10/12/2024
310 – O CÉU DOS PARDAIS OU A FELICIDADE DA CÔR DE BURRO QUANDO FOGE16H04, 10/12 – 3ªfeira
De novo escrevo, numa tentativa de não deixar morrer o meu projecto de escrita, o meu mais pessoal legado ao futuro, aos dias em que já cá não estarei, seja por morte ou por incapacidade intelectual.
Estou sozinho em casa com as minhas duas gatas e o meu cão. Estou só e aborrecido, estou só e com vontade de nada fazer, e é exactamente isto que me esgota.
O que é feito desses planos – velhos de dezenas de anos – para aproveitar um tempo que nunca tive, numa casa a que posso chamar finalmente minha, num ambiente livre da toxicidade de influências familiares e outras? Que é feito dessa idade do ouro pela qual tanto ansiava? Só se for pelo ouro visual que o espectáculo dos pores-do-sol no oceano me proporcionam e pelos quais me sinto transportado para um passado nostálgico que nunca aconteceu.
Será tudo o que me resta? O meu almejo dos dias tranquilos, despreocupados, em paz com a minha existência resumir-se-á a isto?
Lá diz o ditado: “ninguém está bem com a vida que tem”, queremos sempre uma felicidade platónica, uma felicidade que procuramos encontrar no fim do arco-íris, mas para lá caminhamos sempre sem sucesso pois desvanece-se numa poalha irónica de humidade e vazio. Um mito!
Esse estado edénico, beatífico, mítico e ilusório, esse céu, esse paraíso, o valhalla dos nórdicos, sempre (não) existiu, embora nunca o consigamos atingir, mas é, contudo, o nosso motor, o nosso alento, o que nos faz prosseguir mesmo quando o que queremos é - provocado pelos revezes da existência – desistir, enterrar o El Dorado para sempre e matar o sonho.
Tenho 67 anos e continuo a perseguir o arco-íris…
10/11/2024
309 - SOU VELHO OU APENAS E NATURALMENTE UM EGO REMODELADO?18H29, 10/11, domingo
Fundo musical:
Bolero, de
Maurice Ravel. Cenário: quarto de cama, na cama; tema: ser velho.
Sou o produtor, argumentista, realizador deste “filme” e, embora não ache muita piada ao argumento, agora que me estou a pôr na pele do protagonista, cito
Sou – como dizia
Fernando Pessoa –
o melhor actor de mim próprio.É engraçado e intrigante aperceber-me de que os meus trejeitos, as minhas atitudes, as reacções perante mim próprio e os outros assemelham-se aparatosamente aos trejeitos, atitudes e reacções que vi no meu pai, na minha tia, na minha avó e milhentos outros “velhos” com quem me cruzei no decurso das minhas quase sete décadas de
representação teatral neste meu muito particular palco do meu mundo. E reparo que represento cada vez melhor!
Profissionalizei-me tão bem que agora é difícil - impossível mesmo– abandonar o personagem que encarnei e voltar ao meu
Ego de há 30 ou 40 ou 50 anos.
Ser velho é como ser mentiroso, cada vez mais acreditamos que o que estamos a representar é a mais pura realidade. E o mais espantoso é que é mesmo! A senescência droga-nos até à morte, não há cura.
Será que na verdade me importo, me incomoda ser velho? Acho que nem por isso; vamo-nos habituando à modorra, àquela espécie de paz calma, de resignação contemplativa.
Agradecemos à idade a sabedoria, a experiência, a satisfação de poder aconselhar a quem no-lo pede, felizes por sermos úteis.
E esperamos…
19/10/2024
308 - DE QUÃO DIFÍCIL É SER LIVRE E SABER GERIR A LIBERDADE23h23, 19/10, Sábado
Primeiro estranha-se, depois entranha-se – o Fernando Pessoa ainda em embrião publicitou assim a nova bebida
Made in America em 1929: a
Coca Cola, inventada pelo químico e farmacêutico
John Pemberton, nos finais do século XIX. O slogan apenas ficou célebre no imaginário português, pois Salazar proibiu a comercialização dessa bebida, no que foi grandemente influenciado pelo Dr Ricardo Jorge, então inspector-geral da saúde, que afirmou que esta continha cocaína e, como tal, não podia ser comercializada, a bem da saúde pública.
Ora, Salazar era avesso a influências estrangeiras e o “orgulhosamente sós” serviu de pretexto para proibir a bebida por razões profilácticas, assim como para evitar ingerências e influências económicas por parte do imperialismo americano. Ao mesmo tempo protegia a produção nacional de vinho, usando para isso um slogan que, encapotado de defensor dos interesses do povo, apenas o prejudicou a longo prazo: “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”.
Não digo com isto que o anúncio tenha tido esse intuito – absolvo disso o primeiro-ministro– mas teve, efectivamente, um péssimo impacto na vida dos portugueses que era suposto proteger.
Mas o que eu quero escrever não é acerca de Fernando Pessoa, nem da Coca Cola, Ricardo Jorge ou Salazar; o meu objectivo limita-se a, simplesmente, escrever sobre a” pegada azurárica“ que o meu novo percurso de vida e nova morada têm tido e a resistência que ela enfrenta após 47 anos de outro percurso de vida e de outra residência.
Perece ser fácil e gratificante, mas não é assim tão linear pois por detrás dessa nova experiência, dessa nova aventura, subjaz um hábito, fruto de uma vivência de quatro décadas, que é impossível de apagar.
Devo-me considerar feliz? Aliviado? Realizado? Relaxado e livre? Sim.
Mas não. Tal como um animal que foi libertado de uma longa vida de cativeiro, também eu sinto dificuldade em estar livre, em sentir-me livre. Troquei um stress por outro, de tão “acomodado” que me sentia com a minha prisão sem grades.
A adaptação será muito lenta, a avaliar pelos quatro meses que já se passaram. Quanto tempo mais?
24/09/2024
307 – UMA VISÃO IDEALIZADA DO MEU NEO-REALISMO BUCÓLICO-ROMÂNTICO17h39, 24/09, terça-feira
Parece que o verão "começou a acabar"; a temperatura máxima baixou para os 20ºC e a chuva já se mostrou esta manhã. Inicia-se mais um equinócio – já começou há 2 dias!
Como estarei geralmente em casa, a ler ou ver televisão, ou eventualmente a estudar ou fazer exercício (estas duas últimas porque ainda acredito no Menino Jesus), será um período beatífico e simultaneamente uma prova de resistência do apartamento às intempéries que julgo seja um factor de peso na avaliação final da resistência de portas, janelas e paredes aos avanços do frio, da chuva e do vento. Penso que não ficarei desiludido.
Da janela da minha sala contemplo com prazer uma fileira de pinheiros emoldurada pelos caixilhos da janela e tendo mar como pano de fundo. Na mesma orla avisto o parque de campismo que não destoa de todo deste frame que da minha posição de sentado à mesa de jantar e de trabalho vislumbro. O meu cão (Mindelo) dorme no ninho, perto dos meus pés, duas gatinhas de cerca de três meses que resgatei de uma morte certa e breve, brincam pela sala toda como crianças que são; apenas se distinguem dos jovens humanos pelas brincadeiras
de gato e pelas lutas amigáveis mas frequentemente brutas que caracterizam as crias felinas.
Não fora a modernidade dos móveis, o barulho abafado dos carros que passam perto do prédio e a consciência que obviamente tenho do espaço e do momento temporal, diria que me encontrava nalgum recanto bucólico, misto de romântico e medievo, onde o tempo corre mais vagaroso e a serenidade convida à meditação e à paz. É o Carpe diem quam minimum credula postero , das
Odes, de Horacio.
10/09/2024
306 – OS NOVOS BONS VELHOS TEMPOS OU O HIPOTÉTICO RETORNO DO ÉDEN LITERÁRIO04/09, 4ª feira, 05h24
A poeira da grande mudança (literalmente) da minha vida está a assentar (e a ser aspirada) e vou tentar pela enésima vez recomeçar e recuperar o tempo perdido (parece que estou a citar Proust, mas não) e o jeito deveras enferrujado da escrita.
Àparte algumas pequenas saudades da cidade do Porto e dos 47 anos que por lá vivi, sinto-me bem aqui, mais calmo, mais ligado a mim próprio, mais senhor do meu destino.
Os quarenta e dois em que nessa cidade habitei, já casado, foram uma espécie de tempo emprestado numa morada, também ela emprestada, onde nunca me senti muito feliz. Agora a realidade é outra, vivo em algo que é meu e só essa sensação, embora tardia, vai fazendo evaporar lentamente as brumas dum passado medíocre.
Mas adiante, não vou recomeçar uma autopiedade como até muito recentemente extravasava nas minhas crónicas.
Vivo agora num terceiro andar virado a poente, ao mar, que vejo com clareza pela janela da ampla sala do apartamento, a qual emula (se não ultrapassa endorfínicamente) a sala da casa de Esmoriz, onde passei toda a minha infância e adolescência. A última era imponente, esta é, digamos, prazerosa. Além desta tenho também um óptimo panorama, embora mais limitado, da varanda do meu quarto, virado a noroeste.
Agora os meus planos são simples: passear o meu cão Mindelo - assim chamado porque nasceu nesta zona e veio para a nossa companhia pelas mãos da minha filha Sofia e do meu genro João, que o resgataram de uma ninhada de uma cadela de rua – passear-me, fazer praia quando possível, pois estou apenas a cinco minutos do mar, ir até a cidade de vez em quando e maioritariamente a pé, ir até Mindelo visitar a minha neta, os pais e os meus compadre e comadre - pessoas prestáveis, simpáticas e honestas que merecem a nossa amizade e respeito, e dedicar o resto da minha vida aos livros que possuo, esses seres inanimados mas cheio de vida interior, de riqueza de conteúdo e de sabedoria.
Sempre foi, após passado o período de jovem adulto, o meu plano para futuro. Por muito tempo que esse desejo tenha estado adormecido, fosse por falta de oportunidade, por desencanto com a própria vida, por já não acreditar num futuro melhor ou mesmo por preguiça, da qual faço uma envergonhada mea culpa, esse momento chegou.
Tive, com alguma pena, de doar cerca de dois mil livros, por já não caberem no espaço disponível, apesar da estante com seis metros que mandei instalar em toda uma parede da sala e de uma outra com cerca de três que tenho também no hall. Acabei por aceitar a perda, pois a grande maioria eram livros de menor importância ou que estavam totalmente desatualizados.
No entanto, continuo a comprar obras, embora em muito menor escala, pois posso afirmar que sou um bibliófilo compulsivo. Aliás, a esse respeito, cito abaixo um dos meus autores preferidos, e que infelizmente morreu no ano em que estive ausente em Paris. Como se trata de um texto de origem brasileira, fiz pequenas alterações para o tornar semântica e morfologicamente mais compreensível:
Umberto Eco, dono de 50.000 livros, tinha isto a dizer sobre bibliotecas domésticas:
É tolice pensar que temos de ler todos os livros que compramos, assim como é tolice criticar aqueles que compram mais livros do que alguma vez conseguirão ler. Será como dizer que devemos usar todos os talheres ou óculos ou chaves de fenda ou brocas que comprámos, antes de comprar novos.
Há coisas na vida que precisamos ter sempre em abundância, mesmo que usemos apenas uma pequena porção.
Se, por exemplo, considerarmos os livros como medicina, entendemos que é bom ter muitos em casa em vez de alguns: quando nos queremos sentir melhor, então vamos ao 'armário dos remédios' e escolhemos um livro. Não um aleatório, mas o livro certo para aquele momento. É por isso que devemos ter sempre uma escolha nutricional!
Os que compram apenas um livro, lêem apenas esse e depois livram-se dele. Eles simplesmente aplicam a mentalidade do consumidor aos livros, isto é, consideram-nos um produto de consumo, um bem. Quem ama livros sabe que um livro é tudo menos uma mercadoria.
27/07/2024
305 – TRICK OR TREAT?22h22, sábado, 27/05
O post anterior serviu apenas para mostrar que eu estava ainda
alive and kicking e não era já um mero cadáver físico ou literário (bem, a confirmação da primeira premissa validava automaticamente a segunda).
Quase um mês depois do referido anúncio, volto a escrever algo. A postagem anterior esteve quase um mês perdida no meu computador – razão por que tem, como esta, a data de hoje.
Não quero com isto dizer que vou agora, hoje, escrever muito. O meu intuito neste momento é dar uma prova de vida aos meus leitores e garantir que não sou um
ghost writer, apenas passei por umas “férias” prolongadas e estou apto a reiniciar as crónicas que há muito tinham perdido o ritmo e o duplo objectivo de informar e distrair - por um lado – e de auto-análise – pelo outro.
Este reinício será mais uma vã promessa ou uma intenção séria e credível? Não percam os próximos posts!
27/07/2024
304 - A SHORT AND…CUT!Pindelo, Árvore (ou será Azurara?), 30/06, 22h17
Reta final para uma mudança que esperava que fosse mais dolorosa. Cheguei a uma idade em que as mudanças já não são tão difíceis assim, pois as emoções deixam-se cada vez mais gerir pela racionalidade. Seja como for, já atingi o ponto de não retorno.
A biblioteca está perante mim, um dos meus anelos realizou-se.
28/05/2024
303 – A DIFÍCIL ARTE DA AUTO-SATISFAÇÃO OU “HOW TO CEASE THE DAY BEFORE THE MEETING WITH THE CREATOR”27/05, 22h37, 2ª feira
É muito, muito estranho – surpreendente até, pela sua evidência – tomarmos consciência de que já vivemos, na melhor das hipóteses, uma percentagem gritantemente significativa da nossa existência. Fazendo um cálculo generoso e que ultrapassa a actual esperança média de vida, poderei afirmar que já “gastei” cerca de 70% da minha carga vital.
Essa constatação preocupa-me – como é lógico – mas não me incomoda muito, não a sinto como uma ameaça, mas como uma inevitabilidade com que todos terão de lidar e não adianta renegá-la, pois ela tem hora marcada connosco para esse importante compromisso mútuo.
Não vou desenvolver mais este complicado tema, chega de existencialismo. Sei que é a minha especialidade, mas já ventilei demasiadamente o assunto e vou passá-lo à frente.
Não tenho postado nada porque ando muito ocupado com a mudança de casa e ainda mais baralhado com a recém-adquirida reforma. São duas situações que agitam muito as águas e a turbulência que provocam turva o surgimento natural da há muito esperada tranquilidade.
O meu sonho, neste momento, é sentar-me junto à minha biblioteca e ler, alheado do mundo, com um pé na realidade, outro na ficção e os olhos postos na gigantesca sopa de letras onde poderei mergulhar atá à saciedade. Para já, estou a criar na minha nova casa condições de habitabilidade, assim como de mutualismo facultativo com as obras que carinhosamente acolho.
Até breve (espero)
21/04/2024
302 – QUANDO CHOCALHAMOS O CÉREBRO OU AS CONSEQUÊNCIAS DAS DESROTINAS21/04, 23h54, domingo
Quase um mês de injustificada ausência (não sou, no entanto, obrigado a defender-me perante ninguém) das lides das letras rebeldes que se recusam a agrupar voluntáriamente em palavras, frases, orações de sentido consentido e coerente.
Justificação, tenho; vou mudar de casa, e isso tem-me mantido ocupado, baralhado, dividido em múltiplas opções e escolhas, em infindáveis faltas de tempo – que não existem, eu é que as sinto como reais, mas não passam de má gestão temporal que, por mais que me esforce, não sou ainda capaz de controlar.
Isso, junto à circunstância de me encontrar muito recentemente reformado, originou na minha consciência um
tsunami de reacções e contrarreacções, difícil de gerir. Necessito de tempo (ou estarei a procrastinar?), assentar ideias, definir rumos, mudar conceitos e situações pré-concebidas, falsas idealizações, mitos, fábulas, inexistentes muros, que sei eu?
Trabalho de gigantes! Alterar o rumo dos pensamentos, criar novos horizontes, definir novas linhas de procedimento, aceitar um fim de vida como um novo começo, como uma nova etapa da evolução, é tarefa difícil e de conclusão incerta!
Carpe diem quam minimum credula postero – escreveu o grande poeta romano
Quintus Horatius Flaccus (65 a.C. – 8 d.C.), o que traduzido livremente, intenta dizer: Aproveita cada dia e não confies no amanhã.
Um dia de cada vez, direi eu; amanhã será outro “um dia de cada vez”, nunca descrendo (embora cautelosamente) que esse dia nascerá também para nós.
22/03/2024
301 – ONDE SE FALA DA MORTE, DO MEDO, DO DESINTERESSE, DA VIDA, DA COMPARAÇÃO, DA VAIDADE, DA RESIGNAÇÃO E DO DESTINO22/03, 6ª, 00h39
Mais um post a cheirar a narcisismo, que é aquilo em que parece que me estou a transformar.
Não que seja como Narciso, que passava o seu tempo a admirar-se num espelho de água, acabando por morrer de fome e de sede; longe disso, não sou um
self lover!
É certo que, tanto homens como mulheres miram-se, olham-se ao espelho, comparam-se com os outros ou outras, tentando manter um nível – se não mais interessante do que os dos seus comparativos, pelo menos emulando-os.
Não, não sou narcisista! Sou apenas um ser que entrou numa idade desassossegada, em conflito consigo próprio e com o seu papel na sociedade e na vida, tentando emoldurar-se sem conseguir ainda (ou talvez nunca) conhecer o seu tamanho nem a sua moldura.
Não é fácil ser-se idoso, assim como não e fácil ser-se criança, adolescente ou adulto. No entanto há – na primeira condição – uma consciência mais apurada, não apenas do facto em si, mas também do desfecho inevitável que se aproxima, do sniper escondido em cada segundo que passa e com a consciência de que, cada vez mais, partilhamos a nossa cama, a nossa mesa, o nosso trabalho e o nosso lazer com esse interruptor da existência.
Mas, bem ou mal, felizes ou infelizes, vamos vivendo nesta estranha e imposta coabitação que tentamos ou fingimos ignorar, por medo ou indiferença.
22/02/2024
300 - A NOÇÃO CONSCIENTE DE QUE O INCONSCIENTE VAI ACABAR POR CEDER AOS DESEJOS DO SUBCONSCIENTE OU DE COMO MOLDAMOS A EXISTÊNCIA AOS NOSSOS ANELOS LEGÍTIMOS
17h32, 5ª feira, 22/02Estou em casa a tentar digerir o meu “tempo em excesso”. Não tenho conseguido fazê-lo eficazmente porque o expectável espaço cronológico e físico livre está a existir em demasia (não é um português muito correcto mas julgo que me estarei a fazer entender) e ainda não consegui compartimentá-lo fora dos moldes a que me habituei durante dezenas de anos de formatação, com a presença desse malfado mas necessário vício do trabalho – pois quem não trabalha não come.
Utilizei acima o verbo compartimentar, mas tenho forçosamente de referir-me a ele apenas no sentido de ordenação necessária para a consecução eficaz do tal vício e da vida a ele agarrada. Agora não fará muito sentido utilizá-lo da mesma forma, pois em vez de uma divisão amovível procuro enfiá-lo (ao tempo livre) numa roulotte ou autocaravana virtual, metafórica; isto é, não posso nem devo continuar a imobilizá-lo como se fosse algo rígido, mas sim como o devo fazer, que é deslocá-lo e deslocar-me no espaço e no tempo e deixar de ser o seu escravo para me assumir como seu amo.
Julgava que essa ordenação era fácil, mas não é; a maior fatia cronológica perde-se ingloriamente a tentar - ou fazer coisas que acabam incompletas ou nem sequer se começam porque a procrastinação vence, ou então a cair noutro vício a que os americanos costumam chamar
couch potato (mas que foi imortalizada pela expressão italiana
dolce fare niente). Em resumo: tropeça-se ora numa ora na outra, constantemente.
É necessário ter uma mente alerta e uma vontade idem para que nos sobreponhamos a estas “tentações do Demo” e para que tenhamos sucesso no equilíbrio almejado. Até lá, vai-se experienciando um novo
awakening, um novo despertar, na forma de amadurecimento de uma renovada consciência e aprendizagem.
A vida é a mesma, mas é diferente; sendo ainda nós, passamos a ser outros, não perdendo, contudo, a identidade nem, por consequência, a individualidade. Digamos que é um
upgrade.
29/01/2024
299 - DE COMO AS PÁLPEBRAS E OS LIVROS (NÃO) SÃO IMPORTANTES NO PROCESSO EVOLUTIVO2ª feira, 29/01, 13h28
Há dias estava numa rua longe do bulÍcio da cidade, perto dum ambiente campestre, o que propicia reflexões mais profundas, menos contaminadas pelas distracções com que o mundo moderno vai matando o sonho e a criatividade. Sentia-se aquele orvalho fino, etéreo, uma fusão de nevoeiro e da sua ausência e a que os britânicos chamam
mist e que sugere as charnecas do norte da Inglaterra e da Escócia, palco de romances policiais ao estilo de Sherlock Holmes, esses explêndidos e criativos relatos ficcionais, produtos da mente fértil do consagrado Sir Arthur Conan Doyle.
É o que a minha memória de infância traz a lume (embora estejamos a falar de humidade). Romances policiais eram muito comuns em minha casa, pois o meu pai era consumidor regular dessa literatura que em nada fica a dever a outros géneros literários e que durante muito tempo também foi o meu
hobby. Porém, e por feliz culpa do meu pai, os meus hábitos de leitura modificaram-se a partir de 1971 - ano em que ele me ofereceu um livro que comprara e com cujo género não sentia afinidade: a ficção científica.
Esse venerável livro, embora não esteja (porque só eu compreenderia o porquê, pois faz parte integrante do meu desenvolvimento pessoal), deveria estar numa moldura e protegido como um tesouro valioso, pois constituiu, há 53 anos, a pedra de toque de todo o meu percurso cultural e académico; é a ele que devo as minhas opções, os meus gostos sobre arte e literatura, as facetas da minha curiosidade menos convencionais e horizontes mais largos de entendimento. Chama-se
Perdidos na Estratosfera, é o Nº 1 da extinta
Colecção Argonauta de Ficção Científica e foi publicado em 1953 pelo escritor, físico e cientista A. M. Low (Archibald Montgomery Low, 1888-1956), um visionário, um homem que, como outros (Robert Anson Heinlein, Stanislaw Herman Lem, etc), previu futuros possíveis que, muitas vezes, tornaram-se realidades ou campos de investigação frutíferos.
Foi o meu, verdadeiramente MEU, primeiro livro, o primogénito de muitos que fui comprando ao sabor das parcas possibilidades que tinha, chegando mesmo a adquirir, em complemento, obras de uma colecção mais recente: Nébula. Hoje, de ambas as colecções, e mesmo de outras obras soltas, possuo algumas centenas. A minha evolução intelectual, assim como as dificuldades em comprá-los - pois a minha situação económica passou por períodos muito negativos -, ditaram o término da sua aquisição, mas já tinham cumprido o seu objectivo e prossegui para outros temas, para novas aprendizagens e novos desafios.
Sei que, dos 5017 títulos que possuo, não deverei ler nem 10% até ao fim dos meus dias (e noites - sejamos literais), o que se transforma numa espécie de desgosto por antecipação. Como consolo resta-me a lembrança de que, após o irrecusável decesso, não só não terei a mínima recordação da perda como, mesmo que a tivesse, nada significaria, terá sido apenas uma etapa do meu percurso evolutivo, tão irrelevante como todos os piscares de olhos que contínuamente executamos.
Relevo no entanto que essas acções desapercebidas contribuiram tanto para o bom funcionamento dos globos oculares como a literatura o fez para o aprimoramento do intelecto.
Bem, construí uma memória e um raciocínio assentes na recordação de uma bruma. Nada é impossível, basta (......)
12/01/2024
298 – REFORMADOS OU CONFORMADOS? HÁ QUE ESCOLHER.11/01/24, 5ª feira, 19h37
Após longo interregno reescrevo (como “reescrever” sugere apagar tudo e começar de novo, noto que o sentido correcto que pretendo dar é o de retomar uma actividade – neste caso, a escrita). Parece que a reforma retira-nos uma certa liberdade de acção, uma perda do tempo de lazer em vez de permitir-nos aumentar a nossa disponibilidade para usufruto de um estado por que tanto ansiávamos.
Estou reformado há 42 dias e já parece que estou a fazer umas férias demasiado prolongadas. Lembro-me de que quando trabalhava, há 25 anos, num restaurante que fechava todo o mês de agosto, nunca fazia férias fora de casa mais de 20 dias, pois parecia que elas nunca mais acabavam, e necessitava de agarrar-me novamente à rotina.
