se o meu ser for diferente de quem era,
Tenho medo de fugir à normalidade anormal de quem está habituado a pensar diferente
Tenho medo de que um dia deixe de pensar como penso e passe a pensar como receio
Tenho medo, muito medo.
Tenho medo de me tornar insano ou vago, de retornar a uma infância indesejada,
Tenho medo da dependência mais que da morte
Tenho medo da dormência cerebral, da letargia semiconsciente, torturante, da senilidade.
Tenho muito, muito medo.
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19H20, Paraíso a ameaçar chuva.
Esta ideia de paraíso a ameaçar chuva é engraçada, primeiro pela humanização que lhe é conotada, segundo porque uma ameaça não se coaduna muito bem com a ideia que temos de paraíso .
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Fim de verão triste. Mas são os fins de verão tristes? Mais provávelmente somos nos quem os faz tristes, quem conota conota os outonos e os invernos com a tristeza. Paraíso (já ia escrever Créteil ou Paris), 13H30, sábado, 14/9
. Interrompi ontem bruscamente a minha linha de pensamento... (de novo interrompi para uma entrega).
Pois dizia eu que as estações do ano são tintadas com a nossa visão do mundo. A não ser assim, teria muita pena dos Inuit ou outras tribos dos circulos polares pois para elas a vida resume-se a um interminável inverno rasgado de quando em quando por um arremedo de primavera pálida e fria. Eles, à sua maneira, são felizes assim. Nós, os bafejados pela sorte de ter 4 estações bem diferenciadas, damo-nos ao luxo de as criticar, de as estigmatizar, de lhes pôr defeitos. Mal sabemos o quanto devemos agradecer à Mãe Natureza por tamanha benesse. Mas somos uns mal-agradecidos (eu incluído), não sabemos apreciar as nuances positivas de cada estação, as suas belezas e vantagens. Somos assim...
Paraiso de novo, 14h40, 14 de setembro.
Tenho muita pena mas tenho que me isolar neste local. As conversas que me rodeiam, ou estou muito enganado ou pioraram de qualidade; só se fala de futebol e/ou outros assuntos “de trolha” (refiro-me à maneira como os assuntos são tratados, não ao futebol em si). Não quero ser redutor mas “conversa de trolha”, salvo raras e honrosas excepções, é básica, totalmente desprovida de conteudo ou, a existir, representa o bê-a-ba do pensamento. Muito bairrismo, muito clubismo, muita conversa parva, muita observação ou anedota baixa, nenhuma intelectualidade. Não preconizo Sénecas ou Confúcios nem mesmo Judites de Sousa ou Josés Eduardos dos Santos mas adoraria que as conversas que atualmente me ferem os ouvidos (bem alto) tivessem mais nível, do género de conversas que nos fazem parar o que estamos a fazer para ouvir ou mesmo contribuir com a nossa opinião. Muito infelizmente essas conversas apenas nos fazem interromper o que estamos a fazer devido ao ruído mental e sonoro que provocam.
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É curioso analizar como um narrador, um cronista, vê o mundo. Pega no seu pequeno pedaço de mundo e expande-o, agarra a sua ínfima experiência pessoa e enfatiza-a, fá-la inchar, aumenta-a a uma escala planetária ou, no mínimo, nacional ou regional. O escritor vê o que os outros não vêem, o seu microcosmos retrata o macrocosmos, amplia-o e generaliza-o, fá-lo caber, moldar-se ao mundo dos seus leitores ou, por vezes, molda os seus leitores para caberem no seu mundo. O grande desafio é partilhar as experiências, a visão, identificar-se com um mundo em particular e torná-lo inteligível, fazer dos outros o que sente, fazer de si o que os outros sentem.
Escrever é criar mas é também e principalmente traduzir. Um escritor é um intermediário que descodifica o mundo aos seus leitores através do seu proprio código pessoal. Por isso cada um interpreta o mundo à sua maneira porque o seu código é diferente do dos outros, tão diferente como uma impressão digital. Uma escrita universal é tão impossivel como uma política universal ou uma religião universal. Daí o seu carisma, a sua identificação com este ou aquele, a sua rejeição ou abominação.
Criar é perder-se
É ser sem ser
É traduzir sem realmente perceber
É sofrer por não ser perfeito
É a alegria de descobrir o que nunca esteve encoberto
É dar aos outros o que nunca foi nosso nem de ninguém
É iludir também
É vestir a realidade com um manto colorido que a tranforma e mitifica
É fazer parecer que é o que jamais foi
É criar sem criação, brincar aos deuses
Criar é encontrar-se num sonho real
Somos íncubos da imaginação,
geramos o ovo do sonho e chocamos a ideia criadora.
Só depende de nos sermos a galinha dos ovos de ouro.
Porto, 25 de setembro, 12H35 (you know where).
É verdade que ninguém está bem com a vida que tem, neste momento estou com certas saudades de Torcy, do trabalho que tinha, mas julgo, tenho a certeza que é um vicio psicológico como o da privação do tabaco, deseja-se aquilo que, ao fim e ao cabo, não se deseja. Quando me ponho a pensar no sacrificio de levantar às 5H50 e trabalhar todo o dia até às 20/21H, aturar idiotas e ignorantes e descansar quando me deixam, reparo que o meu trabalho actual nem é assim tão mau, deixa-me a maior parte do dia livre, não é muito stressante, não exige skills especiais e apenas cansa em momentos de inactividade.
Não há bela sem senão, chuva ou sol, canícula ou tempestade, há-que estar operacional. Ganhando como ganho 62% do que auferia lá e trabalhando só ao almoço e jantar, é assim tão mau? Comparativamente, estou muito bem pago. O meu vício psicológico prende-se mais com a liberdade, com a cultura, com a novidade de um país, de uma cidade mítica que nos agarra pelos neurónios, cola-se ao nosso intelecto, entranha-se na nossa alma.
Está um dia típico (finalmente, depois de tanta chuva) de princípio de outono: um agradável quente/fresco, prenúncio do inverno que se aproxima. Permite-nos fazer o luto de um verão que não foi e prepararmo-nos para entrar nas estações chuvosas que tememos cada vez mais, por violentas e inconstantes.
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29/9
A dúvida assalta-me
A incerteza apodera-se do meu espirito
Assola-me uma aflição de alma
Percorro agitado os recônditos da minha mente
Abro um a um os seus compartimentos escusos
Vasculho com ansiedade os arquivos da memória
Pesquiso incessantemente os arquivos neuronais
Revejo, comparo, analizo
Eu estou cá, eu existo, eu tenho consciência de mim
Mas será que estou todo, integral, em consciência plena?
Dia seguinte, 14H25
Dia de filosofar. Não me apetece ser descritivo, relatar o que me rodeia como uma revista cor de rosa que publica o que os pobres de espirito querem ouvir (ler). Nem literatura de cordel se lhe pode chamar, será antes literatura(?) de linha podre, sem ponta por onde se lhe pegue. Que interessa se o(a) famoso(a) A ou B se magoou ao bater com o joelho no corrimão ou partiu o salto do sapato ou arrotou em público ou comeu arroz de legumes no restaurante X? Que porcaria é esta que tem cada vez mais adeptos de leitura?
Tal hábito reflete-se bem no nível cultural do pais, não direi do mundo porque não vivo no seu resto. Embora o acesso à instrução seja cada vez mais alargado, dá a impressão que esta não tem nada a ver com a cultura e educação, devia potenciá-las mas paradoxalmente está a ter o efeito contrário. Cada vez se vêem mais burros instruidos, mais bestas quadradas com canudo. Em termos culturais parece que há uma inversão de valores, quanto maior é o grau de instrução, maior é o grau de ignorancia e menor é o grau de educação. Extemista, preconceituoso, esclerosado mental? Talvez. Ou talvez não.
12H40, 31 de setembro, ou seja, 1 de outubro (deixei-me influenciar pela data do meu relógio), dia de sol, sem nuvens, muito agradável.
Se fôssemos aranhas e deixássemos atrás de nós um fio de seda, a Terra estaria coberta em espessura por quilómetros de tecido impossível de desfazer, tal a complexidade de voltas que cada um faz durante o dia, acrescido das centenas, milhares de pessoas que se lhes sobrepõem. Inimaginável! Haverá talvez algo que se lhe assemelhe, a nossa rede neuronal, onde as sinapses que os intercomunicam são também assombrosamente complexas. Comparável? Superior? Inferior? Não sei, talvez alguém que não eu.
Outro fator deveras impressionante é a nossa capacidade, no fundo a de todos os animais, mamiferos, aves, peixes, batráquios, ciclóstomos, répteis, insetos, de respirarem e/ou outras inerentes a um ser vivo, de maneira + ou – automática e de se moverem ou locomoverem pelo simples acto de pensar, como se de um rolamento bem oleado se tratasse. É tão suave, tão “natural” que nem nos apercebemos do esforço, se é que ele existe. Mesmo outras funções mais complexas como o acto que agora pratico (escrever), são simples, fluídas, só eventualmente travadas por alguma deficiência ou malformação óssea, muscular ou outra.
Dos animais e insetos não sei, fala-se de uma alma-grupo, uma entidade colectiva que rege os comportamentos e reacções de toda uma espécie ou grupo, como um enorme cérebro cujos neurónios, à semelhança do cérebro humano,fossem responsáveis por esta ou aquela função, neste caso, esta ou aquela espécie.
Do mesmo modo que o nosso cérebro comanda, com cada região cerebral, os pulmões, o fígado, a circulação sanguinea, a produção glandular, a função digestiva ou a propria acção consciente, também este cérebro colectivo comandaria as diferentes espécies, de acordo com a sua função no universo.
Certas correntes filosófico-religiosas defendem mesmo que até as plantas ou os minerais têem vida semi-consciente ou inconsciente e vão evoluindo lentamente ao longo de milhares ou milhões de anos até atingirem eventualmente um estado de consciência quiçá semelhante ao estágio em que agora nos encontramos ou superior, do mesmo modo que nós também evoluiremos até outras formas ou não-formas, outros conceitos de vida ( ou não-vida) para nós ainda inconcebíveis. Atendendo ao estágio evolutivo em que nos encontramos e comparando-o com as primeiras manifestações humanas conhecidas, há alguns milhares de anos, não é de descartar totalmente esta hipótese. Talvez não a aceitemos na íntegra mas temos que, pelo menos, dar-lhe algum crédito.
Que nos reservará o futuro? Não falo do futuro próximo, dos próximos milhares ou mesmo milhões de anos, falo do Futuro, da nossa razão última, do objetivo do universo. O que seremos? Como seremos? Seremos? Ou não seremos? Ou ambos? Ou nada? A felicidade é uma mentira descarada que a vida nos impinge e na qual parvamente acreditamos. Tanto a ignorância como o conhecimento trazem sofrimento. Só quem (ou o que) é uno com o indizível é feliz ou, por outra, não é nada, porque a felicidade implica a existência da infelicidade e na unidade não há dualidade, portanto nada existe que tenha o seu oposto.
Enquanto existir mais que uma opção, viveremos a mentira da felicidade; quando a pluralidade se unir na unidade, tudo isso desaparecerá e seremos apenas. Mesmo o proprio verbo ser implica pluralidade, se somos, existem outras coisas que não são ou que são algo diferente. Assim, se dissermos “eu sou” para exprimir a unidade que nos consideramos,estamos apenas a cair num logro de palavras. O numero 1 existe porque temos o 2 e o 10 e o 125443, etc. Não há palavras para exprimir esse estado, por isso na Bíblia se diz que Deus não tem nome, é indizível , pois que ao pronunciarmos algo estamos a pressupor a existência de algo mais. É um conceito impossível de descrever por palavras ou mesmo pensamentos, pois a nossa mente está condicionada pelos conceitos de pluralidade.
02/10/2014,
mesmo num diário a hora é, teóricamente, irrelevante, a não ser que sirva para delimitar específicamente um evento em particular. Gostaria de me transportar no tempo a este mesmo lugar no sec XVIII com, evidentemente, todas as garantias de segurança que tal obrigaria a tomar.
Não me quereria envolvido em qualquer espécie de suspeição, a qual seria bastanta danosa para, pelo menos, a minha integridade física pois poderia, por não me saber comportar como um autóctone histórico, criar situações delicadas como ser acusado de heresia e entregue à inquisição ou acusado de espionagem ou, pura e simplesmente, agredido ou assassinado devido a algum mal-entendido ou para me roubarem.
Após todo este rol de situações que mais parecem pertencentes a uma apólice de seguros, retomo o fio original dos meus pensamentos. Seria extraordinário poder constatar in loco e in tempore como seria a urbe portuense há 200 ou 250 anos. Depararia seguramente com a ausência de casario em certos lugares, a existência de terras de lavradio onde actualmente existem prédios de 5 ou mais andares, a pacatez de uma vida notóriamente provinciana a que já não estamos habituados. Vejo neste momento a igreja da Lapa entre o casario da Rua do Paraíso, veria eventualmente, sentado nalguma rocha, a mesma igreja parcialmente encoberta por alguns carvalhos ou castanheiros, uma elevação rochosa, uma eventual casa de lavoura, um ou dois caminhos entre a vegetação, galinhas, bois, um ou outro cavalo. Diferenças abismais.
Àparte a inexistência de electricidade, água canalizada, veículos motorizados, estradas dignas do nome e outras comodiodades a que estamos por vezes mal habituados, seria tão mau viver naquela época?
Ao fim e ao cabo só sente a falta das comodidades quem as já teve, não quem nem sabe o que são. E o pensamento, a filosofia? Aí seria porventura mais complicado um entendimento comum. Mesmo as mentes esclarecidas da época entrariam em conflito com a forma de pensar do sec XXI, não só devido ao avanço filosófico de 250 anos mas também ao condicionalismo historico-filosófico-religioso natural de cada época. A ruptura com os valores estabelecidos é que provoca o avanço, o desenvolvimento das mentalidades e essa ruptura deve-se a pequenos rasgos de génio de alguém que resolve pensar diferente dos da sua época e essa clivagem, por pequena que seja, por poucos seguidores que tenha, faz sempre diferença. Um dia alguém repara nessa nova maneira de pensar mais ou menos desprezada por diferente e torna-a algo inovador, reformulado, rejuvenescido, transformado.
É assim que nascem os grandes ideais, os grandes pensadores, as grandes filosofias, nada mais que o aproveitamento de ideias desaproveitadas, a reciclagem de pensamentos alheios em latência. Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma e este é um bom exemplo.
Criação? Não existe verdadeiramente, existe, transformação, reformulação, reciclagem. Sábado, 3 de Outubro, de ontem para hoje arrefeceu bastante, embora esteja ainda sofrívelmente agradável. Cheguei já passa de um mês e ainda não vi o mar, o que perfaz 10 meses ou um ano, desde a última vez. Ponho-me frequentemente a pensar na transitoriedade da vida, recordo o que vi numa velha igreja em Paris, uma (imensas!) placa de mármore com um agradecimento à divindade pelo sucesso num exame. Qual prova não interessa, muito menos agora e certamente nunca se saberá. O que me chamou a atenção foi algo que me pôs no meu lugar como elemento perecível, descartável, insignificante, a data: 1883 – há 132 anos. Foi seguramente um jovem na casa dos 20 anos quem encomendou e mandou colocar a placa marmórea gravada, um jovem cheio de sonhos, com a vida pela frente.
Hoje, os únicos vestigios, a existirem, serão os restos de um esqueleto ressequido. Terá morrido há quanto? 70, 90 anos? Na mais positiva das hipóteses, considerando-o um longevo, um centenário, terá finado os seus dias há 50 anos. Avô, bisavô, trisavô, tataravô de quem? Já não tem importância, é um antepassado de alguém(s), quem sabe se de mim próprio. Daqui a 100 anos serei também um antepassado, um esqueleto ressequido, se ainda existirem os ossos, um nome perdido nalguns papéis de um arquivo distrital ou da torre do Tombo, uma referência genealógica para algum descendente curioso ( o meu trisavô chamava-se José, não o conheci, não sei o resto do nome).
Serei uma foto perdida, descolorida pelo tempo num álbum de familia, um desconhecido familiar ou um familiar desconhecido. Pensar nisto é um pouco deprimente, queremos viver para sempre e, por extensão, vivermos na memória dos nossos futuros descendentes. Puro engano, seremos esquecidos com brevidade, o nosso nome acabará apagado da memória colectiva familiar e da memória colectiva do resto do nosso pequeno mundo, recordação ínfima de um ínfimo ser que veio do nada e ao nada retorna. Fim do dia, ao rever o que escrevi esta tarde fico abismado com a insignificância humana, com a minha insignificância.
Não posso avaliar os outros, apenas eu poderei servir de padrão, sinto-me pequenino perante o mundo que foi e o mundo que há-de ser. Quão infindável é o tempo passado, quão incomensurável o tempo futuro e nós nem um ponto, uma linha significamos nesta sequência.
Nada sou, nada fui, nada serei
Cronos não me dá tréguas,
Não me permite aperceber-me de mim.
Sou nada e nada passarei a ser quando saír da cena onde nunca entrei.
Perpassa-me pela mente a sensação de existência:
É falsa, nem mente tenho!
A minha não-existência engana-me, sugere-me que existo.
Não passo de um esboço imaterial,
Fruto de um sonho do Tempo.
12H47,
o pano de fundo é o mesmo de ontem, a igreja da Lapa ou antes, parte da sua fracção lateral posterior direita. De certeza que passa mais gente aqui que o somatório que toda a população da cidade no referido século.
Não corre uma nuvem, apenas gaivotas e pombas, eventualmente algum avião que passe. O sossego do céu faz apetecer saber e poder voar que não em sonhos ou imaginação. Qual a sensação de uma asa delta, um planador ou um salto de paraquedas? Há quem diga que todo o ser humano possui um corpo astral, uma espécie de corpo (que não a alma) aprisionado no estado consciente do corpo ou, por outras palavras, no corpo enquanto estado consciente. Por outras palavras ainda, poucos têem a capacidade de libertar o astral em estado de consciência. O corpo astral liberta-se do seu invólucro físico fora do estado de vigília e viaja, voa. Com treino dizem que se consegue fazer isso.
Escrevo, escrevo mesmo sem inspiração. Tenho que treinar a minha capacidade criativa, fazer ressurgir o clique, o fogo de entre as brasas semi-apagadas da fogueira interna onde são gerados e materializados os sonhos.
Há anos na faculdade, num trabalho de inglês, escrevi que realizar um sonho é matá-lo. Ao criar, matamos sonhos, destruímos construindo. São frases soltas as que escrevo, tenho que as dizer senão perdem-se na não-existencia, desaparecem para nunca mais voltar e serem esquecidas. Quando pensamos algo e não o escrevemos é como se olhassemos para uma pedra ou um bocado de pão, uma árvore, uma nuvem e vissemos uma cara ou objecto ou outra coisa qualquer. Quando fixamos de novo o olhar já não vemos a mesma representação imaginada, as coordenadas mudaram, os olhos e a mente vêem já outra coisa apenas similar porque nos esforçamos por rever o que temos residualmente na memória. Nunca mais veremos o mesmo, será sempre algo diferente, irrepetível.
Do mesmo modo os pensamentos, as ideias transportadas para o papel não são as mesmas do após-escrita ou após-pensamento, mudam de forma como as águas do mar, que é contudo a mesma mas não é a mesma, é outra, é diferente, são outras águas da mesma água. Nada é, tudo foi.
Porto, 2ª, 5/10, tempo fresco e mentiroso, ameaça chuva mas não vai chover.
Sinto-me bem disposto, melancólico mas bem disposto.
A tinta da minha caneta está ansiosa por sair, a minha mão segredou-lhe maravilhas, histórias emocionantes, relatos envolventes que a libertarão da sua clausura material sobre a alvura do papel aonde escrevo.
Por vezes a minha mão também mente, também promete o que não é capaz de cumprir ou que não lhe é permitido concretizar por força das circunstâncias. E a tinta aguarda pacientemente a sua libertação, o cumprir do seu destino.
Neutra, tanto representa obras maravilhosas como disparates ou simples rabiscos, a pulsão do pensamento que guia a mão que escreve dita o desfecho da libertação criadora. E o pequeno rio que flui, aduba, irriga, cria vida na aridez celulósica, faz germinar simples arbustos ou gloriosas sequóias, robustos carvalhos ou frutíferas nogueiras, ervas daninhas ou delicadas flores. A mão que semeia tem o poder, o rio de tinta é o seu instrumento, a sua força criadora.
Escrevo porque escrevo, porque quero
Quero ser pai de filhos legíveis
E que serão mais filhos que os meus filhos.
Aqueles, produto de duas gerações,
Estes, só meus, os meus genes, cópias fiéis de mim.
Amo mais os meus meio-filhos
Mas assumo na íntegra os meus mais verdadeiros.
06/10, tempo fresco, vai chover esta noite.
O mundo está a mudar muito, as minhas referências de adolescência estão a desaparecer. É normal, as actuais referências de adolescência são para outros adolescentes que não eu, que já não o sou.
O velho eléctrico 7 ( Pereiró-Batalha) que eu apanhava quando estudava em Cedofeita há mais de 45 anos, o autocarro 1 ou 112 (mais tarde) Carmo-Batalha, a transição do comboio a vapor para o diesel e depois para o eléctrico, os troleicarros, os cabeças de giz, as carrinhas Nívea, os míticos cafés Magestic, Paládio, 1111, Tremendão, o Rentini, a marginal (antiga) do Castelo do Queijo, tudo isso desapareceu e não regressa. Ainda subsistem algumas referências, geralmente cafés, da era colonial: Bié, Macau, Timor, Goa, Damão, Diu, Casa Africana, A Pérola de Angola, etc. Saudosismo ou hábito? O que é o saudosismo senão o hábito de quem viveu uma época e acostumou-se a ter pontos de referência, nomes, maneiras de ser e de pensar, objectos e transportes do seu quotidiano? Pode-se mudar para melhor mas o ambiente em que fomos criados marcam indelévelmente os hábitos e a personalidade de cada um.
Também os jovens de hoje terão o seu saudosismo num futuro mais próximo do que imaginam, o tempo voa, tanto mais rápido quanto mais avançada for a idade de um individuo.
O Séc. XX, para mim, foi um século de viragem, não só na maneira de pensar mas também e muito principalmente em termos tecnológicos. Durante toda a Idade Média e mesmo a Idade Moderna, a revolução mais flagrante foi a do pensamento humano, o resto sofreu grandes modificações, é certo, mas foram lentas, “caracolentas”. A partir do início, direi antes, do meio do 20° século, o desenvolvimento foi assombroso. Dir-se-ia que estivemos em incubação e de repente eclodimos, temos veiculos motorizados há cerca de 130 anos, voamos há 100 anos, energia nuclear há 80, iluminação, exploração de outros planetas, descobertas da física, da química, da medicina, tudo explodiu no século XX.
4ª feira, esta tarde vai chover a potes, a cisternas.
Felizmente não chove agora, estou com um principio de constipação, quero evitar que se desenvolva mais. Neste momento, como seria de esperar, a minha disposição não é das melhores, o estado de espírito acompanha as maleitas do corpo e tenta minar-me com pessimismo, auto-comiseração e outras sensações pouco edificantes para o meu amor-próprio. Como sei que as doenças são mais “doentes” porque a moral está em baixo, tento levantá-la (à moral) pois o 1° passo para a cura, além do reconhecimento da doença, como soi dizer-se, é uma atitude positiva, alegre se possível, activa. Nem sempre é fácil, a tendência é para a prostração e o negativismo mas consegue-se com algum esforço.
Estou doente,
Sinto o que não sinto
Porque doente sinto
E, como doente, minto
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25 de novembro,
há muito tempo que não escrevo. A minha inspiração tem estado como o tempo atmosférico e o tempo cronólogico: incerta e insuficiente. Felizmente tenho-me estado a inspirar numa fonte, numa das fontes do surrealismo e da introspecção metafórica - Fernando Pessoa. Com ele tenho aprendido a ser ambíguo no bom sentido, ou seja, defender pontos de vista antagónicos, dependendo do estado de espirito e do fluir do pensamento. Aprendi a não ortodoxia do pensamento criativo, a ductilidade da escrita, a flexibilidade da defesa de teses. Sei que posso escrever, emitir juízos sem , necessáriamente, comprometer-me com eles, como um advogado defende causas nas quais não necessita forçosamente de acreditar.
Há uma tendência natural para conotar um autor com as suas obras, eu faria o mesmo. Porém, nem tudo o que se escreve ou se produz pode ou deve comprometer o seu criador, tudo depende do seu estado de espírito no momento da criação. Quando o nosso metafórico deus criou metafóricamente o mundo, fê-lo à sua imagem e semelhança, segundo diz a Bíblia e os cânones, os dogmas do cristianismo e do judaísmo. Então deus tem olhos, nariz, boca ouvidos, braços e pernas como nós. Para quê? Só se lhe apeteceu nesse dia estar assim, ainda bem, a esta hora podíamos ser todos polvos ou lagartas.
Serve o exemplo anterior apenas para provar o que disse préviamente, tudo depende do estado de espírito no momento do acto criador. Lógicamente que uma entidade deítica, a existir, terá um plano estabelecido, uma harmonia que permita concretizar uma obra em permanente evolução e não se deixará levar por caprichos ou devaneios do momento. Por que não há-de um ateu defender deus ou um marxista louvar o trabalho de Hitler? Tudo deverá seguir um raciocínio lógico, sem extremismos nem fantasias. A não ser que seja uma obra de ficção.
Bem, toda a obra é uma ficção, não é real é, no máximo, uma cópia da realidade. Porém, dentro da ficção própriamente dita podemos ficcionar, criar uma irrealidade, uma incoerência lógica que satisfaça, que preencha a estrada criada pela nossa corrente de pensamento. Um vulcão, quando extravasa o seu magma, cria não um a mas várias torrentes de lava em diferentes direções. Por que não há-de o pensamento racional fazer o mesmo? Continua a ser ele próprio, criando em vários sentidos. A lava não deixa de ser lava só porque se divide para a esquerda e para a direita, os seus efeitos são idênticos.
15 de dezembro, 13h23, sol e frio, contudo agradável.
Enquanto houver sol é sabido que as endomorfinas, morfinas e as suas primas mantêem-se em alta e expulsam a má disposição de ao pé da porta. É estranho pensar em nós próprios como um dispositivo mecano-bioquímico mas nós – corpo físico - não passamos disso. Vendo as coisas por este prisma, até parecemos saídos de um romance de ficção científica e o que são eles senão um reflexo da realidade? O drama, a ficção, o romance, o teatro, a poesia, apenas relatam uma caricatura, uma aproximação da realidade, uma cópia, fotocópia, ecografia ou TAC do espírito reflectido no corpo.
O que serei daqui a 20 anos, um velho ou um morto? E no caso da primeira hipótese, será a melhor opção? Ou mais valerá ter morrido antes e deixar a longevidade para outra encarnação mais capaz, física ou psíquicamente? Para se ser macróbio há-que ser saudável e/ou lúcido, pelo menos lúcido, caso contrario será tortura, tormento, infelicidade. Se já em vida vemo-nos e desejamo-nos para ser ou tentar ser felizes, em velhos a ausência de saúde ou integridade mental é um verdadeiro inferno. 18/12, 22H20, falta 1 semana para o Natal, frio q.b., não chove. ..................................................................................................................................................
2/1
Passarem 57 anos desde que nasci, 37 desde que comecei a namorar, 32 desde que casei, 30 desde que a Sofia nasceu, 21 desde que a Cristina nasceu. Memórias do passado feitas presente, lembro-me de ter ficado interiormente escandalizado com a idade que teria no ano 2000, com uma antecedência de 22 anos e com a sensação de que ainda faltava uma eternidade para essa data. Tudo passou. Estou no limiar da velhice, um ápice.
Adio a morte todos os dias até me decidir morrer, um dia apercebo-me que já não existo e fico muito admirado com isso, eu, pequena gota de vida que passa despercebida no mar da mesma. Em breve (tudo é relativo) serei um folículo, uma folha seca sorvida por um bueiro numa tarde de chuva, uma partícula insignificante e anónima, um resto do que foi, uma promessa de nada. Insignificância, efemeridade, vivemos rodeados por uma redoma espelhada por dentro que nos limita a visão e confere-nos a falsa vaidade de quem toda a vida se vê ao espelho. ...................................................................................................................................................
15/1
Novo ano, novos planos, novas esperanças. Há 2 artigos que li e não me saem da cabeça: o primeiro diz respeito ao facto de que desperdiçamos quase todo o nosso tempo em coisas trabalhosas e demoradas que, ao fim e ao cabo, não oferecem nenhum retorno satisfatório enquanto, em contrapartida, menosprezamos pequenos actos, pequenas obras que, no seu conjunto, seriam mais úteis e proporcionariam maior satisfação, se concluídas.
O segundo facto refere-se (e está intimamente ligado ao primeiro) ao nefasto costume de tomar como certo o dia de amanhã, a próxima hora, a crença de que, embora não sejamos eternos, não vamos morrer tão cedo que não possamos concretizar tudo o que temos em mente. A falsa crença de que só morreremos amanhã e que se repete no dia seguinte e nos subsequentes (quando ou se lá chegarmos).
Não posso deixar de filosofar sobre a morte; aliás, este o meu tema recorrente, desde que comecei estas linhas, há cerca de 2 anos e 100 páginas atrás. Dou muita importância a essas elocubrações, não querendo dizer com isso que lhe tenho medo mas também não querendo dizer que não tenho. Sinto-me num limbo, num local ou estado de espirito onde não sei se temo ou não temo este tema (sic para mim). Para mim, o medo da morte só existe ou não quando eu e ela chegarmos a vias de facto. Dizer que temos medo é ou pode ser falacioso, assim como os actos de coragem ou cobardia.
Já tive reacções corajosas (felizmente) que a mim próprio espantaram. Como poderei então ser juiz em tal sentimento? Nem eu nem ninguém. Defendi há muito tempo nestas linhas que o suicídio é um acto de coragem ou cobardia que eu condeno mas que não estou livre de praticar. Encarar a morte representa igualmente um acto de coragem ou cobardia que eu não posso assumir em consciência. Só o futuro, como soi dizer-se, o dirá. Até lá, vivamos o melhor que pudermos ou nos deixarem. Como diz Michel de Montaigne, o acto de nascer abre-nos a porta à vida e à morte (paráfrase). ...................................................................................................................................................
26/1 Casa, 23 de fevereiro, 23h37
Estou na cama, cheio de frio mas não com febre. Usando as velhas expressões populares dos meus tempos de criança, estou com uma gripe de caixão à cova e tosse até ver os padeiros. Há já muito tempo que não ouço isto, era o meu falecido pai quem dizia; expressões de outras épocas que hoje em dia não fazem muito sentido e estão práticamente esquecidas: chorar como uma perdida ou como uma Madalena, rir a bandeiras despregadas, dar às de Viladiogo, chamar o Gregório, comer as papas na cabeça e tantas outras que até esqueci. Já não se usam, já não se ouvem, passaram ao esquecimento. Os tempos são outros, as referências são outras, as mentalidades são outras, as expressões caem em desuso e são substituidas. Sim, não faria sentido ouvir expressões tipo T’arrenego, Satanás!, são arcaicas e completamente desajustadas da nossa época.
Tenho uma certa pena da minha infância; não que fosse grande coisa, até não foi muito feliz mas quem vive uma infância não tem termo de comparação, nunca teve {pelo menos nesta encarnação (para quem acredita)} outra na sua vida. Portanto, tudo o que vem à rede é peixe, há-que viver o que se consegue obter. Exactamente nesse sentido, nessa cândida ignorância do que é uma infância, é que falo. Ter quem nos mime (comigo, muito raro), ter quem tome conta de nós, ter quem nos cuide na doença, ter cama, mesa e roupa lavada, ter descobertas, ter sustos, ter medos, ter desilusões e castigos, ter sofrimento e uma mão que nos trata, ter quem (veladamente) se preocupe conosco. Lembro-me de brincar sozinho, ter por companheiros e cobaias plantas e insectos, inventar guerras com pauzinhos, imaginar casas com pedras e ramos, lembro-me de me aprontar para sair com o meu pai, única hipotese de aventura exploratóoria para além do meu infantário-prisão.
Lembro-me que uma saída da minha tia e da minha avó para irem ao médico (era sempre um oftalmologista) equivalia a uma viagem de sonho pela Europa, visitar paises mágicos e desconhecidos. Lembro-me de ter ido a lisboa há 47 anos, para um encontro com um advogado do Brasil e lembro-me do fato que vestia – em quadrados pequeninos pretos e brancos, gravata azul de elástico, cabelo risca ao lado. Lembro-me dos cheiros, da descoberta, da magia de tudo isso. Se me dessem a escolher voltar ao passado sem as memórias do futuro, acho que voltaria, voltaria a sentir as mesmas alegrias, as mesmas dores, as mesmas mágoas, voltaria a experimentar tudo de novo. E voltaria a tomar as mesmas decisões, os mesmos sucessos e as mesmas asneiras. E voltaria a estudar e a namorar e a casar e a escrever estas linhas aqui deitado na minha cama. E voltaria a morrer quando morrer e a ser esquecido quando fôr. Sim, acho que voltaria.
5/2, 19h55, Frio....20h15, continua frio.
Estou no rescaldo da minha gripe(?), é uma espécie de prazer fazer a convalescença. É um pouco estranho dizer isto mas na verdade, o fim de uma doença, bem vistas as coisas, transforma-se numa especie de gozo, uma satisfação por largar o estado de doença, uma satisfação por recuperar o bem estar físico, um positivismo que, ele próprio, permite recuperar a saúde mais rápidamente, numa espécie de círculo vicioso: Quem está doente afunda-se num estado proximo da depressão ou até mesmo depressivo, quem retorna à saude reveste-se de uma vitalidade benéfica que ajuda à cura.
6ª, 6, 13h41
Continua um frio polar, não sentia frio assim há muitos anos. Geralmente, quando analizamos um espaço e um tempo, dizemos que, se fôr a curto ou médio prazo, está tudo na mesma, as mesmas caras, as mesmas casas, as mesmas velhas situações. Se fôr a longo prazo, dizemos que está tudo mudado, irreconhecível, já não é ou está nada como antigamente. A curto/médio prazo, a nossa noção de mudança, de transformação, é falseada pela passagem do tempo, a nossa mente não se apercebe das mudanças porque elas são quase imperceptíveis.
Porém, se nos dermos ao trabalho de analizar o que nos rodeia, dia a dia, frame a frame, apercebemo-nos dessas pequenas alterações: alguém que faleceu, o vizinho ou vizinha mudou de penteado, este comprou um cão, o do outro já morreu, há um carro novo na rua, a janela do 1° andar foi pintada, consertaram o passeio, a mercearia da esquina foi substituida por um cabeleireiro. Pequenas mudanças que no cômputo geral mal se notam mas que fazem a grande diferença. O ambiente que nos rodeia é como a nossa cara, o nosso corpo: vai mudando e só reparamos nisso quando paramos para pensar e observar-nos. A mutação é constante.
10 de fevereiro, 13h27
Por uma associação de ideias que agora não interessa explanar, veio-me à mente a questão do ensino, como era, como é e como foi praticado atravéz dos tempos. Lembro-me de ver gravuras sobre o ensino universitário na Idade Média, onde os estudantes eram “ensinados” a chicote, látego, cavalo-marinho ou outros eufemismos e outros processos mais ou menos “suaves” para a nossa mentalidade séculovintiúnica.
Lembro-me da “menina dos 5 olhos” (vulgo palmatoria) do meu tempo e das bofetadas dos professores de antanho, embora comigo isso só tenha sucedido pontualmente. Feliz ou infelizmente apanhei já a transição do rigor do Estado Novo para o progressivo e pretensamente progressista sistema pós 25 de abril - início do fim da autoridade professoral, para mal dos nossos pecados.
Que tenham havido abusos por parte de alguns professores, sem dúvida. Eram aqueles quem, por herança ou mesmo por prepotência, excediam os limites das suas competências: por herança devido ao sistema porventura ainda mais duro em que teriam sido educados, por prepotência devido à consciência do poder que tinham sobre os alunos e seus perceptores (pais ou outros).
Sei que os tempos não são os mesmos mas de um modo geral o papel dos professores na formação das crianças e jovens foi e continuaria a ser (se deixassem) um marco fundamental da sua formação moral e cívica. O professor de há mais de 50 anos preocupava-se mais com os alunos e aos mais diversos niveis. Eram os educadores que eles não tinham em casa, os orientadores dos estudos, os conselheiros morais. Muitos jovens do que agora se chamam famílias desestruturadas foram salvos da miséria física e moral por força de mestres que os apoiaram, que substituiram os pais, que lhes incutiram valores, que puniram falhas.
Que autoridade temos nós para denegrir esses professores do passado? Somos porventura melhores do que eles? Damos melhor educação aos nossos filhos ou permitimos que dêem se tal, por qualquer circunstância alheia ou por culpa nossa, não podemos assumir? Infelizmente a sociedade, de um modo cada vez mais generalizado, protege os seus rebentos em demasia, protege-os da “mania de autoridade” dos professores mas, internamente e de uma maneira de que ela própria não se apercebe, exibe um facilitismo, uma anarquia educacional enorme. A Lei e as mais modernas análises psicológicas transformaram e transformam a sociedade num eunuco moral cujos rebentos, por falta de poda, crescem indiscriminada e anárquicamente, gerando poucos ou nenhuns frutos sãos. .................................................................................................................................................
13h55, 23/02/15, já choveu, agora está sol.
É curioso este meu hábito de iniciar um escrito com o tempo meteorológico, tornou-se recorrente há muito tempo. Digamos que é uma demarcação física, como uma crónica ou um conto, onde o narrador (re)cria um determinado ambiente para dar inicio ao seu relato. Penso que todos temos um pouco de poético, de teatral, criamos uma mise-en–scéne para cada momento, para cada relato, cada representação da nossa realidade. Não há laconismo na transmissão escrita do nosso pensamento, existe sempre um floreado, uma pincelada informativamente supérflua mas que confere ao texto o tempero emotivo próprio da maioria dos seres humanos.
Não escrevemos por telegramas, comunicamos por metafóricas poesias, crónicas, contos. Há sempre um arabesco, uma flor inserida na nossa comunicação, seja ela a mais simples, como um trevo, mais pormenorizada como uma gipsofila, mais rica como uma rosa, mais estilizada como uma estrelícia ou mais refinada como uma orquiídia. E tal como as flores, inserimos nos nossos escritos emoções. Desde o branco puro, inocente, virginal, até ao negro mais profundo, passando por todas as cores e nuances do arco-íris.
Somos assim, transpiramos emoção por todos os poros, faz parte da natureza humana. Transportamos, transportámos para o papel (papiro, pedra, madeira) há já milhares de anos as emoções que os outros animais transmitem pela expressão corporal. O papel é o teatro onde representamos a vida, mais ou menos convincentemente, tudo depende do actor.
19h20, 25/02/15
Todos apressados no regresso a casa, o ultimo stress para destressar. Em vez de calma e paciencia há pressa e irritabilidade. É errado mas perfeitamente normal, até eu caio nessa asneira, todos caímos. Julgo que quanto mais avançada, mais industrializada uma civilização maior é a carga de urgência e de impaciência no regresso a casa. Não estou a ver na Idade Média, na Renascença ou mesmo no industrializado século XIX a carga de tensão que se verifica hoje e cada vez mais.
Veio-me à ideia a apresentação dos desenhos animados The Simpson e julgo que é o que mais se aproxima ( e de um modo assaz inteligente) a essa corrida pelo descanso, suposto descanso. Tudo para quê? Para nos colocarmos defronte de uma televisão ou similar ou a dormir. Não será porventura o processo mais relaxante de terminar um dia, acaba por ser frustrante quando nos apercebemos da inutilidade consentida. Já não sabemos recuperar forças de uma maneira criativa, estamos tão mal habituados que nada mais nos ocorre para fazer. Leitura, passeios à noite, um joguito de cartas, uma conversa amena em família ou com amigos, tudo isso desapareceu, faz parte de um saudoso passado que, por nossa falta de vontade, torna-se impossível fazer reviver. E porquê? Porque dá muito trabalho e porque já nos desabituámos por completo desses salutares hábitos de convívio.
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16/3
Acho interessante a moda, feita de reinvenções, de arcaicas ideias inovadoras, de irreverências gastas. Tudo ou quase tudo o que a moda dita já foi usado, reusado, triusado, agora, ontem, há 10 anos, há 10 séculos.
Veio-me isto à ideia ao ver uma jovem atravessar a rua com uns sapatões tipo escafandrista: solas de meio metro de espessura que em caso de tropeção (quiçá provocado por vertigens) causarão sérias lesões devido à queda de tão grande altura. Pois é, a moda é assim, aproveita-se dos fracos recursos da memória do género humano para revender modelos velhos por novos: Sandálias romanas, botins da Idade Média, chapéus dos anos 20 , túnicas, saias, blusas, tudo. À ausencia de ideias novas no vestuário, usam-se ideias novas(?) na pele, sob a forma de tatuagens. Grande asneira! Essa moda é permanente, não se pode despir! Nada mais romântico, por exemplo, que casar com alguém que tem o nome do(a) ex-namorado(a) tatuado num braço ou qualquer outra parte do corpo, ou desenhar suásticas ou tatuar a cara(não é baton, nem pó de arroz ou rimmel!). Acredito que tem que existir abertura para esse tipo de expressões pessoais mas não estou ainda a prever aceitação a curto/médio prazo para um padre com tatuagens maoris na cara ou um primeiro-ministro com uma caveira desenhada no pescoço. Aliás julgo (minha opinião apenas) que essas expressões artísticas, muitas delas de grande qualidade, aplicam-se mais num contexto tribal do qual seria suposto já nos termos libertado para relações sociais algo superiores, do que numa sociedade teóricamente evoluida, como a nossa.
Infelizmente parece que estamos a regredir. Os ídolos da sociedade, aqueles que ela copia, são jogadores de futebol ou artistas de cinema, por vezes até delinquentes. Há uma crise de valores na sociedade atual. Tampouco será de admirar, não existem modelos que valham a pena copiar.
O tempo dos grandes homens terminou. Bem, eles existem mas são cada vez mais raros ou escondem-se para não serem perseguidos. Nunca foi tão verdade a citação bíblica: “bem aventurados os pobres de espírito porque deles será o reino dos céus”.
Evidentemente, o sentido foi adulterado e o reino dos céus confundido com o reino da terra o os pobres de espirito (os humildes) confundidos com os idiotas, mas quando toca a deturpar – toca a deturpar, o que interessa é o resultado final. ................................................................................................................................................
5 de abril, 5h45, 2 horas para o fim do meu turno.
Estas 9 horas de permanência aqui provocam-me sentimentos controversos: por um lado, e agora que estou só comigo mesmo, a sensação de que a minha mente é um quarto muito desarrumado onde custa entrar devido ao amontoado de coisas em que tropeço mal se abre a Porta; a desarrumação é tal que as 1001 ninharias com que deparo a meus pés e nas quais tropeço não me deixam abarcar, ter um vislumbre nítido da dimensão do quarto e do seu conteúdo.
Por outro lado sinto-me também como se entrasse num compartimento cheio de tesouros, peças de valor inestimável que não compreendo ou não sei usar, o que me d á à uma sensação desagradável de impotência e desperdício. Por outro lado ainda, sinto-me perdido como uma criança rodeada de brinquedos e que não se consegue decidir qual pegar. É frustrante ver estas preciosas horas escoarem-se como se todo o tempo do mundo fosse insuficiente para por em prática seja o que for.
Sei que o que estou a escrever é uma visão negativista da minha vida e das novas oportunidades que tenho pela frente mas é a minha visão do momento, uma nostalgia de um tempo feliz que nunca tive e gostaria de ter tido. Deixaria de ser nostalgia e passaria a ser feliz recordação.
Não viverei o suficiente para ter um passado feliz, o tempo mata-me os sonhos. Em parte é culpa minha por não ter o quarto arrumado, talvez porque nunca tenha aprendido a arrumá-lo, talvez porque nunca tenha podido arrumá-lo. A que(m) devo isso? Aos meus educadores, aos meus pais, aos meus genes, ao meu signo, às circunstâncias e lugares em que fui criado, às oportunidades que tive ou perdi, ao meu sexo, ao karma, a Deus ou simplesmente a mim? Como sempre nesta vida, faça-se a pergunta a 30 “especialistas” e obter-se-ão 30 respostas diferentes, sejam do ramo científico, religioso, psicológico ou outros.
Facto incontestável: tenho que viver com o que sou e a mim e só a mim cabe alterar-me, se possível. Enfim, o tempo está a passar, em breve vou sair, mais uma noite de solilóquio que sinto vazia de conteúdo.
Mas será? Uma vez li que não existem maus livros porque mesmo nesses que julgamos negativamente há sempre algo de aproveitável. Assim sendo, a minha noite ensinou-me algo, por pequeno que seja e que eu não me tenha apercebido.
Dia seguinte ao dia anterior, 3h27.
Sinto-me muito cansado, talvez devido aos incontornáveis excessos típicos das épocas festivas. Está na hora de repensar (+ uma vez) o estilo de vida e torná-lo saudável (grande anedota, de boas intenções está o inferno cheio).
What really pisses me off, como dizem os americanos, é não saber o que estou a retirar desta vida, as lições e que proveitos advém da minha efémera passagem pela história da Humanidade. Sei que a longo prazo, pelo efeito borboleta, serei de extrema importância para o bem e/ou para o mal, mas agora qual é o sumo que poderei retirar do fruto da árvore da vida? Voltamos ao velho problema existencial: o que faço aqui? Qual a pegada que deixarei no trilho da Humanidade, devo ter orgulho na minha participação? Ou tudo não passa de uma vida vazia de significado? Quando assim pensamos evocamos inexorávelmente a nossa morte, o nosso desaparecimento da superfície da Terra para cairmos sem apelo nem agravo no oblívio total. Breve seremos tão lembrados como os primeiros homens a pisar o nosso planeta, fossem eles produtos da evolução darwiniana ou extraterrestres. O que sobra? Nada! Então o que viemos cá fazer? Passear? Sofrer? Vegetar?
Certo é que o ser humano tem a satisfação de deixar a sua semente. Nos também já fomos semente, já deixámos semente que deixará semente, que deixará semente, que deixará semente... Para quê?? Convenhamos que, sem uma explicação mínimamente válida, não passa de uma tarefa um tanto ou quanto aborrecida. E a vida, o que é a vida? Uma simbiose em que todos os seres vivos têem o seu papel, seja passivo ou ativo, predador ou presa, alimentador ou alimentado, tudo faz parte da mesma cadeia. Mais uma vez: para quê? Evolução? Activos ou passivos, predadores ou presas, alimentadores ou alimentados mais evoluidos? E depois? Será uma evolução autofágica em que no fim restará apenas um ser, produto de um numero N elevado a N de refinamentos, afinações, assimilações, extermínios e criações? E esse ser ultimo, a existir, será quê, Deus? Todo esse trabalho para ser Deus? E parou a evolução? E voltamos ao princípio porque Deus não evolui mais, é o topo da evolução e é chato ficar assim para todo o sempre e fica-se um deus deprimido que nem se pode suicidar porque é imortal. E então volta-se a sofrer, a amar, a dar semente, um círculo vicioso eterno onde depois do objectivo supremo volta-se a fazer tudo de novo ad eternum. Sem mais palavras.