Dizia-se antigamente que “tudo o que é demais, é moléstia”. É verdade. Mas a moléstia é curável, se soubermos como lidar com ela. Há que criar estratégias para fazer face a um estado potencialmente mais desgastante do que o trabalho, eventualmente criador de episódios depressivos perigosos. Não é assim tão difícil rodear o problema, embora seja custoso depurar as hipóteses de solução, pois algumas podem ser mais danosas do que imaginamos.
Temos de elaborar um esquema de resposta ao hipoteticamente imensurável tempo livre que agora possuímos. Não que ele seja muito longo mas porque, pela lógica da vida, ele seja meramente presumível e temporalmente incerto. As estratégias passam por hobbies, um part-time, uma continuação dos estudos, um voluntariado, enfim, qualquer coisa que nos faça sentirmo-nos úteis – a nós próprios e eventualmente aos outros.
A inércia é inútil e extremamente desgastante – mais desgastante do que o próprio trabalho, mesmo que este seja duro. Faz muito tempo, nem sequer pensava ainda na “retraite”, fazia-me confusão e pena quando via os reformados, os velhotes, a passar o seu tempo, ora no tasco, com interacções de tasco que não levam a lado nenhum senão a conversa de chacha, por vezes a confrontos e/ou perdas de amizades, ou então a jogar cartas ruidosamente, como mestres da arte dos baralhos. Esses, os dos tascos, apenas alimentam as suas frustrações e apressam a sua morte, pois nada tendo a que se agarrar, nada de útil ou instrutivo ou filantropo, só aguardam ou agilizam o seu passamento, as suas doenças, as suas existentes ou eminentes depressões.
Embora esteja um pouco perdido neste “feliz recomeço”, não tardará muito que esteja a encarrilar numa nova rotina que espero seja envolvente e satisfatória. A ver vamos.
03/01/2024
297 - NOVO ANO, VELHOS PROBLEMAS (MAS COM UPDATE)
31/12, domingo, 14h31
Terminou um ano para esquecer – como aliás têm sido (atrevo-me a arriscar) os últimos dez ou quinze anos. O que há de novo? Apenas a esperança de melhores dias (para já, ponto sem parágrafo).
Vamos esperar que o ano de 2024 seja melhor do que os anteriores, que deixaram mesmo muito a desejar, não apenas para mim, para todo o mundo, porém não vejo jeitos. 2023 ofereceu-nos duas guerras sanguinárias, aquecimento global preocupante e outras maravilhosas prendas do mesmo género que terão garantidamente reflexos graves no futuro de todo o planeta e da Humanidade (afinal fiz um parágrafo, mas que, embora se refira
grosso modo ao mesmo assunto, assume um contexto diferente).
Le roi est mort, vive le roi!
12/12/2023
296 – TRABALHEI PARA TODOS; AGORA ATUREM-ME23h57, 29/11, 4ª
Chuva fraca mas persistente. Temperatura amena
Hoje é o meu último dia como cidadão trabalhador por conta de outrém. Amanhã (daqui a minutos) será o meu último dia como dependente de uma entidade empregadora (porque estou de folga). No 1º de dezembro acordarei como dependente do Estado, como pensionista.
Terminou, estou por minha conta. Depende agora de mim próprio permanecer minimamente activo.
Que farei? Quais as estratégias a tomar para evitar cair num declínio acelerado?
Nunca fui pessoa de fazer planos a longo prazo; sempre geri a minha vida de acordo com o que ia surgindo, de acordo com os problemas com que deparava, sempre fui uma espécie de gestor de situações à medida em que elas surgiam – o que nem sempre é a melhor opção, pois tende a – pela urgência – fazer com que se tomem decisões eventualmente precipitadas.
Mesmo assim fui vivendo, fui-me desenrascando. Mal ou bem estou aqui, agora, vivo e remediado. A vida não foi assim tão má, permitiu-me ir escapando de males maiores (embora tenha havido sempre um preço a pagar).
Agora, mais experiente, mais ponderado, mais sábio(!), tentarei levar uma vida mais sóbria, mais controlada, mais calma. Conseguirei? Estou para ver, enquanto for vivo e a minha mente estiver sã.
Ao escrever estas linhas hoje nota-se (até eu noto) apreensão, preocupação com a regência de uma nova etapa de vida, o que é normal para quem nunca teve uma vida desafogada nem isenta de preocupações de carácter social e familiar.
Como vulgarmente se diz: não há de ser nada – não sobreviverei à reforma mas tentarei gozá-la ao máximo, sem grandes preocupações. À guisa de consolação, tanto reforma como jubilação têm origem latina e significam, respectivamente, "restabelecer, mudar, alterar", e "sensação intensa de contentamento".
Portanto, entro num estado de mudança e contentamento. Espero que os latinos tivessem razão.
Post Scriptum (não vá o diabo tecê-las e confundirem a abreviatura P. S. como sendo Partido Socialista): Devido porventura ao "choque" sofrido pela mudança radical de modo de vida, só agora me lembrei de publicar este
post, com um atraso de 13 dias.
21/11/2023
295 – HÁ EM NÓS UMA CRIANÇA LATENTE (NÃO CONFUNDIR COM LACTENTE) QUE IGNORAMOS4ª, 15/11, 03h02
Gosto de recordar a infância, a adolescência com o carinho e a compreensão com que merecem ser entendidas. Deleito-me com a ignorância infantil e a ingenuidade e inconsciência próprias da puberdade e que agora me fazem sentir paternalista, não no sentido de soberbo, superior, mas no de tolerante e condescendente. E tudo isto porque passei por lá e assim posso-me rir das parvoíces, aflições, raciocínios e aparentes lógicas que pautavam as decisões e comportamentos, tal como hoje o faço com as da minha neta. Fazem parte da aprendizagem e devem ser encaradas como tal.
Infelizmente muitos adultos reagem como se não o tivessem feito, como se já tivessem nascido adultos ou tivessem atravessado essa fase sem os comportamentos “parvos” que agora classificam como má educação. É evidente que, como diziam os meus ancestrais, “o que e demais é moléstia” ou “nem oito nem oitenta”, há que controlar comportamentos com a devida noção dos limites entre educação e falta dela, o que por sua vez é discutível, pois não somos todos iguais e fomos criados de maneiras diferentes. Aí terá de imperar o bom-senso (o que também é passível de juízos variados).
Ainda mantenho vivas recordações difusas da minha infância que fazem jus ao raciocínio que exponho acima. Um deles prende-se com uma aquisição que o meu pai fez para mim de um sobretudo:
No início dos anos 60 do século XX, no milénio passado, numa das frequentes visitas ao nosso local de nascimento (Oliveira de Azeméis), o meu pai decide mandar-me fazer, num alfaiate conhecido, um sobretudo, certamente devido à aproximação de mais um inverno e atendendo a que eu estava em fase de crescimento mais acelerado, pois devia ter não mais de 4 anos. Recordo-me perfeitamente desse agasalho, da sua textura, do seu corte e da sua côr. Curiosamente, não me recordo das provas que, evidentemente, foram necessárias para a sua feitura (estamos a falar duma época em que ainda não existia pronto-a-vestir). O que eu recordo é o momento em que, já pronto, fui compelido a usá-lo, pois ficou-me gravado para sempre: sem nada que o justificasse, fiz uma tremenda birra porque não queria vesti-lo e sair com ele para a rua.
Conhecendo o meu pai como ainda o não conhecia, fui e fui mesmo. Actualmente, a sua atitude seria alvo dos comentários negativos de psicólogos, defensores dos direitos das crianças, educadores, etc., etc. Quanto a mim, não acho totalmente errada a sua atitude.
Talvez por me ter vindo a “contaminar” através dos tempos pelas novas maneiras de ver, tenha modificado um pouco a minha perspectiva sobre o ocorrido, mas no cômputo geral mantenho a minha opinião, os tais “nem oito nem oitenta”. Não podemos pura e simplesmente ceder sempre aos desejos e imperativos desses jovens seres que trouxemos ao mundo; não podemos derreter-nos sem mais nem menos com as lágrimas derramadas – verdadeiras ou muitas vezes fingidas - ou rendermo-nos aos “nãos” habitualmente pronunciados só porque sim. Repare-se que digo “nem sempre”, temos de ter um mínimo de senso-comum para nos permitirmos ceder de vez em quando, não podemos agir como tiranos inflexíveis. O equilíbrio transporta consigo a harmonia e o respeito mútuo.
Ser criança ou jovem, o seu comportamento com os adultos e as maneiras de reagir de parte a parte têm gastado muito papel e muita tinta desde pelo menos o século XIX, altura em que os primeiros deixaram de ser encarados como inúteis, inexistentes ou meros criadores de despesa e aborrecimentos e começaram a ser vistos como aprendizes de adulto e merecedores de cuidados e protecção, pois desejados ou não, não são responsáveis pela sua vinda ao mundo nem são descartáveis.
14/11/2023
294 – DA EVOLUÇÃO DA MEDICINA OU DE COMO ESTAMOS VIVOS E SAUDÁVEIS (?) À CUSTA DAS TORTURAS DO PASSADO06h13. 12/11, domingo
Enquanto dava uma ronda aqui pelas redondezas, apanhei-me a pensar na minha infância, marcada por múltiplas e frequentes maleitas, assim como no meu pai e tia (numa primeira fase, também a minha avó, até que a idade já não lhe permitisse fazê-lo) como curadores.
Embora ainda nem se sonhasse com um sistema nacional de saúde, nunca tive razão de queixa do modo como era efectuado o contacto paciente-médico ou paciente-enfermeiro: dirigíamo-nos a casa de um deles, conforme o caso e éramos atendidos. Talvez não imediatamente, talvez com um pequeno compasso de espera por se encontrarem lá outros necessitados de atenção médica mas, se a minha memória não me atraiçoa, o atendimento era geralmente rápido. Convém não esquecer que nessa época as visitas aos médicos ou enfermeiros eram ainda bastante limitadas, pois as pessoas fiavam-se muito ainda nos remédios caseiros e no “deixa andar até ser demasiado tarde”. Digamos também que as pessoas não eram tão piegas como agora, que vão ao médico ou às urgências por ninharias.
Em casos em que o doente não se podia deslocar ou não convinha que o fizesse, os profissionais de saúde deslocavam-se ao domicílio com todos os apetrechos necessários para mitigar os males ou, em casos mais graves, dar indicações para que os doentes se dirigissem a um hospital ou um laboratório para análises.
Ainda tenho na minha memória um rol de medicamentos comummente usados lá em casa, tais como Saridon para as dores de cabeça – que a minha avó consumia muito - , um xarope para a tosse que infelizmente não consigo lembrar, mas que a minha recordação gustativa ainda mantém (esse xarope era para adultos, mas eu, de vez em quando, escorripichava em segredo quantidades não detectáveis) , uma poção emética preparada ao momento na farmácia e perecível em muito curto espaço de tempo, que se chamava Poção de Rivière – dois líquidos que se juntavam em partes iguais em cerca de uma colher de sopa e que me acalmavam as terríveis crises de vómitos que eu experienciava com muita ansiedade e aflição física, pois o vómito surgia em jacto pela boca e pelo nariz, chegando mesmo a ferir a garganta. Não era raro, era até comum e mesmo espectável terminar as crises cuspindo sangue.
Como afirmei acima, nessa época, doença que se prezasse teria de passar por mim, embora com particular incidência as das vias respiratórias e as crises de fígado, podendo ainda citar os furúnculos e a má circulação nas orelhas. Sim, é verdade, tinha má circulação nesses pavilhões auditivos, o que me causava grande incómodo; as orelhas estavam sempre inchadas, com feridas purulentas e grande sensibilidade. Bastava tocar-lhes com alguma intensidade para que ficassem muito quentes e vermelhas, como se tivesse recebido um forte puxão. O medicamento usado era o Venoruton P4, uma pomada que aliviava e cicatrizava os tecidos, embora ainda não fosse totalmente eficaz.
Ora, continuando com a lista de medicamentos que retive na memória, embora os seus nomes sejam por vezes difíceis de recordar, não podia faltar o Linimento de Sloan e o Azul de Mitilene, que se usavam, respectivamente, para esfregar no peito (um antepassado do Vick Vaporub, que mais tarde também usei) e para pincelar as inflamações da garganta. Um e outro eram penosamente recebidos; o primeiro porque deixava a pele a arder, quanto mais não fosse pelo vigor com que era aplicado, como se fosse um exfoliador, massagem essa que só terminava quando a essência estivesse absorvida e até que a pele secasse totalmente por acção da mão aplicadora, e o segundo, não apenas pelo seu sabor amargo mas também pelos arrancos que provocava, pois a minha tia ou o meu pai eram muito meticulosos em pintar a garganta toda para prevenir o avanço da típica vermelhidão indicadora de inflamações. Calcula-se a aflição provocada quando o lápis (era mesmo um lápis), transformado numa espécie de cotonete por efeito de uma quantidade q.b. de algodão em rama amarrado na ponta e embebido no líquido, era aplicado na úvula e nas amígdalas, causando numerosas ameaças de vómito, até que todo o fundo da garganta estivesse totalmente coberto de um tom de azul forte.
Outro medicamento que não primava pela agradabilidade era os supositórios de glicerina, de marca também esquecida, que serviam para baixar a febre e eram utilizados sem parcimónia. Vinham embalados numa caixa de plástico verde com corrediça, que posteriormente tinham a função de guardar agulhas de costura, ou botões ou carrinhos de linhas. E já que estamos a falar do orifício excretor, não posso deixar de mencionar o que se usava para a obstipação: o Chá de Hamburgo – a infusão mais horrível que jamais bebi e que me chegava a levar horas a beber, tal era a minha justificada aversão, mas que os meus superiores etários não deixavam desperdiçar. A política da época era: “só sais da mesa quando acabares”.
Outros havia que tinham uma função profiláctica, como o Calcium D-Redoxon ou as pastilhas mastigáveis de Levedura, de que tanto eu como os meus irmãos gostávamos e que geralmente comíamos com a sopa, retirando dessa original mistura um certo prazer. O meu pai, em termos de suplementos alimentares, tinha sempre muito cuidado connosco. Talvez actualmente isso seja considerado um erro, mas na época era recomendado pela comunidade médica e ele fazia questão de que tomássemos, para prevenir eventuais deficiências vitamínicas ou outras. (comigo parece que não funcionava, pois estava sempre doente).
Uma outra recordação associada aos cuidados médicos desses pouco saudosos tempos (embora, com o distanciamento, me provoquem uma certa nostalgia) era a utilização maciça de uma panóplia bastante alargada de antibióticos, muitos deles ministrados por intermédio de injecções. E era aí, nessas ocasiões, que eu acreditava que as torturas do inferno existiam mesmo.
Nesse tempo, há sessenta anos, o equipamento para aplicar injecções não era descartável; a ampola e as agulhas de aplicação do medicamento eram guardadas numa caixa metálica que servia também para as desinfectar por imersão em álcool. As agulhas nem eram maleáveis nem finas, o que proporcionava momentos de dor memoráveis, principalmente para mim, que tinha e tenho ainda veias muito pouco salientes, quase invisíveis. Numa das ocasiões em que necessitei desse tormento, fui espetado sete vezes e ainda hoje me recordo.
Como consequência, até ao fim da minha vintena de anos tinha um medo quase irracional dessas agulhas, que me fazia estremecer de pavor. Felizmente, com o tempo e o racionalismo próprios da maturidade, esse medo desapareceu e hoje encaro uma injecção com perfeito à-vontade.
Finalmente a cereja no topo do bolo do meu adeus às idades mais jovens, ao início do estado adulto: uma pleurisia, tinha eu 17 anos; ao respirar, parecia que tinha um aquário no pulmão esquerdo. Tive “sorte” porque não tive de usar drenos no pulmão para retirar o líquido, foi tudo à custa de doses cerradas dos meus amigos antibióticos e das minhas adoradas agulhas. Apanhei quatro meses de cama e reclusão domiciliária, pois estava proibido de apanhar sol.
E, repentinamente, inesperadamente, deixei de adoecer; nem uma constipação apanhava durante anos a fio.
Hoje é o que se sabe (pelo menos eu sei), especializei-me em AIT’s e AVC’s e tenho ficado por aí, sempre na esperança de um dia morrer cheio de saúde.
Será uma abordagem romanticista, simplesmente uma recordação melancólica de todo este desfiar de memórias de enfermidades do passado? Talvez.
Ajuda-me a recordar maus períodos que também foram bons, experiências dolorosas mas que lembram tempos resilientes, onde a força de viver estava no auge da sua pujança, onde não se pensava na morte porque ela não existia.
Hoje é um pouco diferente: acreditamos na morte mas temos a esperança de viver mais alguns anos porque estamos viciados na vida e não pretendemos tão cedo fazer uma desintoxicação.
Carpe diem quam minimum credula postero [
Quintus Horatius Flaccus - vulgo Horácio (65 a.C. - 8 a.C.)]
(Aproveita o dia e acredita o mínimo possível no amanhã)
06/11/2023
293 – A ESPERANÇA DO PASSADO, O DESENCANTO DO PRESENTE E O VAI - NÃO VAI DO FUTURO02h05, domingo, 05/11
Dá para perguntar (a quem?) o que está a acontecer com o planeta e seus habitantes; uma sociedade supostamente em evolução, onde o Saber tem atingido horizontes até agora inimagináveis, onde o conhecimento tecnológico e biológico avança a passos de gigante, parece que a memória colectiva sofre de Alzheimer, a avaliar pela quantidade de asneiras contumazes, assim como o entendimento entre os povos estar cada vez mais cego e paraplégico.
Os esforços de união e cooperação têm descambado em tentativas de controlo imperialista encapotadas ou esforços de auto-determinação, muitas vezes sem nenhuma razão social ou histórica minimamente justificável. Quanto a estes últimos, alguns até são compreensíveis ou mesmo justos, devido à discriminação e exploração dos países governantes. No tocante aos imperialismos, não passam de esforços para reviver glórias e conquistas territoriais passadas, anacrónicas e incompatíveis com o pensamento humanista e universalista que, infelizmente, também está em decadência.
O século XX foi marcado por esforços de coesão e cooperação entre povos e raças, mas que, nas suas últimas décadas, foram perdendo cada vez mais a sua essência , construtora de uma sociedade mais justa e equilibrada, por força de nacionalismos, imperialismos e tentativas de hegemonia religiosa que, apesar de maioritariamente retrógadas e intolerantes, têm dado os seus frutos, reduzindo civilizações inteiras (grosso modo) a um novo feudalismo, onde os direitos humanos e o bem-estar social é coarctado ou destruído por fanatismos, extremismos, xenofobias, misoginias e outras inúmeras exclusões.
Após esse século em que os imperialismos abusivos de todos os quadrantes da sociedade, a discriminação de género e de raça, herdados das sociedades de antanho, foram perdendo lenta mas vitoriosamente terreno, fazendo acreditar que finalmente caminhávamos para um planeta uno e tolerante, surge, nas suas últimas décadas e no início de um novo milénio, uma inversão civilizacional gritante, onde todas as esperanças são arrancadas pela base e o retrocesso evolucional é por demais evidente.
Que sucedeu? Por que estamos a voltar à Idade Média ou nem isso, retornando a uma Terra de milhentas tribos, incontáveis pequenos reinos rivais, seitas e religiões em guerras consentidas e incentivadas, para maior glória de Deus e maior prosperidade clerical, ferozes repressões de autodeterminação e livre-pensamento, cidadãos (que nem cidadãos parecem ser) sem direitos, retrogadando a genocídios, exclusões raciais e sexuais, etc.
Estamos a caminhar para o abismo? Vem aí o Apocalipse? Será o fim da Humanidade, entendida tanto como um conjunto de seres biológicos sencientes e, simultaneamente, como conceito filosófico?
É a barbárie que nos espera? Outra Idade da Pedra? O retorno às sociedades primitivas no seu mais puro e duro conceito?
Nós, individualmente, vamo-nos conseguindo aguentar e vamos criando os nossos pequenos Édens, as nossas pequenas vilas amuralhadas, a custo defendidas e dentro das quais sobrevivemos, embora sitiados pelas ameaças globais. Mas, tal como no passado, estamos sujeitos a cercos e assaltos, aos quais é cada vez mais difícil resistir. Temos evoluído, malgrado as investidas. Talvez estejamos apenas no fim da curva descendente de um ciclo, talvez voltemos a subir uma – mais uma – linha ascendente de entendimento e prosperidade, estou confiante, embora ainda não se consiga calcular a que custo.
Após milénios de guerras, conquistas e extermínios, estamos ainda aqui e estamos vivos, sobrevivemos a muitos Caos e estou certo de que este será apenas mais um.
30/10/2023
292 – TENETE OGNI SPERANZA VOI QUE ENTRATE (NELLA RIFORMA)29/10, 03h32, domingo
Estou no meu local de trabalho, chateado como um perú. Há muitos factores que contribuem para esta disposição atribuída ao
Maleagris - o galiforme de que acabei de falar.
Aliás, embora use esta expressão (como ainda muita gente o faz), não sei porque o perú estará eventualmente chateado nem como se pode tirar a ilação de que o bicho apresenta esse estado de humor; já tentei informar-me da expressão mas todas as explicações foram inconclusivas. Não interessa, mantenho a afirmação: estou chateado como um perú.
Em primeiro lugar porque é noite, chove imenso de vez em quando e isso estressa-me muito pois conheço as fragilidades da casa onde habito, que já passa a centena e meia de anos, com poucas obras pelo meio. Uma delas é a forte probabilidade de as caleiras, pela sua exiguidade e idade vetusta, em conseguirem abarcar e encaminhar eficientemente qualquer fluxo repentino e abundante de precipitação pluviométrica, transbordando assim, trágicamente, para o interior da habitação.
Outro dos factores que contribuem para a minha comparação com a ave referida e o seu estado de espírito (embora tenha sido inconclusiva ao longo dos tempos a discussão, tanto pela ciência como pela teologia, sobre se estes animais têm alma) é a demora na resposta da Segurança Social ao meu pedido de reforma que, supostamente, devia ter o seu início em dezembro próximo.
Posso enumerar ainda uma terceira e múltipla fonte de tensão, intimamente relacionada com a última que referi: a consequente diminuição de rendimentos, aliada a um brusco corte na rotina normal de quem trabalha, de quem tem algo com que se preocupar na vida; tal inércia terá de ser combatida para obstar a um défice ocupacional que poderá ter graves consequências, tanto na mobilidade em geral como no desempenho psíquico a que me tenho habituado durante todos estes anos.
Esses bichos malfazejos do ócio e da improdutividade são muitas vezes responsáveis pela diminuição da qualidade de vida e consequente redução da durabilidade eficiente do corpo e da mente. Essa enorme (esperemos) licença sabática permanente é a pior coisa que se pode ter quando não se faz nada ou nada se tenta fazer. Estes bichos perigosos costumam minar os reformados incautos, iludidos pelas suas falinhas mansas e pelas suas facilidades imensas, levando-os a regredir e definhar imperceptívelmente; quando dão conta (se derem) o estrago está feito, o vírus está instalado e a derradeira parte das suas vidas está irremediavelmente desperdiçada.
17/10/2023
291 - AS FÉRIAS RUMINANTES, O ACERTAR DE AGULHAS E O (QUASE) REGRESSO AO "BOULOT"21h24, 3ª feira, 17/10
Sinto-me ovelha. Ou vaca. Estou há três semanas de férias e ainda não tive um tempo de qualidade só para mim. Agora que finalmente parei um pouco, sinto que ando a pastar sem realmente idealizar algo útil ou apelativo para fazer, sem encontrar um objectivo que permita preencher satisfatoriamente este buraco crono-espacial a que chamam tempo livre.
A única benesse que o lazer me trouxe foi ter-me proporcionado pôr em ordem os assuntos procrastinados pela inércia, pela preguiça própria de quem – como afirmo acima – não teve a capacidade de marcar objectivos.
De momento não vou escrever mais, apenas elaborei este pequeno texto para mostrar que não desisti, que estou vivo para continuar o meu projecto. Retomarei quando me for possível, quando finalmente vencer o marasmo que se apoderou de mim mas que, lentamente, estou a expulsar do meu percurso.
13/09/2023
290 – DA TRANSITORIEDADE DA VIDA E DOS TANATÓRIOS DA ALMA11/09, 2ªfeira, 05h25
Ora cá venho eu “marcar o ponto” – uma expressão que soará estranha às novas gerações e mesmo às gerações de 80 do século passado. A grande maioria desconhece que essa expressão significa marcar presença ou fazer qualquer actividade mais ou menos habitual, seja ir ao café ter com os amigos, fazer algum exercício físico ou simplesmente dar um passeio rotineiro, e tem origem no uso das máquinas anteriores aos aparelhos electrónicos de leitura das impressões digitais ou de leitura da íris.