8 de abril, 2h50
No silencio que me envolve há a inspiração dos grandes momentos. O acto criativo é um acto silencioso, assim como solitário. Silencioso, porque precisa de concentração, solitário porque criar é algo individual. Não existe criação colectiva, no máximo um conjunto de pequenas criações ou mesmo micro-criações que se aglutinam para formar uma criação maior, mais visível. Isto de criação não é democracia, não é colectivismo, não é partilha, é um acto individualista. Não é egótico porque transcende a moral, transcende a própria individualidade, se a considerarmos para além de uma mera actividade subjugada aos ditames das emoções humanas. É o que de mais puro podemos extraír de nós, assim como um óvulo ou um espermatozóide são o que de mais parecido conosco podemos produzir. Mais além, entram outros contributos, acabou a individualidade.
Sei que por vezes escrevo coisas estranhas, coisas que temo só eu poder decifrar, quase esquizofrénicas mas por vezes essa semi-loucura é a unica possibilidade de expressar o que nos vem na alma, o que a mente tem para dizer ao mundo. São os tais gritos silenciosos de que há muitas folhas atrás falei, os gritos libertadores do Ego, aqueles que, mesmo que ninguém os ouça, mesmo que ninguém os leia, cumpriram a sua missão destressante e libertadora.
Leio e releio os meus pensamentos e tento acreditar que não estou louco.
Meus dedos transmitem à tinta com que escrevo emoções irreprodutíveis
E na alvura do papel surgem incoerências e verdades perdidas.
Ouso pensar.
Escrevo palavras que custam mas não doem,
Retiradas a ferros, tímidas que fogem da luz e que busco no mais íntimo de mim.
São fósseis vivos que nunca viveram fora do seu casulo
E vêem agora inexorávelmente morrer na areia da praia
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O tempo passa devagar.
Não se vê, não se sente mas,
Gota a gota,
Insinua-se na vida e encharca-a de velhice.
5h20, sábado, 12 de abril, Matosinhos
Ponho-me a observar os meus “guardados”, a tentar perceber o seu estilo de vida, a sua índole, enfim, tudo o que me permita entender onde eles estão na vida, onde eu estou. Tudo numa perspectiva tendente a analizar onde falhei. Mas será que falhei? A sociedade necessita de todos, tanto de médicos, economistas ou engenheiros como de lavradores, empregados comerciais ou serventes.
Provávelmente estarei a reclamar à vida um papel que não me pertence, se calhar fui fadado para ser simplesmente quem sou e nada mais, por karma ou destino ou o que se quiser chamar. Julgo que é salutar querer-se ser mais do que o que se é, ter a ambição de ser algo mais. Porém há uma linha muito ténue entre a ambição e a inveja, entre a ambição e a frustração e é disso que eu tenho medo.
Onde acaba uma e começam as outras? Onde acaba o querer ardentemente ser algo mais e começa a cobiça do que não nos pertence ou a mortificação mórbida de não conseguirmos singrar na vida? Sensações potencialmente perigosas e destrutivas!
Neste momento e com a honestidade possível de um ser humano que tenta ser isento nas suas auto-avaliações mas que, como humano que é, torna-se indulgente consigo próprio, penso que tenho, não o que mereço mas o que fiz por merecer. Digamos que perdi oportunidades toda a minha vida por burrice ou simples e ingénua ignorância (pois considero-me bastante ingénuo). Poderei também em consciência e não como uma desculpa, apontar o dedo à minha educação. Apesar de ter vivido a minha infância num ambiente propicio à cultura, não fui necessáriamente cultivado, fui educado um pouco com a maré. O meu pai, meu ídolo de infância (quem não idolatra os pais, até filhos de assassinos ou ladrões!) acabou por desiludir-me de um modo que marcou-me profundamente e por toda a vida. Apesar de – honra lhe seja feita – dotar-me com uma instrução mais ou menos sólida e noções de honestidade bem fortes, falhou na construção do carácter. Essa falha, aliada à clausura forçada de uma criança educada em casa, sem amigos, sem convivência com outros da mesma idade, redundou em insegurança, timidez, impreparação geral para a vida, para a sociedade. Como resultado: uma vida sem apegos fortes , sem decisões suficientemente bem ponderadas, sem sucesso.
A falha é minha também, só não sei até que ponto. Parece haver uma predisposição nas pessoas para o sucesso ou o fracasso. Mozart não era filho de uma prostituta e de um bêbado? No entanto há pessoas de sucesso com descendentes totalmente apagados ou mesmo degenerados. No meio disto tudo tento remar contra a maré. Pode não dar resultado mas pelo menos cria muscúlo.
Dia seguinte, 1h07
Que sentido dar à vida, à nossa passagem aqui pela terra? Nunca nos debruçamos sobre isto com olhos de ver, limitamo-nos a contemplar esta incógnita com uma fugaz passagem mental sem aprofundamento, sem o aprofundamento que merece. Estar na vida é como estar num emprego: ou empenhamo-nos a sério naquilo que fazemos ou andamos cá para ver passar os comboios. Que feedback temos da nossa permanência aqui? Claro que podemos pegar no item das mais variadas maneiras mas, condensando, o que extraímos de tudo isto?
As minhas abordagens sobre o conceito que tenho de mim e do que me rodeia e do meu papel no universo têem sido muito dispares, muito focadas nos pequenos pormenores desta curta viagem. Não tenho ainda (se calhar nunca terei) uma visão global do que represento e do que o que me é externo representa para mim. Sinto-me uma letra, uma simples letra do Grande Livro da Vida e, fazendo parte dele, não consigo ter perspectiva para abarcar o seu mínimo significado. Não sei que palavra constituo, a que frase, que parágrafo, que capítulo pertenço e qual a sua interpretação. Para mim, os sábios da Terra são aqueles que conhecem apenas a palavra da qual fazem parte, nada mais. Numa doutrina panteísta poder-se-ia dizer que os espíritos da terra conhecem as frases, os Lares os parágrafos, os deuses os capítulos e o seu comandante – Júpiter, O Criador, O Ser supremo, Jeová, Alah ou Deus – conhece todo o livro.
Será assim tão complexamente simples? Ou estamos todos, toda a Humanidade, com as suas mais sóbrias ou mais mirabolantes teorias, errada? O mais frustrante de tudo isto é que existem mil e uma razões, mil e uma soluções e não sabemos em qual acreditar.
Devemos sempre ter uma crença, é a nossa âncora no mundo. Mesmo que esteja errada, o que não sabemos, ela serve de guia, de livro de instruções. Sem ela, vivemos de modo empírico e isso dói. Infelizmente não tenho crenças muito sólidas, vivo mais nesta última opção, a que faz doer. Dói por estar vivo, porque experimentamos a vida sem ponto de partida, sem base de sustentação, aprendemos da maneira mais difícil. E, no fim, a dúvida: terá valido a pena ou teria sido preferível adoptar um dos multiplos status quo da imensidade disponível? Por vezes apetece não estar vivo!
3h30, sábado, 18 de abril
Como há dias disse, a noite é rica. Não em conteúdo mas na falta dele e aí está a sua riqueza, é uma tabula rasa onde podemos escrever a nosso bel-prazer, onde podemos gravar a letras de ouro o nosso legado literário, as nossas ideias mais brilhantes, as nossas resoluções mais significativas.
Noite e solidão. Menciono solidão como a propriedade de estar sózinho, não como o sentimento com o mesmo nome, há uma grande diferença. A primeira é necessária de quando em vez para que se possa fazer uma introspecção, meditar, criar, encontrar soluções ou simplesmente desenjoar da sociedade; a segunda é mais negativa, implica emoções, implica a sensação real ou imaginária de se encontrar só no mundo, sem almas gémeas ou simplesmente aparentadas, sem quem nos compreenda ou apoie. É um sentimento muito perigoso pois pode conduzir à depressão e, no limite, à morte . Os pensamentos são como as conversas corriqueiras que temos todos os dias: começamos a cumprimentar alguém, agarramos o preço dos transportes, transportamo-nos para o da electricidade, chocamo-nos com o da água, nadamos num mar de críticas ao governo, ditamos leis sobre o que se deveria fazer à greve dos pilotos, voamos para uma das nossas últimas viagens de férias, daí falamos do tempo que faz, que fez ou que irá fazer, mencionamos a necessidade de fazer obras no telhado porque chove lá em casa, perguntamos bisbilhoteiramente pelo marido (ou mulher) e pelas crianças, se as houver e acabamos ao fim de um período de tempo variável que pode ir desde minutos a horas, alegando que é preciso fazer o jantar ou que temos de ir trabalhar ou que a mercearia está a atingir a hora de encerramento ou um qualquer compromisso de que nos lembrámos de repente para acabar com a conversa que dura há demasiado tempo e de que já estamos fartos ou porque o interlocutor é “cola” e temos que safar-nos airosamente sem darmos a entender que estamos a despachá-lo.
O pensamento é um rio cujas águas renovam-se contínuamente numa sucessão não repetitiva, tudo isto para dizer que divaguei em relação ao tema proposto inicialmente. Não me importo de divagar, prefiro deixar fluir o pensamento e escrever o que me vem à cabeça, ao estilo de Jack Kerouac. Não que me possa comparar com ele, nem de longe, embora com muita pena, no sentido em que ele conseguiu escrever um livro trabalhando ininterrúptamente até o finalizar. Mesmo que eu não escrevesse ininterrúptamente, mesmo que demorasse semanas ou meses ou anos a escrever algo; gostaria de ter a mesma capacidade criativa ou similar deste escritor.
Contudo, infinitamente inferior, liberto-me dos meus arquivos temporários reciclando-os no papel. Acho que é mesmo essa a função da escrita: reciclar, sublimar, catalizar, transformar o pensamento em palavra, a emoção em mensagem, a dor em alívio, o caos em ordem.
Escrever é como pintar, é como esculpir, é mais do que isso. Enquanto as duas últimas acções expõem o pensamento de quem as utiliza, a primeira expõe e explica, fornece-nos o livro de instruções para a sua interpretação.
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3h00, 21 de abril
Estou cheio de sono, sinto a falta da minha querida cama que imagino estar a esta hora chorosa, a chamar por mim. À semelhança de Ricardo III, apetece-me dizer: uma cama, o meu reino por uma cama!
Como se faz um escritor? Donde lhe vem a capacidade criativa, a imaginação para escrever histórias ficcionais mas cheias de lógica, sequência, tudo o que permite que uma história, um romance, seja coeso, credível? Isso aprende-se ou é inato?
Sempre quiz escrever, criar uma qualquer obra literária, uma dinastia livresca de que me pudesse orgulhar. Não faço ideia se os meus esforços serão coroados de exito ou se não passarei nunca de um medíocre escrevinhador cujos únicos louros serão eventualmente algumas frases felizes.
Toda a minha vida sonhei ser escritor,
Dar a minha alma ao papel
Pedindo em troca apenas a satisfação de um reconhecimento,
O orgulho de um pai por um bom filho.
Esforço-me por escrever e, nos breves momentos de lazer, exercito no papel o esforço de quem não quer abandonar esta vida sem um legado palpável, bem ao inverso do que até aqui tem sucedido. Dou por mim a pensar muito subliminarmente que afinal estou-me a enganar, nada deixarei de valor, tudo não passa de mera presunção de quem, à força de desejar, vê obra onde ela não existe.
Onde pára a realidade e começa a ficção ou onde pára a ficção e começa a realidade? Fracasso ou legado? Continuo a escrever na esperança de que o tempo e a experiência aprimorem, enriqueçam, envolvam os meus pensamentos num manto daquela originalidade coerente que constitui os sonhos feitos papel.
Reparo que continuo a pensar de um modo existencialista que não é mais do que uma espécie de pessimismo lógico, uma depressão sem depressão, uma realidade não cozinhada, crua. .
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25/5 2h00, o vento amainou, a chuva desapareceu, o céu está estrelado.
Estou a pensar como transpôr para o papel as minhas vivências, os meus pensamentos, tudo aquilo que gostaria de escrever, de descrever. É difícil, só com muito treino ou uma aptidão inata; a escolha dos símbolos, transformados em palavras e frases, é muito penosa, exige um esforço muito grande para ser inteligível e ainda maior para ser literáriamente harmoniosa e coerente.
Curiosa esta ideia de harmonia e coerência e como ela varia de acordo com as épocas. Senão, vejamos: Camões, aquele que é considerado o expoente máximo da literatura portuguesa, é para mim completamente maçudo, anacrónico. Exceptuando algumas rimas muito boas, tudo o resto está totalmente ultrapassado, não se edapta mínimamente aos nossos gostos alterados, refinados, transformados, evoluídos. O que foi bom no seu tempo não significa necessáriamente que seja bom agora. No tempo de Camões só tinha valor quem imitasse Petrarca e a capacidade do autor em, imitando, inovar, é que conferia os louros literários e o apreço dos seus conterrâneos e seus pares.
Os tempos mudaram, hoje em dia copiar é plágio e punido por lei. O grande Camões hoje seria um escroque, um impostor. Não tiro o valor ao poeta mas acho que já seria altura de mudar de campeão e pôr de parte a hipocrisia de continuar a considerá-lo o melhor. Já foi. Agora há ou houve outros que o suplantaram e dentre esses deveria ser escolhido o novo paladino da literatura nacional. Sei bem que é complicado, polémico fazer essa substituição mas os símbolos têem que cumprir a missão para que foram destinados.
Quando o símbolo deixa de fazer sentido, quando a mensagem começa a desvanecer-se, tem que ser substituido. Não será uma simbologia flutuante, que muda com a maré, mas antes um marco que, por erodido na memória colectiva de um povo, tem necessáriamente de ser renovado, substituido. Camões foi detestado por gerações de estudantes, forçados a estudá-lo, a tentar compreender formas de expressão e pensamento medievais que nada lhes diziam.
Eu fui um desses. Embora ainda aprecie parcialmente Camões, outros haverá que nem podem ouvir falar dele. Como pode então o poeta simbolizar a alma portuguesa? Será masoquismo. Seria de pensar submeter esta proposta a votação. Não uma votação popular, seria um disparate, haveria muitos que em vez de votar em Saramago ou Pessoa votariam em Margarida Rebelo Pinto ou na revista Maria. Aqui não há, não pode haver democracia. A democracia é a pomadinha com que se besuntam os olhos ao povo: enquanto se besunta, este mantém-nos fechados.
Não, tal votação só será possivel, só fará sentido se for feita por um colégio de eruditos, pessoas cuja idoneidade e reconhecimento universal seja perfeitamente aceitável, uma elite. Não me considero, totalitarista, fascista ou retrógado, apenas vejo as coisas com olhos de ver. O povo, esse acredita que é ele quem manda. Por detrás dele há, tem sempre que haver elites que possam escolher, tutores dessa massa amorfa, heterogénea que, globalmente, não sabe o que quer nem para onde ou como ir.
Com isto não quero dizer que as escolhas dos caminhos sejam as melhores, a maior parte das vezes são medíocres ou manifestamente más. Isso só significa que a elite dominante necessita de ser purificada, refinada. Para mal de todos, os partidos estão acima das capacidades, os cargos são políiticos e não por mérito. Enquanto tal estado de coisas existir, não sairemos da cepa torta.
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3h38, 28/05/15
Retomo as minhas escritas para não (re)perder o hábito. O ler a obra D. João II, de Elaine Sanceau pensei nesses homens de há 500 anos, desde o rei Afonso V até ao mais simples marinheiro ou camponês. Imaginei a sua vida e a sua morte e questionei-me sobre o legado de cada um deles. Todos deram o seu contributo ao futuro, uns mais outros menos.
Possívelmente, por vias e travessas, um qualquer campónio tenha contribuido mais para o mundo tal como o conhecemos do que o próprio rei. Na importância para o desenvolvimento ou não desenvolvimento do mundo não conta o extracto social ou o destaque social de quem existe ou existiu, conta o legado voluntário ou involuntário que, ou por força das circunstâncias, por mero acaso ou por vontade próopria, sobrevive num dado futuro.
Aqui, tem particular importância o efeito borboleta, onde um simples cão, um rato ou um insecto poderão ter mais relevo do que um rei no desenrolar dos acontecimentos. Seguindo esta linha de pensamento, um mosquito ou uma abelha, por terem picado ou importunado alguém há centenas ou milhares de anos, poderá ter provocado uma reacção de dor ou defesa que, embora pequena, condicionou um determinado movimento ou determinada acção que por sua vez desencadeou outras dezenas, milhares ou milhões de pequenas ou grandes reacções que hoje em dia estão-nos a influenciar e continuarão a influenciar a humanidade e o próprio universo até ,ao seu fim, se existir. Assim sendo, somos todos consequência de ínfimas acções de um passado longínquo e suas consequências temporais e físicas, assim como somos responsáveis por tudo o que sucederá no futuro mais longínquo, numa escala tanto maior quanto maior for o nosso distanciamento temporal. Somos portanto o produto de circunstâncias fortuitas que escaparam ao controle dos seus autores.
Contudo e como acredito que o Universo é fruto de um plano programado e controlado – senão descambaria num caos total e eventual destruição - essas tais circunstâncias fortuitas são de algum modo controladas, programadas para que as suas consequências não extravazem os parâmetros de uma (des)ordem estabelecida. Chega-se assim à conclusão de que, embora sejamos donos e senhores do nosso futuro, embora o possamos programar dentro dos limites do possível, também não somos perdidos nem achados na sua concretização pois ela depende dos nossos actos e dos actos mais ou menos involuntários e mais ou menos conscientes de gerações e gerações de antepassados, de animais, insectos, plantas ou mesmo minerais. Em suma e aproveitando o exemplo da democracia que expuz há dias, iludimo-nos com a ideia de que somos e seremos o que quisermos de acordo com os nossos actos quando somos afinal o produto de um desenvolvimento sobre o qual apenas temos um poder muito residual.
4h00, dia seguinte
As minhas abordagens ao universo metafísico podem por vezes parecer pueris ou incoerentes mas representam para mim algo de muito importante. Nelas extravazo as minhas dúvidas existenciais, as frustrações e anseios de quem não sabe de onde vem nem para onde vai e qual o seu papel no plano, se existirem um ou outro. Não sou pessoa que se limite a viver só porque respira, tenho que procurar uma razão lógica para isso. Se tal atitude é existencialismo, então sê-lo-ei toda a vida e serei também um pouco infeliz toda a vida porque procurarei sempre algo inatingível, a razão última da existência.
Penso muito na morte. Quer dizer, não passo a vida nisso mas sempre que converso comigo esse tema vem à baila. Imagino que dentro de 20, o máximo 30 anos estarei morto e isso assusta-me um pouco. Não que tenha medo de morrer, tenho é medo do desconhecido, tenho medo que todas as incontáveis teorias sobre a continuidade da vida estejam erradas e eu deixe de existir. Seria a frustração máxima. É evidente que se tal suceder não ficarei contente nem triste porque o que desaparece definitivamente, o que não deixa nenhuma presença também não sente, não tem consciência da não existência. Não, a frustração está aqui, enquanto for vivo. A frustração é a consciência da possibilidade de frustração e essa assusta-me constantemente. A maior percentagem do sofrimento é a antevisão do proprio sofrimento. A morte em si, independentemente da sua causa, não dói; o que dói é saber que vamos morrer.
Evidentemente que há outros factores pelos quais não desejamos desaparecer da face da Terra: o apego material ou espiritual, a família, os amigos, os projectos incompletos ou o sucesso que se deixa para trás. Sim, há quem morra com desapego total mas para isso é preciso ter uma fé qualquer numa after life, uma existência para além da vida. Esses morrem felizes, acreditam que vão para um mundo melhor.
Nascer é morrer
E essa certeza ensombra toda a nossa curta existência.
Todos os dias olhamos por cima do ombro com medo que a morte nos persiga
Mas ela, misericordiosa, esconde-se para que não a pressintamos.
E um dia...
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7/6
Estou agora rodeado de um silêncio quase opressivo, parece que o mundo parou ou que fiquei surdo. Só quando passa um carro na Circunvalação ou quando ouço o restolhar da mão e da caneta sobre o papel é que me apercebo que o mundo continua a existir e que não estou surdo.
Noutras ocasiões este silêncio seria bem vindo, uma espécie de pacificador, de relaxante do espírito mas neste momento é apenas um prolongador do trabalho, um intensificador do tempo que falta para sair, a pequena tortura das horas com 120 minutos ou mais. O sono, esse alia-se ao tempo e inferniza-me a vigília a que estou obrigado por contrato. Vendo o meu sono, vendo o meu descanso por uma quantia irrisória, sacrifico a homeostasia por 30 reles dinheiros.
Mundo de merda onde os aproveitadores sem ou com poucos escrúpulos encarnam os modernos alquimistas que transformam o suor e o sono em ouro. Vendemo-nos para sobreviver, prostituimos os nossos princípios, os principios básicos mínimamente decentes do ser humano para, em dependência voluntária de alguém não dependermos involuntáriamente de ninguém.
Dou por mim de olhos fechados, os sentidos perdidos, ausentes em casa de Morfeu, embalado por coisa nenhuma. Morfeu, esse deus que dá para os dois lados, pedófilo, gerontófilo e zoófilo. Toda a gente cai nos seus braços indiscriminadamente e ele acolhe-os e embala-os com igual desvelo, com igual indiferença, com interesse e desinteresse, apenas pelo prazer de embalar. Felizmente tenho um despertador natural programado com roncos ou outros ruidos igualmente melodiosos que proporcionam-me um acordar rápido antes de os níveis de “mais para lá do que para cá” atinjam valores preocupantes.
2ª , 8 de junho, 20h45
Quase 12 horas de “pastação” à minha espera. Mas serão mesmo 12 horas? Quem me garante que não estarei morto no próximo minuto, no próximo segundo, no decorrer de qualquer momento do meu turno? A incerteza do futuro...
Congratulo-me por ter conseguido (sobre)viver quase 58 anos, muitos outros ficaram pelo caminho. Nós, cada um dos sobreviventes, somos milagres, dádivas dos deuses ou da natureza ou como queiramos chamar. Menosprezamos o facto de estarmos vivos como uma coisa natural, como algo que nos é devido, como a imposição da nossa individualidade, da nossa condição de seres especiais, fora do resto dos nossos congéneres humanos. Esses, a nosso ver, vivem e morrem de acordo com outras leis, outros parâmetros. Nós não, somos únicos e não morremos assim como quem bebe água, somos diferentes e a nossa passagem para o além não é para já, perde-se na bruma do futuro, lá muito ao fundo, tão longe que nem sequer nos damos ao trabalho de pensar nela, a não ser numa perspectiva filosófica. E, quando nos damos conta (regra geral não damos), estamos mortos e enterrados ou incinerados ou desaparecidos.
Curioso o facto de que pensamos em nós como aquela massa informe de vísceras, ossos e músculos, líiquidos e matérias de aspecto e cheiro duvidosos que, a não existir o invólucro exterior, o papel de embrulho + ou – bonito, seria bastante desagradável de ver e considerar como sendo a nossa pessoa. Correcção: nós não nos pensamos assim, , pensamos apenas no papel de embrulho e assumimo-lo como a nossa identidade.
Pois é, aquela avaria funcional irreversível do corpo que demonizámos atravéz das eras, a figura negra, alta, esfarrapada, de feições caveirais semi-escondidas por um capuz sombrio e brandindo uma enorme foice, a que chamamos morte, produto estereotipado e estilizado do século do romantismo (julgo), não passa de um acidente de percurso inevitável e imprevisível, tal como uma avaria num carro ou um furo num pneu o é.
Desdemonizar a morte (não tem a ver com Desdémona mas com o retirar da demonização) é difícil. Desde crianças que convivemos com ela mas também com os conceitos, símbolos, convicções, medos e mitos legados pelos nossos antepassados e inscritos nos nossos genes, na nossa memória colectiva. Por mais que nos desmarquemos desse legado, dessa herança, ela está lá, lá no fundo a condicionar-nos subliminarmente. Felizmente, e geralmente para aqueles que já viveram muito, a experiência, o contacto com ela vulgariza-a, retira-lhe a capa espectral e sinistra que a envolve, humaniza-a, desmistifica-a, sociabiliza-a. Para esses a morte é como o fim de umas férias demasiado longas, tão longas que tornam-se maçadoras, aborrecidas e cujo fim é aguardado com ansiedade e alegria, por vezes com alívio. Complicado é quando somos mais novos e queremos continuar a ter férias. ...
5h12. Ah! Porque é que Deus fez as horas de trabalho maiores que as de lazer?
3h55, 9 de junho.
Iniciei estas linhas sem projecto definido, sem saber o que ou de que vou escrever. Talvez desista ao fim de 2 ou 3 linhas. Talvez não. Gostaria de ser como um Jack Kerouac, escrever ao sabor das ideias, deixá-las fluir e compôr o texto. Mas não tenho muitas ilusões, o Kerouac, Pessoa, Camões, London ou Verne, Salgari ou Auster, a existirem, estarão soterrados por baixo de camadas de neurónios do meu cérebro. Não é impossível mas é muito improvável que consigam libertar-se e dizerem de sua justiça, continuarei a ser um escritor potencial mas sem potencial. Infelizmente. Para mim e para o mundo. Escrevinho, limito-me a assentar pequenos e esparsos flocos do meu pensamento, do meu cérebro, da minha alma. Pequenos folículos de caspa mental que talvez alguém um dia leia e, quem sabe, dê algum valor (continuo a duvidar).
Sempre tive vontade de escrever as minhas memórias, não estes bocaditos, destroços do dia a dia mas memórias a sério, daquelas em que nos despimos totalmente sem rebuço, sem medo de chocar. Mas essas ficarão por escrever, são demasiado íntimas, são pornográficamente nuas e cruas demais para expôr, mesmo a mim próprio pois podem-se revelar demasiado reais e descubram o que não quero descobrir, revelem o que não quero revelar, aquela minha faceta que envergonhadamente escondo, que cobardemente tapo dos meus próprios olhares. Nascemos hipócritas, mentimos a nós proprios por piedade ou por medo, quebramos todos os nossos espelhos para podermos olhar só os outros e descobrir neles o nosso próprio íntimo, criticar neles a nossa própria imperfeição, apedrejar com ódio o que odiamos em nós.
11 de junho, 0h25
Mais um solilóquio, um diálogo mudo com as solas dos meus sapatos (nesta altura convém pôr um “ah ah ah” para que os espíritos mais distraídos se apercebam que se trata de uma piada). Mais um silêncio sepulcral apenas cortado pelos meus ruídos mastigatórios (uma sande – ou sandes, como há quem diga), pode não ser música para os meus ouvidos mas é pelo menos um consolo para o meu estômago. Estou a ler “Rienzi, o último dos tribunos”, de Bulwer Lytton, um romance baseado em factos históricos, muito à moda de Sir Walter Scott mas que a mim lembram um pouco Ponson du Terrail pelo seu estilo. Contudo, embora de fácil leitura, já não me seduz muito. Nos meus tempos de infância e juventude adorava histórias do género, fui apaixonado por Rocambole, de Ponson du Terrail mas, embora não lhe tenha posto os olhos em cima há dezenas de anos, estou em crer que é um género de literatura que ultrapassei, parti para outros voos.
Sim, porque nisto de leitura o cérebro, o intelecto também tem as suas modas, a sua evolução natural. À medida que se envelhece, embora o padrão, a matriz se mantenha, as exigências intelectuais modificam-se, refinam-se, especializam-se. É uma eterna apredizagem por etapas. Caio de novo em mim e reapercebo-me do silêncio. Não é um silêncio silencioso, há ,nele pequenos ruídos imperceptíveis que impedem que ele se torne insuportável. Quanto mais não seja aquele zumbido constante que sentimos dentro do cérebro, comparável àquele zunido apenas detectável que fazem alguns aparelhos eléctricos. Deve ser horrível para um surdo – não o que nasceu surdo mas o que ensurdeceu – não sentir a omnipresença desse barulhinho do silêncio.
Julgo que não se poderá imaginar o dramatismo da questão do mesmo modo que não se poderá imaginar a cegueira para aquele que vê. Eu sei porque já passei por isso, sei porque já fiquei sem ver de um olho em consequência de um acidente isquémico transitório. Não é agradável. É sabermos que estamos a olhar para algo e nada receber em troca, nenhuma sensação, um vazio total. Quem tenta imaginar fechando os olhos vê tudo escuro, mas vê. Quem deixa de ver, nem vê escuro nem vê nada. A não-visão não é uma ausência de luz e cor, é uma ausência de sentido, uma inexistência de sensação. Inimaginável.
Escrevo mas não o faço com soltura, não estou totalmente à vontade, estou condicionado pelo meu trabalho. Para uma escrita verdadeiramente intimista, verdadeiramente livre e desinibida não se podem acumular funções, não se pode trabalhar e escrever. Parte do meu cérebro está ocupada naquilo para que sou pago, a preocupação de zelar pelo bem-estar daqueles a quem guardo a morada. Deste modo, a capacidade criativa está tensa pois não pode absorver todo o potencial de que necessita para exprimir-se.
2ª, 15/6, 0h52
Música de fundo: Chopin. Lá fora a natureza e a obra do Homem permanecem estáticas, não há chuva, não há ponta de vento, a paisagem como que posou para a posteridade. Continuo a temer que as minhas metáforas e todas as outras figuras de estilo que, voluntária ou involuntáriamente uso (mesmo sem lhes saber o nome ou até sem me aperceber que as uso), não sejam compreendidas pelos meus hipotéticos futuros leitores.
Acho que há em todos nós uma preocupação pelo póstumo, um receio de que o que fazemos ou escrevemos seja mal compreendido ou ignorado e que todos os nossos grandes ou pequenos esforços nesse sentido acabem por ser inglórios, tempo perdido.
Em tempos escrevi um pequeno poema onde dizia que os nossos verdadeiros filhos são as nossas obras, os outros são-no apenas a 50% porque são o produto, o contributo de 2 seres. Assim sendo, o desejo de reconhecimento, o orgulho na obra, são perfeitamente justificáveis pois se desejamos um bom futuro para os filhos biológicos – nossas meias criações – mais o desejaremos aos nossos herdeiros intelectuais. Acho que estou a ir muito à frente nos conceitos abstractos, agora estou mesmo convencido que é difícil entender o meu raciocínio, entrar na minha “onda”. Transitoriedade! Num futuro não muito distante nada mais terá importância, ela terminará com o último vislumbre da minha consciência terrena, o meu último sopro de materialidade.
15/06, 22h30
Envolto no meu brumoso e já conhecido silêncio, ouso escrever. O ruído, esse adormece aos poucos, à medida em que os seus autores o fazem também (não o ruído mas o adormecimento). Chegou a vez dos noctívagos, sejam eles trabalhadores ou boémios, a noite é pródiga em contrastes.
A vida é bela; pena é que, por vezes, somos cegos.
O existencialismo é uma seca, faz-nos ver a vida tintada de cores escuras; mas é também ele que nos dá o sal da vida pois a perfeição é aliada da insipidez. O branco angelical, perfeito, imaculado, é um mito, uma criação conceptual utópica, de uma neutralidade que até dói.
A imperfeição, essa faz-nos desejar a utopia, exorta-nos a trabalhar, a esforçarmo-nos pela consecução do inatingível, pelo engano dos sentidos, pela mistificação da realidade. O existencialismo, nesse sentido, atravéz de uma angústia, de uma incessante demanda do Graal, de uma insatisfação da satisfação, proporciona-nos a felicidade possível, o sentido da vida. É um paradoxo mas é, ao fim e ao cabo, a compleção pela negação do objectivo. Esta luta constante transporta consigo os alvores da felicidade. Quem está bem com a vida que tem não é feliz, mente-se apenas. Ou está louco. Ou senil.
16/06, 1h30
Retomo a minha crónica habitual com as últimas novidades neuronais da minha pessoa, que isto de neurónios tem que se lhe diga. Ainda estou para saber se a perda de neurónios influencia o desempenho intelectual e como. Li que perdemos alguns milhares por dia e que é algo que temos que evitar a todo o custo porque são células que não se renovam.
Até aí tudo bem; Porém, por mais cuidado que tenhamos perdemos sempre essas células preciosas ao longo de toda a nossa existência. No entanto, à medida que vamos envelhecendo e perdendo os inestimáveis, a nossa produção mental tende a melhorar, o raciocínio aclara-se, acelera, é mais fluído. Há vários factores envolvidos, entre eles a experiência e a instrução, a cultura e o meio ambiente (estritamente ligado à experiencia) e, contudo, os neurónios vão falecendo. Que é que sucede então? Os remanescentes ficam fortalecidos, acumulam funções e tornam-se mais cultos. Pode existir uma explicação científica para o assunto mas isso desconheço; por tal facto é que me ponho estas questões que julgo prementes.
Entretanto há dias li que uma investigadora que escreveu um livro sobre os intestinos e o seu funcionamento afirmou que os neurónios do intestino são muito importantes. Nunca me tinha apercebido que neurónios não significa única e exclusivamente cérebro mas todo o sistema nervoso central. Está explicado, deve ser com eles (os do intestino) que às vezes temos pensamentos de merda. Adiante.
Nos últimos dias reatei o exercício físico que tinha iniciado em dezembro e que mantive religiosamente até ao dia 22 ou 23 desse mês. A quebra provocada pelo Natal nunca mais foi recuperada, a vontade esmoreceu e o exercício parou. Fruto de uma mentalização aliada à proximidade do parque da cidade (do outro lado da rua) retomei a manutenção fisica interrompida. Está a ser um pouco difícil pois estive inactivo durante mais de 5 meses. Quero ver se consigo que o meu médico de familia me passe requisições para exames físicos de rotina e alguns mais específicos para avaliar a minha capacidade para desenvolver determinado tipo de actividades pois tenho notado algumas anomalias (...) Não que eu seja hipocondríaco, por vezes até descuido a minha saúde, mas convém estar prevenido cada vez mais à medida que a idade aumenta e as defesas naturalmente diminuem.
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25/06, 1h10
A propósito de um artigo que li no Observador e que não importa estar a citar pois serviu apenas para espoletar as sequências de pensamento e subsequente encadeamento de raciocínios, lembrei-me de me propor uma questão que não tem nada de transcendente e cuja discussão é puramente académica. A sua resolução não aquece nem arrefece ninguém, as conclusões podem ser múltiplas, não passa tudo de um exercício mental e de retórica. É como discutir o sexo dos anjos: não tem aplicação prática nenhuma, a única vantagem que poderá advir deste debate a solo será para mim a maior ou menor satisfação que poderei experimentar em termos de consecução argumentativa do tema que me propus. É sempre gratificante conseguir-se de maneira + ou – clara e objectiva a explanação de um tema ou a sua exposição. Algumas raras vezes consegui chegar ao fim de um escrito e, ao relê-lo, sentir uma vaidade, um orgulho, a satisfação de um objectivo cumprido.
Mas voltemos ao tema que me propuz escrever, deixando de alongar-me em explicações e prólogos: considerando 2 doenças, 2 terrores do homem actual, qual delas é a mais dramática, qual é a que, para um observador externo, é a mais dolorosa, a mais incapacitante, a mais terrível de ser sofrida. Evidentemente, falo de casos terminais: cancro ou Alzheimer? Como se vê, volto ao meu hobby predilecto, ao meu tema gótico de estimação – a morte. Neste caso com uma nuance muito importante que é o sofrimento que a precede. Não apenas o sofrimento físico mas o psicológico, as implicações profundas que tem para todos os intervenientes, sejam eles o próprio, a família ou os amigos.
Considerando ambas as doenças como irreversíveis – e digo isto porque a primeira pode por vezes ser reversível, imaginando um cancro grau IV (com metásteses) e Alzheimer (este sim, é irreversível), qual será a pior morte, o pior sofrimento? Um cancro dá-nos um panorama de sofrimento físico, de dor e desconforto cada vez maiores, de incerteza quanto ao dia de amanhã, de não sabermos quanto viveremos, de apercebermo-nos que a morte aproxima-se a passos largos ou mesmo a correr e com tudo isso, aliado à dor física, a sensação horrível de que o destino já nos anunciou a muito em breve passagem para o além. Alzheimer é mais psicológica, é a consciência de que em relativamente curto espaço de tempo tornar-nos-emos cada vez mais senis e dependentes. Físicamente é menos marcante pois quando ela nos afectar as funções vitais básicas encontrar-nos-emos já em morte intelectual há muito ou perto disso. O sofrimento aqui é igualmente forte, apenas processa-se a nível mental. É termos a consciência (cada vez menor) de que enlouquecemos e ficarmos loucos com esse pensamento. É uma tortura mental, é apercebermo-nos da nossa progressiva incapacidade de lidar com as coisas mais simples, o tomarmos consciência do peso que representamos para toda a gente, a família em particular. Das 2 doenças, qual a maior sevicía? Venha o diabo e escolha! Porque estão os seres vivos tão ligados à dor? Porque é que não há vida sem dor? A dor necessita de nós para exprimir-se mas precisaremos dela para sermos expressos? Sim. Porquê, não sei.
Silêncio total, o tal silêncio com zumbido para indicar-nos que estamos vivos e não estamos surdos. Apanhei agora um pensamento que ia a passar, transportado por uma associação de ideias e que, por sinal, não tem nada a ver com nada daquilo que eu estive até agora a escrever. Aqui vai: Por que é que Morfeu não tem nada a ver com morfologia, morfos, morfar ou morfes? Pronto, já deixei o pensamento seguir viagem, sabe-se lá para onde, cavalgando a sua associação de ideias. Acho que eles viajam eternamente, como as ondas de rádio, a luz ou similares. Se pudessemos viajar no futuro, no espaço e no tempo, encontrá-los-iamos de novo algures, misturados com um numero incomensurável de “colegas” das mais díspares proveniências. Ainda bem que vivemos num universo onde as ondas propagam-se, expandem-se, senão estariamos agora tão saturados de pensamentos à nossa volta que seria impossíivel pensar mais; tal como a água deixa de aceitar os sais quando satura, assim seria com os pensamentos e então o universo como o concebemos, desapareceria, deixaria de existir pois só existiria se houvessem pensamentos que o abarcassem, que o compreendessem, de acordo com a teoria de que algo só existe a partir do momento em que existe um observador.
Mas como os pensamentos seriam impossíveis, não existiriam teorias, observadores ou acontecimentos. Não havendo pensamento nada existiria e eu não estaria aqui a escrever os meus pensamentos. Amen.
29 de Junho, 21h00, domingo.
Tenho pela frente 11 h de trabalho, uma seca. Passo e repasso mentalmente a minha vida nestes momentos em que estou sózinho, os únicos momentos em que, físicamente, não tenho contacto com a minha vida, não me sinto ligado a qualquer necessidade de agir ou interagir com o universo que criei desde o meu nascimento. Estou só, estou só com o meu espírito, com o meu intelecto.Tudo o que é acção motora só se processa ao nível de projecto no meu cérebro. Poderei resumir este momento como o único em que o esboço, por impossibilidade da acção, revela ou deve revelar todo o seu potencial. Não é facil pôr em pratica o conceito porque a dispersão criada por uma mente não treinada (a minha, neste caso) é enorme, a estática é por vezes superior à capacidade de concentração. Muitos pensamentos geram pouco ou nada, muita parra, pouca uva.
Estou em dia-não. Não que esteja particularmente deprimido ou cansado, que o dia tenha-me trazido dissabores, nada disso. Estou, simplesmente estou. Passa-me pela cabeça um vislumbre de compreensão, um fugaz e densamente brumoso entendimento das razões porque Camilo, Cobain, Van Gogh e tantos outros ao longo das épocas fizeram o que fizeram, apesar do seu sucesso.
Longe de mim imitá-los, para já estou muito bem como estou. O que interessa é que estou (em dia-não). Mas também já estou habituado, os meus pensamentos últimamente não têem sido muito positivos, se é que alguma vez o foram. Há em mim uma tendência para o existencialismo, para observar a vida pelo seu lado mais negro; não que considere isso mau, até dá uma certa resistência às adversidades da vida, ajuda-me a ver o mundo não como uma catástrofe irreparável e insuportável mas como algo que temos que aturar e contra o que temos que lutar, talvez nunca para vencer mas pelo menos ajuda-nos a menter uma certa serenidade, um certo equilíbrio mental.
Porém, um pouco de positivismo seria bem vindo, ele é também necessario, ele também contribui para o tal equilíbrio, quanto mais não seja para pintar de cores pastel o inferno da existência em vez do vermelho e negro convencionalmente aceites. Sabemos que é falso mas no fundo, no fundo, dispõe-nos melhor.
São 4h45,
tento mais um pouco de “desnudamento de alma” atravéz da palavra escrita, não é fácil, o cansaço quase permanente a que actualmente encontro-me sujeito como que embota-me a capacidade de expôr os meus pensamentos. Cá em cima fervilham ideias, pedaços muito bons de pensamento que simplesmente não consigo fazer sair. A minha mente é como uma úbere bem cheia, não de leite mas de raciocinios. O problema é que não a consigo ordenhar convenientemente. Já tenho pensado em iniciar um pequeno conto, uma ficção experimental para ver como me safo. Ainda não a comecei, tenho-a vindo a protelar porque acho que tenho medo de falhar redondamente, tenho medo da vergonha que terei de mim proprio. É um disparate, se não conseguir algo mínimamente digno, basta-me apenas rasgá-lo e não pensar mais no assunto. Contudo tenho receio de saber a verdade, receio deitar por terra todas as minhas expectativas, traumatizar-me a ponto de deixar de escrever. Por vezes o nosso pior crítico somos nós mesmos. Mas vou correr esse risco, tenho curiosidade de conhecer o meu estilo, saber até que ponto a minha prosa é válida, testar a minha imaginação, coordenação e outras capacidades associadas que fazem uma boa obra e um bom escritor.
Saio de casa contrariado, não quero ir trabalhar, é longe e mal pago. Antes, revejo a minha mochila: 2 sandes (que hoje vou trabalhar 12 horas), uma garrafinha com café, um iogurte, uma banana, um par de meias, uma camisa lavada, a carteira e um livro; um canivete que anda sempre comigo não sei para quê porque é raro usá-lo. Telemóvel – este sim, o meu canivete suíço que aligeira-me a noite com filmes gravados, ligação à internet, e-books, jogos e outras facilidades, Está tudo, cá vou. Tiro a scooter para a rua, últimamente não tenho conseguido pô-la a trabalhar com o starter, tem que ser com o “kicks”. Arranco na esgalha (60/65 km no máximo), já vou como de costume em cima da hora. Se tudo correr bem estarei lá em 15/18 minutos.
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Cheguei. Recebo do colega as últimas novidades, o que realmente importa saber sobre o que se passa ou virá a passar no prédio e que possa directa ou indirectamente afectar-me ou necessitar da minha colaboração. Geralmente é tudo para o pessoal de dia.Sento-me na cadeira e aguardo. Ainda é muito cedo para fazer uma ronda, só lá para as 23h ou ½ noite. Leio ou, mais raramente a esta hora, escrevo De longe a longe aparece um residente, boa tarde, boa noite e pouco mais, eles mal me conhecem e eu mal os conheço.O tempo passa muito devagar, quase não passa. Começo a ser estremecido por pequenos acordares de pequenos adormeceres imperceptíveis, impercebidos. Levanto-me e vou fazer uma ronda, saio à rua para verificar se as portas exteriores estão bem fechadas e para expulsar o sono mas ele agarra-se-me com unhas e dentes, não consigo. Aí está ele outra vez a envolver-me , é o meu pior pesadelo. Amanhece, são 5 horas, o fim do pesadelo, parece que já custa menos aceitar o meu destino. Ei-lo que chega, são 8 menos 10. A sua prisão é a minha libertação, que aceito aliviado. Daqui a pouco estou no parque da cidade a mortificar o corpo, o exercicio custa mas é necessário, há- que contrabalançar a semi inacção do dia-a-dia ( ou do noite-a-noite).Também chego a casa contrariado porque só venho cá preparar o jantar(??) e hibernar. Mesmo assim hiberno muito pouco, os ciclos circadianos estão trocadissimos, durmo muito mal. A família agora é u m fugaz episódio da minha vida, estou quando eles não estão, estão quando não estou. Saio de casa contrariado, não quero trabalhar, é longe e mal pago. Antes, revejo a minha mochila.
29/6, 11h40, nevoeiro cerrado, uma característica curiosa desta terra de Matosinhos. Pouco sono dormido, muito sono em dívida.
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Herberto era jovem, um pouco mais velho que o seu nome; os pais só lho puzeram passados 3 dias, fora uma decisão dificil. A mãe teimara sempre em chamá-lo Teodósio enquanto o pai queria o nome do avô: Albertino.Após aturadas discussões e os mais rebuscados argumentos de parte a parte e porque o tempo para registá-lo no Civil escasseava e teriam depois que pagar uma multa, concordaram em deixar os padrinhos escolher. Ficou Herberto por escolha da madrinha, sabe-se lá porquê.Cresceu Berto porque era mais facil. Poucos sabiam o seu verdadeiro nome de baptismo, apenas os mais chegados e mesmo esses raramente chamavam-no assim.Apesar de pouco vulgar, Herberto gostava do seu nome e fazia questão que lho chamassem, mas era dificil, ninguém atinava. Ficou sempre Berto para todos.Terminada a escola, não encontrou muitas opções na vida, nos anos 70 os horizontes do país não eram os mais apetecíveis. Emigrou, primeiro para França mas não se deu muito bem, embora tivesse lá ficado 2 anos. Mudou de país, foi para a Alemanha onde entretanto um cunhado arranjara-lhe emprego na construção civil. A vida acabou por sorrir-lhe, o trabalho era bem pago, foi promovido a encarregado e mais tarde criou a sua própria empresa.Por lá ficou 30 anos até que reformou-se e voltou à terra, sempre tivera saudades. Voltou a ser o Berto.Apesar ne nada lha faltar e ter uma boa reforma, fruto do seu trabalho, ser feliz , ao fim e ao cabo, apenas uma coisa lhe dera pena ao deixar a Alemanha. É que lá todos o trataram sempre pelo seu nome, o verdadeiro, o de baptismo: Chamavam-lhe Herr Berto.
Domingo, 5/7, 2h03
Mais uma palestra homem-papel para não perder o hábito. O que seria do ser humano sem a possibilidade de escrever, sem o apoio dos livros? Seria um retorno à Idade Média ou pior? É certo que hoje em dia saber ler e escrever faz parte do que se espera de um país civilizado mas não faz necessáriamente um homem sábio. Há seres muito inteligentes que vivem num estado muito primitivo, seja na Amazonia, em África ou na Índia. Porém, para que sejam criadas todas as condições possíveis para o seu surgimento, para que os mitos abandonem o seu estado de latência e desenvolvam todo o seu potencial, a alfabetização com todos os componentes físicos que permitem a sua eficaz e completa consecussão é essencial, indispensável. Sem os instrumentos da leitura e da escrita, sem os livros, o papel e a caneta ou similares, não há catalizador, o desabrochar do espirito torna-se muito mais difícil. Prova disso é a Idade Média de que falei: não só é inadmissível acreditar que era tudo uma cambada de burros como os poucos letrados existentes eram-no quase apenas porque sabiam ler e escrever e mal.
Por outras palavras, 90 e tal % da população não tinha acesso ao catalizador, não tendo portanto apredido nem tendo tido possibilidades de aprender. Dos ínfimos restantes apenas talvez 1% ou menos destacava-se na erudição. Eram portanto raros mas geralmente muito bons. Antes disso, na Idade Antiga, era ainda mais difícil, o conhecimento era transmitido por via oral, só os melhores dentre os melhores destacavam-se. A escrita permite que o espírito viaje, é um veiculo importantíssimo de desenvolvimento, tanto para quem lê como para quem escreve. Aliás, os dois actos estão íntimamente ligados, são inseparáveis. Não saber ou não poder escrever é como cortar as pernas à alma, se ela as tivesse.