Essas máquinas (não assim tão) antigas eram primitivamente cartões que, inseridos num obliterador e perfurados por ele, eram posteriormente “lidos” e davam a informação de um empregado, controlando a sua hora de entrada e de saída; eram geralmente utilizados em empresas com um grande ou, no mínimo, justificável número de funcionários para tal tecnologia; mais tarde evoluíram para um cartão impresso onde eram carimbadas essas informações (data, hora, minutos). É daí que surge as expressões “picar o ponto” ou “marcar o ponto”. Um dia tornar-se-ão uma entrada de enciclopédia ou de dicionário a dizer: antiga expressão utilizada para..... etc. Mais uns anos e figurará como nome de origem desconhecida ou incerta, à medida que a memória se vá diluindo no tempo.
Portanto, estou a marcar o ponto, a fazer o registo de mais uma prova – não já de emprego, mas de actividade lúdica e, concomitantemente, de vida e de boa, má, medíocre ou péssima literatura. Não está nas minhas intenções de futuro defunto fazer entradas psicografadas, que deixarei para Allan Kardec ou Chico Xavier. Mas, quem sabe? Não posso excluir a hipótese, por mais remota que seja.
Não sou verdadeiramente fã do espiritismo ou das teorias da reencarnação, mas observo-as com algum interesse. Aliás, acho a segunda mais lógica e credível do que a primeira, embora uma pressuponha a outra; no espiritismo encontro algumas incongruências que não vou expor aqui pois seria fastidioso enumerá-las e justificá-las convenientemente. Fiquemo-nos pela superficialidade.
Agora que terminei o primeiro ano de latim, encontro-me numa situação de impasse, de insatisfação existencial, porque o estudo programado e auto-imposto parou temporáriamente, pois não me sinto capaz de começar o segundo ano sem previamente consolidar o que aprendi e aprender o que deixei negligenciado ou inconcluso por diversos factores relacionados com o meu tempo disponível. Farei um ano sabático e reiniciarei o estudo no próximo ano, assim espero. Entretanto, retomarei um “vício” velho de décadas e há décadas abandonado: a leitura.
Tenho milhares de livros para ler, alguns dos quais – recebidos por herança – nem tocarei, por não fazerem parte dos meus interesses de leitura. Mesmo retirando esses, muitos sobrarão para ler com interesse e/ou curiosidade e nunca terei o tempo para os ler a todos em vida, por mais anos que dure. É evidente que não os lerei “em morte”, embora tenha toda a eternidade à minha frente, mas acho que, nessa altura, terei outras prioridades – se, eventualmente, existirem sequer prioridades.
É em momentos como este que surgem as grandes dúvidas existenciais: a morte será o fim? Ou o princípio? Existirei ou ficarei simples e totalmente inexistente? Haverá consciência após a morte ou o vazio? Lutei então toda a vida para quê? Para, pela reprodução, criar novos seres cujo futuro será igual ao meu, ou seja, uma aniquilação sem sentido? De que valerá então estar aqui? De que valerá então recriar-me nos meus descendentes para que eles se recriem e para que os seus descendentes também o façam
ad eternum? Para alcançarem o vazio? Para lutarem por uma causa oca? É isso a existência terrena? Não faz sentido!
Todas as felicidades e infelicidades, todos os sacrifícios e alegrias têm de ter um significado, um objectivo, sem o qual o universo será, não uma utopia, uma esperança, mas uma distopia – e essa sim, um castigo eterno em vida, já que a morte nem sequer constituirá uma bem-vinda “reciclagem” mas um tenebroso tanatório que vise extinguir os derradeiros vestígios da consciência e da memória.
05/09/2023
289 – A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA NA SOBREVIVÊNCIA INDIVIDUAL OU QUEM SOU E QUEM FUI03/09, domingo, 06h02
Avô e reformado! Soa estranho quando nos apercebermos desta banalíssima realidade! Só nos damos conta dela quando se entranha como uma mancha de sangue. Lógicamente, não no sentido negativo, mas não deixa de ser uma mancha de sangue, do nosso sangue e que é indelével e porque queremos e adoramos que o seja.
Para bom entendedor, estou-me a referir apenas ao primeiro adjectivo com que iniciei esta crónica; o segundo adjectivo poderá eventualmente ser também bom, mas é igualmente um ferrete que nos acompanhará para o resto, para a porção mais curta da vida, uma lembrança da transitoriedade da dita, da sua desvitalização como se de um dente cariado se tratasse.
C’est la vie, como dizem os franceses, assim como o dirão os autóctones de Benin, Burkina Faso, República do Congo, Costa do Marfim, Córsega, Gabão, Mali, Senegal, Togo, Mónaco e Nigéria, ou ainda, optativamente ou, melhor dizendo, países ou regiões cujo francês coexiste com outras línguas (co-oficial), tais como Bélgica, Burundi, Camarões, Canadá, República Centro-Africana, Comores, Djibouti, Guiné equatorial, Haïti, Louisiana (EUA), Madagáscar, Ilhas Maurícias, Ruanda, Ilhas Seichelles, Suíça, Chade, Vanuatu, ou ainda países que tendo estado no passado sob influência francesa, ainda o falam parcialmente, como Argélia, Marrocos, Mauritânia, Líbano, Tunísia, Cambodja, Laos, Vietname, República Dominica e Haïti. Enfim, cerca de 156 000 000 de pessoas. (Consegui escrever mais linhas sobre a expressão francesa do que sobre o assunto inicial).
Voltemos à “avôzeidade” e à relação que temos com estes nossos filhos em 2º grau.
Ser avô ou avó é reviver o passado, é dar o mimo e a paciência que, a mais das vezes, não conferimos totalmente aos nossos descendentes diretos, quando eles tinham a mesma idade. Não que não gostássemos deles mas porque gostávamos deles. Agora, os netos podem usufruir dessa reserva de amor paciente, pois a gestão do desenvolvimento dos novos seres está entregue aos pais e temos assim mais tempo para lha oferecer.
O nascimento de uma neta ou um neto proporciona-nos a alegria e o alívio de não sermos os últimos a, atavísticamente, fazer perdurar para a posteridade o nosso intelecto; de, a seu modo, não sermos esquecidos a curto prazo.
Lembro o filme de animação
Coco, de 2017, onde um menino consegue entrar no reino dos mortos (no México, o Dia dos Mortos é uma festividade muito importante) e assiste à “morte” de um morto. Foi-lhe então explicado que os defuntos também morrem quando desaparecem da memória dos vivos, quando deixar de haver alguém que ainda se lembre deles.
O instinto de propagação da espécie (igual à de todos os outros seres animados, incluindo os insectos e mesmo os seres microscópicos) tem deste modo uma nova nuance, fruto da natureza humana: a necessidade de sobreviver à morte através da memória dos vivos, seja pela escrita, por obras, por fotografias...
You name it!
O ser humano, já que não pode nem poderá ser eterno, procura processos de imortalização através da arte, da política, da moral, mas muito particularmente da família. Ser recordado é estar vivo no pensamento dos vindouros o mais tempo possível, e isso depende exclusivamente de nós.
23/08/2023
288 - NÓS E OS OUTROS OU AS DIFERENTES TESSITURAS DE UM TODO01h50, domingo, 20/08
Este verão tem sido intenso mas meteórico.
Sei que não é assim, sei que o tempo cronológico, as condições meteorológicas, as oportunidades de descanso e lazer a eles associadas e, portanto, com eles directamente relacionados, assim como a própria vida em si, não são lineares, não se manifestam de igual modo para todos.
A própria faixa etária transmuta essas percepções, esses acontecimentos ou sensações de forma totalmente diferente. Eu sei porque passei por lá, a minha intuição do tempo, do espaço e de como os interpreto agora ou interpretei na juventude, alteraram-se radicalmente.
Nem para melhor, nem para pior – para “diferente”. O Tempo é uma construção da mente individual – não é universal, portanto.
É, pois, sob a minha óptica particular que avalio a intensidade e meteoricidade do verão actual (dele e das restantes estações). Sou eu quem sente frio ou calor, energia ou modorra, excelência ou mediocridade das estações do ano; outros serão o oposto de mim, como uma imagem invertida no reflexo de um espelho. É normalíssimo, no entanto admiramo-nos por ver alguém com frio enquanto nos derretemos, alguém que amaldiçoa o vento que nos refresca ou, inversamente, recusamo-nos a acreditar que alguém tenha calor quando gelamos ou que suporte a desagradabilidade de um vento que odiamos.
No fundo, sabemos que cada um de nós tem razão: uns gostam de doce, outros de salgado, nós de picante, outros de neutro.
Antigamente dir-se-ia: Deus que é Deus não agrada a todos; hoje dizemos de uma forma mais laica: gostos não se discutem. Apenas temos a mania de que não os compreendemos mas, no fundo, não é assim; o nosso amor-próprio ressente-se, ferido, e resiste a "rebaixar-se" a quem pensa diferentemente. Devemos, contudo, fazer um esforço e aceitar a diversidade de sensações e opiniões que, na diferença, fazem o Todo que é a humanidade.
10/08/2023
287 – DA EXPLICAÇÃO DO INEXPLICÁVEL E DA FATUIDADE DOS MISTÉRIOS INSONDÁVEIS00h53, 5ª feira, 10/08
A vida prega-nos partidas que consideramos injustas. Imaginemos alguém das nossas relações, alguém próximo que conhecemos desde a infância e cujo intelecto está sendo progressiva mas inexoravelmente apagado pela degenerescência e morte desses pequeninos chips de armazenamento de informação denominados neurónios. É como se o conceito de
Tabula Rasa estivesse tristemente invertido.
Aqueles que acreditam em dogmas, em verdades “desconhecidas mas inquestionáveis”, chamam-lhe a vontade de Deus, a lei da vida, o karma ou qualquer outra coisa parecida que explica isto tudo sem explicar nada, apoiado apenas na Fé. É mais fácil afirmar que são coisas que desconhecemos mas transcendem-nos e não devem ser escalpelizadas ou discutidas porque são assim, verdades insofismáveis. Doutro modo somos pecadores, falhos de fé, negamos um deus ou entidade que até nos pode castigar pela nossa descrença e desrespeito, como se fossem deidades pagãs que controlam a seu bel-prazer a humanidade como peças num jogo de xadrez.
Como dizem os americanos:
Bull shit! Não existe nem é racionalmente concebível qualquer espécie de sobrenaturalidade. Admiti-lo seria negar o Universo, aceitar uma dimensão para além do natural (um multiverso sobrenatural, portanto), o que, nesta equação não faria qualquer sentido, pois se existe, tem de forçosamente ser natural. Não me refiro aqui à teoria dos multiversos ou universos paralelos que, a existirem, serão situações pertencentes ao mundo da realidade, da palpabilidade.
A escuridão é apenas falta de luz; se a escuridão existe é porque é um fenómeno natural, não caberá na cabeça de ninguém afirmar a sua sobrenaturalidade e sim a sua existência palpável, de um ponto de vista racional.
Admito que o intelecto humano ainda não consegue atingir tudo, mas chegará um dia em que o dogma deixará de o ser e a ignorância e crendice serão finalmente erradicadas.
Posso citar como exemplo algo que atemorizou incontáveis gerações, desde há talvez milhares de anos: o fogo fátuo, esse fenómeno sobrenatural de antanho que hoje é aceite como perfeitamente natural e racionalmente explicado e desmitificado.
E mais não digo!
30/07/2023
286 - O FUTURO É COMO O PRESENTE E O PASSADO, SÓ QUE MAIS TARDE2h25, 26/02, 4ª feira
Cada dia que passa vai-me aproximando paulatinamente daquela data impacientemente esperada (e receada também) do fim da carreira remunerativa. Recordo-me com vaguidade de algumas datas aleatórias, onde questionei o meu futuro, o que ele me reservava de acordo com a lei das probabilidades, os meus desejos secretos de ser isto ou aquilo, de almejar esta ou aquela idade num nebuloso porvir, de vestir-me diferentemente, como forma de vaidoso (embora tímido) destaque, de querer usar óculos ou uma bengala de castão de prata decorado com motivos de Arte Nova... Enfim, todas as fantasias e pequenas vaidades de animal jovem e inexperiente que quer fazer-se notar, de ser diferente, de fazer
a diferença.
À medida que a idade foi avançando, avançou também a consciência de quão vãs, parvas e estapafúrdias eram estas expectativas, estes caprichos pueris: agora uso óculos por necessidade, uso roupas normalíssimas e práticas, sem petulância ou vaidade; daqui a mais alguns anos usarei uma bengala – não por exibicionismo mas porque precisarei dela.
Os pretensiosos desejos de uma mente jovem, inconstante, inexperiente e pouco reflexiva foram-se, escoaram-se perante uma realidade mais crua, verídica e inesperada, mas que tem, ao longo da existência, sido progressivamente assimilada com a calma e ponderada resignação de um corpo que envelhece, a par com um intelecto mais sábio, sensato e realista.
Todos sonhamos quimeras, todos acreditamos que seremos macróbios de longa duração. No fundo, sabemos que tudo isso é falso, simplesmente recusamo-nos a aceitar uma realidade que o nega, porque somos jovens e eternos.
E porque as coisas más só sucedem aos outros...
14/07/2023
285 – ANIVERSÁRIOS E CÃES VIVOS: A MELHOR FÓRMULA14/07, sexta, 12h21
Fiz ontem 66 anos, mais uma barreira ultrapassada.
Não sei se devo ficar contente, melancólico, preocupado, feliz, receoso, triste ou esperançado. Nunca sei se atinjo e ultrapasso a próxima barreira, e essa incerteza faz-me passar por esta perene sucessão de sentimentos, que não são realmente antagónicos mas fazem parte de um grupo coeso, lógico, cujas fronteiras se esbatem como as cores de um espectro óptico.
Mais do que a degenescência física, para a qual me tenho vindo a habituar de ano para ano (como todos os seres humanos), temo outro espectro: o da degradação da cognoscência, a perda da capacidade de emitir e utilizar o pensamento lógico e cair no domínio da demência. Não se trata de pessimismo mas de prevenção, de não tentar tapar o sol com uma peneira.
Agora que já pintei o meu aniversário (e seguintes, se os houver) com as cores o mais escuro possível, cambiemos o curso dos pensamentos e encaremos o porvir, não como uma entrada nas trevas de um túnel, mas como a saída de um túnel em direcção à luz porque, afinal, a nossa vida, a vida da Humanidade, rege-se por metáforas positivas, alegorias primaveris e... peneiras para tapar o sol.
Se eu queria voltar à juventude, à inconsciência do animal jovem? Não! Prefiro o meu estado actual, o do desfiar do novelo do qual nunca encontraremos a ponta, por mais que vivamos e aprendamos e de, como dizia José Gomes Ferreira, estarmos permanentemente “espantados de existir”.
Enquanto há vida, há esperança – é uma máxima muito utilizada, mesmo por quem seja ateu ou agnóstico, embora extraída da Bíblia, do Eclesiastes 9.4:
Quem está entre os vivos tem esperança; até um cachorro vivo é melhor do que um leão morto!Pois é, prefiro ser um cão vivo.
02/07/2023
284 - BATEM LEVE, LEVEMENTE, COMO QUEM CHAMA POR MIM; FUI VER, ERA UM FUTURO JÁ PASSADO29/06, 5ªfeira, 05h40
Já se passou muito tempo desde a última crónica, mas continuo cansado. Acho que faz parte do processo de envelhecimento, embora, convenhamos, o meu último AVC tenha tido um papel de muito especial relevância. O que vale é o oblívio piedoso que a memória nos vai dando à medida que vamos caminhando para o futuro, e faz-nos ter vagas reminiscências de quando éramos mais novos e saudáveis. É isso e a capacidade de encaixe que todos, uns mais do que outros, temos em nos adaptarmos a novas situações, novas idades, novas limitações, com resignação e cara (nem sempre) alegre.
Por falar em futuro, que futuro temos, que é que ele nos reserva? Nós, os mais velhos, temos sempre a ilusão de que viveremos pelo menos ainda mais vinte anos e que quando lá chegarmos nos esperam ainda outros vinte e vamos derrotar Matusalém. Começamos a acreditar que somos como os gatos, que têm nove vidas. E depois, de um momento para o outro... Puff! Já fomos, sempre insatisfeitos, sempre revoltados com aquilo que deixámos por fazer e que, se tivéssemos sabido, teríamos acabado. No meu tempo, diríamos ironicamente: “Grupo”!
Não chegámos ao futuro, àquele futuro idealizado que se encontra sempre a anos-luz de distância, mas deixámos a nossa descendência, para que ela também tente chegar lá, ao porvir que se encontra na outra ponta do arco-íris e essa transmiti-la-á à sua própria descendência para dar continuidade ao mito. É isso o futuro, é passar o testemunho aos vindouros, carregado das nossas memórias, das dos nossos pais e avós, dos nossos filhos e netos também.
O futuro são eles, afinal, como nós também o fomos. E, enquanto acreditarmos, ele estará lá sempre, na linha do horizonte.
15/06/2023
283 - DE COMO, DIZENDO QUALQUER COISA, NÃO SE DIZ COISA COM COISA12/06/23, 01h17, 2ª feira
Cansado, extremamente cansado. É agora recorrente a falta de sono durante os períodos em que o devia fazer. Pelo contrário, o período supostamente de vigília fica gravemente comprometido.
E não só! A memória recente anda de rastos, a capacidade de obter um raciocínio límpido anda de rastos, só falta eu andar fisicamente de rastos, mas pouco falta. Os ciclos circadianos atraiçoam-me com toda a razão. Há três semanas que não estudo, que mal pego em gramáticas e nos textos. Faz mais tempo que nada assimilo, que pouco consigo reter.
Estavas linda Inês, posta em sossego,
Dos teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.Porque reproduzi este octástico? O que me impeliu a citar Camões? Porque é Inês de Castro para aqui chamada? A que se deve este despropósito? Boa pergunta.
Bem, não nos vem à memória de vez em quando uma canção, uma letra qualquer, que trauteamos sem cessar, por vezes até à irritação de não conseguirmos “descolar” dela? Como sucede com canções, pode suceder com outra coisa qualquer, neste caso um poema.
Gracejando um pouco (pois não sei que volta a dar a este texto), cheguei à conclusão de que, no século XIV, as senhoras já faziam tatuagens, basta atentar à última linha do poema.
E pronto, foi mais uma curta crónica semi-autobiográfica, a pender, como de costume, para o narcisismo e a auto-piedade, com (não podia faltar) um imperceptível toque de negatividade existencialista.
Tirem-me deste filme!
29/05/2023
282 – DE COMO TRANSFORMAR UM MERO 'ABC' NUM ABECEDÁRIO COMPLETO02h05, domingo, 28/05
Estive tentado a falar novamente de mim próprio no preciso momento em que peguei na caneta para escrever, mas hesitei e resolvi prosseguir com qualquer coisa que não se assemelhasse a mais um manifesto narcisista. Não me posso permitir fixar-me no meu umbigo (que, por sinal, é uma espécie de buraco sem nenhum interesse) quando há tanto para expor num espaço de escrita como este, seja horrível ou maravilhoso, sensaborão ou engraçado ou simplesmente interessante.
O único problema passa por transportar todos esses eventos – reais ou fictícios - para o exterior, fazê-los sair do seu (meu) casulo mental e manifestarem-se com a força que necessitam de ter para legitimarem o tempo e o espaço despendidos para o fazer, para o materializar.
Uma crónica não pode ser simplesmente algo aleatório e lacónico que nos venha à cabeça. Não chega dizermos:” estava a chover e eu abriguei-me”. Isso não é nada, apenas perda de tempo. Poderei, em vez disso, escrever: “Saí de casa e fui à Baixa; não contava que o tempo me pregasse uma partida, pois quando saí o sol brilhava no céu, acompanhado por algumas poucas e inocentes nuvens. Então, sem mais nem menos e num muito curto espaço de tempo, começou a chover. Não me havia apercebido de que esses inocentes flocos de humidade se unissem num conluio, quase em segredo, para surpreender os incautos que, como eu, usavam despreocupadamente a sua roupa primaveril, indefesos perante uma descarga hídrica tão inesperada e desconcertantemente forte.
Admitindo subconscientemente a minha falta de precaução, corri a abrigar-me no primeiro estabelecimento que encontrei. Lá dentro, teria de disfarçar as minhas verdadeiras o óbvias intenções, que eram apenas abrigar-me, pois não é muito ético (eu, pelo menos, não acho) entrar numa loja e dizer que só me estava a abrigar da chuva. Sei que é uma hipocrisia, o dono ou empregado sabe do embuste, mas tentamos ser mutuamente diplomáticos, que é uma hipocrisia mais formal. Assim, dou um giro em volta, assumindo o papel de possível comprador, mesmo que tenha entrado numa frutaria e fique a admirar couves, laranjas e batatas, as quais não tenho absolutamente nenhuma necessidade ou ideia de adquirir.
Mas desta vez foi algo diverso: a lojinha onde me abriguei surpreendeu-me agradavelmente. Era um pequeno espaço, cheio de caixinhas de música, miniaturas de veículos antigos em lata, brinquedos do mesmo material ou de madeira, relógios de parede, de cuco, de caixa, assim como uma miríade de outros pequenos e surpreendentes objectos que me recriavam uma longínqua e quase esquecida romântica, saudosa e melancólica infância. Por momentos senti-me como Alice do outro lado do espelho.
Ao olhar inquiridor do funcionário respondi com o sacramental ‘entrei só para dar uma vista de olhos’ e, efectivamente, comecei a percorrer as prateleiras, apesar de o fazer agora com um pouco mais do que a curiosidade inicial.
Entretanto parara de chover e, embora a minha curiosidade não estivesse totalmente satisfeita, e atrasado como estava com os meus compromissos, dei por terminada a minha inicialmente forçada visita, não sem antes ter pegado uma dessas pequeninas caixinhas de música cuja melodia me fazia recordar os sons da minha infância, e levei-a, mais por prazer do que por desculpa.
Com o pequeno embrulho no bolso, retomei o meu percurso, ciente de que, ocasionalmente, em momentos de nostalgia, daria corda ao cilindro e envolver-me-ia na rememoração de algumas das mais ternas recordações da infância”.
Ora bem, assim já faz mais sentido escrever; transformo sete secas palavras em algo muito mais interessante, mais rico em conteúdo e que diz, sumariamente, o mesmo. A única coisa que mudou foi a descrição, o modo como se apresenta o evento, seja ele real, ficcional ou ficcionado. Deste modo e consoante a capacidade literária do autor, algo tão simples como o que foi enunciado inicialmente pode-se transformar numa experiência estética agradável cuja recepção poderá, evidentemente, variar consoante o leitor e os seus parâmetros de leitura.
21/05/2023
281 - O QUE HÁ DE COMUM ENTRE O HOMEM E A CABRA? OS LIVROS. ...SÓ QUE A CABRA COME-OS.01h19, 21/05, domingo
Vamos falar de livros. Como já referi, sou o fiel depositário da biblioteca do meu pai (por impossibilidade de os outros o fazerem) e da livraria da minha tia – para não usar o termo anterior de novo. Purismos de linguagem...
A todos eles adi os meus, cujo volume em breve ultrapassará o das duas colecções juntas, se é que já não o fez, pois no momento em que escrevo já atingi a bonita soma de 4930 títulos. Não é uma biblioteca de primeiras edições ou de livros raros - exceptuando alguns escassos casos - , é uma livraria feita maioritariamente de livros usados; o que nas obras me interessa são elas em si mesmas e os autores que as escreveram, o estado é secundário. Evidentemente , não adquiro obras todas esfareladas, com as folhas mutiladas ou a cair; mas o meu interesse vai para aquilo de que os livros são feitos, além do papel - o conteúdo.
Um bom livro não tem de ter capas bonitas e brilhantes, não pode ser um objecto de culto ou de redoma, não necessita de ser caro ou novo. Basta ser útil, basta que aprendamos nele algo que desconheçamos ou nos faça falta. Por isso não compro um livro qualquer, compro algo de que possa fruir conhecimento ou boa literatura. No entanto, ao comprar um livro, sinto medo e pena: medo porque, provavelmente, no meio de tantos, não conseguirei ter tempo para o ler; atingirei assim o meu outro sentimento, o da pena de não o ter lido.