5/7, 23h17
Como será o futuro? De um modo simplista e evidentemente tintado pela nossa propria época, pela evolução palpável e galopante dos progressos tecnológicos, pelas nossas proprias crenças e vivências, diria que os meios de transporte deixariam de existir segundo os padrões actuais, talvez utilizemos o teletransporte ou formas físicas que utilizem energias de alto rendimento, não poluentes e baratas. A sociedade terá evoluido para atitudes mais racionais, mais humanas de gestão de massas, haverá menos ou mesmo desaparecerá a fome devido a uma distribuição equitativa de recursos, etc,etc,etc. E se esta visão pré-idílica da sociedade humana fôr um logro? E se tudo aquilo por que lutamos, por que ansiamos não fôr mais que um lindo conto de fadas que não passará de o ser?
A humanidade luta por estes ideais há centenas, se não milhares de anos com versões mais ou menos universalistas consoante as épocas e a sua maneira de encarar a felicidade, o mundo e quem faz parte desse círculo de abrangência. Quero com isto dizer que através dos séculos o conceito de igualdade, democracia, justiça, etc, não se aplicava sempre a todos. Umas vezes eram os inimigos do grupo postos de fora ou as mulheres ou os escravos ou quaisquer outros humanos que não correspondessem ao círculo convencionado pelos ditames e pensamento da época. Estou convencido que o futuro( pelo menos nas proximas 2 ou 3 centenas de anos) apenas trará mais do mesmo; haverão sempre grupos excluidos ou discriminados. Tudo isto tem a ver com a própria evolução da mente: o que hoje é, amanhã deixa de o ser , o pensamento passou para outro estado, levando de arrasto as crenças do momento. Tal como muitos políticos que em jovens eram de extrema esquerda, tal como muitos pacifistas que hoje vendem armas ou vivem de algum modo à custa das guerras, tal como muitos revolucionários que hoje são capitalistas, a humanidade em geral, passada a fase do idealismo e do igualitarismo muda, transforma-se gradualmente, egotiza-se, radicaliza-se e esquece tudo, pensando apenas no seu bem-estar. Isso sucede a todos ou quase todos, uns mais outros menos. Nesta perspectiva, velha de milhares de anos, desde que o homem foi progressivamente abandonando (embora não totalmente) a fase instintiva em benefício do racionalismo, acredito que pouco mudará. Quanto à vertente tecnológica, aí teremos enormes mudanças, incomensuráveis e espantosas mudanças, das quais só podemos conjecturar, sob pena de avaliação ingénua como ingénuos eram os romances de ficção científica dos anos 60 ou mesmo posteriores, mesmo que escritos por renomados cientistas da época. Aguardemos para ver. Termino por agora, estou a ser muito adjectivo e pouco objectivo, quase esquizofrénico, vivendo uma realidade que só eu compreendo, são efeitos do cansaço.
2h13, sabado, 11 de Julho
Véspera da véspera do meu aniversário, ou seja antevéspera, para não complicar. Farei então 58 anos, se a esse dia chegar. Premonição ou hipótese? Quando lá chegar saberei. Ou então não. A nossa jornada terrena é equiparável a um escritor que tem pela sua frente uma resma de papel. Ele escreve, escreve e nunca sabe quando vai parar, quando a inspiração lhe vai falhar, quando falha a sua veia alimentadora. Tal como ele, a nossa linha do horizonte é uma meta a atingir. Porém, ao contrário do escritor, o nosso horizonte será sempre uma linha ténue lá muito ao fundo e que sabemos nunca iremos atingir, será sempre uma linha no horizonte, o pote de ouro no fim da curva do arco-iris. Contudo persistimos embora saibamos que nunca terminaremos o que começámos. Somos todos Gaudí e a vida é a nossa Sagrada Familia. Seremos todos fruto do azar, do acaso? Estaremos aqui porque calhou ou porque existe um plano? Nascemos, crescemos, morremos, casamos, temos filhos, fazemos ou não fazemos isto ou aquilo, temos ou não sucesso, somos ou não felizes apenas por uma coincidência num universo de probabilidades? No fundo acredito que haja um plano, que nada existe por acaso. Mas isso pressupõe um plano impossível de abarcar pelas nossas mentes limitadas, um plano tão incomensurável, tão ininteligível como o próprio universo a que pertence ou que lhe pertence.
Quem o fez, como o fez, porque o fez, são as perguntas angustiosas com que me questiono, as mesmas que um numero desconhecido de outros seres pensantes como eu formulará, formula e formulou desde que o mundo é mundo e nele existem seres com capacidade para não se limitarem apenas a viver, a vegetar. Dizem que nada é impossiível. Não, Então alguém que me responda.
2h05, 2ª feira, 13 de Julho.
Afinal cheguei, já tenho 58 anos. 6h50 Ainda estou vivo.
18h07, 23h55
Escrever, escrever, escrever, deveria escrever ininterruptamente para gravar vivências, para que os que me são chegados e os que não querem saber de mim para nada soubessem o que eu faço, o que fiz e o que conto fazer, tirassem o meu perfil psicológico e o deitassem às couves porque não sou famoso, não sou relevante e aquilo que penso ou deixo de pensar não interessa nem ao Menino Jesus. Só talvez esse, de acordo com a tradição cristã, se interessasse mínimamente por mim e mesmo assim só numa perspectiva evangélica, de salvação das almas.
O meu valor, o meu verdadeiro valor neste orbe é zero ou menos, sou apenas mais um zero no meio de outros que tais e, possívelmente, alguns uns ou até dois. Será possivel avaliar o valor de alguém de uma forma isenta, classificá-lo como a um sabor ou um cheiro, apreciá-lo como a um livro? A valoração de um ser humano depende da sociedade, ela é que o gradua em bom ou mau, presta ou não presta e nós mesmos fazemos parte dessa avaliação que apenas depende do estado de humor, da simpatia ou antipatia, do julgamento moral imposto uns aos outros, colectiva ou individualmente. É-se santo ou uma merda consoante o nosso julgamento e/ou o dos outros. E contudo somos uma peça essencial no universo, do universo. Sem nós, esse desmoronar-se-ia pois a sua essência baseia-se na unidade, na unicidade e não a pode haver se faltar algo, por mais ínfimo que seja. Logo, somos importantíssimos, somos uma pedra basilar do universo, ele sem nós ou outro qualquer, não existiria pois seria a negação de si próprio. Convençamo-nos portanto que o nosso valor é inestimável, que sem nós nada existiria, que não somos o que os outros pensam de nós. Já escrevi. Pensamentos baratos, de um euro, com pouca elevação literária mas com muito valor pessoal. Por pior que seja a prosa, por mais confusa a exposição, são os meus miolos, a minha personalidade a ser dissecada, vivissecada. Pode não ter valor para ninguém mas para mim que falo comigo mesmo é muito importante, serve de guia para compreender-me e, ao fazê-lo, compreender melhor os outros.
22h05, 21 de Julho
Ainda hoje (nem sei porque falo nisto, é uma coisa sem importância) lembrei-me da relatividade. Nem a associei a Einstein, não me passou pela cabeça nem tampouco a encarei como uma lei da física e não só. Lembrei-me apenas ao cruzar-me... Não, não me cruzei, iamos no mesmo sentido. Dizia eu, à passagem de uma scooter daquelas às quais pode-se chamar scooter e não uma 50CC como a minha, a que vulgarmente chamam “secador”. Olhei para ela de modo admirativo, quiçá invejoso, como uma criança pequena olha para qualquer coisa com motor a que possa chamar mota (a minha incluida, as crianças nesse aspecto não são muito selectivas). Isso é relatividade. Do mesmo modo que o 50CC olha para o 125CC com a sobredita admiração, talvez inveja, o 125 olha para o 600 e este para o 1000 ou 1200 com o mesmo tipo de sentimentos. Isto foi uma divagação, um floreado, um pensamento rocaille, banal, que veio-me à cabeça. Não que não tenha importância, todos os pensamentos importam, todos condicionam o nosso futuro e o dos outros, do universo, afinal; é o efeito borboleta. Mas no cômputo geral, na mediania do pensamento humano, não tem expressividade relevante, não merece geralmente ser citado.
2h35, 28 de Julho
Tenho um sono do tamanho do mundo! Neste momento escrevo para espalhar mas não parece que tenha muito sucesso. Se não fosse esta sensação de adormecimento eminente omnipresente e constante, estaria óptimo. É que da maneira como as coisas estão a processar-se, os meus pensamentos como que adormecem antes de saírem da cabeça, ou seja, nem saem. É muito curioso observar, analisar como por vezes somos aldrabões conosco próprios, como tentamos dar-nos a volta para ficarmos bem na selfie (mais um neologismo, sinal dos tempos e da influência dos media. Que a lingua portuguesa me perdoe). Tenho feito muito pouco exercício, cada vez menos, por montes de razões, todas elas legítimas, explendidos alibis, óptima poeira para os olhos: ou porque estou esgotado, cheio de sono e chego a casa e só durmo passadas 3 ou 4 horas (isto porque entretanto espalhei o sono) ou porque tenho algo importante ou urgente para fazer de manhã e não o faço ou poderia tê-lo feito depois ou porque montes de outras coisas. Que aldrabice, que falta de vergonha! Quantas desculpas esfarrapadas! Ainda por cima, como sou juiz de mim próprio, quando confrontado com estes dislates ainda deito água na fervura e, embora admitindo a culpa, ainda absolvo ou mesmo beneficio o réu, deixo-me subornar, auto-subornando-me!
Mas tudo isto faz parte da natureza humana, não é? As dietistas, as que fazem dieta, até comem um docinho de vez em quando porque merecem, os jogadores até fazem um mau desempenho mas a culpa é do árbitro ou do anti-desportivismo da outra equipa, os cozinheiros falham porque os produtos são de má qualidade, os alunos porque os professores não prestam, os professores porque os alunos não prestam. Todos nós procuramos justificações para os nossos falhanços, para os nossos defeitos, as nossas falhas, está-nos nos genes.
Queremos ser bons, os melhores, mostrar ao mundo que somos modelos para tudo o que é bom. Não passamos de hipócritas com subterfúgios melhor ou pior sucedidos, que dão por vezes mais valor à justificação do que à acção, à desculpa que à performance, à retórica que à verdade. E por aqui me fico.
02/08, 0h15, domingo
Passei um bom fim de semana...reparo que acabei de escrever um semi-disparate, o fim de semana só agora começou, para mim isso representa 5ª ou 6ª feira, os dias da minha folga. Fora este àparte, foi bom, descansei medianamente, não houve muitos stresses, foi bom.
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21h03, 11 de Agosto
Estranho tempo, nem parece verão. Misty and cool. Pois hoje sinto-me como se fizesse parte da Amnistia Internacional das Tintas de Escrever Oprimidas e Aprisionadas do Mundo, vou libertar algumas. Infelizmente é uma libertação falsa, tendenciosa; a hipotética libertação não passa de uma mudança de estado, de cárcere. Ao libertar a tinta da sua prisão condeno-a a outra ainda maior – o papel – de onde nunca mais sairá. É o destino.
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Criar é uma responsabilidade enorme e nada tem a ver com o resto da nossa vida. Podemos ser uns bêbados, uns ladrões, pedófilos ou assassinos, egoístas ou magnânimos, nada tem a ver com a criação, com a genialidade. Há tantas pessoas socialmente, moralmente reprováveis, mesmo abjectas, cuja genialidade ultrapassa em muito algo que alguma vez o mundo tenha presenciado. É evidente que os seus actos perante o universo não permitem que a nossa consciência os recompense, os endeuse com o nosso reconhecimento expresso. Tal não invalida que o nosso intelecto o não faça, são coisas diferentes. Um assassino, um torturador pode ser um Adónis: moral e socialmente abjecto, artísticamente belo.
As opiniões são como a religião ou a política: aceites incondicionalmente por uns, rejeitadas liminarmente por outros. O que escrevi nas linhas acima pode fazer sentido para alguns e ser um completo disparate para outros; o mesmo passa-se com todo o resto da nossa vida, actos e pensamentos e a vida, actos e pensamentos de toda a restante humanidade, tudo depende do ângulo do prisma atravéz do qual observamos o mundo. E o mundo pessoal de cada um é tão limitado!
Sinto-me nada. Mas, revendo-me nos outros, Sinto-me tudo.
12/08, 22h03
Ontem iniciei a crónica sem muito espírito, sem nenhuma musa inspiradora. Aos poucos alguma foi-se aproximando e deu-me umas dicas, pouca coisa. A minha veia literária é ainda um capilar, nada de transcendente, tem pouca importância, pouca visibilidade. Gostaria imenso que ela se tranformasse numa artéria pois já não tenho ilusões que ela algum dia seja um coração, isso está reservado para os grandes génios, não para mim. A não ser que um dia leve uma pancada na cabeça que liberte a minha intelectualidade mais inacessível, aquela que está profundamente enterrada no inconsciente e que só poucos conseguem trazer à superfície. Acho que é mais dificil do que ganhar no euromilhões. No entanto e talvez para sempre limito-me a pensar para o papel o que me vem à cabeça, essa folha, essa tabula rasa à qual toda a estupidez é bem vinda. Não que seja tudo parvoíce, sei que há coisas que escrevo com algum valor, sem falsas modéstias.
Engravidei-a, que vou fazer? Estou em pânico, não contava com isto, vou ter que assumir uma vida que não quero, que não desejei.Ela está feliz, é o primeiro...mas nem sequer fui consultado, ninguém me perguntou nada!Jà tentei o aborto mas ela está sempre atenta, não deixa, não permite. Agora, durante 9 meses é a expectativa, talvez algo corra mal, pode ser que ela mude de ideias, uma doença, sei lá. Caso contrário não tenho alternativa, é o nascimento. Mas eu não quero nascer!
Tétrico, alanpoeano! Gosto destas histórias góticas, vitorianas! Ontem terminei de ler com gosto o livro Emigrantes, de Ferreira de Castro. Fiquei satisfeito e surpreendido, não contava com uma obra tão agradável de ler, tão bucólica mas actual, tão subreptíciamente, psico-sociológicamente analítica, tão socialmente crítica sem ser sartriana. Pensava no autor como um escritor de certo modo romântico, ficcional, cuja escrita relataria situações neutras, sem muita riqueza de conteúdo ético e moral, histórias para entreter. Fiquei especialmente agradado pelo que li e anseio por brevemente ler outras obras dele, foi uma revelação.
01h32, 16 de agosto
Bem, imaginemos que falamos de coisas mais sérias e aqui volto à baila com um dos meus temas preferidos: o que andamos todos a fazer neste mundo, estamos a evoluir como espécie viva e pensante para quê? Que beneficio traz a vida para qualquer um de nós, simples obreiros num formigueiro imenso a que chamamos humanidade e que pouco tem daquilo que se convencionou chamar de humano? Bem vistas as coisas, parece tudo muito sem sentido, lutamos algumas dezenas de anos com a certeza de que vamos desaparecer a qualquer momento indefinido após muitos e longos períodos de sofrimento e poucos e breves lampejos de alegria a que eufemísticamente chamamos de felicidade. Em suma, andamo-nos a enganar a nós próprios e sabemo-lo e consentimo-lo e ignoramo-lo. Vendemos a nossa vida ao destino(?) a troco de endorfinas, drogamo-nos com hormonas do prazer, não passamos de drogados, de junkies dos sentidos e, tal como os outros, aqueles a que chamamos drogados, abdicamos de tudo menos do prazer do viver, dos tais breves lampejos de sensações tidas por agradáveis.
Tal como os junkies quimicos também sofremos síndromes de privação, ressacas monumentais mas não queremos saber, queremos continuar viciados até ao momento da verdade, que não sabemos qual é nem quando surge. Diria que somos dignos de pena, mas quem teria pena de nós senão nós próprios? Assim, cá continuo a penar, a sacrificar-me, a sofrer privações do sono; e tudo para quê? Para adquirir bens que dão-me prazer e para tentar facilitar o caminho desta droga aos meus descendentes e seus hipotéticos descendentes ad eternum. Vejo na humanidade o que observo num formigueiro: há milhares de anos que se reproduzem para construir novos formigueiros em tudo iguais aos anteriores, perpetuando assim o ciclo de nascimento e morte sem nenhuma razão, sem nenhuma explicação plausível aparente.
Vivo ou morto, que importa?
A existencia, vã e amorfa, faz-me querer ser.
Mas ser o quê, para quê?
Iludo-me tão sómente com uma imagem reflectida no espelho.
10h43, 18 de agosto
Cheguei à hora possivel da escrita, não se escreve quando se quer mas quando se pode. Ainda hoje tive ideias muito interessantes para depositar neste cofre do tempo que é a escrita: tudo perdi, não tenho a minima noção do que pensei, do que projectei escrever. A oportunidade perdeu-se, mesmo que me venha a lembrar nunca mais terei a chispa que me animava no momento, todo o desenvolvimento será diferente, menos vivo, a ideia ter-se-á desvanecido, enfraquecida a sequência única de pensamentos que a criou. Mas o que é a vida senão, em parte, um desfiar de oportunidades perdidas, de recursos desperdiçados, independentemente da voluntariedade ou involuntariedade da culpa?
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3h30, 2 de setembro/15
Apetece-me escrever. Ou antes, não me apetece escrever mas quero deixar escrito as minhas preocupações, as relevâncias e ninharias dos meus dia-a-dia. Neste momento sinto-me bem. Curiosamente, esta é uma etapa da minha vida em que não estou muito bem, há demasiado trabalho, mil e uma preocupações, pouco descanso. Mas é talvez por tudo isso que me sinto bem, que me vejo a superar lentamente as dificuldades, o gozo que isso provoca, a (relativa) felicidade na adversidade, a satisfação das metas sendo milímetro a milímetro superadas. Contudo, reside aqui mesmo, em co-habitação, a ameaça sempre presente de um volte-face, a possibilidade de, de um momento para o outro, tudo se desmoronar, o avanço obtido com denodo ser destruido por algum hipotético revés da vida. Por tendência desconfia-se sempre das benesses da existência, suspeita-se que por detrás do sucesso, da bem-aventurança, há sempre um avoengo à espreita, ansioso pela oportunidade de destruir a esperança com todo o seu séquito de acções e sentimentos positivos.
Quem nunca teve ou já perdeu a sorte na vida, teme sempre, quase espera os golpes destruidores, como uma consequência cármica de ter sequer ousado tentar ser feliz. É disparate, eu sei, é cisma fatalista estúpida que apenas atrai más influências mas, por contumácia, é imensamente difícil de erradicar.
Em novo, cria na minha boa estrela e acreditava num anjo da guarda que velava pela minha felicidade e tudo fazia para facilitar-me a vida. Ao crer, criava um escudo protector à minha volta, uma couraça que resistia às adversidades.E funcionava! Bastava crer! Com o tempo, com a falsa experiência que a vida nos dá, que a vida nos faz crer que dá, nas dúvidas que transformam-se em dogmas, nas suspeitas não confirmadas que viram certezas, na perda de fé em nós e no mundo, o anjo, triste, afasta-se. Não nos volta as costas, limita-se a não interferir, a respeitar a nossa descrença, pronto a intervir mal o chamemos.
Na maior parte dos casos morremos sem jamais o chamarmos novamente, sem saber a sua presença ao pé de nós, sem sequer nos lembrarmos que o rechaçámos há muitos anos como um devaneio, uma crendice, uma ilusão da juventude. E afinal, apenas basta chamá-lo... Vivamos a vida dia a dia, não há planos para o futuro, não há certezas. Por isso, de que vale afligirmo-nos? A única certeza que temos é a de iremos morrer nesse futuro, não sabemos quando. E acabam as fúteis preocupações a que demos tanta importância. Carpe diem.
00h01, 6 de setembro
Após um bom fim de semana, apenas ensombrado por situações pontuais ( o que não significa que sejam de somenos importância), eis-me de volta ao trabalho. Bem dormido, roupa lavada, não me posso queixar. Vejo o futuro, se ele me existir, com bons olhos e a vida corre-me, milímetro a milímetro, de feição. Como disse recentemente, não posso pensar nos volte-face do futuro porque só o presente conta e é só esse que vivemos, que temos que viver.
Não há futuro, há um presente que, hipotéticamente, há-de vir e que deve ser idealizado, nunca como um pesadelo mas como um conto de fadas. Esse sonho é que protege o nosso presente futuro das intempéries da vida. Estarei a ser demasiado abstracto? Será que um dia alguém ao ler-me, ao ler estas linhas, vai conseguir entender ou pelo menos ter um vislumbre do meu pensamento, compreender as sinopses que utilizo, as metáforas, toda a linguagem figurativa na qual baseio a minha escrita? Se sim, óptimo; se não, passará a ser mais um documento criptografado a juntar aos milhões espalhados pelo mundo, uns fruto da loucura, outros a aguardar descodificação. Isto traz à baila outra questão: como saber que não estou louco? Um doido por vezes não sabe que está doido, age com a convicção que os seus actos são perfeitamente normais, vive num mundo um tanto ou quanto paralelo onde tudo o que pensa ou faz é aceitável, normal.
Então como podemos saber se vivemos ou não nesse mundo paralelo de anormalidade transvestida? Não podemos, não sabemos, do mesmo modo que vivemos um sonho sem sabermos que estamos a dormir, salvo algumas raras excepções. Tive sonhos em que sabia que estava a sonhar e que iria acordar, mas isso é muito raro. Na maior parte dos casos vivemos os nossos sonhos como se de realidade se tratasse. Aqui está um paralelo: sonho e loucura. São realidades alternativas das quais a vivência não é totalmente consciente, a única diferença é o tempo de duração; os sonhos são relativamente curtos com um retorno final à realidade enquanto a loucura pode durar por toda a existência fisica (será que o espirito pode apresentar loucura?). Há contudo ainda outra situação ambígua: um doido pode sonhar; será que um sonho pode ser louco? Há alturas em que experimentamos sonhos totalmente anómalos e que vivenciamos enquanto sonhamos como a coisa mais normal deste mundo e fazem, dentro da lógica distorcida dos sonhos, sentido. E eles, os chamados mentalmente instáveis, podem ter sonhos que, na nossa lógica dita normal, sejam normais? E como é que eles os encaram? Como sonhos normais ou sonhos anómalos? Quais serão os seus critérios? Doido ou são, o que é que sou? Poderei ser doido para os outros e agir com normalidade para mim próprio ou ser louco para mim e agir normalmente para com os outros? Uma depressão não é, ao fim e ao cabo, sermos doidos de nós proprios a ponto de, em casos extremos, nos suicidarmos? E o resto do mundo pode nem se aperceber, sermos para eles perfeitamente normais. E o fanatismo, não é ele também uma forma de loucura da qual não nos apercebemos e em que somos loucos dos outros?
07/09, 00h10
História! O que é a história? Nada mais do que um esforço para que as gerações da antiguidade e do presente levem as vindouras a aperceber-se que são o produto transitório de uma sucessão de ondas de acontecimentos evolutivos, cataclísmicos, algo que transforma-se, sublima-se, contamina-se, reconstrói-se no crisol do tempo e do espaço. Todos nós fazemos a história, por mais ínfima que seja a nossa contribuição. Somos os seus cães, marcamos o seu curso como aqueles marcam as árvores e as esquinas, imprimimos nelas a nossa passagem fugaz tentando, como os primeiros, que o nosso odor fique gravado indelévelmente.
A história é uma marca colectiva feita com intenções individualistas; quem o faz, fá-lo com o objectivo de tornar-se notado, sobressair da massa amorfa da humanidade. Ao elevar-se ou afundar-se leva consigo um grupo , um pais, uma raça que será execrada ou glorificada por um acto, uma intenção singular que afecta inevitávelmente tudo ao seu redor. Com a história aprendemos o passado mas não do passado, repetimos sempre os seus erros, somos um pouco como a história da loura que, vendo no seu caminho uma casca de banana, pensa: “lá vou eu cair outra vez!
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09/09, 23h47
Continuo a sentir-me naquele limbo de semi-felicidade que tenho últimamente experimentado. Digamos que é um estado de manutenção do status quo como forma de equilíbrio, um “quando mal, nunca pior”. Do mesmo modo que um doente crónico ou terminal sente-se feliz quando não tem dores, assim é a nossa vida: somos felizes quando não há revezes mesmo que não haja progresso, é um positivismo negativo(ou um negativismo positivo).