Ler uma grande biblioteca, além de gratificante, traz consigo o vazio da frustração. É quase impossível conseguirmos ler todas as obras que possuímos, sejam elas herdadas ou adquiridas por nós.
Já me ouviram referir (metaforicamente) o desgosto que tenho por, devido às dificuldades, prioridades e outras conjunturas da vida, ter cumprido uma trintena de anos sabática, onde o investimento cultural foi, embora sempre existente, mínimo. Pois bem, nem mesmo que esse acumulado de anos tivesse sido utilizado para promover o meu autoconhecimento e o conhecimento do Mundo, ter-me-ia sido possível acompanhar as obras que possuo em paralelo, ou seja, tivesse podido lê-las todas.
Quando, um dia, exalar o último bafo e, com ele, a vida, espero poder dizer como José Luis Borges:
Sempre imaginei que o Paraíso seria uma espécie de biblioteca.
03/05/2023
280 - OS MÚLTIPLOS INFERNOS E PARAÍSOS DOS FALSOS UNIVERSAIS00h54, 4ª feira, 03/05
Deus existe? (aqui corro o risco de ser condenado por ateus e alguns agnósticos – e por crentes de uma qualquer religião também). Ou fui eu, o
Homem (aqui corro o risco de ser condenado pelos actuais politicamente correctos defensores da igualdade de género, pelo uso machista de um falso universal), quem o inventou? (aqui corro o risco de ser acusado de ateísmo por qualquer crente de qualquer religião).
Para todos aqueles a quem possa “ofender”, refiro que sou um livre-pensador, liberto de qualquer fanatismo, crença ou seja o que for que coarcte o modo como reflito e me exprimo. Ao utilizar a minha capacidade dedutiva, não a restrinjo a quaisquer formatações preconcebidas.
Aliás, num post de há alguns anos referi que me deixo levar pela corrente, ou seja, digo o que penso no momento, possa ser certo ou errado. Mais tarde poderei defender exactamente o oposto, não porque seja volúvel mas porque é o fluir das minhas reflexões naquele instante que me permite elaborar uma tese ou a sua antítese, ou ambas. Posso ser hoje um detrator e amanhã o advogado do diabo.
É evidente que existe uma base racional e, por isso, tento não escrever disparates mas algo minimamente lógico, segundo a minha lógica, claro. Os leitores são livres de a aceitar ou não. No entanto, não tenhais medo de que isso possa abalar as vossas crenças; se tal vier a suceder, significa que vos fiz pensar para além dos limites auto-impostos, e isso é positivo. Chama-se ter uma mente aberta.
Mas voltando ao tema: Deus, no sentido que as religiões lhe dão, existe? E filosoficamente, existe? Ou será um processo que o “falso universal” engendrou para exculpar tudo aquilo que o prejudicava e tecer loas aos bons eventos da sua existência? As crianças também criam amigos imaginários a quem dão carinho ou castigam, consoante as circunstâncias e os humores. Isso significa que elas têm um deus próprio? Não é isso o rudimento de um culto, uma porta aberta para mais tarde adorar algo?
Já fui crente e agora já não sou; não renego nem aceito deus, apenas cogito para tentar perceber o Universo, independentemente de qualquer explicação transcendental.
Sou (fui) católico. Sei que estou, no momento de ser lido, a ser excomungado por alguns que têm a certeza de que vou direitinho para o inferno por ter desdenhado Aquele em quem acreditam. E se eu fosse muçulmano ou hindu? Iria para o inferno na mesma pois por mais boas acções que tivesse feito neste mundo, continuaria a ser um ateu, um infiel, um seguidor de falsas religiões.
E o que pensarão os hindus e muçulmanos de mim? Certamente o mesmo que os católicos.
Sou um apóstata, um renegado, alguém a quem será negado o Paraíso, seja ele qual for.
E se eu quisesse voltar a acreditar num deus “convencional”, qual iria adoptar? Pelo que expuz acima, estarei sempre condenado às profundezas do Inferno de um qualquer culto - de vários, até. E se adoptar um, terei escolhido o verdadeiro? Todos os cultos se arrogam (é o termo) da autenticidade e exclusividade do seu.
Na dúvida, prefiro manter o meu agnosticismo, que aceita todas as possibilidades até prova em contrário, na certeza de que arderei em múltiplos infernos, tantos quantos aqueles que pertencem às religiões que rejeitei e a outras que nem sequer conheço.
E se no dia do meu passamento for ter a um Hades de que nunca sonhei sequer que existisse e quiser reclamar, haverá certamente um demónio à porta para esclarecimentos; ele limitar-se-á a erguer o dedo e apontar para uma tabuleta emprestada pelo Ministério da Justiça que diz:
Nenhum cidadão (leia-se pecador) pode alegar desconhecimento da Lei.24/04/2023
279 – QUANDO A ANAMNÉSIA FAZ ‘BACKUP’, AS PAUSAS PAUSAM05h57, domingo, 23/04
Quase todas as vezes que escrevo, faço antes uma pausa; não para ganhar inspiração, porque essa vem quando quer, não é nenhum comboio ou autocarro com uma tabela de horários ou um local de paragem em particular. Ela surge do nada, nos momentos mais inconcebíveis, mais paradoxais; podemos estar numa sanita a cumprir a nossa obrigação ecológica de criar adubo natural, num chuveiro, a purificar as nossas superfícies externas ou numa cozinha a preparar a nossa dose regular de toxinas e nutrientes. Ou, muito simplesmente, podemos nada fazer e levar com ela na cabeça como se o destino ou lá o que é no-la atirasse, como uma telha velha que se desprende de um beiral arruinado no exacto momento em que passamos debaixo, o que, dependendo da consecução ou da metáfora do acto, pode redundar no nosso momento epifânico ou no nosso episódio hospitalar ou tanatológico. Ou pode nunca acontecer.
É o que sucede com aqueles que adorariam pintar quadros, nem que fossem sofríveis, mas só têm jeito para caiar paredes e, e....
Nós não escolhemos o que queríamos ser, escolhemos o que nos é permitido ser sem cair no ridículo. A vida não é feita de quereres mas de poderes, o que não invalida que tentemos; aí, tentando, poderemos adquirir a certeza se perseguimos algo exequível ou nos temos estado a iludir com uma quimera. Se conseguirmos, então era um poder disfarçado de querer.
Não nos iludamos com os impossíveis, pois eles são possíveis em potência, mas talvez numa escala que não nos satisfaz, e por isso, por despeito, perdemos a fé, não nos lembrando que eles foram, afinal, conseguidos: um Pinscher e um São Bernardo são diferentes escalas de uma mesma espécie.
Mas, no início, estava a falar de pausas. Quando iniciamos uma conversa ou uma exposição escrita, tendemos a divagar sobre outros temas colaterais ou que até nada tenham a ver com aquilo que estávamos a focar. É a coisa mais natural deste mundo, o nosso pensamento ultrapassa-nos constantemente e então tentamos agarrá-lo mal ele passa. Deste modo, esforçamo-nos para não nos esquecermos de dizer algo que nos próximos segundos desaparecerá, “varrer-se-nos-á” daquela memória instantânea mas muito residual que possuímos fugazmente enquanto decorrem os actos de escrita ou de fala. Este hiato comunicativo, mas útil (uma vez que pode permite fixar ideias relevantes), é passível de surgir – e surge - durante qualquer outra actividade que estejamos a executar.
Não considero tal situação como um défice de atenção ou ser “cabeça no ar”; faz parte de um processo mental bastante complexo que poderá causar mais benefícios do que prejuízos, pois permite-nos executar várias linhas de pensamento em simultâneo. A única dificuldade neste processo é, como acima referi, a fugacidade dessa memória do momento, aliada a um fraco aprofundamento do tema principal tratado, o que transmite, no caso de uma interacção oral, a ideia de que não estamos a prestar atenção ao interlocutor, podendo criar assim uma situação embaraçosa mas, a seu modo muito peculiar, verdadeira, pois na realidade a nossa atenção está dividida, fraccionada. Tentamos, evidentemente, fazer um esforço para prestar atenção, mas a mente estará sempre a “olhar para o lado”. Não é falta de consideração, é apenas uma característica da nossa estrutura mental de que não temos verdadeiramente culpa.
Mas falava eu de pausas... Pois...
14/04/2023
278 – A QUE PONTO CRIAMOS, A QUE PONTO PLAGIAMOS? SOMOS, CONTUDO, FRAUDES CRIATIVAS.10h35, sexta-feira, 14/04
Toda a escrita é palimpséstica, construída sobre os testemunhos, textos e poesias, teses e descobertas de outros que o fizeram antes de nós, por vezes com milhares de anos de intervalo.
Somos Camões copiando Vergílio, num eterno círculo vicioso de não apenas prosas e poemas mas paráfrases de todo o espólio cógnito grafado desde o surgimento do
Homo Scriptor.Somos, nós próprios, de um modo muito peculiar, palimpsestos dos nossos ancestrais pois copiamos através do ADN as personalidades, características físicas, caracteres, virtudes, defeitos e manias desses Vergilios de antanho.
Por isso, tudo o que concebemos, toda a criação literária “original” que escrevemos, não passa de um produto copiado, fruto das nossas leituras, do nosso estudo, daquilo que vemos e ouvimos. A nossa “originalidade” é apenas uma cópia da cópia, da cópia, da cópia de uma ideia que talvez ela própria não se possa considerar original. Mas, como “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”, esse cisco, esse ténue registo, esse rasgo de singularidade, é muito nosso e único pois provém da nossa capacidade de transformar algo já existente em qualquer coisa, não necessariamente nova mas renovada sómente pela aposição de um minúsculo ponto. Isso sim, é singularidade, uma inovação residual que pode e deve mudar o mundo, nem que seja daqui a centenas ou milhares de anos.
Essa pequena, ínfima partícula que adicionamos de
motu próprio ao pré-existente palimpsesto constitui o electrão acrescentado ao núcleo do átomo primordial e que gera um novo elemento. Isso é inovar, isso é originalidade, isso é progresso. A partir daí o nosso contributo, esse grãozinho de areia inventado só por nós passa, ele também, a ser palimpséstico.
10/04/2023
277 - A MATERNIDADE/PATERNIDADE E A "AVÓZEIDADE" : O PASSADO E O PRESENTE (E O FUTURO)06H01, 09/04, DOMINGO
Ontem passei o dia com a minha única neta; é gratificante lembrar os tempos em que nós, os avós, éramos pai e mãe e tínhamos o prazer de criar e conviver com as nossas filhas, de estar, de viver no que é agora o seu lugar, a sua vez. Ela reflecte a educação que demos à mãe e à tia mas espelha também as enormes mudanças que o cuidado e ensino de uma criança tiveram nestas últimas quatro décadas.
A maior parte das alterações prende-se com, não apenas os métodos de aprendizagem mas também com os cuidados de saúde e a promoção de uma vida mais equilibrada e natural, uma alimentação mais correcta, uma educação mais “evoluída”, menos repressiva.
Demos às nossas filhas todos os cuidados que podíamos e sabíamos, toda a educação que achávamos mais progressiva em relação aos métodos com que fomos educados e que considerávamos obsoletos e castrantes; agora somos nós os obsoletos e castradores.
Não digo isto como uma crítica à nossa filha-mãe, não! Considero que faz muito bem em inovar, desde que seja dentro dos princípios de boa alimentação e boa educação (um conceito flutuante, todavia), assim como dos cuidados de saúde a que não tivemos acesso, fosse por insuficiência económica, por ignorância nossa ou dos próprios profissionais de saúde e do sistema em si. Todo o ser humano (???) quer o melhor para os seus filhos e deve lutar por isso.
Como avós, temos uma paciência e uma tolerância que não tivemos com as nossas filhas. Porém, se eu falar em nome individual, como avô, essas características esvaem-se um pouco, talvez até porque as minhas limitações de saúde e a minha própria vivência não o permitem. Ademais, as mulheres, as mães e mesmo aquelas que nunca o foram, têm uma visão diferente perante a relação com as crianças: o instinto maternal está-lhes sempre presente e a interacção é muito maior, muito mais carinhosa e cuidadosa.
Salvaguarde-se, para os/as puristas e feministas, assim como para aqueles que são “machos” e têm a pretensão de que ser homem é só gerar e o resto - os carinhos, os cuidados, etc –
é para elas, é trabalho das mulheres, que quando falo em instinto maternal, refiro-me a um sentimento básico de todo o ser humano e de todo o animal - porque animais somos, por mais que o neguemos. Os homens também o têm, é certo, mas manifesta-se diferentemente, pois embora amem inequivocamente os seus descendentes, as suas exteriorizações de cuidado e afecto são mais “distantes”.
Infelizmente não me posso alongar mais pois estou a tocar num assunto cada vez mais explosivo, mais passível de más interpretações sobre o papel de género. Agora tenho de, muito antidemocraticamente, aferrolhar dentro de mim próprio as minhas opiniões pois vivemos num mundo do (por vezes falso) politicamente correcto e corro o risco de ser crucificado por não pensar
como devia. Pois é, as verdades de hoje podem ser o anátema de amanhã – e isto aplica-se a todas as épocas, no passado e no futuro.
Há um velho ditado (portanto, não presta) que diz:
não julgues para não seres julgado.
04/04/2023
276 - O SONHO COMANDA A VIDA... E QUEM COMANDA O SONHO?01h23, 2ª feira, 03/04
Dormir é pensar? Ou, reformulando, pensamos enquanto dormimos? E os sonhos, o que são? Pensamentos? Ou um filme que o nosso inconsciente nos mostra e que é tão incontrolável e incontornável como o instinto animal ou o comportamento supostamente não senciente dos insectos? Neste último caso classifico-o assim (incontrolável e incontornável), partindo do princípio de que o “filme” não é o nosso consciente, a nossa razão, que o escolhe; é-nos (provavelmente) imposto pelo
Id .
Quando sonho, não tenho nenhum controlo sobre o tema, ele simplesmente surge; pode estar relacionado com um acontecimento recente ou antigo, ou ser algo supostamente aleatório, nada relacionado com a minha vivência, ou pelo menos assim poderá parecer, embora Sigmund Freud e outros investigadores dos recônditos da mente digam que são mensagens transformadas, metaforizadas pelo subconsciente e que têm algo a ver connosco directamente, seja um problema de saúde, uma preocupação, uma anomalia ou um aviso sobre a nossa sanidade ou insanidade mental, etc.
São, evidentemente, tudo teorias que, por mais que se afirme estarem provadas, não passarão de teorias. Einstein também formulou uma teoria da relatividade que foi dada como correcta durante décadas mas que está actualmente a ser contestada.
Quanto ao controlo ou falta dele por nossa parte em relação aos sonhos recordo que, e baseando-me em observações empíricas, nós por vezes resistimos a deixar-nos levar pelo “enredo” e dizemos (pensamos): “Basta, vou acordar”, evocando assim um acto consciente, pese embora o estado em que nos encontramos. E despertamos porque assim o queremos. O mesmo sucede com os pesadelos, mas aí será mais uma recção involuntária, pois encontramo-nos num estado de grande ansiedade e o nosso “automático” dispara o botão de pânico do instinto de sobrevivência, do inconsciente.
Porém, tudo isto não responde à pergunta anteriormente formulada: sonhar é pensamento ou estamos pura e simplesmente a assistir a um filme, embora por vezes o possamos desligar? Para o fazer é necessário um pensamento que desenvolva uma acção - e aí, ver o filme será também pensar -, o que o torna assim um acto consciente?
Volto a referir Sócrates (o filósofo, não o ex-primeiro ministro), usando uma frase que lhe é atribuída:
Ipse se nihil scire id inum sciat, traduzida geralmente como “eu só sei que nada sei”.
23/03/2023
275 - A INCERTA CERTEZA DE UMA EXISTÊNCIA INEXISTENTE OU TALVEZ TUDO NÃO PASSE DE UMA REALIDADE SONHADA OU DE UM SONHO (IR)REAL11h31, 4ªfeira, 22/03
Estranho escrever durante o dia! Há movimento, carros, pessoas, cães, aves que voam, estabelecimentos abertos, a funcionar, com pessoas a atenderem e a serem atendidas, um borborinho inconfundível de vida acordada!
Espero a minha filha que foi a uma consulta e aproveito para escrever, mas escrever com uma sensação que me está arredia há anos: é dia e escrevo, que saudades!
Não sei o que vou declarar aqui, apenas comecei porque queria sentir de novo essa impressão tão agradável de fazer parte de um mundo de que me estava a esquecer. Há nove anos que sinto que, ao escrever estas crónicas, apenas faço uma espécie de comunicações de além-túmulo, único locatário do meu amplo jazigo pétreo, por onde alguns visitantes que não pertencem a este meu submundo passam raramente.
Gosto de, de vez em quando, fazer estas considerações POE(ticas), numa clara – para alguns, velada – referência a um dos meus contistas e poetas preferidos: o Edgar Alan, claro! Adoro fazer referências charadísticas,
calembours e afins; gosto de brincar com as palavras, com as frases de duplo sentido, com referências obscuras, num processo de escrita que me dá um certo prazer e que, ao mesmo tempo, me desenferruja o espírito, a capacidade criadora, o humor.
Do que escrevo, nada levarei desta vida, como nada se leva de qualquer vida; nem mesmo a grata recordação do que se fez de bem, do que se criou, do que se viu, ou ouviu, ou sentiu. Talvez seja pelo melhor, há muito mais coisas de que não queremos recordar porque são tristes, infelizes, desagradáveis, negativas, oportunidades perdidas, palavras que não se deveriam ter dito, acções erróneas, remorsos, dor. Tantas palavras que expressam incomensuráveis, inenarráveis sofrimentos e arrependimentos. Quando nos “apagamos” deste mundo físico, limpamos também todo o bem e todo o mal, apenas ficam as consequências para os transitórios sobreviventes.
O
Estige existe, mas é para os vivos: esses continuam a viver os seus infernos, purgatórios ou céus particulares, enquanto por cá estiverem. Para os que fazem a passagem (e serão todos, mais cedo ou mais tarde) apenas existe o
Letes – o rio do esquecimento. Mergulhados nele, os nossos espíritos ou que nome se deseje chamar (há quem lhe chame nada, inexistência) são limpos de qualquer referência, qualquer vestígio de memória terrena e renascem (ou não) acompanhados de uma
tabula rasa, de um registo por preencher. E tudo começa de
novo.
Entretanto, a longo prazo, o
Letes extingue também a memória de nós nos vivos, e então passaremos realmente a ser um arquivo apagado, uma existência que não existiu ou de que não há memória; passaremos a ser o que há poucas crónicas atrás apodei de ossos sem dono ou mero pó que nos rodeia.
Mantenho a esperança de que um dia, num futuro inimaginavelmente longínquo (se a palavra futuro ainda tiver significado), possamos consultar a nossa evolução enquanto partículas separadas do Todo; seguir o nosso percurso de aprendizagem, a nossa longa marcha (não tem nada a ver com
Mao Zedong) para onde ou o que quer que sejamos ou onde nos encontremos (se isso ainda fizer algum sentido, se tudo fizer algum sentido, se sequer existir um sentido – ou um tudo).
12/03/2023
274 -A MIMESIS, A ANAMNESIS, O ORBE E A APRENDIZAGEM DA ARTE (MISTURE TUDO E LEVE AO FORNO)01h01, domingo, 12/03
Estou, literáriamente, muito enferrujado; desde que, por necessidade, abandonei o dia, desde que comecei a escrever (e trabalhar) exclusivamente à noite, noto um decréscimo acentuado na qualidade e na razão estética com que escrevo.
Será, não apenas a excessiva quietude da noite (todavia, propícia para o estudo), onde nada acontece, onde as horas se sucedem quase imperceptívelmente, mas também - como consequência directa – a ausência de tema físico vivenciado no presente, e não em diferido (ao vivo e a cores, digamos), o que, por vezes, faz toda a diferença.
Há pintores que produzem obras, reais ou ficcionais, utilizando apenas a memória ou a imaginação criativa: outros necessitam de um modelo, uma paisagem, um tema visível.
Sinto que estou no segundo grupo, embora também possa abordar temas apenas com o auxílio do meu pensamento. No entanto, toda a riqueza de um evento vivido, todo o bulício de um lugar e da hora do dia em que se produz, trazem vida à Vida, à Natureza, à própria mimesis aristotélica (a arte como cópia do Mundo), o que faz uma enorme diferença.
Esse movimento caótico mas ordenado, esse diário estado de vigília do Universo, propicia um entrecruzar de côres, de vivências, de sensações e sentimentos que estimulam a capacidade criativa.
Falo com uma certa cautela, pois posso erradamente fazer passar uma imagem de mim como um narcisista pretensioso, que se arroga a categoria de sensitivo, de artista, de escritor; não, nada disso.
Aspiro apenas a ser um dia um neófito, e para esse fim devo encarnar o desejo de o ser, nada mais. Doutro modo, sairia derrotado antes de sequer tentar. Quem quer ser algo, seja o que for, tem de “vestir” o papel. E pode não passar disso, mas se não o vestir, não acreditará na possibilidade, e não acreditando, vale mais desistir. Não é a minha intenção.
08/03/2023
273 – ENTRE BATARA KALA, HADES, WHIRO, HELA OU AHRIMAN, VENHA O DIABO E ESCOLHA...08/03, 4ª feira, 23h33
Ontem os
Manes não me protegeram. É certo que este não é o meu lar e os
Manes são os deuses que protegem as casas e quem lá habita, segundo a mitologia romana.
E digo que não me protegeram porque apanhei uma constipação devido às correntes de ar gélidas que
Eolo me enviou pelas frinchas da porta e directamente focadas nas minhas costas.
Se calhar foi porque
Eolo é um deus grego e não queria nada com os seus congéneres romanos, não havia cooperação interdivina e talvez andassem em contenda uns com os outros por pura birra., pois cada facção deve-se achar mais divina do que a do outro lado da fronteira celeste. Cá para mim, acho que Eolo fez de propósitos para chatear os romanos e eu, simples mortal sem valor ou voto na matéria, servi de instrumento desse braço de ferro pueril, indigno de deuses que se prezam.
Nos conceitos cultuais dos nossos antepassados, eramos meros títeres nas mãos desses argumentistas sobrenaturais que nos usavam para seu gáudio e para chatear os adversários, meras formigas que eles pisavam a seu bel-prazer.
Tratava-se de uma visão teológica do Mundo bastante redutora: a humanidade e, em suma, tudo o que existia na terra e nos céus, era beneficiado ou destruído de acordo com os humores desses personagens criados pelo homem, à sua imagem e semelhança, e não ao contrário. Tudo o que se passava no céu e no inferno, além de ser uma explicação transcendente dos fenómenos naturais, era também um reflexo do modo de ser e de pensar dos homens da antiguidade, ainda não muito dados a sentimentos de justiça ou piedade para com os seus semelhantes.
Evoluímos muito desde essa época, mas alguns deuses mantiveram-se iguais ou, se calhar, os deuses evoluíram muito desde essa época mas os homens mantiveram-se iguais. Acho que a segunda hipótese fica a ganhar por larga percentagem.
Se me é permitido comentar outras divindades de outras culturas, acho que a hinduísta
Kali e o xintoísta
Hachiman estão em alta: a primeira é a deusa da destruição e o segundo é o deus da guerra; estamos bem entregues.
06/03/2023
272 - LET(ES) ME REMEMBER, PLEASE!05h51, domingo, 05/03
A grande maioria das vezes começo a escrever usando a primeira frase ou ideia que me surge na mente. Embora geralmente escreva sobre os corpos inanes de ideias ou sugestões que foram surgindo do nada e para ele voltaram quase de imediato, impedindo-me quase sempre de as salvar, costumo safar-me airosamente dessas imersões literárias repentistas.
Na verdade, a circunstância ou evento mais frustrante e recorrente do quotidiano de quem escreve é o aparecimento desses voláteis fantasmas dos pensamentos mais sublimes, das sugestões mais notáveis, dessas ideias perfeitas ou suficientemente aprazíveis mas que se nos escapam por entre os dedos da memória como areia por um crivo. São ténues e irruptivos afloramentos que os nossos estados mentais mais profundos captam no limiar da senciência e que surgem naquela diáfana semi-consciência que antecede ou procede os períodos de sono.
Infelizmente é um timing imperfeito, pois não permite muito facilmente captar com a necessária eficácia a visão do novelo com que pretendemos tecer a nossa rede de raciocínio e o desenvolvimento subsequente do corpo da nossa narrativa.
Como disse Júlio César –
Alea jacta est, mas os dados lançados por vezes caem nas águas do
Letes e perdem-se para sempre.