O tempo é como um gás, comprime-se e expande-se consoante as pressões a que o sujeitarmos: ora nunca temos tempo para nada ou temos todo o tempo do mundo, é uma questão essencialmente mental. Por essa razão há pessoas (como eu) que nunca têm tempo para nada e por isso têm sempre a sua vida incompleta, inacabada e outras a quem parece que o tempo se expande, há sempre oportunidade para fazer algo mais. Estes últimos conseguem coordenar o trabalho com estudo, lazer, voluntariado, sei lá! Os primeiros, como eu, nunca têm tempo para nada, deixam tudo inacabado, os dias deveriam ter 48 horas e, e...! Já me apercebi disso e tento inverter a situação com um sucesso relativo; antes só fazia part time e não sobrava tempo, agora tenho um part time, um full time e já consigo obter algum tempo para as obras de casa, pequenos hobbies e um pequeno pouco de lazer. É uma gestão deficiente, tardia, mas é alguma coisa.
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19/9
Voltando ao tema da loucura, onde está a normalidade? Esses desvarios momentâneos, essas irritações, crises de ira ou pânico ou tristeza ou euforia, não são elas também um reflexo de irracionalidade mental, não são também um indício de loucura, embora momentânea ou de curta duração? Então não podemos confiar nunca na nossa caixa de circuitos, os fusíveis podem a qualquer momento fundir remediável ou irremediávelmente. Haverá loucos felizes ou será que aqueles que aparentam felicidade sentem lá no fundo da sua mente que algo não está bem e que estão-se a enganar a eles próprios, numa auto-ilusão? Essa angústia estará lá a borrar a parede do quarto dos fundos dos seus pensamentos, numa mancha que fingem não ver?
Sou doido de mim ou dos outros?
Tapo os ouvidos às evidências que me gritam,
Nego o que vêem os olhos da alma,
Finjo-me insensível aos horrores que tacteio,
Recuso o sabor do medo,
Não inalo o odor do fracasso.
Mas, acima de tudo,
Não intuo a insanidade que me consome.
Estou irremediávelmente perdido.
2h24, 20/09, domingo
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Não poder eu estar sempre online com a minha escrita, não poder eu ter sempre rasgos de criatividade literária, não poder eu debitar obras-primas como quem queima calorias! Limito-me a pequenos esboços, pequenas incursões pelo universo da escrita mais parecidas com uma ida à mercearia da esquina do que com uma aventura no sertão africano ou nas estepes da China.
Contudo não desisto; bom ou mau, pichagem ou obra-prima, escrevo. Ao menos quando escrevo sou mais eu, sou mais sincero, não estou contaminado pelo medo das aparências ou pela sombra do políticamente correcto. Quando escrevo digo o que penso sem medo de juizos de valor; esses virão talvez um dia, quando já não tiver importância, quando já tiver partido para a grande viagem. Nessa altura serei um génio ou um tosco, I don’t give a damn!
Quem escreve, não o faz com medo de ser lido ou então não escreve (a não ser que envolva terceiros). O que para nos é banal para outros pode ser esclarecedor, o que consideramos baboseiras podem ser lições de vida, uma bugiganga pode-se transformar numa jóia de valor incalculável. Não me arrependo do que escrevo, tenho é pena de não saber escrever melhor, de não conseguir transmitir o meu espírito sem a eterna estática que o rodeia, não a saber coar, filtrar, depurar.
Ah, pudesse eu transformar o chumbo das letras no ouro das obras, ser um alquimista da alma!
Por hoje chega, estou a ficar demasiado piegas, daqui a pouco estou a chorar.
00h12, 4ª feira, 23/09
Hoje debruço-me de novo sobre o acto criativo, sobre a constância ou inconstância do mesmo. Segundo um princípio de inconstância que criei à sombra dele próprio (daí a inconstância do acto, que permite criar do nada), a criação é, à luz do espírito, aleatóriamente positiva ou negativa, bipolar mesmo, o que permite que o acto criativo possa ser visto hoje como uma benesse dos deuses e posteriormente como um tormento do Hades, alternando sem padrão visívelmente definido. A criação, como obra de carácter positivo ou negativo, é fruto do mero acaso, tudo depende do estado de espírito do criador. A arte é neutra ou mesmo dual. No Jardim das Delícias, de Jeronimous Bosch, o belo e o horrível mesclam-se por vezes de uma maneira bastante ambígua. A criação é um acidente de percurso, uma anomalia da normalidade. Criar nem sempre é partir do nada para algo, por vezes é recriar ou até modificar: Dalí recriou Marilyn nuns lábios, Warhol modificou-a com novas cores (pessoalmente não gosto de Warhol, foge bastante ao meu conceito de artista, de criador). Na Alta Idade Média fazer poesia usando Petrarca como molde era imprescindível, tudo o que fugisse a este padrão era mal visto, criticado. A criatividade era a paráfrase, não a obra de raíz. Aliás, parece que toda a Idade Média era uma cópia de si mesma ou da Antiguidade Clássica, a inovação era rejeitada por rude ou petulante, um insulto à sabedoria dos antigos. Não foi uma época de inovação, foi de renovação, um caiar das paredes da cultura e das artes, um “mais do mesmo” mas com iluminuras.
9 de outubro, 14h25, Paraiso
Estou no Paraíso mas não estou no paraíso. Tenho uma virose (ex constipação), tenho sono, tenho cansaço, tenho problemas mas também tenho trabalho, tenho positivismo(algum), tenho alguns objectivos concretizados, tenho esperança num futuro melhor embora não tenha, pelas leis da natureza, muito mais futuro. E, fora a virose, tenho saude. 1 a 0, ganha o optimismo; não é propriamente o paraíso mas pelo menos não estou a caminhar para o inferno, já é bom.
Como não existe a felicidade absoluta também não existe o paraíso absoluto (a culpa de tudo isto é do Einstein, Hitler tinha razão). Eh!, não sou anti-semita, it’s just a joke! Só há racismo quando se acredita no que se diz, com intenção, com maldade. Senão, sempre que contássemos anedotas de louras estaríamos a ser misóginos ou, no mínimo, a discriminar entre estas e as morenas. Ora, na vida real tal não sucede, falamos com as mulheres e avaliamo-las sem atentar se são louras ou morenas ou ruivas ou albinas ou se têm alopécia.
A humanidade sempre se riu de si própria, das suas diferenças. Essa crítica, essa descriminação acaba por vezes por ser positiva. Quantas vezes não nos rimos de nós próprios? Quantas vezes não nos chamámos burros, tolos ou estúpidos? De acordo com os critérios chamados normais pela sociedade, não deveríamos ser penalizados por isso? Se o suicídio é moralmente condenável , não o deveria ser também a auto-crítica negativa? Mas isto são só suposições, são só desabafos....
4h24, 22 de outubro
Mais uma vez vejo-me confrontado com o dilema de ter na mão uma caneta e à frente um pedaço de papel. Nunca sei o que vou escrever ou mesmo se irei escrever nem se o que eventualmente escreva valerá a pena os micro-litros de tinta que, embora gratuitos ( a caneta não é minha), gastarei.
O meu já referido amado/odiado silêncio rodeia-me, envolve-me como algo líquido onde me encontro mergulhado. So não me afogo porque é um líquido metafórico e, também metafóricamente, o silêncio também se respira na literatura e na poesia. Aliás, a ausência de ruído não é silencio, a mente continua a ouvir os pensamentos, os barulhos imaginados ou recordados constantemente. Por isso é tão dificil meditar. Bem, dizem que meditar não é silencio, não é esvaziar a mente porque é impossível fazê-lo, é canalizar, controlar os pensamentos e as sensações do que nos rodeia. Talvez,nunca tive a coragem suficiente para meditar, nunca me decidi a fazê-lo. Dizem que é muito bom, que liberta, acalma, faz-nos mais responsáveis e conscientes. Eu, como tantos outros, talvez a grande maioria, tenho optado pela solução mais simples e mais prejudicial que é não o fazer. Porquê? Nem eu sei e arranjo todas as desculpas possíveis, desde falta de tempo(???) até falta de paciência (!!!), com nuances intermédias cujo leque de variantes é infinito. O bem-estar ou, pelo menos, a sua tentativa, dá trabalho, mais vale não fazer nenhum do que tentar melhorar um pouco a nossa miserável vida. Acho que somos (quase) todos um pouco assim: como o trabalho dá trabalho, não se faz.
13h46, Restaurante Paraiso, 23 de outubro
Bem, estou aqui na mesa da esplanada do café a observar o movimento da rua como um papagaio numa varanda, sem nenhum interesse em especial, mero espectador da vida que passa, a minha realidade exterior ao meu corpo. Além desta, paralelamente, desenvolvem-se a minha realidade externa e a minha realidade interior; a primeira processa-se a nível mental e quase totalmente consciente: os meus pensamentos, as minhas resoluções, anseios, medos, fobias, emoções; a segunda é quase inconsciente ou subconsciente: são as minhas funções fisiológicas básicas, a respiração, circulação, funções endócrinas, a função excretora, a digestão. Já nem falo na função reprodutora, que isso na minha idade quase nem existe ou é residual, sejamos sinceros. Sou uma máquina que trabalha , um computador que processa dados e exerce funções de um modo semi-automático e semi-consciente, trabalho para um objectivo que, no fundo, não sei qual é. Até ser desligado. Aí só restará a minha memoria RAM.
00h29, domingo, 25/10/15
Dormi bem mas tenho um sono do tamanho do meu pequeno mundo, felizmente hoje é dia de mudança de hora e vou ter que trabalhar mais 60 minutos, o que é bastante motivador. Os cães vão passeando os donos enquanto as casas preparam-se para apagar a luz depois de porem os moradores na cama. O mundo abranda, este pequenos mundo individual que nos rodeia e nos diz directamente respeito ou que indirectamente nos influencia. É a altura em que o João Pestana começa a pendurar-se nas pálpebras forçando-as a fecharem-se ou, se preferirmos uma explicação mais “científica”, é a altura em que a gravidade lunar influencia as arcadas supraciliares onde se encontram concentrações de ferro, chumbo e outros metais mais ou menos pesados, libertando-os e fazendo com que as pálpebras, por acumulação dos acima citados, tornem-se difíceis de abrir enquanto paralelamente comprime determinadas glândulas cuja função é excretar “sonotonina” que relaxa os musculos ópticos e força o desligar progressivo da consciência. Dito desta maneira até parece uma verdade científica, é assim que se enganam muitos papalvos.
Há dias falei em meditação; qual melhor altura que esta para meditar, tenho uma noite pela frente, nada me distrai ou quase nada, por que não tentar? Aliás devo dizer “por que não fazer?” pois tentar pressupõe a aceitação implícita do falhanço e quando queremos fazer algo não tentamos, limitamo-nos a assumir a sua concretização. Pois vou tentar e é já. Já tentei, é dificil tornar isto fácil mas, segundo dizem, após alguns dias torna-se um automatismo. Entretanto vou aguardar um pouco mais enquanto o prédio põe toda a gente na cama.
00h16, 3ª, 26/10
Chove e faz lua, início de outono, prenúncio do que nos espera durante pelo menos 6 meses. Bem, da maneira que isto anda, com tantas alterações climáticas que descaracterizam totalmente as estações do ano, não sei se será assim.
Outro dia puz-me a pensar no tempo, mas no cronológico e na sua ductilidade, a sua capacidade de torcer-se, acelerando ou retardando consoante as situações e, muito especialmente, consoante as idades. Quando somos jovens o tempo parece que não passa, que nunca mais somos mais velhos, que após a infância e inicio da adolescência quase pára.
Por outro lado, tudo o que é bom, tudo o que é novo e agradável, passa demasiado rápido. Quando atingimos a idade adulta o tempo tem uma paragem, gozamos a vida mas é uma sensação que dura pouco tempo, poucos anos. Logo a seguir somos atormentados, embora de uma maneira ainda suave, pelo espectro da velhice, que é vista como algo preocupante mas ainda muito longínquo. Sem nos darmos conta atingimos os 40 e começamos a interiorizar a retumbante e chocante realidade de que estamos a envelhecer num ritmo aparentemente cada vez mais rápido. Até aos 60 engulimos essa realidade e acostumamo-nos a ela, conformamo-nos. A partir dessa idade não sei, ainda lá não cheguei, estou no limiar. Julgo que aí o tempo começa a parar, começamo-nos a sincronizar finalmente com ele, a acompanhá-lo passo a passo como um velho cão que segue as passadas do seu idoso dono. Depois...intemporalidade, o nosso Cronos pessoal, esse pequeno deus tirano que nos aprisiona para a vida morre conosco, liberta-nos do seu jugo. Tudo se passa na mente, 60 minutos são 80 quando fazemos o que não nos dá prazer, são 20 quando nos envolvemos em algo agradável. Se cada um de nós se sincronizasse com o tempo, se cada um de nós o acompanhasse em harmonia perfeita, a vida que tivemos, temos e a que nos resta seria muito mais agradável e o seu término não seria tão amargo, seria talvez até aceitável, seria decidirmos que um dia deixaríamos de dar corda ao nosso relogio, deixá-lo parar naturalmente, sem luta, com a plena consciência de que o tinhamos feito, sem remorsos, sem mágoas, em paz.
01H45, 03/11, 3ª Feira
Sentado a engordar o hall de entrada do prédio que vigio, teço considerações sobre a síndrome do sofá e concluo que esta é uma forma light desta doença: a síndrome da cadeira estofada. Ao contrário da primeira, que é uma doença caseira, esta é uma doença predominantemente profissional, esbora também se possa encontrar mais raramente noutros estágios. Claro, estou a divagar. Acabei de ler uma definição de leucoencefalopatia isquémica microangiopática e, claro, o meu estilo de escrita descambou para as definições médicas. É sempre bom saber algumas definições de problemas que poderão afectar-nos no decurso da nossa vida e muito especialmente do nosso declínio, que é um nome menos bonito para dar ao envelhecimento. E pronto, saí enriquecido com mais uma definição de uma possível forma de morte a juntar à trombose cerebral, suicídio, AVC, atropelamento e milhentas de outras. De uma coisa tenho eu a certeza a 100%: morrerei (e todos nós) de uma delas, já é um consolo.
00h02, 4ª feira, 04/11
Sempre que entro num elevador e olho-me ao espelho, vejo um velho. Não bem um velho mas um aspirante a velho. E admiro-me. Não que tenha que admirar-me, é um processo normal a que todos os que vivem o suficiente estão sujeitos. Porém, a simples consciência do facto provoca-me admiração. E pena. Apercebo-me da transitoriedade da vida, da minha vida em especial pois é nela que coloco a minha atenção, é o centro da minha atenção. E admiro-me, ainda estou na fase de transição entre a negação e a aceitação, é um facto a consumar-se com uma aceitação a consumar-se.
Resignação, a sabedoria vista como um fardo, a experiência conotada com a decrepitude. É uma transição que acorda o cérebro e adormece o corpo, era de maratonas do espírito e repouso do físico. Esse é o consolo da velhice, a abertura da alma às pradarias extensas do pensamento.
03h36, 10 de outubro
Porque é que sempre que tenho ideias, sempre que há algo com o mínimo de substância para escrever, não tenho hipótese de o fazer ou de tomar nota das ideias que gostaria de desenvolver? É frustrante, tantas ideias perdidas, tantos pensamentos deitados ao lixo! Não vale a pena chorar sobre leite derramado; primeiro porque é um disparate, a fazê-lo seria sobre uma almofada ou sobre um ombro amigo, segundo porque uma pessoa pode até ser alérgica à lactose e não se chora sobre o que nos faz mal. Nada como um pouco de humor para apimentarmos a vida (como se o humor fosse uma especiaria!).
Curiosamente, a vida de cada um, da humanidade, passa sempre pela boca: há determinadas coisas que são o sal da vida, outras fazem-nos crescer água na boca, algumas deixam-nos um sabor amargo, há palavras doces como o mel, frases açucaradas, discursos com sabor a falso, atitudes que caem mal, pessoas que destilam o seu fel, lutas intestinas, oportunidades de lamber os beiços, há o dar de beber à dor e o engulir de sapos vivos, quem tenha necessidades como de pão para a boca embora nem só de pão viva o homem; momentos deliciosos e frases azedas, o pão que o diabo amassou e o dar o arroz a alguém, ter a paparoca feita ou comer as papas em cima da cabeça. Até para ter sexo é preciso comer alguém! Tudo, mas tudo, gira à volta da alimentação e, por extensão, da boca, ela é o mote, o objectivo, a razão última de tudo. É por ela que se faz a guerra e se faz a paz, por ela fazem-se fortunas ou morre-se na miséria, por causa dela há tantas desigualdades no mundo. O que seria da humanidade sem uma boca para alimentar? Provávelmente nem existiria como tal, provávelmente vegetaríamos, seriamos menos que isso ainda pois mesmo as plantas lutam para comer. Seríamos minerais, sem anseios, sem vontade, sem evolução pois nada nos puxaria para sairmos da inércia, nada por que lutar, sem individualidade mínimamente definida. A necessidade de comer, de nos alimentarmos, traz consigo a guerra, a fome, a miséria, a infelicidade, a morte; traz-nos também a paz, a fartura, a riqueza, a felicidade, a vida. Tudo e nada, trabalho e ócio, atrazo e desenvolvimento, civilização e anarquia.
23/11, 2ª, 01h10
O frio parece que aumenta a negrura e o silencio da noite, parece transformá-la em algo mais estático, como uma fotografia. Lembra-me aqueles postais que recebíamos em casa por esta altura, não só dos amigos e conhecidos mas também e especialmente de uma associação que ajudava pintores sem mãos que pintavam com a boca e/ou com o pé.
A estaticidade mágica desses postais de natal que retratavam uma época festiva e a estação do ano a ele associada, as imagens paradas, congeladas no tempo e no espaço e na minha memória da infância, trazem-me uma certa nostalgia, uma sensação triste/feliz de algo perdido no passado mas ainda e melancólicamente presente na minha alma.
São as tais recordações “peterpanianas” de um passado que, embora real, estava intrínsecamente ligado ao imaginário infantil, àquele mundo fantástico de faz de conta, onde e realidade adquiria cores de arco-íris e formas de rococó, um mundo verdadeiro e onírico, vivido e imaginado, puro e extasiante...Quem não tem saudades desse tempo da infância? Pode-se ter tido uma infância problemática, infeliz, traumática, mas num cantinho da nossa mente esse mundo existe e foi vivido. Pois é, esquecemo-nos. Ficamos mais velhos, começamos a ganhar responsabilidades e a perder a magia, a alegria, não de viver mas da propria vida. Ainda me lembro de quando ainda não tinha rugas, não as de velhice mas as de expressão, aquelas que começam a aparecer quando nos preocupamos. Cada ruga é um sonho que se deixa de sonhar. O drama, o nosso drama começa quando principiamos a ter insónias...
Voltando ao tema inicial e fazendo uma breve análise naturalista, a estaticidade da noite, da paisagem nocturna, julgo dever-se à limpidez, à secura do ar que, isento da refractabilidade provocada pele humidade, permite ver os objectos, as imagens mais perfeitamente delineadas, dando aquela sensação de fotografia. Seja como for, é belo.
A mais corriqueira paisagem faz-nos sentir gratos pela capacidade da visão, tenha ela sido concedida por Deus ou pela evolução ou ambos, se existirem. A visão dá-nos poemas maravilhosos em imagens, coisas que só podem ser percebidas, sentidas assim, sem palavras. Esse é o Poema, o êxtase, o indizível.
5H54, 4a feira, 25/11/15
Pouco a pouco, lentamente, a vida retoma o seu ciclo de vigília. Isto não é a Big Apple, a cidade que nunca dorme, o ciclo circadiano das nossas cidades, da nossa vida normal, acompanha os nossos hábitos ancestrais. O movimento nas ruas intensifica-se, a princípio imperceptívelmente, depois, gradualmente, a um ritmo cada vez mais acelerado. É como se o aproximar, o despontar da aurora, criasse vida todos os dias. Afinal ela (a vida) está apenas adormecida.
2H52, domingo, 29/11/15
É frustrante quando os pensamentos se nos escapam, quando queremos imprimir as nossas sensações, o nosso fluir temático, fruto de um momento ou conjunto de momentos únicos e irrepetíveis, quando adregamos ter nas nossas mãos as ferramentas para o fazer, já eles, qual areia imaterial, fogem-nos por entre os dedos que seguram a caneta e retornam ao areal de origem, de onde talvez nunca mais retornem. Por vezes sinto que tenho em mim, na minha mente, um livro sem letras que não consigo copiar. Ele está lá ou esteve lá num dado momento mas a matéria com que ele é escrito – o pensamento – não permite copiá-lo em tempo útil, com a instantaneidade necessária e a quase totalidade perde-se na brumosa realidade do espírito. Seria maravilhoso se o conseguissemos imobilizar, congelar para, frame a frame, lê-lo e traduzi-lo em toda a sua pureza e significação, sem filtros, sem barreiras.
Nunca tal será possível, eu sei. Seria como tentar imprimir caracteres a 3 dimensões num pedaço de papel mas na nossa imaginação tudo é possível e sabe bem saborear (passo a expressão) essa possibilidade utópica. O conhecimento é uma coisa maravilhosa e, como todas as coisas maravilhosas, faz-nos felizes e entristece-nos; felizes porque sabemos, tristes porque sabemos tão pouco, ainda mais tristes por vermos aqueles que sabem menos e totalmente infelizes por ver que há quem não queira saber.
A alegria de quem sabe não é só o ensinar aos outros, é também e em grande escala partilhar com os seus iguais em erudição, por mais pequena que ela seja, debater em igualdade de circunstâncias o seu conhecimento, exprimir e receber opiniões, trocar mútuos pormenores onde dá e recebe informações novas sobre o que sabe e não sabe. Defendo acérrimamente a cultura geral, que infelizmente deve ter ido de férias prolongadas, ela é a base de uma sociedade mais equilibrada. Não bastam as especializações, ser médico ou engenheiro ou arquitecto, há que saber de tudo um pouco. Nada mais triste seria se qualquer um deles não soubesse que a Terra é redonda ou quem é Camões ou onde fica o Brasil, mas por vezes pouco falta. Antigamente tínhamos erudição e ignorância social; agora temos consciência social e ignorância. Enquanto não conseguirmos ter as 2 coisas (erudiçao e consciência social, bem entendido) ao mesmo tempo, não vamos a lado nenhum.
1h23, 17 de dezembro
Como ja mencionei há uns tempos, algumas alocubrações atrás, tenho notado que (e por falar em homeostasia) o meu índice satisfacional com a vida em geral está em ascendência não me sinto tão deprimido e frustrado como desde há largo tempo, que não posso precisar, tenho-me sentido. Nada realmente palpável, uma modificação tão gradual, tão ténue que quase nem me apercebo. Mas está lá! Good for me, estava mesmo a precisar destas injecções de positivismo.
Sem me querer contradizer a este respeito, volto ao meu tema de eleição: a vida e a morte, as suas inter-relações intrínsecas e complicadas, o seu entrelaçar de estados, as dúvidas existenciais, a observação temporal das suas causas e consequências. Desde que me conheço que, como toda a gente, convivi com a morte e com a vida. Desta última e até bem tarde, ao fim da minha adolescência, pouco tenho a dizer. Limitava-me a experienciá-la, semi-inconsciente ou mesmo inconsciente da sua existência, vivia com a mesma falta de percepção com que naturalmente respirava. Quanto à primeira, a minha estreia também foi tardia: a morte da minha avó quando tinha 17 anos recém-estreados.
Foi um choque brutal que afectou-me fortemente durante meses. Mesmo assim e possívelmente devido à minha fresca idade, não a encarei por nenhuma perspectiva para além da existência dela como um facto consumado, como um seixo que atiramos ao mar e sabemos por antecipação que está perdido para sempre, nunca mais veremos.
O existencialismo não faz parte da vida das crianças, para elas é tudo muito linear: é, é, foi, foi, está dito. A partir daí e muito lentamente, a tomada de consciência de que há uma vida e de que há uma morte foi-se insinuando no meu espirito jovem e inexperiente. Contudo, a morte ocupa sempre um lugar de destaque na vida de cada um. Um nascimento é um acto de alegria, uma manifestação de continuidade, uma promessa do advir, mas não passa disso. A alegria e a esperança tomam corpo neste acto mas tudo não passa de mero projecto.
Uma morte é uma descontinuidade brutal, mesmo sendo esperada, neutraliza toda uma presença física e espiritual que influenciou a humanidade, num sentido mais ou menos lauto do significado, , durante anos, décadas, gerações ou eras, é irreparável. Encaro a morte – a dos outros ou a minha própria – como um desperdício de experiências, como o atirar para um abismo de uma caixa cheia de tesouros únicos e, por serem muito pessoais, irreparáveis e irrecuperáveis. As ciências biológicas e mentais ensinaram-me que as experiências individuais reflectem-se no desenvolvimento e comportamento das espécies; mas o material perdido, os conhecimentos adquiridos, toda a experimentação acumulada em décadas por um processo único e pessoal é imensamente superior ao acúmulo residual de informações da mente colectiva.
A minha percepção sabe que é assim, que tem que ser assim, que o acúmulo de conhecimentos na alma mater tem que ser lento e selectivo senão a evolução entraria em colapso, comprometendo o futuro das espécies, eliminando-as até. Sei que almejar a preservação total dos conhecimentos individuais da humanidade, seja pelo arquivo da informação ou pela perenidade dos seus emissores é impossível, utópica.
Mas, não vivemos nós de utopia? Não almejamos sempre o impossível, mesmo reconhecendo-o como tal? Parece ser o nosso lema de vida, a nossa torre de Babel que construimos para tentar chegar ao céu, atingir o inatingível. Tenho a impressão de que não viverei muito mais. Poderá ser mera percepção hipocondríaca ou fatalismo, não sei. Contudo é uma convicção, não uma cisma. Se assim for, partirei com mágoa por não ter podido fazer tanta coisa, por ter deixado tanto por terminar, seja por impossibilidade monetária, técnica ou temporal ou por culpa própria, por procrastinação. Hades ou Olimpo? Partirei também com esse medo, não religioso mas do desconhecido, de não saber se tudo acaba, se continua, se é um intervalo ou se nada disto. Mero sonho do qual vou acordar ou início de um longo sonho do qual um dia ou nunca acordarei?
01h58, domingo, 16/12
Jantar de Natal. Não sou muito sociável ou, por outras e melhores palavras, sou sociável mas a curto prazo, não gosto muito de longos encontros, fico impaciente, mortinho por ter um pretexto para ir embora. Não tenho bem a certeza mas julgo que ha 20 ou 25 anos não era assim, tinha uma abertura muito maior com as pessoas, socializava mais. Sendo assim, o que mudou, o que fez-me mudar? A idade ou os problemas (enormes) que me assombraram durante essas 2 décadas? Sei que neste momento socializo pouco, prefiro “fechar-me” com a família mais chegada ou fechar-me mesmo comigo próprio, não como eremita mas como solitário, se me faço entender. ...............................................................................................................................................
2ª feira, 28/12/15, 5h04
Hoje só me resta mesmo escrever: o meu telemóvel descarregou totalmente e o carregador não funciona, esqueci-me de pôr o computador à carga e não trouxe nenhum livro. Portanto, só me resta morrer de estupidez ou escrever. Prefiro escrever. O silêncio habitual não existe hoje, uma forte ventania envolve-me nos seus silvos e uivos, lembra-me noites tempestuosas de historias trágico-maritimas, as tundras geladas de Miguel Strogoff ou do Cão dos Baskerville, as histórias de Jack London ou de Charles Dickens, recheios de mistério, crime, drama e aventura. São histórias que li na minha infante juventude e que me marcaram com os seus imaginados. Acho que as primeiras leituras marcam indelévelmente no nosso imaginário sons, cheiros, associações de sentidos ou sentimentos, tal como associamos uma tia a arroz doce ou o aroma do fumo de cachimbo a um pai ou pó de arroz a uma avó.
Tabula rasa, começa aqui a gravação do resto das nossas vidas e das suas simpatias e antipatias, das recordações doces e melancólicas e das fobias não explicadas. Cada pequeno bocadinho de nós, da nossa personalidade, das nossas emoções, é construido e desconstruido aqui, na infância. Penso que o meu desejo, o meu conforto com a solidão tem aqui as suas raizes, é o meu pequeno quarto de refúgio onde sinto-me seguro, protegido. Daí talvez o meu relativo individualismo, uma certa aversão ou direi timidez com o trabalho de grupo. Por isso estou tão à vontade com o trabalho nocturno onde ninguém me chateia, onde posso metafóricamente reviver o meu quarto privado da infância. Conjecturas apenas, não sou psicólogo para poder analizar tudo isto em detalhe mas ao mesmo tempo serei a pessoa mais indicada para o fazer, do mesmo modo que um escritor, ao escrever, sabe o que quer transmitir.
Aqui, um psicólogo equipara-se a um crítico literário: ambos fazem interpretações à sua maneira, ambos retiram de premissas certas conclusões erradas, quantas vezes rebuscadas, sentidos e intenções que nunca nos passam pela cabeça e que geralmente sabemos serem totalmente erróneas. Quando se evoca um cheiro, uma côr, um pôr do sol ou um som, eles geralmente existiram algures no passado e marcaram-nos de alguma maneira, boa ou má. É nessa ex-realidade longínqua que reside a nossa alegria e a nossa tristeza, a vida só existe atravéz das recordações, sem memória não há vida.
O vento continua lá fora a uivar recordações de lobos da estepe e de imensidões geladas dos círculos polares. E eu continuo a senti-las, a vaga e melancólicamente, vivê-las. Aflige-me um pouco o passar do tempo, ver crianças que em tempos conheci já com filhos, que têm a idade das crianças que conheci. Ver velhos que eram jovens, ver túmulos que eram velhos, ver recordações que já nem túmulos são, ver fotografias de pessoas que agora não passam de meras nuances de tom e côr impressas num papel, apenas isso. Impressões em papel. Incomoda ver essas impressões em papel olharem para nós, sorrirem-nos, posarem para nós, para um futuro que já é passado e saber que também não passaremos de meras impressões no papel, copiando as que vimos no passado, a serem observadas pelo futuro, um futuro que, a acontecer, já será também ele passado, um ciclo vicioso sem fim visível e sem sentido. Eu não estou a distorcer a realidade, estou simplesmente a vê-la com os meus olhos neste particular momento; outros terão outras visões, outras interpretações. Por isso ser-se humano é tão complicado, 7 biliões de pessoas têm 7 biliões de modos diferentes de ver as coisas, não há observações iguais do mesmo modo que não há impressões digitais iguais. À vista desarmada há correspondências, mas uma análise mais profunda revela por vezes assincronias enormes.
A tormenta brame ameaçadora,
Como lobos invisíveis que vagueiam por entre os carros parados,
Percorrem becos e abrigam-se detrás das moitas.
Vejo a neve imaginada subir em volutas, em torvelinhos furiosos,
Misturando-se com as folhas mortas pelo outono;
Sinto o vento esgueirar-se dorido entre as frinchas das portas,
Bater furiosamente nos postes e nas árvores ,
Ora num grito contínuo e pungente, ora em soluços irregulares,
Queixumes com a idade do mundo.
Sinto-o dentro do prédio e de mim,
Levantando a poeira do chão e das memórias
E trazendo sussuros ancestrais, suspiros que penetram a roupa e a carne,
Que arrepiam o corpo e remexem o âmago do espírito.
30/12/15, 01h34, 4ª feira
Noite calma, fresca, nada comparada a anteontem. Os lobos recolheram aos covis, o vento já não uiva. Volta o silêncio hibernante e frio característico do dia-a-dia ou, direi antes, do noite-a-noite. Afinal enganei-me, há vento; não uiva, eleva-se apenas por vezes num lamento, num lânguido queixume arrastado e longínquo. Eolo, o deus dos ventos, está calmo e os seus súbditos aguardam pacientemente o seu comando.
02/01/16, 2h54, Sabado
Ainda hoje (ontem) puz-me a pensar em elites e na aversão que nós, povo não-rico ou a elas não pertencente, temos por elas. Quando se lê um artigo ou fala-se sobre um colégio (alemão, militar, St John’s), um Cristiano Ronaldo ou Jerónimo Martins, fulano ou cicrano, Ateneu, clube tal ou tal, vem-nos ao de cima um sentimento de desdém, de repulsa, de menosprezo por todos eles, uns mais que outros.
Porquê? Porque uns são uns “meninos bonitos” ou porque essas outras instituições são para uma elite restrita que arroga-se superior? Ou será que temos dor de cotovelo por não pertencermos a essa elite ou não sermos como essas pessoas? Do mesmo modo que o analfabeto escarnece do letrado e o trolha ridiculariza o doutor, também nós esforçamo-nos por minimizar o mais possivel quem, por qualquer circunstância, nos é superior, seja social, cultural ou económicamente.
E criticamos. E criticamos as instituições. No fundo, os podres, se existirem, tanto dos individuos como das entidades, são os mesmos que encontramos no meio de nós, das “nossas” entidades, de tudo o que está ao mesmo nível que nós. Do mesmo modo, aqueles que nos são “inferiores” são ferozes críticos dos nossos hábitos, dos nossos costumes, das nossas instituições porque, da mesma maneira que temos inveja dos que nos superam (nem que seja apenas nominalmente) no nosso pequeno e limitado mundo, também eles não suportam que os superemos no seu ainda mais pequeno e limitado mundo. Já me deparei a “odiar” pessoas e a criticá-las por tudo aquilo que vejo e não vejo. Já me deparei a menosprezar instituições de renome porque delas não fiz parte, porque não tive o privilégio de as frequentar. Quem desdenha quer comprar, é bem verdadeiro o ditado. Odiamos tudo o que nos supera mas por que ansiamos. Acho que grande parte dos males da humanidade provém desse ódio, dessa inveja, desse complexo de superioridade dos inferiores.
Não estarei a ser políticamente correcto ao afirmar o que abaixo escrevo mas estou-me borrifando para isso, so é políticamente correcto quem tem medo das consequências e isso já não me preocupa. As elites são necessárias, são ilhas que sobressaem do mar do povo amorfo, são refinamentos evolucionantes. Lógicamente, estou a generalizar, a evocá-las como um todo. Não vou dizer: “Ah, mas aqueles ali são uns inúteis”; talvez até sejam mas são casos particulares, não globais e eu estou a encarar o item como uma regra, não como uma excepção. O mesmo sucede com as pessoas, se muitos chegaram onde chegaram, foi muitas vezes por mérito proprio, não por corrupção ou por negócios escuros. É claro que há que rebaixá-las dizendo que são uns patifes, que o têm à custa doutros, que não merecem, que são uns exploradores. E nós, o que seríamos se estivessemos no mesmo patamar? Irrepreensíveis? Só se fosse para nós próprios.
. 04h53, 2ª feira, 18/01/16
Há algum tempo que não escrevo, não se me tem proporcionado. É também certo que não tenho tido muita inspiração, muito assunto para escrever, talvez devido ao cansaço, talvez não, nem sei. Embora calmo à superficie, o mar dos meus pensamentos tem andado bastante revolto, há correntes submarinas bem fortes e turbulentas, redemoinhos perigosos, sorvedouros de energia que tiram-me a vontade e desorientam-me. Luto por manter-me à superfíicie e faço-o com algum esforço, porém com a funesta consequência de esgotar-me o alento. Sinto-me por vezes como estando na foz de um rio sujo e caudaloso, lutando no meio da sua miscigenação com o mar encapelado, forças fracturantes que desgastam a alma. É isto a vida , a foz de um rio sujo e caudaloso em luta com o mar em fúria. Para uns mais que para outros mas sempre conflituoso este encontro. Serei pessimista por natureza ou todos passamos por semelhantes urdiduras da mente? Para além da minha, nunca sondei suficientemente a alma humana para perceber a que ponto tais reflexões são correntes ou normais, a que distância me encontro da média de sanidade de espírito da humanidade. .............................................................................................................................................................
O meu fio de pensamento partiu-se porque comi uma laranja. Não porque a laranja possua qualidades mágicas ou sobrenaturais para o fazer, não porque contenha algum químico, alguma propriedade que redunde nessa solução de continuidade do dito frágil cordelzinho; apenas distraí-me e já não encontro a ponta solta, fico por aqui.
13h50, 19 de janeiro, 3ª feira
Dormi pouco. Estou aqui no balcão do restaurante a tentar não adormecer. Para isso, escrevo; não por pulsão, não por inspiração mas por necessidade. Deste modo, espremo os meus miolos a ver o que sai, as ideias que tenho, a originalidade ou a falta dela que o deslizar da esfera do bolígrafo transmite ao quadrado branco celulósico que tenho à minha frente. Antes de mais, sou o crítico mais crítico da grafia que se desenrola, que aparece perante os meus olhos, saída da pena estilizada e irreconhecível em que se transformou o instrumento da escrita nascido há milhares de anos do desejo de comunicação (quiçá inconsciente) de um protótipo da nossa humanidade actual.
Como auto-crítico sou extremamente exigente, cruel até, mas sou também extremamente indulgente, mesmo escandalosamente benévolo. Digamos que sou um crítico sado-masoquista. Mas é perfeitamente normal: quem não se epiteta de estupido, correndo imediatamente a desculpar-se, a salvar a cara de si próprio, criticando-se até por não ter tomado em devida consideração todas as atenuantes?
00H03, 20 de janeiro, 4ª feira
O que é que eu posso dizer que não tenha já sido dito? Todos os meus problemas, todas as minhas alegrias e angústias, todas as incertezas e decisões já foram sobejamente dissecadas através da escrita ou mesmo oralmente desde talvez antes do alvorecer do que chamamos civilização, como diferentes edições do mesmo livro, talvez apenas com prefácios, comentários, notas de rodapé e epílogos diferentes, mas o mesmo livro, parafraseado. Somos como que petrarquistas da vida, escrevemos o mesmo, copiamos o mesmo modelo mas com as nossas próprias forças, a nossa propria vivência. O que é a vida, afinal? Um livro eterno em constante elaboração, escrito por todos os seres vivos e permanentemente parafraseado ao estilo petrarquista, ad infinitum.
Rebuscado? Sim e não. Tento dar às observações o meu cunho pessoal, o meu modo de ver as coisas. Se por vezes utilizo clichés é porque talvez eles sejam, à falta de palavras, o melhor recurso para expor a minha visão da vida, versão essa que modifica dia-a-dia num fluir e refluir de pensamentos e sentimentos evolutivos e involutivos; o que hoje é, amanhã pode não ser e voltar a ser no dia seguinte ou nunca mais. É empirismo puro, é encarar a existência consoante ela se nos apresenta e nós a ela. Confuso? Sim e não. O que nos parece evidente e claro como água, pode não o ser para os outros, tudo depende do modo como o explicamos. De uma coisa tenho a certeza: para mim é claro como águas turvas, a única certeza que tenho é que não tenho a certeza de nada ou, como dizia Sócrates ( o filósofo): Eu só sei que nada sei.
02h50, 3ª feira, 26 de janeiro
Pois é, o meu tempo relativo assombra-me. Não no sentido de assombração, de perseguição paranormal mas no sentido de assombrar, causar admiração ou espanto. E porque digo isto? Porque o Natal foi ontem e o carnaval é já amanhã, porque os ventos “crónicos” (estou-me a referir a Cronos, o guardião do tempo e não à situação repetitiva e inelutável, como é o caso de algumas doenças) empurram, parece que mais rápidamente, o passado para o passado e o presente para o futuro. Sei que não passa de uma sensação muito minha, muito pessoal, isto de dizer que o tempo voa; ele não voa, ele segue o seu curso naturalmente, sem pressas nem vagares, nós é que o observamos com os olhos distorcentes da mente e afigura-se-nos voar.
Diz-se que os velhos vêm a vida escoar-se mais rápido, mas não necessáriamente. Há idosos para quem a vida passa como algo quase eterno, como algo parado no tempo. Do mesmo modo com as crianças ou outras faixas etárias, não há um padrão definido de passagem do tempo, essa passagem passa-se (passo a expressão) na mente; é a nossa mente quem põe o disco a 45 ou 90 rpm de um modo que por vezes, a maioria das vezes, escapa ao nosso controlo. Aqui deparamos com situações paradoxais: se por um lado queremos que aquele dia enfadonho passe depressa, por outro lado admiramo-nos ou exasperamo-nos porque o dia passou muito depressa e não tivemos tempo para nada, para os objectivos (reais ou figurados) que tínhamos em mente concluir. Para nós, um dia ou qualquer outra compartimentação temporal é algo eterno-efémero, como um sabor ou um cheiro.
05h18, 4ª feira, 27/01
Sempre que escrevo tento analizar o meu pequeno mundo, o meu minúsculo universo circundante e directa ou indirectamente observável por mim. Tento dissecar, vivissecar esta esfera da qual sou o centro e que fervilha de vida, de pensamentos, de acções e reacções, de inércias e movimentos, de pazes e conflitos. Disseco-me também, analizo-me também ao pormenor para tentar compreender o todo pelo estudo das partes, sabendo que nunca o conseguirei fazer, que morrerei tentando infrutíferamente ou quase espremer uma gota que seja, do conhecimento de mim e do meu mundo. Este desejo infinito de abarcar o infinito é inato e frustrante, faz-nos perseguir o horizonte, procurar o pote de ouro no fim do arco-íris mas é tão automático (poder-se-á dizer) como a salivação de um cão ao ver alimento. A diferença é que um cão sacia-se enquanto que nós nem o sabor da demanda quase conseguimos sentir.
Porquê essa busca pelo conhecimento? O que nos faz procurar a razão das coisas? Não são necessidades básicas de que precisemos para viver, não há aqui preservação ou conservação da espécie, apenas curiosidade. Para nós, tudo na vida ou mesmo fora dela vem com pontos de interrogação de oferta e não há ninguém, por mais básico que seja, que não use alguns na sua existência terrena.
14h27, mesmo dia
Vou recomeçar com as minhas meditações escritas. Como o serviço tem estado parado vou aproveitar para dar vida útil aos espaços mortos inúteis que pontilham os meus estados de vigília diários. Reforço as minhas defesas mentais contra o envelhecimento cerebral, exponho os meus pontos de vista, desemaranho o complicado novelo mental que é o meu cérebro humano e, ao mesmo tempo, ajudo a economia nacional e mundial ao gastar papel e tinta de escrever (em formato esferográfica) e ao desgastar os bancos e mesas onde me sento, acelerando a necessidade da sua substituição, o que permite a sustentabilidade dos estabelecimentos que os vendem e das fábricas que os produzem. Paralelamente, cumpro o meu papel no efeito borboleta, permitindo que o destino siga o seu curso natural. Embora não nos apercebamos está nas nossas mãos, nos nossos actos ou não-actos o futuro do universo. Somos directa e indirectamente responsáveis por tudo o que sucede ou virá a suceder no mundo em que vivemos. Sem nós o mundo não seria igual, sem nós o mundo será indubitávelmente diferente, a nossa vida e a nossa morte modificarão indelévelmente todo o universo conhecido para sempre.
05h18, 5ª feira, 28/01
Chove calma e implacávelmente; espero que às 8 horas estie, detesto andar com fato de chuva. Tenho a cabeça cheia de planos para amanhã que sei que amanhã não porei em prática. Vou simplesmente viver o dia como ele se me apresenta, nada mais. Quanto a tudo o resto... veremos se os augures serão favoraveis. Tenho a cabeça cheia de pensamentos rápidos, instantâneos, fugazes. Não se deixam agarrar, não me permitem analizá-los, explorá-los, desenvolvê-los. Estão todos desagarrados de qualquer fio condutor, não consigo enquadrá-los em nenhum desenvolvimento de pensamento lógico ( acho que chama-se a isto falta de inspiração). So me resta parar por aqui senão começo a escrever disparates só para encher papel e isso não é nada, é desperdicio de tempo e material.
05H00, 31 de janeiro, domingo
Comemoram-se hoje os 124 anos da revolta republicana gorada de 1891. Vem-me sempre à memória aquela célebre e batida fotografia das trincheiras cavadas no cimo da rua 31 de janeiro, na altura chamada de Sto António. A minha avó paterna teria então 6 anos e o meu avô 4 (ele era mais novo 2 anos, se bem me recordo). Crianças que na altura desconheceram totalmente a existência de uma revolução e nem sequer lhes teria feito qualquer sentido, se lhes dissessem. Só 20 anos depois nasceria o meu pai e 66 anos após vingaria o projecto que está agora a escrever estas linhas. É impressionante conceber a ideia de que a minha avó, que morreu em 1974 (Setembro), passou por 2 revoluções republicanas (a acima citada e a implantação da república, em 5 de outubro de 1910), o assassinato de um rei e seu primogénito, assim como a subida ao trono de um novo e impreparado rei que não era suposto sê-lo, dezenas de revoluçõezecas republicanas e efémeras ditaduras, um estado novo também ditatorial, uma guerra colonial, ou antes, várias, que ditaram o fim da presença portuguesa por esse mundo fora e uma revolução dita democrática em 1974. Que vida tão agitada, tão rica de peripécias, embora nenhuma particularmente feliz! Nós, os actuais vivos residentes do planeta, mais específicamente deste país, não tivemos até agora experiências tão marcantes. Embora o mundo esteja em transformações violentas, não o sentimos tanto na pele como as nossas 2 gerações anteriores. Deo Gratiae. 03h11, 2ª feira, 1 de fevereiro À medida que envelhecemos começamos a ruminar cada vez mais o conhecimento, a dar muito mais atenção aos pequenos pormenores que, enquanto novos (ou menos velhos) deixávamos passar por irrelevantes ou “mais tarde vejo isso”. Ressalve-se aqui que utilizo o verbo ruminar no sentido de mastigar, digerir com mais atenção, cuidadosamente. Não tem nada a ver com vacas, embora elas também façam parte do nosso conhecimento do mundo.
Falo por mim, tenho-me debruçado muito sobre história, linguística, humanísticas em geral. Não que não deite de vez em quando os olhinhos às ciências ditas exactas, mas não me prendem, é uma questão de tendência, de vocação. A única coisa que agora faz-me imensa falta é um émulo, uma alma gémea, alguém com quem possa livremente e em pé de igualdade debater, trocar impressões e conhecimentos do que sei, do que gosto, do que desconheço e quero saber. Infelizmente estou numa situação que, por profissão e directamente consequente isolamento, não me permite usufruir dessa benesse. O meu “ouro sobre azul” não existe e penso que não existirá no resto da minha vida porque não tenho condições para dele usufruir. (Se) quando chegar a minha idade da reforma, (se) quando não puder mais trabalhar, talvez surja alguma oportunidade de dar um gostinho ao dedo intelectual, comungar com os meus pares. Não estou a pôr-me em nenhum pedestal do conhecimento, não quero arrogar-me o estatuto de intelectual ou sequer elitizar-me, apenas pretendo trocar impressões com quem me possa compreender na minha complexidade relativa e a quem eu também tente retribuir na mesma moeda.
A falta de alguém que nos iguale pode-se transformar , tanto em infelicidade como em complexo de superioridade, depende de como gerimos as situações, de como sublimamos todo o processo de canalização do conhecimento adquirido. Estou em querer que todos os que passam por semelhante situação acabam, cedo ou tarde, com maior ou menor intensidade, por atravessar ambos os processos. Há quem cristalize, quem se apegue a um deles e o interiorize, o faça parte da sua personalidade, o que, em ambos os casos, é péssimo para si próprio e para os outros. Por mim, julgo ter ultrapassado essas situações sem muitos apegos ou influências, limito-me a encarar os factos com naturalidade, sem muito stress nem muita presunção.