02/03/2023
271 – A ARTE COMO OBJECTO NARCISISTA E FILANTROPO: UMA VISÃO PESSOAL E INTRANSMISSÍVEL01/03/23, 4ª feira, 23h45
Pego na esferográfica e tento mais uma vez – das inúmeras que tenho diligenciado fazer - projectar os meus estados de alma, os meus anseios, as minhas frustrações, o modo como vejo ou julgo ver o Mundo. Nem sempre é fácil, os sentimentos entrecruzam-se com outras ideias que nada têm a ver, as emoções tintam raciocínios, os pensamentos entrechocam-se, enovelam-se aleatoriamente, caóticamente, de tal modo que uma ideia, um projecto de escrita original, emaranham-se em inutilidades, futilidades, quais alhos com bugalhos, numa miscelânea para a qual muitas vezes só existe uma solução: lixo.
Se eu, mero escrevinhador de pensamentos aleatórios, me vejo assim aflito, que dirão os verdadeiros escritores, aqueles que desenriçam os novelos da originalidade de forma mais ou menos contínua? Eu escrevo por escrever, outros escrevem para escrever, essa é a grande diferença e também a grande dificuldade. Um profissional das letras é como um operário especializado: não pode falhar, sob risco de comprometer o produto final e deitar a perder todo o processo de criação.
Duas das mais importantes premissas para se ser um bom escritor é gostar do que se faz e ter prazer em aplicar a experiência e o conhecimento que vai adquirindo ao longo da vida e do estudo para criar obras agradáveis aos outros, mas das quais ele próprio retira prazer, do mesmo modo que um pintor ou escultor tiram prazer da sua produção; caso contrário, não pintariam, não esculpiriam, não escreveriam.
Ser artista é, não apenas ter o gozo de dar aos outros matéria deleitosa, mas também o de a usufruir, ser um pouco narcisista e orgulhar-se dela. De outro modo, passamos da criação útil e aprazível para a produção como mera fonte de subsistência, impessoal, por vezes fonte de sofrimento ou reflexo deste, e não é esse o verdadeiro objectivo da arte, de qualquer arte.
28/02/2023
270 - ESPERAR PELA REFORMA NÃO É ESPERAR POR GODOT (SE TUDO CORRER BEM)23h55, 2ª feira, 27/02
Continuo a esperar impacientemente pela reforma que tarda. Não que a almeje económicamente, não; na verdade serei muito prejudicado pelo processo - como aliás todos aqueles que, como eu, não conseguem fazer face às despesas trabalhando como trabalho ou, por outras palavras, pelo ordenado minguado que recebo.
Apenas desejo a jubilação (um modo mais “fino” de dizer e que está também relacionado com júbilo, alegria) para que possa, em teoria, usufruir de um descanso merecido – principalmente atendendo à minha situação de saúde – e para poder coordenar o meu tempo à medida das minhas necessidades e dos meus
hobbies. Não quero, como já disse um dia, ser um
potato coach ou um sócio assíduo do clube de
bisca do tasco, é contra todos os meus princípios e, além disso, não quero regredir, estupidificar.
Considero que essa vida de taberna que observo infelizmente todos os dias e o
potato coaching que me acena com frequência e convida “amigávelmente” para uma inacção deletéria, são apenas meios de potenciar Alzheimers voluntários.
Não digo com isto que vou ser extremista e deitar fora o sofá ou enchê-lo de picos para não ceder à tentação; é evidente que o dito é esporadicamente bom para relaxar ou para os momentos de – sejamos realistas – doloroso cansaço que se avizinha à medida que a idade vai avançando.
Tasco, não. Definitivamente. Esse é tóxico. Desaprendemos e o ambiente é dos piores com que podemos deparar: reside aí a frustração, o desânimo, o ócio estéril, a inutilidade, os baixos sentimentos e emoções, a conversa concomitantemente desbragada, porca mesmo, e o retrato vivo dos suicidas a longo termo.
Talvez me expresse assim porque, culturalmente, tenho a sorte de encontrar-me num patamar superior. Digo isto sem falsas modéstias ou vaidade encoberta; digo-o com o alívio e até orgulho de me ter sido possível ser como sou.
Lamento que nem todos tenham tido as oportunidades que eu tive de fortalecer essa parte da personalidade, e disso tenho muita pena. Cada um é como é e cada um faz as suas escolhas.
O que eu quero é, se lá chegar e se Deus me der vida e saúde, como se usa dizer, dedicar o que me resta da existência a cuidar da dita e alargar o intelecto, contando para isso, entre outras coisa, com a minha biblioteca.
Ressalvo, como já mencionei em
posts anteriores, que sou agnóstico com uma pontinha de ateu, e a frase que apliquei no parágrafo anterior não reflecte a minha posição perante uma divindade que questiono.
Que o
Caos é controlado, é; e isso exige forças que estão para além do nosso conhecimento ou da nossa compreensão. No entanto, não estou a aludir a divindades ou extraterrestres. Nesses, acredite quem quiser, mas não serão eventualmente eles quem tem equilibrado o Mundo, embora não exclua a possibilidade da sua existência, pois não sou homocêntrico e muito menos heliocêntrico, acredito na imensa diversidade do Universo.
27/02/2023
269 – A (IN)FINITIZAÇÃO E/OU (DES)UNIVERSALIZAÇÃO DO ESPAÇO-TEMPO26/02, 23h39, domingo
O que é o
Universo, o que é o
Infinito?
Existem (ou existe)?
Universo, como o nome indica, é algo que só tem uma face, sem reverso, una.
E o
Infinito? Se quisermos "chamar os bois pelos nomes", como se costuma dizer num registo menos erudito, mais popular, o infinito é algo que não tem um fim nem teve, supostamente, princípio, embora infinito nos reporte a uma coisa ou algo que não acaba, sem fazer referência -explícita ou implícita – ao seu início.
Aqui a alusão ao
Big Bang (em que não acredito) é notória, embora as nomenclaturas anteriores, referentes à inexistência de um começo sejam muito mais antigas do que esta teoria, que é relativamente recente. Em contrapartida, o Infinito é representado por um símbolo em forma de 8 deitado, também chamado
Lemniscata, do latim
Lemniscos que, por sua vez, foi buscá-la ao grego
Lemniskos (fita ou, num inglês mais focado, mais explícito –
ribbon).
No entanto, esta fita tem duas faces, o que contraria o conceito de Infinito e aponta para um B
i-infinito, ou mesmo um P
luri-Infinito.
Surge agora a ligação evidente mas que pode passar despercebida, com o
Universo; embora em geral se cole a ideia de universo a algo palpável, mais ou menos físico, e Infinito a uma definição mais temporal, mais “esparramada” no tempo do que nos espaço, eles, afinal são a mesma coisa, pois um não é concebível sem a sua contraparte: não existindo espaço não pode haver tempo, porque um sem o outro careceriam de pontos de referência e tornar-se-iam uma não-realidade. Do mesmo modo que algo existe porque há um fenómeno (chamemos-lhe assim) cronológico que o faz aparecer em determinado tempo, também este fenómeno existe porque há algo palpável que surge numa determinada simultaneidade.: sem objecto, não existe tempo, sem tempo não há objecto.
Esta teoria mexe simultaneamente com os dois conceitos de
Universo e
Infinito, pois admite a existência de mais do que um verso, um lado, o que aponta, ou para vários espaços infinitos ou mesmo para vários espaços finitos, o que subverte todo o conceito vulgarmente aceite.
É evidente que tudo isto não passa de conjecturas sem base palpável, é apenas fruto imaturo do meu raciocínio. Poderá assim padecer de falhas, de inconsistências, ou ser mesmo pueril (do latim
puer – criança).
Mas o que são teorias senão ideias imaturas que um dia podem amadurecer e iniciar novas realidades ou hipóteses de realidade?
28/02/2023
00h25, 5ª feira, 23/02/23
268 – HÁ EPÍLOGOS QUE SÃO APENAS UM CURTO RESUMO DOS PRÓLOGOS Como definir 65 anos de vida e na vida?
(Considerando que o Mundo é o Mundo e um país não representa necessariamente o Orbe, cinjo-me à análise pessoal deste pequeno recanto da Terra).
Em termos paisagísticos, urbanísticos, de desenvolvimento sócio-técnico-científico e outros factores de evolução, tenho boas e más opiniões como, afinal, todos nós em tudo na vida.
Há seis décadas e meia, a sociedade, nos termos acima entendidos, tinha um desenvolvimento lento, de certo modo harmonioso embora retrógado, uma espécie de
locus amoenus parado no tempo, onde a vida fluía lentamente, como um pequeno córrego, sem pressas, sem aparentar objectivos a curto ou mesmo médio prazo. Cada novidade, fosse uma construção, uma qualquer alteração urbanística, um avanço tecnológico, cada passo tímido pelo bem-estar do povo, era visto quase como um misto de admiração e temor, incrédulo e respeitoso.
A civilização marcava passo, como se se recusasse avançar, como se desejasse preservar o mito arcádico em que vivíamos, parados que estávamos na Renascença e no Romantismo, por vezes roçando mesmo a Alta Idade Média. Em suma: pobres e atrasados, mas felizes (pelo menos em teoria). Não existíamos para o Mundo e este muito menos para nós. Cegueira quase total.
Dez anos depois já os espantos se sucedem; a
Arcádia agita-se, revolve-se, transforma-se. Os pastores deparam-se com novas e espantosas realidades e inicia-se o êxodo da pastorícia, para melhores, mais lucrativas e agitadas actividades, onde novos horizontes apelam à descoberta e sacodem a quietude dos povos. O
locus começa a ser cada vez menos
amoenus, as bocas abrem-se em rictus redondos, em “OO” de admiração: guerra fria, a conquista do suprassumo da quietude contemplativa – a Lua – devassada, violentada; as revoluções sociais, sexuais, tecnológicas, a resistência crescente aos senhores feudais da guerra. É o fim do mundo, o Apocalipse!
Mais uma década:
O Caos ameaça subverter as utopias e anarquias emergentes, a luta entre estas e os Velhos do Restelo é dura, renhida. E, no entanto, avança-se. Em tudo. Com dificuldade, com timidez. Com medo. Os ditos Velhos vão morrendo (mas não de todo).
Há uma estabilidade falsa, um vislumbre de Paraíso que, no entanto, não passa disso – uma ilusão.
Anos 90:
Acentua-se uma curva descendente que trás maus augúrios; o poder de compra desce suavemente, imperceptível, quase como se se mantivesse. Mas desce, e o Paraíso passa a Limbo e deste a Purgatório. Há novas mexidas por todo o Mundo, promessas de avanço, de progresso, de melhores dias: a ilusão continua e nós – o Povo – ainda acreditamos.
Virar do Século:
Nós – o Povo – já não acreditamos muito; se existisse uma
Golden Sachs para a qualidade de vida, estaríamos classificados como
Lixo - . E é assim como nos sentimos.
Anos 10 do Novo Milénio, aquele que vai trazer um mundo novo, mais igualitário, mais próspero, mais feliz:
Já não somos
Lixo, passamos a
Lixeira. Das grandes.
Anos 20 do já não tão Novo Milénio.
Há um arremedo de melhorias. - Havia, antes da guerra. Agora não há nada, apenas mais do mesmo.
17/02/2023
267 - COMORBILIDADES E RESIGNAÇÕES A CONTRAGOSTO15/02, 4ª feira, 06h25
Estou com uma (algo indeterminado) “de caixão à cova”, como os meus ancestrais costumavam dizer. Algo que está-se a passar de mão em mão, ou antes, de corpo em corpo, uma cadeia de infecções pulmonares, intestinais, e sabe-se lá que mais, só para rimar.
Prostração, cabeça pesada, olhos de pálpebras a pesar quilos, nariz que parece mais um esgoto entupido, cansaço grande e injustificado, sono qb, ou antes, sono mais do que qb e mais um rol de sintomas que nem descrevo, pois estes, por si sós, serão suficientes.
Se disser que antigamente não era nada disto, estarei a cair no erro de muitos, para os quais o antigamente não tinha tantas doenças nem tantos problemas como os de agora? (Esquecendo, evidentemente, todas aquelas doenças que existiam e que foram erradicadas, não sem antes terem feito muitos estragos na vida desses homens, mulheres e crianças de antanho).
No meio de tantas novas ameaças ao bem-estar dos povos, mesmo assim pergunto-me se antigamente era melhor. Não sei dizer.
Fui uma criança cheia de problemas de saúde ate aos 12/14 anos e que foram melhorando e desaparecendo nessa idade, com a excepção da “cereja no topo do bolo”, aos 17 anos, que foi uma pleurisia húmida (porque também as há secas) que me deixou devastado, confinado e acamado por 4 longos meses a fio e deixou cicatrizes internas na base do pulmão esquerdo. Mas isso, felizmente, são águas passadas que a juventude fez desaparecer sem aparentes sequelas.
Atualmente começo a queixar-me dos problemas inerentes à idade (não digo velhice para não ficar chocado) e a alguns que foram surgindo antes do tempo ou nem sequer deveriam ter surgido, como os AVC, os AIT e a aterosclerose e que transportaram consigo todo um rol de maravilhosas possibilidades de me estragarem ainda mais a saúde.
Queixo-me? Sim e não. Por um lado, é lógico que me queixo, pois não sou assim tão masoquista; por outro lado não me posso queixar, pois são o resultado de más condutas de saúde, da genética e de razões que a razão desconhece. Tenho sempre presente que há quem esteja pior do que eu, seja por culpa ou sem culpa, há quem nem sequer tenha gozado minimamente a vida, seja por deficiência física ou mental, acidente, pela malfadada genética (aquela parte da herança que ninguém quer), ou porque, simplesmente, não viveu o suficiente para o fazer. Agora que estou a estudar latim e a vida e cultura romanas, digamos que, como Séneca, sou um estóico (embora o Estoicismo tenha sido criado por Zenão de Citio, em Atenas, no século III a. C.).
09/02/2023
266 – A REFORMA: VERSÃO LIGHT DE UMA FUGAZ FELICIDADE5ª FEIRA, 09/09, 03H12
Nada tenho escrito porque, não só tenho o problema da transferência do site ainda por resolver, mas também porque tenho andado extremamente cansado; não durmo bem e os neurónios ressentem-se disso.
É estranho ver-me como um pré-reformado. Quando iniciei estes “escritos”, há quase 11 anos, faltava-me exactamente isso: quase onze anos para a reforma, mais mês menos mês. E, num estalar de dedos, estou à porta do fim da vida activa.
Bem, não será tanto assim, não quero acabar os meus dias sem fazer mais nada. Quero – isso sim – acabar as minhas noites, que me prejudicam enormemente, gerando perda de qualidade de vida, perigo para a saúde e para a própria existência, atendendo ao meu historial clínico. Estou mortinho (lagarto, lagarto, lagarto,
knock on wood, etc.) por ter uma vida normal – se normal se pode chamar uma vida em fim de vida, preencher os meus tempos alargadamente livres com as coisas que gosto de fazer, com o que sempre quis fazer (já com limitações, claro), enfim, tentar usufruir o melhor possível da minha ineludível recta final.
Quero ser o que posso ser, o que quero ser, o que a sociedade não me deixou ser, o que o trabalho me coarctou, quero ser livre de fazer o que me der na real gana, quero ser excêntrico, quero ter todo o tempo que
Chronos me der antes de ter forçosamente de atravessar o
Estige na barca de
Caronte, a troco de duas moedas (agora deve ser mais caro, a não ser que obtenha uma promoção ou saldos, mas não me parece). E – muito importante – quero que valha o esforço, não quero morrer na praia, como sói dizer-se.
Nem tudo serão rosas: a degeneração física, os “dói-me aqui, dói-me ali”, o espectro da degeneração mental, o medo de perder os entes queridos, a dor de os deixar, são revezes da vida que, infelizmente, nem a aposentadoria pode anular. Mas a vida é feita de alegrias e sofrimentos – também o é comprar uma casa, fazer uma tatuagem ou ter um filho, mas nem por isso desistimos de o fazer, sabemos o preço que vamos ter de pagar.
Termino por hoje, após todas estas maravilhosas reflexões de existencialismo negativista, que dão um novo alento à existência e fazem ter gosto em sofrer por estar vivo; são a imagem de marca com que costumo cunhar de quando em vez estas crónicas.
30/01/2023
265 - O VELHO02h57, 2ª feira, 30/01/23
- Velho, para onde vais?
- Procuro a morte, já que a vida corre célere e escapa-se-me por entre os dedos.
- Porque procuras a morte?
- Que faço aqui? Gasto e enfermo, dependo dos ditames da nébula cada vez mais cerrada do meu espírito, onde os pensamentos já não fluem mas arrastam-se penosamente, tropeçando uns nos outros sem já saber para onde ir, ou o que fazer e o que fazer. Que me resta?
- Porque não agarras a vida com mais tenacidade?
- Porque os meus dedos já não têm forças para a suster, e porque sou repudiado pelos meus pares, que fogem de mim para não me encararem e lembrarem-se do seu próprio futuro. E tudo é já demasiado veloz, tudo é complicado demais para o meu entendimento.
- Tens razão, velho; vai em paz, segue o teu destino.
29/01/2023
264 – O MUNDO ENCANTADO DA INFÂNCIA, ONDE HÁ RÃS, PRINCESAS, DRAGÕES...01h35, 5ª feira, 26/01/23
Retomo tímidamente as minhas crónicas, visto só agora ter condições (relativas) para tal.
Actualmente, não tenho tido muito tempo para escrever; tudo por louvável culpa minha, visto que me matriculei numa disciplina de latim e nos primeiros tempos não será fácil encontrar momentos livres para escrever com a assiduidade que desejaria pois que, embora o latim seja a base da nossa língua, a sua relativa complexidade ainda dá muito que fazer. Além do mais, ainda estou com um processo de migração do meu site, que se revelou mais complicado do que seria expectável.
A propósito, e visto eu gostar de meter de vez em quando uns pózinhos de latim nas minhas postagens (que se desculpe a aliteração), o que não é só de agora, aproveito para fazer aqui uma distinção:
Expectável aparece na nossa língua proveniente do latim
expectabilis, e significa ‘provável’, ‘esperado’.
Espectável vem do latim
spectabilis e significa ‘digno de se ver’, ‘notável’, e transporta-nos imediatamente para a noção de
spectaculum – espectáculo.
Julgo que assim quaisquer dúvidas que possam ter surgido quanto à aplicação do termo que usei, fiquem dissipadas.
Deixando-me de etimologias, tomei hoje como assunto desta crónica a rememoração da infância e da sua aura mágica, onírica, desse mundo de faz de conta que nos transporta para universos alternativos e maravilhosos que são a porta (e, simultaneamente, o tapume) entre a realidade física em que nós, jovens estreantes – ou talvez não - no universo material, nos movemos, e o universo dos sonhos, do éden perdido, do útero materno como
Iocus amoenus, do mundo idealizado com base na nossa própria experiência anteparto, em confronto com uma também mirífica (porque nova, inexplorada) paleta multicor e multiforme de “Apocalipse” (leia-se: revelação).
É um choque/maravilhamento que deixa sequelas e nostalgias que nos acompanharão no decurso de toda a existência física. Talvez por isso muitos de nós, à medida que vamos envelhecendo, tendemos a esperar a ‘passagem’ com serenidade e às vezes até com uma espécie de impaciência; é o retorno ao Paraíso, ao local idílico de onde provimos.
Não sei se é assim, mas tenho a certeza absoluta de que não falharei esse cotejo.
Voltando ao mote, recordo a minha infância, época remota onde criava mundos e histórias, parcialmente baseado e influenciado pelos filmes e desenhos animados a que assistia (entre outros: Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela Adormecida, Peter Pan), pois nasci no mesmo ano em que a televisão fez a sua primeira emissão pública em Portugal e em que o meu pai, simultâneamente, adquiriu uma dessas inovadoras ‘caixinhas de imagens’ que, lembro-me bem, era uma
Telefunken (a preto e branco, claro).
Outras referências igualmente importantes são os livros de histórias aos quadradinhos (Mickey, Pato Donald, Tio Patinhas, Pluto, Pateta), que preenchiam e formatavam o meu imaginário, criando cenários, histórias, actores e tesouros. Não posso esquecer, evidentemente, variados livros de aventuras como os de Henry Dalton e Philip Gray, Julio Verne, Emilio Salgari, Sir Walter Scott, Alexandre Dumas, Daniel Defoe, Ponson du Terrail e muitos outros.
No entanto, estas obras, mais evoluídas, já pertencem ao início da minha adolescência, claro (não é minha intenção armar-me em super-dotado), e tiveram assim pouca ou nenhuma influência na ‘magia’, embora tivessem influenciado e muito, os meus sonhos posteriores.
E porque não recordar a miríade de alternativas desse outro mundo que eram as bijuterias que a minha tia possuía e que iam desde as missangas multicores aos colares de pedras de vidro facetado que refractavam a luz, aos de contas pretas, às pérolas falsas e tantos outros tesouros inestimáveis? As jóias, as verdadeiras, essas não eram
para o menino mexer, que isso não se empresta às crianças.
Tudo perdido. Quase sem me dar conta fui-me afastando sem sequer olhar para trás desse universo que apaga o seu rasto, muito à semelhança do
Peter Pan (Robin Williams) do filme de 1992 -
Hook, realizado por Steven Spielberg.
Olho agora com nostalgia esses tempos longínquos que se vão esfumando nas brumas do passado, mas entendo que, como tudo na nossa existência, é apenas uma fase, uma passagem para um nível superior de consciência da própria vida.
Quanto ao resto – o retorno ao Paraíso – é apenas uma teoria, válida como qualquer outra.
10, jan, 2023
263 –UM TEMPO A DOIS TEMPOS (como os motociclos)05h33, 3ª feira, 10/01/2023
Já se passaram 10 dias sobre o falecimento do Ano Velho? É incrível como Chronos é impiedoso!
A propósito desse mito sobre o Tempo, encontrei um site que contém, num texto que transcrevo abaixo, explicação assaz interessante sobre
Chronos e outro deus que também é do tempo, mas não do cronológico:
Kairós.
Faço-o com a devida reverência aos criadores, não me esquecendo de referir o site onde se encontra, pois não quero ser acusado de plágio ou de apropriação de direitos de autor.
No entanto, está conotado como inseguro, havendo sempre algum risco ao aceder-lhe e não quero ter pesos de consciência se alguém tiver problemas ao consultá-lo; quem o fizer, será por sua conta e risco:
http://www.ciclosararas.com.br/textos/ler.php?id=12Chronos e Kairós, mitos sobre o tempoAutor: Alexandre Rampin
Psicólogo Clínico
Neste texto, Alexandre apresenta elementos de dois mitos gregos para convidar-nos a refletir sobre o tempo. O Tempo Chronos, cronológico, que não perdoa e nos devora. O Tempo Kairós que diz respeito ao tempo contemplativo, ao momento oportuno. Dentro de nossa sensação de "o tempo voa", "não dá tempo..." um aviso importante: o dia continua com 24 horas... o tempo passa por nós na mesma cadência! Seríamos nós quem passamos por ele aceleradamente? Aprecie o mito e continue refletindo sobre isto!
Boa Leitura!
Daniela Favaro
DOIS TEMPOS: CHRONOS E KAIRÓSCada civilização teve sua própria experiência com o tempo. Os gregos, por exemplo, nos transmitiram essa experiência por meio do mito de Chronos (ou Cronos) e Kairós, deuses do tempo. O mito é uma história que, longe de ser fantasiosa, pretende explicar o mundo e o homem por meio de imagens simbólicas que escondem uma realidade profunda. Por isso, antes de ser inteligido, o mito precisa ser sentido. Para compreendê-lo é necessário transcender as aparências e buscar a verdade que nele se esconde. A história de Chronos e Kairós, narrada antes da Era Cristã, é capaz de elucidar sobre como nos relacionamos com o tempo na atualidade.
Chronos é o deus do tempo quantificado, que se pode medir. É o tempo corrente, rotineiro, ordenado pelo relógio, onde um minuto é igual ao outro, onde às horas sucedem-se os dias e a estes os meses e os anos. Representado como um velho tirano e cheio de crueldade, Chronos controlava o tempo desde o nascimento até a morte. Ele ditava aos mortais o que deveria ser realizado. Do nome desse deus se deriva a palavra cronômetro que designa o instrumento para se medir o tempo. Portanto, quando falamos de Chronos estamos fazendo menção ao tempo cronológico, do calendário.