22h27, mesmo dia
Somos intrínsecamente maus ou intrínsecamente bons? Se, após o nascimento, fôssemos criados de uma forma amoral, qual das tendências venceria? É evidente, pelo menos para mim, que a amoralidade pura não existe. Há sempre, por mais isentos que tentemos ser, uns pózinhos da nossa propria criação, do modo como fomos educados. Mas imaginemos que um ser humano podia ser criado de uma forma totalmente isenta de conceitos ou preconceitos de qualquer espécie, qual seria o dominante? Estou em crer que tudo dependeria, não da essência de pertencer à raça humana mas de todo um background genético, arquetípico, quiçá ambiental, racial e/ou outros factores, muitos deles fortuitos, fruto de acasos biológicos ou mentais.
Estou plenamente convencido que as características convencionadas de bondade ou maldade dependem da predisposição de cada um e ainda – muito importante – dos conceitos morais existentes na sociedade onde um indivíduo nasceu ou está inserido. Tomemos como exemplo casos, condenáveis ou criticáveis para a nossa sociedade, de outras culturas: entre os esquimós, honrar um hóspede é pô-lo na cama com a mulher do hospedeiro e considerar uma afronta qualquer recusa. Entre os tibetanos, uma forma de selecção natural num ambiente inóspito que não permite membros fracos sob pena de enorme sobrecarga social num povo que tem que viver sob condições extremamente adversas é deixar um recém-nascido algum tempo sob a intempérie, sob temperaturas geralmente negativas para avaliar da sua capacidade de sobrevivência. Outra ainda será expôr os cadáveres aos abutres para que eles comam toda a carne, deixando só os ossos.
Tantos outros casos cuja avaliação ética depende da formação moral de quem observa: as mulheres, consideradas inferiores entre os árabes, não podendo mostrar mínimamente o corpo, a existência de poligamia, tribos cujos elementos não podem mostrar as mãos por serem tabu, arrotar nalgumas culturas ser um sinal de educação, ao provir de um hóspede ou convidado, etc, etc, etc. Onde está o bem, onde está o mal, onde está a moralidade, o correcto ou incorrecto? Nos olhos de quem vê e julga, pois não há um conceito comum a todas as sociedades. São temas muito complexos onde, a meu ver, a melhor opção será avaliá-las caso a caso de acordo com o nosso próprio conceito de moralidade, não esquecendo porém que a avaliação deve ser conotada por alguma tolerância pois não somos os únicos detentores da verdade da moral.
2h44, 5ª feira, 4 de fevereiro
Dei uma vista de olhos pelo jornal El Mundo, que veio-me parar às mãos. Data de 30 de janeiro. Três coisas chamaram-me a atenção: Andrés Trapiello, o gato de Schröedinger e o adjectivo “pulcro”. Começando pelo último, achei interessante a diferença conceptual deste adjectivo entre o português e o espanhol; no primeiro, pulcro significa belo, bonito enquanto no segundo significa limpo, asseado. A raiz latina é a mesma, existirá certamente uma razão para que, provávelmente na Idade Média, paises com uma base linguística comum tenham divergido na significação desta palavra. Ainda tentei uma pesquisa light na internet mas não encontrei nada que me pudesse elucidar. Passando ao gato de Schröedinger, já tinha lido uma explicação sobre a experiência virtual mas tinha-a relegado para o arquivo morto da minha memória.
É um exercicio mental interessante que abre perspectivas filosóficas e quânticas muito originais. Não vou aqui explicar, a resposta encontra-se fácilmente na internet e será certamente mais elucidativa do que qualquer exposição que eu tivesse a veleidade de escrever aqui. Finalmente Andrés Trapiello, escritor leonês que tem uma característica interessante: escreve crónicas do seu dia-a-dia, da sua experiência de vida ao longo de 25 anos, com mais de 19 volumes. Não se lhe poderá chamar um diário nem sequer (como eu faço) um devezemquandário porque o autor mistura realidade com ficção, junta episódios reais da sua vida com situações fictícias porém perfeitamente plausíveis, o que torna a sua classificação como género literário um pouco confusa.
Não faz verdadeiramente crónicas da vida real mas também não faz crónicas de ficção, é um meio termo para o qual ainda não encontrei nome. Ficção real, realidade ficcionada ou ficcio-realidade. Será talvez mais parecido com ficção histórica embora enquadrado noutro género literário. Gostei do que li, da explicação do autor àcerca do que escreve. Para mim ainda é dificil aceitar escrever algo do género, ainda não consigo amalgamar os dois estilos sem ferir os meus conceitos ou preconceitos sobre o que e como se deve escrever. Não que eu tenha problemas em escrever a realidade ou a ficção, não; o meu problema preende-se com inserir irrealidades dentro da realidade, mesclar verdadeiro e falso. Não estou mentalmente preparado para apresentar escritos cujos leitores não saibam se estou a falar verdade ou a inventar, a mentir. Para mim, ficção é ficção, não é mentira. A mentira só existe quando pretendemos fazer crer que estamos a dizer a verdade.
17/2, 8h17, 4ª feira
AVC. O tão temido e (in)esperado voltou a atacar e desta vez deixou marcas. São daquelas coisas que,embora saibamos possível ou mesmo provável, ficamos incrédulos quando aparece. Escrevo agora com a mão esquerda, virginal, intocada. Mas canso-me.
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3h30, 7 de Abril
De volta ao meu amado/odiado silêncio. Do meu posto vejo um troço de paisagem que não fica verdadeiramente a dever nada à beleza, na verdade não fica a dever nada a nada: prédios, veiculos estacionados, um lote de terreno vedado para construção, as trazeiras de um posto de abastecimento da Repsol, a parte lateral da refinaria, tudo pontilhado por candeeiros de iluminação pública e tendo como moldura as paredes interiores do prédio onde me encontro. Convenhamos que não estou a ver nenhuma Gioconda nem o tecto da Capela Sistina!
Paisagem fria como o silêncio que enregela os ouvidos, estática, inerte, cadavérica, uma moderna natureza morta. Ao contrário dessas pinturas tão comuns desde o fim da Idade Média, a beleza é-lhe arredia, talvez reproduzida em tela se tornasse interessante. As frutas e as peças de caça retratadas adquirem uma beleza e vitalidade que os originais não têm, numa espécie de versão artistica equiparável ao seu simbólico émulo literário: O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Quem sabe se a minha paisagem ganharia vida... Finalizo, a minha mão pede-me descanso urgente.
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3H35, 2ª feira, 11/04
Inicio esta crónica sem ter verdadeiramente um motivo, um tema para o fazer. Limito-me a deixar correr o pensamento e o que eu penso é que nesta vida moderna, no momento que actualmente vivemos, deparamos com crises imensas a todos os níveis, desde o plano político, passando pelo económico, o religioso, o de valores, de emprego, enfim... A humanidade, tanto individualmente como no seu todo,está a sofrer talvez a maior crise existencial da sua história. Eu sinto-a, julgo que todos a sentimos, todos questionam o seu lugar e o seu futuro no mundo, num mundo que parece não ter futuro. E contudo tem-no. Já tivemos milhares de crises no passado, experienciámos as suas frequentemente graves consequências e contudo estamos aqui, para lavar e durar. No entanto a erosão é enorme, desgasta-nos, envelhece-nos prematuramente embora também nos endureça, vacina-nos, torna-nos mais resistentes. Qual dos factores devemos valorizar mais: o desgaste ou a imunização? Acho que nem um nem outro,devemos simplesmente aceitá-los como uma parte natural e importante do nosso processo evolutivo. Com isto não estou a dizer que abaixemos a cabeça aos revezes da vida, devemos combatê-los, é a nossa obrigação como seres pensantes e em desenvolvimento constante. Digo – isso sim – que devemos encarar todo o processo com abertura suficiente para conhecermos as nossas limitações e reconhecermos as consequências da lei da causa e efeito.
00h16, 16 de Abril
Estou muito cansado. Não que tenha trabalhado muito, nada ainda fiz, o meu “dia” só começou agora. Estou cansado porque dormi pouco, tive uma consulta de manhã e terapia ocupacional à tarde, o que fragmentou e reduziu substancialmente o meu descanso. Relembro agora, contudo vagamente, o estado de prostração extrema que senti durante semanas no meu primeiro AVC, há 24 anos. Agora pesa mais: sou mais velho, sinto mais o cansaço, preocupo-me mais, aguento menos, vai ser uma longa recuperação.
Vou mudar de assunto porque a linha entre a preocupação legítima e a hipocondria é muito ténue. Faz já muito tempo que não tenho escrito nada que se assemelhe às velhas reflexões que esporádicamente fazia. Sinto falta delas, desse raciocínio analítico, por vezes experimental,das cavalgadas em hipóteses surreais, da exploração de devaneios oníricos. Não querendo voltar a pegar no assunto, atribuo contudo este estado, esta ausência de fluir criativo, ao estado de fadiga acima descrito, pois ele não é só físico mas também mental, nada que um descanso bem aplicado não cure a longo prazo. Continuo e continuarei a questionar o meu lugar no mundo, uma engrenagem que funciona sem que se lhe vislumbre utilidade, como um relógio que trabalha sem ponteiros. Afinal, viver para quê? Para que possamos tentar obter alguns nano-momentos de felicidade e para que tragamos à existência outros pobres seres a quem enganamos, a quem vendemos o logro em que caímos, enganamo-os com o mito da procura do que eles nunca verdadeiramente acharão. A vida é uma prova de maratona sem vencedores: vai-se sempre passando o testemunho mas todos morrem sem vislumbrar a meta, que está para lá do horizonte.
01H14,3ª feira, 19 de Abril
Estive há pouco a ler um artigo sobre mindfulness e gostei do que li. Chamou-me a atenção o quão stressante é a maneira de estar no mundo de, possívelmente, a grande maioria das pessoas, como se desperdiça energia ao pensar demasiado no “mau” passado e no “potencialmente mau” futuro, passando evidentemente num pretenso “mau” presente, como nos atormentamos com tudo isto, como entramos em piloto-automático e como isso faz-nos viver um sucedâneo de vida onde as acções que desempenhamos naturalmente no dia-a-dia são obscurecidas, escondidas por um tapume que até a nós próprios deixa de fora. Não nos apercebemos do que fazemos, mecanizamo-nos sem raciocinar, não monitorizamos in loco e insitu a nossa própria existência, tratando-a levianamente “abaixo de cão” (com o devido e merecido respeito por esses canídeos a que considero muito).
Pois segundo me apercebi, o mindfulness é uma variante moderna, uma adaptação do budismo ou fortemente influenciado por ele, embora deixando mais de parte o componente espiritual mas não o excluindo. Trata-se de agir escutando-nos, desenvolver as nossas actividades diárias com a plena consciência do que estamos a fazer, parar e interiorizarmo-nos, fazer com que cada acto, cada pensamento se desautomatize, torne-se uma acção individualizada, consciente e irrepetível, numa visão zen do célebre anúncio da margarina: “Há-que parar, escutar o coração e usar Becel”. Para a minha mente essa leitura agiu como uma barrela, um descascar de um certo, não direi negativismo mas fatalismo que me caracteriza e a que chamo realismo existencialista (acho que é um eufemismo para o meu pensamento pró-pessimista). Sei que, infelizmente, dentro de dias os efeitos dessa lavagem desaparecerão e retornarei à linha de raciocínio original. Não quer dizer que terei pensamentos sujos, não no sentido em que geralmente este conceito é conotado, claro; o que pretendo dizer é que as asas do meu pensamento normal voltarão a ganhar a poeira fatalista e acre que o caracteriza. Contudo a semente fica, todo e qualquer conceito válido que se insinue no nosso raciocínio tem, por esse mesmo motivo,base para germinar, por vezes em circunstâncias inesperadas. O que faz-nos por vezes rechaçar essa germinação positiva é exactamente essa mente divagante que dispara pensamentos à toa em todos os sentidos, não se conseguindo fixar, concentrar-se em algo tão exasperantemente disperso e heterogénio.
01h59,24/4
O que serei para os outros, o que são os outros para mim? É uma questão que se calhar alguém raramente se perguntou e que tem uma importância enorme nos intercâmbios sociais. A consciência do “eu” e do “outro” dita a nossa relação com o mundo, a simbiose ou a mera condição de predador ou presa. É um processo predominantemente mental e que rege todo o desenvolvimento evolutivo, não só da espécie humana mas de todo o seu círculo de influência. Lógico será que no mundo circundante essa importância esbate-se aos nossos olhos por não lhe darmos a importância efectiva que nos merece a própria espécie. Mas mais importante ainda é a pergunta que inicialmente não referi: o que sou para mim própro, como me avalio? Se as primeiras questões são subjectivas, esta ainda o é mais.
Quando avaliamos alguém, entra em linha de conta tudo aquilo que somos, tudo em que acreditamos, os nossos ideais. Porém, quando fazemos uma auto-avaliação,todos esses factores esbatem-se, por vezes quase desaparecem ou, pelo contrário, atingem as proporções agigantadas de um zelo egótico. Não vale a pena enganarmo-nos,sejamos honestos e imparciais, somos assim. É mais fácil condenar que condenar-se mas é também comum desculpar acusando-nos injustamente. “Conhece-te a ti mesmo”,é um aforismo inscrito na entrada do templo de Delfos; e só através da sua consecução se poderá responder com justeza às 3 perguntas formuladas. Claro que isto não passa de uma ilusão bem-intencionada.
01h33, 28/04
Hoje sinto-me vazio, sem ideias, sem objectivos. Imagino-me na pele e no corpo daqueles velhos sentados num banco de jardim a ver passar uma vida que já não lhes pertence, que já não lhes diz nada e da qual são agora meros observadores passivos. Sinto-me hoje como se estivesse na ante-câmara desse jardim a aguardar a minha vez de sentar no banco. Pergunto-me como seria investir-me do seu espírito e sentir o que eles sentem, não no corpo mas na mente. O que será existir sem objectivos, viver das memórias do passado com os olhos postos num presente sem horizonte, aguardando um futuro previsível que pode estar à distância de apenas alguns segundos? Quais os seus sentimentos: receio, ressentimento, resignação,desengano, esperança ou apenas nada? Não digo que não vou ser assim mas farei todos os possíveis para que isso não suceda. Apenas estou a passar por um período relativamente mau mas previsível de recusa/aceitação da minha nova condição de físicamente limitado. Embora seja ainda cedo para assumir as actuais limitações como definitivas, sei que não ficarei a 100%. O stress reside todo na percepção da extensão final da minha deficiência e do receio de ver chegar o dia a partir do qual deixarei de ter esperança de mais recuperação.
00h40, 6ª, 29/04
Após uma leitura da versão online do Observador onde se falava da origem dos “ovos Benedict”, encontrei uma referência curiosa às alocuções gregas oi polloi (os muitos, a maioria) e oi poligoi (os poucos, a minoria). São termos agora pouco usados, mais referenciados no século XIX e princípios do século XX, embora sempre num contexto erudito pois as citações gregas não são tão vulgarmente utilizadas como as latinas. Essas, mesmo hoje em dia, qualquer gato ou cão com o mínimo de pedigree consegue usá-las. Tenho alguma pena que o ensino, num contexto de cultura geral, tenha práticamente abolido as referências filosóficas e literárias da antiguidade grega pois estas agiam como um argot culto que, pelo seu uso, incentivava o desenvolvimento cultural dos seus utilizadores. Note-se que refiro desenvolvimento cultural e não vaidade culltural; esta última fica reservada àqueles que alimentam o seu ego com a admiração dos que possuem instrução inferior.
Esses são os que atiram o seu saber ou pseudo-saber aos olhos dos outros como quem atira moedas aos pobres, apenas com o intuito de serem admirados. O argot deve ser utilizado com quem também o utiliza, com quem dá prazer falar a mesma língua e não como arma de arremesso, a linguagem deve ser adaptada às circunstâncias e ao interlocutor. Não dizemos “tacho” e “conduto” numa recepção diplomática nem referimos “degustação” e “iguarias” num contexto rural, haja bom-senso. É evidente que por vezes somos obrigados a baixar ou subir a fasquia para não sermos desagradávelmente importunados mas isso será num contexto meramente defensivo, uma excepção que confirma a regra. Não pretendo com esta linha de pensamento elitizar num sentido segregacionista. No fundo, todos utilizamos um argot, uma linguagem cabalística que só os do nosso meio conhecem ou poucos mais.
A espirometria dos médicos, o estruturalismo dos linguistas, o ponto de estrada dos doceiros ou a redução dos cozinheiros, a derrama dos economistas ou a talocha dos trolhas são formas de comunicação restritas entre os membros da mesma comunidade, do mesmo ofício, da mesma elite e os seus membros têem consciente ou inconscientemente prazer em falar com os seus iguais uma língua comum. Por tudo isto sinto satisfação em alargar a minha cultura geral pois essa expansão poderá permitir-me, não só compreender os conceitos por detrás dos símbolos como também ao introduzir-me entre aqueles com quem ambiciono aprender algo, alargar os meus horizontes. O saber não ocupa lugar. A despropósito, o pessimismo patente na minha última crónica está dormir, é de novo a esperança quem está de serviço (só espero que ela não se importe de fazer horas extras).
03h42, 10 de Maio, 3ª feira
Cá estou eu de novo a confessar ao papel a ínfima parte dos meus pensamentos. Não que, na maioria das vezes, eles tenham alguma importância transcendente, geralmente são tão ou menos importantes que um monólogo de bêbado mas sempre vão servindo para aliviar o espírito e roubar espaço na memória do computador. Há sempre a possibilidade (não de todo desprezível) de que tudo o que escrevi e venha eventualmente a escrever até ao fim dos meus dias (e noites) ou à perda das minhas capacidades físicas ou mentais, fique para sempre sepultado electrónicamente no segredo inviolável de uma cloud, até ao apocalipse internético.
Nesse caso, o meu legado ao mundo, a minha pegada na existência acabará por ser inglóriamente apagada, como palavras escritas num areal à beira-mar. Não importa, os meus pensamentos gráficos cumpriram a sua missão, independentemente de terem ou não sido lidos. A sua função foi, como escrevi acima, a de confessar o meu íntimo, aliviá-lo de tensões e causar-me prazer no meio das agruras da vida. Claro que lerem-me será sempre uma ressurreição fugaz e satisfatória; ao “ler” alguém, mesmo que tenha desaparecido há evos, estamos a fazê-lo reviver na nossa leitura, na nossa memória e no nosso tempo, estamos a fazer Lázaro voltar à vida, por mais ínfimo que seja esse momento. É assim que os autores das grandes obras tornam-se imortais: estando a ser constantemente chamados à actualidade, estando a ser lidos a todo o momento um pouco por todo o mundo, são imorredouros e universais, como uma espécie de deus menor. Os outros, esses diluem-se no espaço, no tempo e na memória, acabando por não restar deles nem o pó em que se tranformaram.
03h45, 11/5, 3ª feira
Por três vezes bati no molho e outras tantas quatro exagerei no tempero. Só me restava mudar os 4 pneus ao tacho para que a sopa com puré não derrapasse e se espetasse nalguma árvore com um prego ou uma sandes de papel vegetal. Como mesmo assim não chovia, dei com o martelo nas núvens de pó e mordi a cauda do Tempo, que estava a abanar como um terremoto. Elas disseram “ai” e caíram desamparadas em cima do desmaio.
Foi assim que eu soube que fazia anos todos os anos no dia do meu aniversário e não fazia anos nos outros dias, embora ainda não saiba se faço anos durante as noites. Adormeci então para ver com os olhos fechados os sonhos de olhos abertos mas tropecei no primeiro ronco e acordei a pensar que estava na banheira, o que faria com que os meus pensamentos fossem limpos mas desbotados por causa da lixívia que puz no leite. Nessa altura já chovia a potes mas não consegui guardar nenhum porque eles partiam-se todos quando batiam no chão as claras em castelo para o bolo de bexigas doidas por assistir ao concerto do pavimento de terra batida que estava todo calcado pelos pés das baleias.
As formigas também comiam o mel que as abelhas deitaram fora no fim do prazo de validade mas eram intolerantes ao açúcar e fugiam a sete pés porque usavam bengalas e não podiam correr muito. Dois anos depois suicidei os ratos que habitavam num duplex para onde tinham mudado depois de um naufrágio nas ilhas desertas que com o desgosto ficaram habitadas por homens sem cauda que só comiam quando não tinham fome. Nesse dia dormi sem pensar e só quando despertei é que reparei que estava acordado.
Não, não estou doido nem o AVC afectou-me os centros de fala ou de comunicação escrita, apenas estou a mergulhar um pouco (porque ainda não sei nadar) na esteira de Lewis Carrols, dos Monty Pyton e, muito especialmente em Dylan Thomas e no surrealismo inglês. Sabe bem fugir à normalidade de vez em quando. 23h50, sábado, 21 de Maio De novo escrevo, ultimamente com dificuldade devido à espasticidade provocada pelo meu ainda recente AVC. Por esse estranho nome entenda-se o excesso,o défice do tónus muscular decorrente da morte de células cerebrais cuja função era esse controlo e que por qualquer razão não puderam ser substituidas.
Entenda-se ainda por tónus muscular o estado natural de tensão muscular mínima que permite que estes não estejam flácidos ou demasiado tensos, num meio termo entre a acção e a inércia. Digamos que é o equivalente a ter um carro ligado mas em ponto morto. Pois bem, esta doença e consequente desabilitação motora tiveram como consequência um curso acelerado de psicologia e fisiologia geriártrica, uma espécie de mestrado em introdução à idade sénior. Enquanto passamos pela vida sem mossas de maior importância, os mais idosos passam-nos quase despercebidos, não atentamos verdadeiramente às suas dificuldades, não nos apercebemos do preço a pagar pelo declínio.
Agora que experiencio certas situações típicas de um estágio de idade mais avançado, começo a tomar consciência das dificuldades a ele inerentes. É muito frustrante mas, como somos um animal de hábitos,acostumamo-nos e acabamos por esquecer a frustração, encarando a nova realidade como algo inevitável e natural. Na verdade, não me sinto velho, embora físicamente limitado. Dizem e com razão que ser velho ou sentir-se velho é um caso meramente psicológico; só somos velhos quando nos deixamos subjugar pelo conceito ou preconceito da idade, quando acreditamos que o somos e não damos luta; ser velho é desistir de viver, aceitar incondicionalmente a perda, natural ou não, de capacidades e sentarmo-nos a chorá-las. No fundo, ser velho é querer apenas ser novo, é querer ser o que fomos sem aceitar o que somos.
00h54, 2ª, 30/05/16
Como sempre, quando pego na caneta para escrever já aquela ideia que tinha para expôr desapareceu ou, pura e simplesmente tornou-se estéril, foi chão que deu uvas, perdeu aquele momento certo para manifestar-se. As ideias são como as respostas, perdem a oportunidade se demoram muito a ser utilizadas. Infelizmente, como tantas coisas na vida, elas surgem muitas das vezes nas piores alturas: quando conduzimos ou quando não temos forma de as anotar, no meio de uma conversa ou no banho. Mais tarde, quando nos lembramos e se nos lembrarmos, perdem a força, o fio condutor ou a importância inicial, desvanecem-se, insignificantizam-se, tornam-se um vago esqueleto do corpo original ou mesmo apenas pó, meros pensamentos cristalizados, diluídos pela chuva do tempo.
Por que será que a solidão e o silêncio fascinam-nme e, simultâneamente, metem-me medo? Gosto da solidão, gosto de sentir-me deserto e surdo, de ser eu comigo, em monólogo e introspecção. Não quero ser incomodado, dividido por presenças ou sons que me desconfortem e no entanto essa ausência sensorial assusta-me, talvez mesmo pelo medo de assustar-me, não com essas presenças e sons mas porque confrontado comigo mesmo poderei expôr a minha alma à minha alma e conhecer o que não desejo. O sentimento de culpa é o pior dos castigos.