No mito, Chronos emasculou o próprio pai com a intenção de se apoderar do mundo. Mais tarde, como Senhor do Tempo, ele devora seus próprios filhos para continuar soberano. Tal imagem nos sugere que o tempo cronológico passa sem que possamos detê-lo e que ele aniquila tudo o que produz. Nada dura para sempre no mundo, nada se pode conservar e a única permanência é a impermanência. Assim, tudo o que é conquistado no tempo Chronos não tem valor eterno.
Na contemporaneidade facilmente percebemos o quanto Chronos amedronta e impera, implacável. Muitos são escravizados por esse deus e acabam devorados. Vivem sob o julgo das datas, dos prazos, da idade que avança impiedosamente, experimentando ascensões e declínios. Tentam dominar Chronos, mas acabam dominados por ele. Mais "mecanizados" buscam cumprir ritmos e metas para além da condição humana e invariavelmente se infelicitam.
Mas ao lado de
Chronos está
Kairós, o deus da oportunidade, do momento adequado, oportuno. Retratado como um jovem calvo com apenas um cacho de cabelos na testa, ele tinha uma agilidade sem igual, possuindo asas nos ombros e calcanhares. Kairós corria rapidamente e só era possível detê-lo agarrando-o pelos cabelos, encarando-o de frente. Porém, depois que ele passava, era impossível trazê-lo de volta. Devido à sua agilidade podia não ser percebido pelo observador desatento. Isso quer dizer que quando Kairós surge diante de cada um de nós como a ocasião adequada de fazer o que é certo na hora certa, devemos agarrar e trabalhar essa oportunidade - pois caso ela nos escape - não voltará. Dessa forma, precisamos nos tornar atentos observadores das oportunidades cotidianas.
Kairós é o tempo que não pertence a
Chronos, portanto, não pode ser cronometrado. Ele simplesmente acontece, sem previsibilidade ou hora marcada. São aqueles momentos que se tornam eternos em nossa vida, mesmo que tenham sido breves. Um tempo interno e essencial que deixa uma impressão forte e única, para sempre, e que sustenta nossos passos na estrada existencial. Em Kairós somos humanos, vivemos e não apenas sobrevivemos!
Os gregos tinham convicção de que com
Kairós podiam enfrentar
Chronos. Ao vivermos em Kairós as oportunidades em nossa vida aumentam, pois não nos deixamos tiranizar por Chronos: temos a consciência do momento presente, sem os fardos do passado ou a antecipação do futuro, quando podemos ver a oportunidade e agarrá-la, nos posicionando por meio da melhor ação possível no momento. E, de acordo com Anselm Grün, "a maior oportunidade é a vida mesma, pela qual passamos quando tão somente planejamos e pensamos, em vez de vivermos".
O tempo
Kairós nos convida ao despojamento da exagerada e doentia cronologicidade para vivermos com mais leveza e autenticidade. É fato que não podemos nos desvincular completamente de
Chronos, afinal, o tempo cronológico organiza a vida, mas devemos buscar um equilíbrio entre Chronos e Kairós, conforme destaca Grün: "Ambos os deuses, Chronos e Kairós, no relacionamento correto, pertencem a uma vida plena. Sem planejamento e sem regulamentações temporais não pode surgir nenhuma cultura. A convivência na vida profissional, bem como social e religiosa, está ligada ao tempo mensurável, matemático. Este deveria estar numa sadia relação de tensão com a vida no instante, com o experimentar, o usufruir, o reconhecer oportunidades e ocasiões".
Absolutamente nada acontece no passado ou no futuro. Tudo se dá no presente, no agora, nesse fugaz instante. Cada momento é pleno de vida, trazendo a possibilidade de compreensão, crescimento e amadurecimento. Experimentamos
Kairós quando estamos em harmonia conosco mesmos, sem o peso exagerado de
Chronos, na medida certa, cadenciando com a vida como ela é.
08, jan, 2023
262 - A impossível possibilidade de protelar o improtelável21h42, Hospital da Prelada, 02/01/2023
Após uma pequena operação que, embora expondo assim a minha privacidade, não exponho privacidade nenhuma que interesse seja a quem for, visto não ser nenhuma “celebridade” – o que acho que é um epíteto estúpido e mesmo incómodo, que só alimenta leitores da “Maria” e quejandos que não têm mais nada que fazer senão falar da vida dos outros – encontro-me em banho-maria de pós-operatório até amanhã.
Pois bem, estando eu agora “posto em sossego, da idade colhendo amargo fruto”, como poderia ter dito Camões se fosse vivo e me conhecesse, ou em “Leito do Desassossego”, se a mesma circunstância se passasse com Pessoa, e tendo já esgotado a capacidade de me entediar mais, escrevo.
Sobre o quê? Sobre nada e sobre tudo, como de costume, sobre o que me vem à cabeça, esperando que ela me forneça um argumento lógico (ou nem por isso) para começar o que já comecei: escrever.
Surgiu-me o tema “testamento e procrastinação” porque estou num hospital, e quando estou num hospital lembro-me sempre – embora tardiamente - de que um dia, algures numa circunstância similar, poder-me-ão vir buscar, não num táxi ou Uber mas noutro meio de transporte que eventualmente só se usa uma única vez e que será a última oportunidade que terei para fazer uma viagem.
Começa aqui a segunda parte do mote (a procrastinação) a fazer sentido.
Se simplesmente nos lembrarmos de, gastando um pouco do nosso tempo, e após uma evidente reflexão consciente sobre o destino que queremos dar aos nossos poucos ou muitos haveres e sobre as observações ou conselhos que gostaríamos de legar aos que nos sobreviverão e nos são queridos, evitaríamos, não apenas os habituais e morosos procedimentos legais mas, outrossim, mal-entendidos, palavras por dizer, evitar que os que ficam andem às aranhas por não conhecer da nossa vida nem do nosso legado a metade. Tudo isso passa por informações, códigos e passwords de coisas talvez importantes ou não e que eles então terão o livre arbítrio de aproveitar ou apagar.
Para mim é triste deixar para os outros um mundo incompleto onde a informação de mim se esfumará mais rapidamente se houver desconhecimento dos comos, quês e porquês.
E os meus livros? quem os vai respeitar, ou desprezar como coisas volumosas e inúteis? E tudo o resto que será acarinhado, ou desbaratado, quiçá sem conhecimento consciente da sua utilidade ou valor?
Ninguém conhece o lugar que todas essas coisas tiveram no nosso coração, nem porquê. Felizmente, depois da morte não podemos morrer de desgosto, nem pedir que preservem a nossa memória palpável, física. Isso está nas mãos dos que ficam.
Escondendo a triste realidade está o tapume da fantasia, alguém disse. Assim é connosco: fingimos ser eternos, sabendo que mais dia menos dia deixaremos o nosso actual estado de existência, sem data fixa nem pré-aviso; é essa a nossa fantasia.
É como fugirmos, é como termos medo, não nos preocuparmos com o nosso futuro que, afinal, influencia o futuro dos outros. É excesso de auto-confiança, também.
Infelizmente também, o que escrevemos agora estará amanhã esquecido e o protelamento irá, quase de certeza, produzir-se. Tão certo como eu não ter existido em 1956 (nasci em 1957, mas no fim do ano anterior eu já existia como embrião).
15, dezembro, 2022
261 - De como a escuridão é, por vezes, a Luz15/12/2022, 5ª feira, 05h29
É estranho pensar que tanto eu como os membros da minha geração, a família, os irmãos as esposas, os cunhados, os amigos e milhões de outros seres humanos para nós totalmente desconhecidos e até insuspeitados, nos vamos lenta e quase imperceptívelmente embrenhando numa penumbra, prenúncio de uma escuridão eminente mas de chegada imprevisível, a qual dita o fim da nossa estadia no actual plano físico, ou seja, o fim da vida, seja ele natural ou não, pouco importa. Oposto ao que sucede quando nascemos - pois não viemos de uma penumbra – em que surgimos de uma escuridão para uma luz radiante, esta situação, este percurso indistinto, afigura-se-nos como um retorno às origens da Vida, que não conseguimos definir se será o Caos Original ou o Apocalipse (este no seu verdadeiro significado: Revelação), onde este negrume aparente se nos poderá apresentar como uma nova e, quem sabe, talvez a verdadeira luz.
Nós, os humanos, somos um pouco como os gatos: à medida que a luz escasseia, as pupilas dilatam-se e deixam-nos adaptar ao ocaso. E, ao fazê-lo, deixamos de o temer tanto. Os velhos - pelo que conheço, grande parte deles - não temem a morte porque a sua visão espiritual se vai progressivamente ampliando, mesmo qua a visão física possa diminuir ou mesmo desaparecer. Neste contexto, nós nascemos cegos e vamos adquirindo pouco a pouco a visão, desligando-nos gradualmente da materialidade e começando a ver essa transição natural por outro prisma, aceitando-a mais, quiçá prevendo um futuro que, afinal, nos é familiar desde o início dos tempos.
Os ciclos do nascimento e da morte sempre nos acompanharam e eram, primordialmente, acolhidos com naturalidade. Foram as religiões – pelo menos, algumas – que ditaram o medo da morte, ao infligir castigos, penas eternas, suplícios impossíveis a quem não seguisse as regras ditadas por cada um dos deuses de cada uma desses cultos. Embora a intenção tivesse sido boa, pois inculcava uma certa moralidade ou, se preferirmos, determinadas normas de conduta numa humanidade muito ligada aos instintos animais básicos, talvez tenha feito mais mal do que bem ao tecer elegias à vida e glorificado tanto a morte, adoptando-a como, simultaneamente, fulcro, objectivo e assombração de toda a existência.
05,dez,2022
260 - Lembra-te ó homem que és pó05/12/2022, 2ª feira, 05h04
Quando os lobos uivam, disfarçados de vento, e as aves raspam as suas asas na tempestade, os humanos recolhem aos seus lares para se protegerem das investidas furiosas e terríficas da Natureza , quais Naendertais ou Cromagnons assustados que se apressuravam a recolher aos seus abrigos ou cavernas, tementes de acontecimentos que, muito mais tarde, milhares de anos mais tarde, se apodariam de apocalípticos, e que eles não compreendiam e começavam a associar a entidades sobrenaturais, como deuses ou demónios.
Após o rescaldo do meteorológico acontecimento, quando a calmaria de pospõe à borrasca, o espírito, descarregado da lesiva estática que sobrecarrega a mente e influencia os humores, perde-se em contemplações bucólicas, pastoris, calmas e meditativas. Aí, contemplando os longínquos montes que o circundam (estou a falar de zonas minimamente montanhosas), tenta imaginar como, durante centenas de milhares de anos, desde que o ser pensante que nós (às vezes) somos, povoa a Terra, estes homens ou hominídeos ainda a habitam também, desfeitos em pó e húmus, como prova (im)palpável do sucesso da Lei de Lavoisier. Vidas terminadas por guerras, lutas passionais ou de sobrevivência, consequências da lei do mais forte herdada da animalidade que ainda possuímos, por lutas com animais, acidentes, doenças ou velhice.
De quantos restos estamos rodeados, quantos serão ainda remotos adubos dos vegetais que comemos? Milhões, incontáveis milhões! Não haverá grande margem de erro, pois o espaço temporal e territorial é suficientemente alargado para que muitas dessas formigas humanas de antanho tenham perecido aqui, neste espaço enorme que abarcamos com os nossos olhos, também eles, como nós, futuro adubo residual da fruta de alguém.
Não estou a tentar ser tétrico, gótico ou com a intenção de enojar ou aterrorizar ninguém, não; limito-me a constatar uma realidade ou, no mínimo, uma hipótese muito plausível e que nos leva para outras interessantes conclusões: nada somos, apenas adubo para os vindouros. De nós não restará nem a recordação do nome. E se um dia, nesse porvir longínquo, alguém nos encontrar, seremos apenas vagos ossos sem nome, sem história, sem família, sem pátria; só ossos. Mesmo que tenhamos sido muito importantes, o tempo apagará tudo.
Será que aquela pequena lasca de osso que está no museu tal pertenceu ao ser que inventou a roda? Não sabemos. Mas também já não tem interesse, está sem contexto e sem nome, é só uma lasca de osso. Assim nós também o seremos um dia.
A história é feita de vaidades humanas, de ossos sem nome. Ou de nomes sem ossos; ou de ambos.
Ponhamo-nos no lugar desses nomes ou desses ossos, ou de ambos; de que vale isso para nós? Não nos podemos nomear ou apontar para os nossos ossos e dizer: Este fui eu!
Vão orgulho e vã glória!
30. nov, 2022
259 - Por vezes, as árvores velhas dão melhores frutos05h31, 30/11/22, 4ª feira
Surgiu-me há dias – saído do nada, como sempre - em momento de divagação livre de preocupações, num jackkerouaquismo sem destino nem origem e produto ou consequência de um estado de pré-sono (direi mesmo de pré-subconsciência), uma ideia, ou conceito, ou teoria, sobre o que se passa na mente de um ancião recém-nascido como eu. Afinal, já pertenço a essa apelidada de faixa da sociedade que é ainda um misto de homem feito, homem maduro e idoso em formação.
Falo, evidentemente, da classificação etária ocidental que, como qualquer outra, não passa de uma convenção e faz-nos acreditar de corpo e alma que estamos a ficar tramados. E essa noção de vetustez entranha-se-nos e esgota-nos mais intensamente do que a própria realidade, convencendo-nos de que o prazo de validade está a chegar ao limite e já nada vale a pena porque todos os nossos eventuais projectos ficarão inevitavelmente inacabados.
No entanto, já tivemos projectos anteriormente e terminámo-los – convencidos de que teríamos muito tempo para o fazer. Mas... E se tivéssemos perecido por uma qualquer doença, ou tivéssemos ficado esmagados num acidente, num terramoto, ou nos tivesse caído um meteorito em cima que nem a alma se nos aproveitasse (claro que seria uma hipótese remotíssima, mas indubitavelmente possível), ou afogados no mar ou numa inundação, ou até electrocutados? Esses projectos que tivemos e conseguimos concluír nunca se teriam concretizado, apesar da tal certeza de que teríamos pela frente uma vida de que, afinal, não chegámos a usufruir.
Portanto, não vale a pena ter medo de obras inacabadas, de pretextos para dar uma reforma antecipada a um corpo e uma mente que ainda poderão ter muito para dar. Quando o corpo já não consegue, por desgaste, cumprir com as suas funcionalidades normais, o intelecto tem mais condições para brilhar, pois as energias são reencaminhadas e não perdidas. Isto se, evidentemente, estivermos dispostos a não desistir tão facilmente logo ao primeiro revés.
23. nov, 2022
258 - Sou Master; qual é o meu mester? Porteiro.23/11/2023, 04h01, 4ª feira
Concluí ontem a minha prova de atribuição de grau! Sou oficialmente mestre!
Foram 6 anos de esforço, de sacrifício e de noites sem dormir (bem, eu trabalho de noite).
Mas passemos adiante, pois não quero que a minha vaidade natural de humano corrompa a enorme humildade que possuo nem o secretismo com que castamente guardo as minhas conquistas (digo eu hipocritamente, a rebentar de orgulho por todos os cantos).
Na verdade, na verdade verdadeira, fico satisfeito, como é lógico, mas não faço disto, nem grande alarde nem, pelo contrário, segredo. Fiz o que fiz, estou contente, mas passo adiante. Como habitual, salvei uma cópia do texto na página de consulta aberta “Tributos Culturais”.
2. nov, 2022
257 - A perenal incerteza de um futuro finito03h55, 4ª feira, 02/11
Não sou gerontólogo nem geriartra, mas estou preocupado com a minha “gerontolice”, um neologismo que acabei de inventar e que significa, mais ou menos, o estado de pré-pós-vida onde a prevenção, os cuidados paliativos (diria paleolíticos) e a qualidade de moribundice são uma necessidade premente de cada ser humano. Fiz-me entender?
Numa etapa avançada da nossa existência em que vemos os nossos coabitantes terrenos circundantes a caírem como tordos a cada dia que passa, torna-se um pouco e cada vez mais deprimente pensarmos que alguém, provavelmente, estará a pensar o mesmo e a fazer despique connosco para ver quem consegue ver primeiro o outro com os pés (e o resto do corpo) na cova ou hipergrelhado. Não que depois nos incomodemos com isso, mas agora torna-se uma sensação desagradável, da qual tentamos inelutavelmente fugir.
Não vale de nada; vamos todos para LÁ, seja onde esse lá for.
E até pode ser muito bom e se soubéssemos até nos esforçaríamos por ir mais cedo, mas os apegos à terra e às pessoas, à família, fazem-nos recuar, espernear, fazer birra e lutar com quantas forças temos para nos mantermos aqui eternamente. Será o Nada de alguns filósofos, será o Paraíso (ou a Danação) dos teólogos, ou nada disso, ou um pouco disso tudo, ou algo de que nem sequer suspeitamos ou de que não estamos preparados para suspeitar?
Digo socraticamente que só sei que nada sei, e essa é a minha única certeza. E por isto tudo e apesar disto tudo, continuo a preocupar-me. Não que seja algo obsessivo, coisa que esteja permanentemente no meu pensamento; penso nela com aquela preocupação indefinidamente longínqua de quem não sabe o que vai suceder no minuto seguinte e vive como quem tem de viver com a consciência dessa fugaz perenidade.
12. out, 2022
256 - A veia secou ou será só um trombo?4ª feira, 12/10, 04h11
Após mais um pequeno período de hibernação na escrita, volto à carga com um breve texto, numa ainda vã tentativa de elaborar algo com um mínimo de valor lisível, mas infelizmente apenas consigo espremer umas tímidas gotas do conteúdo mirrado da minha veia literária, se é que ela existe. Necessito de me alimentar com mais leituras, de beber nas fontes do Saber e tentar, tentar, tentar sem descanso nem esmorecimento.
Pobre de mim, suspeito que vivo numa utopia improvável (para não dizer impossível, porque não há impossíveis), num sonho mirífico de que não quero acordar...
Pronto, já extravasei um pouco de escrevinhação pretensiosamente poética ou nem isso, e estou pronto para voltar à carga.
Mas de que carga estou a falar? Ao que é que me pretendo referir? Não faço a mínima ideia!
Há dias (neste caso, noites) em que inicio um texto com a intenção de desenvolver um qualquer raciocínio lógico, algo interessante que vá surgindo ao correr da pena e de cuja legibilidade e coerência me possa orgulhar ou, pelo menos, não me envergonhar. E depois.... Nada. É frustrante!
Tenho saudades daqueles relatos incipientes, daqueles poemas, daquelas histórias ingénuas que eu costumava escrever há alguns anos. Que sucedeu, por que não as consigo escrever agora? Será aterosclerose literária? (ou degenerescência mental?)
2. out, 2022
255 -To be or not to be (a writer) that is the question03h58, d0mingo,02/10/22
Eis-me de volta após um intervalo excessivamente longo, contra o que é meu costume. Tive um mês um pouco atarefado e do qual não vou falar, para não passar a vida a falar sempre do mesmo tema: eu. Portanto, e para mudar de tema, foi falar de mim.
Como não iria suportar estar parado durante um ano inteiro sem nada fazer, e embora ainda não tenha defendido a minha dissertação de metrado, matriculei-me num curso de línguas bianual: latim, a iniciar no fim deste mês, já com o ciclo de estudos anterior concluído.
Não é inocente esta referência ao latim, visto que é através de um livro de cultura romana que estou a ler e que faz parte da bibliografia da disciplina, que retorno ao mote do ser ou não ser escritor. Encontrei uma frase nesta obra que vem mesmo a calhar, diz tudo aquilo que eu tenho medo de adivinhar, ou antes, que no fundo já sei, mas finjo ignorar. Trata-se do extrato de uma obra de Cícero (106 – 43 a.C.) – Tusculanas 1.3.5-6; é uma reflexão sobre o pouco interesse dos romanos no estudo e difusão da filosofia (à época). Embora pareça desfasado do meu propósito expositivo, a última parte desta citação explica o porquê da minha escolha.
Sem mais delongas, aqui vai:
A filosofia esteve abandonada até ao nosso tempo, sem ter qualquer brilho nas letras latinas; somos nós que temos de a iluminar e despertar, a fim de que, se alguma utilidade tivemos para os nossos concidadãos quando estávamos ao serviço, a tenhamos também, se possível, na inactividade. E tanto mais devemos esforçar-nos nesse sentido, quanto é certo que consta haver já muitos livros latinos escritos impensadamente por pessoas sem dúvida excelentes, mas não suficientemente cultas. Pode muito bem acontecer que alguém pense bem, mas não seja capaz de exprimir com correcção aquilo que pensa; mas isto de uma pessoa pôr por escrito as suas reflexões, quando não sabe dar-lhes ordem nem brilho, nem aliciar o leitor com um certo encanto, é de quem abusa desmedidamente do vagar que tem e das letras.(CÍCERO, citado por (Maria Helena da Rocha Pereira in Estudos de História da Cultura Clássica/ II Volume – Cultura Romana, 2002. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian).
Pois aqui está o grande Cícero a atirar mais uma acha para a fogueira que arde sob os meus pés! Virei a ser algum dia um escritor ou não passarei de um sucedâneo de fraca qualidade? Receio ter a capacidade de dar uma resposta sincera, mas o meu amor-próprio proíbe-mo. No entanto, estou plenamente convencido de que se estão a criar as condições para que, daqui a mais duas ou três reencarnações, me torne num dos mais importantes escritores dessa época vindoura. Esperemos para ver (mas podemos esperar sentados porque não viveremos o suficiente para o testemunhar).
10. set, 2022
254 - To be or not to be (dead or alive) that is the questionSábado, 10/09, 15h17
Segunda-feira volto ao trabalho, talvez pela penúltima
reentré laboral após o período normal de férias a que tenho direito, pois conto reformar-me no fim do próximo ano. É claro que, como toda a gente, falo nas próximas férias e no próximo ano como uma premonição, como se tivesse a certeza de que estarei vivo, ou pelo menos mentalmente são e consciente, nesse período de um futuro próximo que não consigo antever. Mas os humanos são assim, fazem sempre planos para um porvir incerto, acabando sempre por deixar algo por fazer, como se a sua eternidade particular lhes permitisse terminar tudo aquilo que começaram.
Entretanto, resta-me aguardar pelo meu próprio testemunho, se ainda estiver vivo, ou pelo testemunho dos outros, se eu já tiver feito a passagem. Mas, no último caso, já não me interessará absolutamente nada. Tudo é efémero e o passado só faz sentido aos vivos, e nem sempre.
Num futuro obscuro, teremos partido para a derradeira viagem (será?) e o que vivemos e fizemos pouco perdurará na memória dos que ficam, e quando eles também desaparecerem, cada vez ficará menos de nós. A não ser que façamos parte da História, o que não é o meu caso, e mesmo que isso suceda, a História também não é eterna e também pode ser apagada. Ao fim de alguns evos, uma rocha transforma-se em pó ou em átomos, e nada resta de relevante.
Parece que voltei ao meu velho existencialismo, à minha tendência para ver o mundo pelo Dark Side, mas não é tanto assim; afinal sou apenas realista, e esses não são muito bem vistos porque veem a vida como ela deve ser vista: sem filtros, sem mentiras, sem cosmética. Só vemos rosas pelo nosso caminho e fingimos não nos apercebermos dos espinhos que calcamos sob os nossos pés nus.
Mas chega por hoje; vou retornar ao emprego e não quero entrar com estas visões tão... realistas. Vou fingir que nada se passa e que a vida é um sonho cor-de-rosa.
(P.S.: isto devem ser efeitos provocados pela morte da rainha).
28. ago, 2022
253 - To be or not to be (able to read), that is the question.15h05, domingo, 28/08/22
Eu, como escritor que finjo ser, assumo-me como escritor que não sou.
Esta frase que escrevi acima é o resumo daquilo que penso de mim e das minhas pretensões de escrita; mantenho a esperança na crença de que uma mentira muitas vezes reiterada acabe por tornar-se verdade. No entanto, escrevo porque gosto de escrever, porque gosto de ler o que escrevo e porque quero melhorar a minha performance como aprendiz de feiticeiro das palavras. Portanto, somo aos meus assumidos defeitos o de narcisista textual.
É verdade. Gosto de ler e reler os meus textos, fruir deles o que considero bom e deplorar aquilo que vejo ou julgo ver de fraca qualidade. Mas não mudo uma linha dos escritos pretéritos; acho uma traição a quem me lê e a mim próprio, uma intervenção plástica àquilo que é como é, que nasceu assim e assim deve permanecer, para o bem e para o mal. Nenhum escritor publica um livro e corrige-o depois; o máximo que pode ou deve fazer é, na próxima edição, acrescentar umas notas, retratar-se ou explicar o sentido do texto visado. E ficar por aí.
Estive hoje na Feira do Livro do Porto. Inevitavelmente, comprei alguns — aqueles que lerei quando tiver tempo, nos dias de descanso, na praia, quando me reformar. Há muitos anos (desde sempre) que preparo uma vida pós-laboral que talvez nunca tenha oportunidade de viver, que talvez já não tenha paciência para viver. É por demais evidente que sei que nunca terei capacidade mental, temporal e física de ler tudo aquilo que compro, todo o livro que desejo ler; sei também que é uma reação inconsciente à frustração sofrida por mais de três décadas de falta de autoinvestimento cultural, não importa a rezão.
Sou um profeta de mim próprio, um Oráculo de Delfos particular que já lamenta a dispersão da sua pequena Biblioteca de Alexandria após a dissolução do corpo que o alberga. Hélas!
21. ago, 2022
252 - Há sempre um bocadinho de imortalidade efémera em cada um de nós03h21, domingo, 21/08/2022
Hoje é um dia especial para mim. Aliás, para mim e para a minha “cônjuja” (feminino de cônjuge, que não existe) pois fazemos 40 anos de casamento e, simultaneamente, 45 anos, seis meses e catorze dias de assunção de namoro; tudo isto, uma gota de água no oceano da vida.
Já fomos novos, cheios de energia, vitalidade e sonhos. Agora somos quase velhos, cansados, e com o corpo e a alma cheios das nódoas negras da existência.
Viver é assim, nós é que não sabíamos, nenhum jovem o sabe mas, com o tempo, os sonhos vão-se esvanecendo, enquanto a realidade amolece-nos e cansa-nos o corpo e, inversamente, endurece-nos o espírito. Mas, de facto, a vida não é assim tão má e dá-nos algumas alegrias. É evidente que temos também muitos dissabores; no entanto, as belas rosas, sem os espinhos, perderiam o interesse e a beleza por serem demasiado fáceis de colher.
Um dia, infelizmente, esta união será quebrada, desfeita; no entanto, teremos de continuar por tempo incerto, tendo agora por companheiras a mágoa e a incompletude, para as quais não estamos nunca preparados; fica-nos contudo a nostalgia dos bons momentos e o conforto daqueles que demos ao Mundo e a quem demos o Mundo. E um dia também partiremos e deixaremos mágoas, dando seguimento a um ciclo de evos no passado e, certamente, perdurabilidade no futuro.
Cá bem no fundo, – não o sabemos –, mas temos o secreto prazer da propagação da espécie.
Que venham mais quarenta!
17. ago, 2022
251 - Os deuses e as supostas leis que os homens dizem que eles ditaram17/08/22, 04h48, 4ª feira
Quando iniciei este autodenominado pseudoblog, no último terço de 2012, estava a ler As Negras Costas do Tempo, de Javier Marías. Passaram 10 anos e já não me lembro da história, mas lembro-me do nome e do acto de leitura, e isso confunde-me. A maioria das vezes a minha memória atraiçoa-me; mas, no entanto, recordo o que li há tanto tempo. Que estranho!
Agora estou a ler
Grimus – um livro de Salman Rushdie. Curiosamente, comecei a lê-lo uns escassos dias antes da tentativa de assassinato do autor, e curiosamente também, poucos dias após eu ter escrito um comentário sobre as religiões e os fanatismos.
Esta tentativa é a prova de que tal tipo de fé cega e irracional nada traz de bom; o perpetrante tem 27 anos e a fatwa foi decretada 6 anos antes do seu nascimento, há 33 anos. Eis um homem que nunca leu Os Versículos Satânicos porque lhe é proibido e, no entanto, ajuizou(?) que devia ter feito o que fez porque lhe foi transmitido por um dirigente do seu credo – Khomeini – aliás, já falecido.
Dogma, verdade incontestável, lei que é transmitida por “eleitos” que representam a vontade de Deus na Terra.
Deus não fala ao ouvido dos seus representantes (eleitos pelos homens), ainda por cima para mandar matar seja quem for; Deus não necessita de instrumentos para fazer “justiça”, pois é, supostamente, omnipotente. Deus perdoa.
De outro modo, se perdoamos a alguém que nos tenha agravado, estamos a arrogar-nos superiores à divindade e, pala mesma ordem de ideias, devemos ser castigados. Assim, quando somos benevolentes, estamos a infringir o código de conduta da divindade, que é, pelos vistos, a vingança, o olho-por-olho, a intolerância e a guerra.
Que noção é esta de um deus? Não me parece muito justo premiar assassinos, seja a que pretexto for.
Infelizmente, há muitos letrados de corpo que continuam analfabetos de espírito.
9. ago, 2022
250 - Deus e a morte ou a premissa de Nietzsche05h19, 3ª feira, 08/08/22
Ontem morreu a poetisa e escritora Ana Luísa Amaral. De cancro. Conheci-a através da Faculdade, chegou a estar online numa aula de literatura em tempos de pandemia.
Qualquer pessoa que conheçamos, dá-nos pena vê-la partir; é mais uma referência de vida apagada, mas não necessariamente esquecida. Nós também seremos referência para alguns, poucos, mas seremos. Não significa necessariamente que seja por boas razões, mas lembrar-nos-ão após o nosso passamento durante um período variável; depende por quem e depende porquê.
Não somos menos importantes do que qualquer outra pessoa que desaparece; seremos recordados pelo exemplo ou pela falta dele, que legámos ao mundo ou, simplesmente, porque não fomos reconhecidos ou porque optámos pelo anonimato, não seremos mencionados. Sabe bem a glória, a notoriedade, mas de nada nos serve após a morte, pois não estamos cá para colher os louros (ou os insultos, depende dos casos, como já disse). Ou, numa frase atribuída a Harry B. King, “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. Seja como for, gostamos que nos escovem o Ego.
E que mal tem isso? Não será por aí que iremos para o Inferno (hipótese para crentes), apenas melhoramos um pouco a nossa autoestima, está-nos no sangue. Até as crianças, mal começam a ter um mínimo de entendimento, ficam todas vaidosas por serem congratuladas por algo que tenham feito bem.
Infelizmente ou felizmente, é tudo transitório; nem as pedras mais duras resistem ao passar do tempo, mesmo elas se transformarão em pó algures num futuro talvez distante.
Que é feito dos temerários guerreiros de antanho? Que é feito desses para quem a morte era muito inferior à honra e à valentia? Que é feito desses que não temiam o esqueleto com a gadanha, antes o esperavam como recompensa dos seus feitos gloriosos? Hoje somos uns coitadinhos que temem tanto a morte que, por vezes, se suicidam por não poderem suportar a ideia da sua vinda.
Aqui, estou tentado a atribuir as culpas às crenças religiosas, especialmente as cristãs, pois incutiram, desde há dois milénios, o medo da morte, do que nos espera no além, do Inferno. Outras religiões como, por exemplo, a muçulmana, a hindu, os budistas, encaram o passamento com naturalidade, como uma forma de desenvolvimento do espírito, como prémio ou com um tranquilo fatalismo de quem sabe que, mais tarde ou mais cedo, temos de ir, de partir para outra vida, largarmos tudo aquilo a que nós apegámos demasiado, ficarmos livres das grilhetas da carne.
Cabe agora fazer uma ressalva: não sou anticristão ou anti qualquer outra religião; todas têm os seus pontos bons e os seus pontos maus, entre os quais figura a crença fanática de que são a única religião verdadeira. Esse é o pomo da discórdia que estraga as relações entre os povos, esse é o espinho cravado na carne da Humanidade e causador de incontáveis milhões de mortos através dos tempos, em guerras fratricidas, para impor pela destruição de pessoas e bens a aceitação incondicional de um Deus Verdadeiro.
Como?! Todo o deus fabricado que faz a guerra não pode ser um verdadeiro Deus, ou não destruiria cruelmente as suas criações! Os proclamados “infiéis” e “pagãos” só existem na cabeça de quem os criou, e de certeza que não foi na de Deus.
Não vale a pena mais argumentos, pois quem é fanático não os aceitará nunca, fechará os olhos e tapará os ouvidos a quaisquer raciocínios, por mais incontestáveis que sejam.
Sou apenas agnóstico, como já tive oportunidade de escrever no passado; acredito na existência de algo, uma Inteligência, um Grande Arquiteto – como alguns lhe chamam, que ordena e coordena tudo o que se passa no Universo, mas nada impõe, nada exige (no fundo, podemos chamá-Lo de Deus). Cabe aos seres humanos, individualmente, mas cada vez mais como comunidade, agirem para o bem comum, até que, cada um a seu ritmo, se integre finalmente no Uno.
Deus não necessita de polícias, de soldados, de torcionários, de influenciadores; todos esses foram criados pela humanidade a suposto mando d’Ele, e para benefício de alguns.
Nota: as referências à divindade foram todas escritas em letra grande, numa demonstração de respeito para quem crê, e para quem crê no Bem, seja em que religião for; os outros não merecem o meu respeito.
4. ago, 2022
249 - Será que sou perfeito e não sabia?04/08/2022, 04h22,5ª feira
Ainda bem que não fui rico. Quero dizer, ainda bem que não nasci num berço de ouro e não cresci rodeado de tudo o necessário, obtido sem esforço. Nasci, sim, numa família economicamente decadente, o que me deu a noção do que era ter-se sido rico. Nunca disso beneficiei, embora nunca me tivesse faltado o essencial; digamos que era um remediado remediado, por vezes quase a cair na escala imediatamente inferior.
Agora, quem me dera ser rico, ou, pelo menos, um rico remediado. Estou quase na idade da reforma e não vislumbro muitas perspetivas de um futuro confortável. Mas, com a ajuda de Deus (sou agnóstico), as coisas compor-se-ão.
Desviei-me do assunto: a razão do meu tema é o ter-se nascido rico e o que isso influi nos juízos que fazemos dos outros, na nossa capacidade de nos desenrascarmos, nas nossas possibilidades de podermos obter uma boa educação, um bom curso, um bom emprego. Como nunca passámos por necessidades – verdadeiras necessidades – a nossa visão do Mundo e dos Outros adultera-se, estreita-se, fica-se mais empedernido em relação àqueles que estão abaixo de nós na escala de poderio económico. Não necessitamos de lutar: os nossos pais já o fizeram por nós e a vida é um mar de rosas - até ao primeiro grande tombo. A partir dai, há duas opções: ou abrimos os olhos e começamos a usar o que temos, mas está embotado, ou seja, a inteligência, a capacidade de pensar; ou não abrimos os olhos e continuamos até ao próximo grande tombo, que vai ser ainda mais doloroso que o primeiro, e as possibilidades de recuperação se vão tornando cada vez mais baixas.
É o que reparo na juventude abastada de hoje (e mesmo nos pais): vivem como se o amanhã fosse um produto garantido e não existisse nada com que nos pudéssemos nem devêssemos preocupar. Posso citar exemplos (às dezenas):
Todas as semanas guardo no armário objetos de uso pessoal que rarissimamente são reclamados. Desde brinquedos a toucas de banho, óculos de natação, bolas de couro, roupas, toalhas de banho, colunas de som portáteis fatos de banho, etc. Perdeu-se? Não faz mal, amanhã ou depois compra-se outro, nem vale a pena perguntar na portaria se alguém achou. Dá muito trabalho. Ou é irresponsabilidade. Ou muito dinheiro, se calhar, a mais. É a cultura do esbanjamento.
Desde sempre fui habituado a responsabilizar-me pelos meus pertences e a ter a noção de que as coisas não caem do céu: Perdeste? Paciência, não levas outro, abre os olhos. Estragaste? Não estragasses. Chama-se a isto juízo e economia, responsabilidade. Não vejo muito disso agora; vejo desperdício, despreocupação inconsciente, falta de preparação educativa.
O que será deles se um dia a vida lhes correr mal? Vão roubar, suicidam-se? Há quem o faça por menos.
Felizmente não nasci rico, mas continuo a acalentar a esperança de o vir a ser. Que a deusa Fortuna me ouça...
13. jul, 2022
248 - O meu aniversário cisgénero01h08, QUARTA-FEIRA, 13 DE JULHO DE 2022
Escrevi a data por extenso e em letra grande porque hoje é o meu aniversário, faço 65 anos. Não que fique particularmente contente por isso porque estou mais velho, menos saudável, menos “elástico” e, por consequência, menos capaz de fazer tudo o que a juventude me fornecia e que eu, como qualquer outro, estraguei em grande percentagem.
Mas, por outro lado, sinto-me contente por ter sobrevivido tanto e em tão “bom estado”; infelizmente, há muitos que não se podem vangloriar disso, ou porque estão mortos, ou porque estão física ou mentalmente diminuídos. Não lhe gabo a sorte.
No fundo, afinal, sinto-me feliz por estar aqui, apesar de todos os revezes da vida: tenho uma óptima família, uma vida económica minimamente remediada, a concretização de alguns sonhos; que posso mais desejar? Vida ideal, não é, como não é para ninguém, pois não há bela sem senão. As belas sem senão não passam de um mito – mas também quem as quer assim? A perfeição demasiada aborrece, tudo o que é recebido sem esforço ou defeito acaba por entediar.
Salvaguardo agora, para @s puristas das classificações de género (ou agénero, ou
whatever) que apenas estou a usar uma frase feita (a das belas), o que não reflecte a minha maneira de pensar. E se reflectisse? Certa ou errada, seria a minha maneira de pensar, talvez condicionada ou não por uma educação de género. Mas há quem tenha a pretenção de que a vida deve ser vista segundo uma óptica actual e/ou pessoal, nem sequer a tentando compreender à luz dos meus (e de muitos outros) tempos pretéritos. Daí surge o insulto e novas formas de preconceito. Para esses, convém que não esqueçais que o futuro também vos julgará e criticará.
P.S.: só faço anos às 03h30.
19. jun, 2022
247 - Por vezes é preciso tomar banhos de sol nos miolos20h35, sábado, 18 de junho, 2022
De novo frustradíssimo por causa de uma ideia que me escapou durante aquele tal período de “vigília adormecida”! Como de nada vale chorar sobre leite derramado, pois só salga e agua o leite, estragando-o, portanto. E quem é suficientemente parvo para fazer isso? Com que intuito? E com que estado de espírito — frustração, raiva, desgosto saudade, pena? A que ponto isso melhora o nosso Astral? Nada de nada, só estraga um bem essencial que faz falta a muita gente.
Aborreço-me a olhar para o écran de vigilância que tenho perante mim: oito entradas de zonas habitacionais, dois de garagens, e mais seis que, por não estarem nem nunca terem estado activados, parecem o filme
Branca de Neve (apresentado em 2000, pelo cineasta (?) João César Monteiro, falecido em 2003) e onde a acção se resume quase totalmente a um écran negro, com algumas palavras e murmúrios incompreensíveis à mistura, e que custou ao erário público 750 000€, dinheiro usado para estragar película e fazer também falta a muita gente. Ainda me recordo que, questionado sobre o que achava que pensaria o povo português sobre esta “aberração” fílmica, o realizador comentou delicadamente: “Eu quero que o povo português se f.....!” Mas, na minha opinião, isto foi arte... Arte de estragar dinheiro.
Deixemo-nos de falar sobre coisas parvas e concentremo-nos em falar sobre outras coisas, se calhar, igualmente parvas, e inauguremos o resto do texto com a icónica frase dos Monty Python –
And now, something completely diferent, - enquanto apresentavam algo completely the same.
De que vou falar? De autopiedade, de aborrecimento, de frustração, de tristeza, de raiva, de desencanto? É que, neste momento, de nada mais me apetece falar. Sinto-me indolentemente negativo, desmotivado. Razões, haverá muitas, mas não vou apontar nenhuma, nem sequer sei qual delas é a causa. Apenas me apetece escrever algo, a queixar-me de nada. Não estou propriamente depressivo, estou um grau acima na escala da negatividade, é só isso. E isso passa, hoje ou amanhã já não é nada e o sol volta a brilhar dentro da minha cabeça.
Sabem que mais? Sinto-me apenas muito cansado...
8. jun, 2022
246 - Será que, a Pandora, lhe "saltou a tampa"?03h02, 4ª feira, 08/06/22
No dia 26 pp, o Inominável bateu-me à porta; embora eu seja agnóstico, graças a Deus que foi apenas agora que tal sucedeu, porque no início da pandemia a virulência era mais violenta (perdoe-se a paronomásia). Já passou e sem grandes sintomas ou incómodos, salvo um pouco de febre, tosse, espirros e nariz entupido. Tal qual uma gripe.
Embora a ameaça paire ainda, nota-se um quase regresso a uma normalidade cautelosa, tacteante, como que a medo. É normal, a humanidade viu os casos mal-parados durante 2 anos e meio, sensivelmente. Agora a novidade é a guerra Rússia-Ucrânia e todos os olhares se voltaram para este conflito às portas da Europa e quase esqueceram tudo o resto.
Parece uma repetição da História: durante a Primeira Guerra Mundial, os olhares estavam virados para o desenrolar da guerra, as mentes estavam fixadas nos avanços e recuos bélicos das partes envolvidas; a Gripe Espanhola ( iniciada nos Estados Unidos), que matou muito mais do que a guerra (gripe - entre 50 a 100 milhões; Guerra – cerca de 20 milhões), estava em segundo plano, talvez devido às prioridades de uma sociedade ainda habituada às pestes que dizimaram milhões desde a Idade Média até aos primeiros alvores do século XX. A morte por doença era muito comum, a guerra em tão grande escala, era uma novidade e, por isso, assumiu tão grande importância e ocupava as bocas do Mundo.
Dá a impressão de que, desde o século passado, a Ciência abriu demasiado a tampa da caixa de Pandora, numa ânsia compreensível de desenvolvimento e conhecimento, mas sem tomar os cuidados devidos. A ciência está com pressa, demasiada pressa, e atropela todas as precauções; as ciências exatas estão-se a transformar em ciências incautas, e isso tem um preço a pagar. Esse preço somos nós, os seres humanos e, indissociavelmente, a Natureza. Ou vice-versa, pouco importa. Quanto mais tempo sobreviverá a vida na Terra? Que será necessário para inverter a tendência?
23. mai, 2022
245 - Ideias e Blattodeas06h39, domingo, 22/05/22
Cada vez identifico-me mais com a ideia de que, para escrever, é necessário silêncio, recolhimento, solidão.
Ontem dei dezenas de voltas na cama, a tentar dormir, e o único que consegui foi fazê-lo durante duas horas: entretanto, nesse estado semi-catatónico, o pensamento vagava, livre, despreocupado, longe da carga habitual de tráfego de ideias que é normal qualquer um ter durante o período de vigília e que se assemelha a uma autoestrada em hora de ponta: cada pensamento entalado entre incontáveis outros onde, pára-arranca aqui, buzinão acolá, não há fluidez, apenas uma catadupa de ideias que se atropelam umas às outras na ânsia de se sobreporem, de se fazerem ouvir ou, simplesmente, vazias de conteúdo, e que aparecem apenas para “meter nojo”.
Pois ontem a minha mente teve todo o tempo do mundo para pensar, criar e desenvolver raciocínios minimamente válidos, alguns bem merecedores de serem melhor explorados. Só que, nessas alturas de “vigília adormecida”, não podemos abandonar os pensamentos; eles são animaizinhos ariscos e assustadiços que fogem ao mais pequeno movimento. Assim, deixas-te sonhar, deixas desenvolver a ideia, na esperança de que, quando finalmente te moveres, ela não fique nublada ou desapareça, e tenhas tempo de a assentar num papel.
Puro engano! Ao mais pequeno movimento, ao mais pequeno esforço de sair desse semi-torpor, eles fogem como baratas (
Blattos, em latim) quando se acende a luz, e ficamos sem nada, apenas frustrados, porque sabemos que aquela ideia tinha pernas para andar, para desenvolver. Infelizmente, apercebemo-nos que, quando voltamos ao estado de vigília, afinal as ideias têm pernas mas é para fugir, e ficamos apenas com uma enorme sensação de perda.
Still, we keep on trying...10. mai, 2022
244 - O auto-auto de fé06h04, 2ªfeira, 9 de maio
Acabou a Queima das Fitas! Música e álcool, queima dos ouvidos e do fígado. Iniciação de grandes dramas românticos, consolidação de ódios e amizades para a vida, pré-instalação das mazelas físicas que nos irão atormentar para sempre e mudarão substancialmente o nosso mundo pessoal, embora ainda não o saibamos.
Tempo de loucuras, de irreverências e de irreverências parvas; para alguns, será tempo de aprendizagem do mundo. Hora de curar as ressacas e seguir em frente.
19. abr, 2022
243 - Quem nunca tiver mentido que atire a primeira pedra19/04/2022, 3ª feira, 05h24
Li algures, num artigo relacionado com o desempenho das crianças e com o que elas vão aprendendo ao longo do seu desenvolvimento, tais como a noção do perigo, a sinceridade, a mentira, etc, que elas só começam a mentir a partir dos 3 anos.
Antes de desenvolver este tema, acho interessante constatar o que acho que já toda a gente constatou: falamos das crianças como se fossem uma raça à parte ou, inconscientemente, como se fossem cachorrinhos ou gatinhos, não nos lembrando de que já fomos crianças, já fomos um desses seres que, numa conversa normal de adultos, são encarados como algo alienígena, formas de vida desconhecidas, das quais temos muito que aprender e com quem temos de saber lidar. Por outro lado, são vistas como uma espécie de desmioladitos e ficamos muito admirados, cheios de Oh’s e de Ah’s, como se pertencêssemos a uma civilização atrasada, quando as crianças fazem algo fora do que esperamos delas. É um espanto! Estamos a olhar para um génio!
Por favor! Ninguém nasceu adulto e sábio! Para quê tanta admiração parola? Será que nós, no nosso tempo de infância, éramos assim tão mais estúpidos, tão mais desmioladitos do que eles? Sei que é uma reação natural, comum a toda a gente, mas é uma reação um pouco parva. Devíamo-nos limitar a observar e avaliar o desenvolvimento como uma coisa perfeitamente natural e não alvo daquela admiração um bocado aparvalhada que costumamos demonstrar. Já fomos crianças e, como elas, aprendemos, não há de que espantar, ponto final.
Mas dizia eu que as crianças começam a menti a partir dos 3 anos; deve ser por isso que muita gente, quando eles são pequeninos, lhes chama anjinhos. A partir dessa idade geralmente mudam de nome, começam a ser chamados de diabretes.
O que eu gostaria de saber — e o artigo não explicava — era se elas começam a mentir por influência dos adultos, mesmo que esta seja inconsciente, ou se desenvolvem essa capacidade naturalmente, por força da ameaça de castigos, quando elas se portam mal, ou como forma de obterem miminhos e recompensas. Ainda me lembro, embora vagamente, da minha primeira infância e tenho recordação de ter mentido para evitar admoestações ou uma surra bem dada no rabo; quanto a qualquer situação de favorecimento ou mimos, nada me recordo.
Na minha opinião, a mentira é como aquela maldade que as crianças têm em infligir sevícias a tudo o que é vivo e a que deitam a mão e não morde. Eu lembro-me que já fui assim, torturei muitos insetos, mas fi-lo com uma maldade inocente, ou seja, amoral, sem consciência de que estava a proceder de uma maneira errada e cruel. A mentira é um processo que aprendemos naturalmente porque iremos precisar dela durante toda a vida, para o bem ou para o mal. As mentiras não são necessariamente más; fazemo-lo também por piedade, por amor, por amizade, por brincadeira inocente, ou mesmo para travar mentiras malévolas de outros ou para nos protegermos ou a alguém.
No fundo, somos todos uma camada de mentirosos.
6. abr, 2022
242 - Alma minha gentil que te partiste...3h48, 4ª feira, 6 de abril de 2022
Hoje acordei com uma dúvida existencial. Quer dizer, não acordei hoje com ela, já existe há muito tempo e faz parte de mim; portanto, é quase como dizer que acordo comigo próprio, com as minhas incertezas, as minhas perguntas sem resposta, os meus medos e esperanças.
Acredito desde há muito tempo na reencarnação. Não de uma maneira dogmática pois acho que ninguém pode ser dogmático no tocante à existência da chamada alma e para onde ela vai, se existir. O que hoje é, para qualquer um de nós, um dogma, pode amanhã transformar-se numa dúvida, e vice-versa. Só existe dogma para quem aceita algo incondicionalmente, o que, na minha opinião – que vale o que vale – , depende apenas de cada um, das suas crenças, da sua fé em algo, da sua educação.
A vida é feita de incertezas; as crenças são feitas do que nos foi ensinado desde crianças e daquilo que vamos aceitando ou repudiando ao longo da vida, racional ou não. Não podemos obrigar ninguém a aceitar aquilo em que cremos ou a repudiar o que não cremos. A ordem que preside ao Universo é, por nós, chamada de Deus, pelos muçulmanos, de Alá, pelos judeus, de Jeová e qualquer um destes crentes exige que aceitemos a sua divindade como a única verdadeira e sigamos dogmaticamente os preceitos que constam nos chamados livros sagrados. Ninguém pode arrogar-se um verdadeiro crente só porque acredita em algo e porque os livros são inquestionáveis.
Todas as grandes religiões falam de tolerância, está nesses livros. Mas todos fazem vista grossa às páginas onde isso figura. Enquanto lermos apenas o que nos interessa, este mundo continuará a ser um lugar de ódio e rejeição.
Mas voltando à dúvida existencial: como disse acima, acredito que existimos para além do corpo, para além do veículo, mas questiono algumas situações pouco esclarecidas porque não posso aceitar o inexplicado como se fosse simplesmente e dogmaticamente inexplicável.
Comecemos por algumas existências terrenas como, por exemplo, crianças que nascem com malformações terríveis ou doenças incuráveis, e letais a curto prazo; se, como dizem as doutrinas que aceitam a reencarnação, vimos a este mundo pagar coisas que fizemos em vidas anteriores – o carma ou Karma – ou evoluir de acordo com as nossas boas obras, pergunto: de que vale para aprendizagem ou “pagamento de dívidas” sofrer e morrer numa idade em que um ser humano nem sequer tem discernimento para saber que existe? A que ponto é justo o carma penalizar alguém que foi criado num ambiente desfavorável, onde só aprendeu o mal sem sequer disso ter consciência? Tornou-se num ladrão ou assassino porque quis?
E porque é que os nossos deuses, sejam eles quais forem, como já o disse acima, sendo omnipotentes, omniscientes e omnipresentes, criaram seres imperfeitos?
Há alguns anos, nestas páginas, pus a mesma questão: será que o
Rex Mundi é sadomasoquista e cria seres deficientes só para que eles evoluam e voltem a ser unos com Ele? Para quê fazer-nos sofrer se Ele é bom e só quer o Bem? Para quê fazer-Se sofrer se somos parte Dele? Não entendo a lógica. É como se nós nos dessemos ao trabalho de construir algo avariado só para termos o prazer(?) de o consertar.
Pode ser que um dia eu compreenda, mas não vejo jeito.
28. mar, 2022
241 - Tratem bem (metafóricamente) as metáforas05h06, 28/03, 2ª feira
Hoje estou muito cansado, cheio de sono, nem sei o que vou escrever. Serei hoje um Jack Kerouak a debitar impressões sobre o papel, sem qualquer objectivo definido, sem nenhum plano para tratar de seja do que for.
Enquanto escrevo, mordo uma barra de chocolate negro para me dar inspiração, mas parece que a única coisa que ele me dá são calorias a mais. Não faz mal, vou continuar a roer a barra por simples, egótico, guloso prazer, porque adoro chocolate. Bem, não “adoro” — gosto muito, é um facto, mas nada de transcendental.
Estou a ver passar a noite à minha frente.... Ora, ora, nem a estou a ver passar nem ela está à minha frente, nada disto passa de metáforas: a noite não passa por mim porque é, digamos, algo imóvel, uma simples ausência de luz solar, devidamente explicada pela astronomia; para nós é um frame de escuridão pontilhado por candeeiros de rua. Quanto “à minha frente”, a noite rodeia todo o meu universo local e não está apenas perante mim.
É interessante pensarmos no mundo de metáforas que proferimos e escrevemos constantemente; não é possível ter uma conversação normal ou qualquer outra forma de comunicação sem as aplicarmos. O simples facto de desenharmos algo é uma metáfora visual, pois vemos o que não estamos a ver, por mais realista que o desenho seja, é apenas a nossa imaginação a funcionar.
Uma foto, um desenho, uma nota de música, uma paisagem ou um retrato estampado, pintado, serigrafado, um quadro modernista, surrealista, pontilhista, rafaelita, pré-rafaelita, cubista ou abstracto, são representações metafóricas de algo, embora às vezes não as compreendamos. Metáforas são representações da realidade (ou não) que algo, alguém, ou mesmo nós, enviamos ao nosso cérebro para descodificar – o que depende da cultura de cada um, da sua inteligência, das suas vivências, da sua educação e dos seus sentidos.
E termino por aqui.
15. mar, 2022
240 - O desacordo ortográfico e os Novos do Restelo01h03, 3ª feira, 15/03/2022
É uma constatação! Estou a perder o hábito – longo de 60 anos – de utilizar a antiga grafia! Não sei se chore de raiva ou suspire de alívio porque, por um lado, e analisando friamente alguns pontos da polémica que se instalou com o novo acordo ortográfico, no início dos anos 90 do século passado, existe alguma lógica nalguns (não todos) pontos do referido convénio.
Não sou linguista, não vou enumerar os prós e os contras aqui, mas julgo que, para além de alguma racionalidade na elaboração do dito, houve também alguma incoerência por excesso de zelo linguístico, e algumas alterações acabaram por se transformar em autênticos disparates.
Este novo acordo ortográfico assemelha-se a um medicamento que não tenha sido devidamente testado; podem surgir efeitos secundários inconvenientemente olvidados ou minimizados durante a análise e que prejudicam, não só a credibilidade de quem o fez, como geram confusões e dúvidas perfeitamente evitáveis.
Além do mais, um acordo por decreto!!! Desde quando é que a política se mete na linguística? É um disparate! E um acordo com os PALOP? Nem sequer existiu! Os brasileiros continuam a falar e a escrever como sempre o fizeram, os angolanos idem, etc., etc., etc. Dá a impressão de que o acordo é para que ado(p)temos as formas linguísticas dos outros países de expressão portuguesa, e ponto final! A língua-mãe é que se subjuga aos países de expressão lusa, que têm a sua própria cultura, maneira de falar e escrever e que estavam muito bem nos seus cantinhos até que uns iluminados decidiram que o que era melhor para eles era mudar tudo. E afinal, só nós é que mudámos??? Para um suposto melhor entendimento entre os PALOP?
Os ingleses, os americanos, os australianos e outros países da Commonwealth ou não, mas que falam inglês, cada um fá-lo à sua maneira e todos se compreendem sem inteligentes a mudar a língua:
gasoline ou
petrol,
subway ou
underground,
lift ou
elevator, que interessa?
Nós temos regionalismos. Vamos também pegar por aí, para que todos em Portugal se entendam? Acho que é melhor, é mesmo por aí que deveríamos ter começado: vasculho no Norte é uma vassoura, enquanto no Sul é uma pessoa que passa o tempo na coscuvilhice; esbotenado no Porto é um objeto com um bordo partido, enquanto na Guarda chama-se esbocelado, etc., etc., etc.
Já não há nada a fazer, é irreversível. Porém, para as pessoas da minha geração, e mesmo da seguinte, pelo menos, fará uma certa confusão. Acepção agora é acessão. Parece que estamos a referir-nos a uma sessão. Um exemplo entre muitos.
Não me considero um Velho do Restelo, sempre pronto a criticar tudo e todos, mas, como toda a gente, habituei-me a um mundo que será sempre o “meu mundo”, por mais que eu mude e me adapte ao que vai surgindo. Acho que todos somos assim, um dia começamos a cristalizar, lentamente, gradualmente, nesse “nosso mundo” vivido no passado. No entanto, vamos aceitando, vamos mudando um pouco. Guardaremos sempre, mesmo assim, um lugarzinho secreto para o nosso pequeno universo pessoal.
28. fev, 2022
239 - É o bicho, é o bicho...3h34, 2ª feira, 28 de fevereiro
Primeiro que tudo, as minhas constantes e reiteradas queixinhas de que estou muito cansado, que não tenho tempo para escrever, de que tenho um trabalho para apresentar, de que, de que, de que…
Geralmente, esse desfiar do rol dos dói-dóis parece surtir o seu efeito: acalmado o ego, após a exposição pormenorizada das maleitas, numa expressão da mais pura autocomiseração, sentimo-nos mais prontos para escrever coisas mais impessoais porque fingimos acreditar que quem nos lê terá muita peninha de nós e seremos, por alguns instantes, o fulcro das atenções e da piedade alheia, o que é óptimo para o nosso tão depauperado ego.
Pronto, já me confessei, não sou católico praticante, mas já me confessei e estou limpinho para começar de novo a pecar. De que falava eu?... Ah! As minhas maleitas.
Ora bolas!, agora que falei nelas, já não dá “pica” fazer o estendal, estraguei tudo! Vou ter de engolir em seco e falar de qualquer outra coisa. Mas de quê, que eu adoro falar de mim próprio? Lá se foi todo o interesse!
Cá em cima espicaço laboriosamente o meu cérebro, como um lavrador espicaça (coitados) os bois para que eles trabalhem. E nada! Nada me vem à cabeça que mereça um mínimo da minha atenção. Estou num impasse.
Se ao menos tivesse piolhos, ou mesmo pulgas ou percevejos, ou até chatos, sempre poderia tecer considerações sobre como raio os apanhei, desconfio que foi aquele fulano que mos pegou no comboio ou aquela fulana que se coçava muito na fila da padaria, isto é inadmissível nos tempos de hoje, há uma tremenda falta de higiene que não se compreende em pleno século XXI, sabe-se lá como será lá em casa, todos a coçarem-se, que nojo, e se aquilo cai na comida, se calhar até os cães ou os gatos – se os tiverem – estão contaminados, mas pode ser que até nem tenham culpa, se calhar nem se aperceberam, foi o miúdo ou miúda quem apanhou aquilo na escola, de outras crianças, mas voltamos ao mesmo, há sempre alguém que não tem higiene e passou a bicharada para o filho ou filha (que esses bichos não nascem na escola, de algum lado hão de vir) que, por sua vez, passou para os primeiros miúdo ou miúda, ou cão ou gato (se os tiverem) e que por lamentável descuido recebemos de herança! Vai-se lá saber, mas agora o problema é nosso, nós é que temos de nos livrar deles.
Continuo a puxar pela cabeça e nem um piolho se digna aparecer, o que é bom, seria uma vergonha se alguém visse, poderia pensar exactamente o que eu pensei e disse no parágrafo anterior e, para quem visse, seria eu o porco descuidado e piolhoso de quem é preciso afastarmo-nos.
P.S.: Eu não ando de comboio.
6. fev, 2022
238 - Afinal, apenas fingimos que não sabemos...
01h59, domingo, 06/02/22
Apressadamente, escrevo algumas palavras para evitar que este hábito, velho de quase 10 anos, soçobre por falta de alimento. É por vezes difícil manter uma regularidade de escrita que não ultrapasse valores de ausência demasiado extensos, mas a vida nem sempre se processa como queremos, mas como podemos.
Digo “apressadamente”, não porque esteja a fazer um sacrifício, um frete, para escrever, não; digo-o porque sinto que, ao centrar o meu pensamento neste processo de criação, estou a roubar tempo para outro processo de criação muito mais exigente, que é a elaboração do meu último trabalho académico, da dissertação com que culminarei os meus estudos, pelo menos por agora. O tempo é curto e a ansiedade aumenta.
No entanto, acarinho este espaço, pois que, além de me permitir ensaiar uma escrita experimental, isenta de pretensiosismos ou esforços de reconhecimento, deixa-me também satisfeito porque sei que, algures, alguém me lê; e esse alguém é anónimo, não me dá feedback e, portanto, não me alimenta o ego.
Quero dizer, alimentar, alimenta sempre um bocadinho… mas, sem “likes” ou comentários, tudo se passa como se eu apenas escrevesse para guardar os manuscritos (os wordescritos) nessa gaveta virtual, secreta, que imaginamos existir no nosso computador. São desabafos que escrevemos, fingindo que ninguém lê e, embora tomando uma certa contenção com aquilo que escrevemos porque sabemos que serão lidos, simulamos escrever para o oblívio, por simples desabafo, como seria um suspiro solitário ou atirar qualquer coisa ao chão, nos casos mais extremos.
Escrever é como falar sozinho, gesticular para ninguém, um solilóquio mudo, um pensamento insuspeitado. Escrever é agir sem acção (embora escrever seja, a seu modo, agir).
E pronto, escrevi por tudo o que disse e por outras coisas que não disse e guardo para mim. Sei que vou ser lido, mas finjo não perceber, finjo que guardo a chave da gaveta onde fechei estas palavras, mas que na verdade deixei aberta, para que leiam aquilo que pouco ciosamente escondo.
26. jan, 2022
237 - Gladiadores, feras, mártires e palhaços - Chegou o Circus Maximus!26/01/2022, 4ª feira, 01h09
Chegou o espectáculo! À boa moda romana, temos de novo pão e circo! Neste último, o componente popularucho indispensável dos beijinhos às peixeiras, feirantes e povo da rua, acompanhado eventualmente por uns brindes. Já não são frigoríficos ou viagens pelo Douro, mas são porta-chaves (que até dão muito jeito) ou autocolantes magnéticos para pôr no frigorífico, que até enfeitam aquelas portas brancas tão nuas e sensaboronas. Piadas e insultos velados ou não, tão ao gosto dos que partilham a mesma cor política e que, como estamos tão perto do Carnaval, ninguém leva a mal. Até os oponentes acham graça e recrudescem em ditos soezes, calúnias, distorções, numa espécie de cantar ao desafio. Cantar, bailar e fazer outras figuras tristes até caem muito bem e angariam votos.
E os discursos? Não podem faltar, para encher os ouvidos de quem quer e gosta de ouvir e tapá-los para eventuais evidências de outros candidatos. Quem o feio ama…
E promessas? Palavras, leva-as o vento. Quando se chega a vias de facto, a culpa das promessas não cumpridas deve-se a milhentas coisas que nada têm a ver com a nossa responsabilidade, sejam elas o estado caótico em que os outros deixaram o país, a má gestão ou o desvio de dinheiros públicos, a conjuntura, a pandemia,
you name it! Como no circo romano, tem de haver condenados que possam ser atirados às feras, para gáudio da multidão e para se poder sacudir a água do capote.
No rescaldo desta encenação, vemos muita terra queimada e uns fulanos com uns rebentos nas mãos a dizer que os vão plantar, porque os outros estavam velhos e não prestavam (mesmo que estivessem a dar bons e abundantes frutos), mas estes sim, eram diferentes, cresciam muito depressa e com mais e melhor sabor. Geralmente, a maioria destes rebentos, ou não vingam, ou são raquíticos, ou são mesmo de plástico, para tapar os olhos.
E nas próximas eleições torna-se a montar a mesma tenda, o mesmo circo, apenas com alguns artistas novos (ou não), executando as mesmas performances e trazendo novos rebentos iguais aos anteriores. O Circo Romano é o mais antigo espectáculo do mundo pois, como dizia o artista: “disto é o que o meu povo gosta”!
E, no fim, não temos escolha, votamos sempre num palhaço...
11. jan, 2022
236 - Por uma desinformação esclarecida e inconsciente...20h38, 2ª feira, 10/01/22
Aquele a que recuso nomear (talvez por razões estéticas, sei lá…) tem feito mais algumas, esperemos que temporárias e estruturalmente incólumes, vítimas, neste prédio e arredores.
Dois colegas de trabalho, um deles daqui, ficaram confinados por infecção – como agora sói dizer-se -, o que nos obrigou a um reforço pessoal do período de laboração, para colmatar essas ausências. Por isso estou aqui e agora.
Será cisma e não postura estética a minha recusa em chamar os bois pelos nomes? Penso que apenas fiquei farto do lembrete estigmatizante com que, desde o fim do ano de 2019 até à actualidade, o convencionado nome da patologia soa aos ouvidos de todos (até dos surdos, metaforicamente, por linguagem gestual) como se estivéssemos no epicentro de um ensurdecedor (mais uma vez a metáfora) carrilhão de Mafra mediático que nos soa, não já nos tímpanos, mas no interior do cérebro, e que, por demasiado presente, abafa tudo em seu redor. Distorção e imperceptibilidade podem, com toda a probabilidade, ser as consequências.
Por isso, num mundo excessiva e muito erradamente mediatizado como o actual, as palavras têm tendência a circular nas nossas cabeças como um vento turbilhonante que entra por um ouvido e sai pelo outro (outra metáfora), nada deixando senão resíduos, sujidade e incompletude. Só ficam pégadas e destroços de ínfima qualidade – o material de eleição para populismos, fanatismos e teorias da conspiração; uma camada de verniz retórico barato faz o resto.
Não se pense, contudo, que esta (des)informação é apenas para consumo das massas. Não é. Há muito cidadão que, de plena boa-fé, se julga consciente e informado, mas que se deixa enganar pela aparência de plausibilidade, de lógica, de verdade. Todos somos, mesmo que não o aceitemos, manipulados, de uma maneira ou de outra. Como dizia a minha avó: Todo o burro come palha; o que basta é saber-lha dar.
3. jan, 2022
235 - Poema d'uma rosa sóOh, rosa de rubra cor,
De pétalas ao solo arremessada!
Uma mão te colheu, e de mão mudaste.
Rosa dispersa; rosa, do desígnio aniquilada,
Quiseras ser recebida como um tesouro sem preço, pobre flor!
Mas a que te recebeu ainda não estava preparada…
E assim, rosa vermelha, aos quatro ventos te espalhaste,
Sem saber da tua missão o desenlace.
Descansa rúbida flor, não fracassaste!
Despedaçada, cumpriste o teu destino,
E descansas nas memórias que juntaste...Santofrei
(
234) Ups.... Saltei um número...
30. dez, 2021
233 - O (in)desejado descanso do guerreiro
30/12/2021. 5ª feira, 02h24
Estou a ouvir música clássica como forma de acalmar esta ansiedade de que me estou, progressivamente, a aperceber. Afinal, nem tudo são rosas na inatividade, no suposto repouso de quem se queixa do trabalho, da falta de tempo, da opressão dos horários compulsivos, da ausência de convívio familiar; o que me conduz inevitavelmente ao falso alívio de uma reforma que se aproxima com uma rapidez simultaneamente galopante e morosa. Desejada? Sim; temida? Sim.
O descanso do guerreiro não é, afinal, assim tão pacífico. É uma aflição, um quebra-cabeças, um desafio permanente à nossa sanidade mental, para não falar do nosso bem-estar físico. É certo que este último, se não nos deixarmos vencer pela preguiça, se não o protelarmos a pretexto de que temos outras coisas, mais importantes ou não, a fazer (grande “tanga”!), é sempre exequível, a não ser, claro, que tenhamos já problemas de saúde incapacitantes (que, por vezes, são também mera desculpa).
Quanto ao físico estamos conversados. E a “caixinha dos fusíveis”? grande problema!
A mente, mais do que nunca, tem que estar ocupada, ainda mais ocupada do que antes. Direi mesmo que tem de começar a ficar “realmente” ocupada com algo que puxe por ela, que a faça raciocinar, mexer as engrenagens, pensar, no real sentido do termo. Enquanto trabalhamos — a não ser que tenhamos um trabalho mais intelectual do que físico (e mesmo assim!) —, a mente está apenas minimamente ocupada e mono-centrada num fim muito específico: conheço pessoas que, apesar de terem actividades de foro intelectual, como engenheiros, gestores, médicos, professores, etc., reagem a tarefas comezinhas como se de atrasados mentais se tratassem! Há alturas em o simples senso comum não funciona!
Nunca ninguém ouviu referir-se a alguém (chefe, conhecido, amigo, whoever), comentando que el@ é um(a) idiota, que nem sabem como está no cargo que ocupa, se calhar foi por cunha, etc? Esse é um dos grandes problemas da sociedade: forma(ta)r pessoas, não lhes proporcionar na sua vida e na sua formação asas para voar, não os dotar da capacidade de alargar, não múltiplos horizontes, mas horizontes múltiplos, para que possam responder minimamente aos desafios inesperados do mundo em que vivem.
Para se ser Cidadão do Mundo há que, para isso, estar habilitado.
30. dez, 2021
232 - Oh, vã cobiça da eternidade...
01h48, 3ª feira, 28/12/2021
Passei o que se pode considerar um Natal em família, no mais estrito sentido da expressão. O confinamento sanitário compulsivo a que fomos sujeitos limitou-nos a quatro seres vivos: um casal, uma filha e um cão, que também é gente – neste caso, não no sentido estrito da expressão. Foi um pouco parado, mas não de todo desagradável; bebeu-se e comeu-se comedidamente, passe a expressão, estudei, viram-se uns filmes e, num abrir e fechar de olhos, já se passaram três dias. Por vezes a transitoriedade dos acontecimentos é impressionante…
Sábado vou trabalhar como se nada fosse, como se nada tivesse acontecido, apenas continuação da rotina.
23. dez, 2021
231 - To die or how to die, that is the question
21h35, 23/12/2021, 5ª feira
Estou sentado a olhar para o papel (mais concretamente, para o ecrã do computador – o novo papel) a pensar o que escrever. Cheguei à conclusão de que, afinal, a minha veia poética ainda não se extinguiu. No entanto, não pretendo forçar uma poetice barata e pedante. Vou deixar as musas descansarem por uns dias até poder, com o seu auxílio, regurgitar novamente algum sofrível arremedo de poesia ou um seu sucedâneo.
Estou em confinamento porque mantive contato com alguém que, por sua vez, também esteve em contato com o “inominável”. Economicamente mau, porque vou receber menos, mas culturalmente bom, porque vou poder estudar um pouco mais para minha dissertação de mestrado que é, neste momento, a minha mais preocupante preocupação (excluindo, é claro, o fator saúde – o suprassumo do desassossego).
Curiosamente, não estou muito preocupado com o desenrolar dos acontecimentos que passam no exterior do meu pequeno mundo, o qual isolo quando fecho a porta da rua; não que não me importe. Importo. Mas vejo tudo sob um prisma diferente; imagino-me simultaneamente no dealbar do século passado e na actualidade: todo o pânico dos idos de 1918 e da sua mortífera pandemia (estimam 50 a 100 milhões de mortos) versus a mais recente aquisição patológica dos nossos dias. Haverá comparação? Sim e não.
Por um lado, as condições e noções de higiene de há 100 anos que, segundo os actuais e muito justos padrões, deixavam tudo a desejar. Contudo, a reduzida velocidade da informação, o desconhecimento da extensão da doença e a própria iliteracia generalizada, aliadas ao espectro terrível de uma guerra tão devastadora como a humanidade nunca presenciara, e que era compreensivelmente mais badalada nos meios de comunicação, ditaram a sua, se não minimização, pelo menos um relegar para segundo plano. Por essas razões nunca se conseguiu contabilizar eficazmente o número de vítimas e o terror foi substancialmente diminuído.
Pelo outro lado, nos nossos dias, pese embora a “pouca” relevância da mortalidade em termos globais (até ao dia 9, cerca de 5.278.777) , preocupa o facto de que, apesar das ótimas normas profilácticas, do extremo cuidado no tratamento e dos avanços extraordinários da medicina – quase milagrosa, em alguns casos – o que deveria ser mais um simples e descomplicado vírus se tenha tornado uma dor de cabeça para a humanidade e um balde de água fria para uma ciência que se começava a arrogar um carácter messiânico e omnipotente.
No entanto, como já acima afirmei, não entro em preocupações paranóicas. Preocupo-me um pouco, é certo, mas não entro em “filmes”. Não sendo fatalista, acredito que, como todos temos de morrer um dia, não interessa muito o
modus operandi daquela que nos espera pacientemente. Apenas detestaria sofrer, e penso que esse é o maior receio de todos os seres vivos, consciente ou inconscientemente (Bem, há masoquistas…).
22. dez, 2021
230 - A verdade das metáforas01h51, 4ª feira, 22/18/21
Desde quando deixei de “poetar”? será que algo (a idade, a enganosa falta de tempo, a frustração de uma vida vazia ou que imagino vazia) matou em mim a poesia, o sonho?
Vivo agora uma urgência de coisa nenhuma, protelo o inevitável sob pretextos vazios de significado e de razão. Sinto-me uma formiga sem objectivo, vagueado apressadamente de um lado para o outro, num “lufa-lufa” constante, frenético e improdutivo. Ao contrário destes laboriosos insectos, guiados por um objectivo bem definido, sinto-me frustrado porque me sinto à deriva, porque nem sequer sei o porquê da minha existência e da minha inútil(izada) corrida.
E o sonho? E a poesia? Estarão mortos ou apenas adormecidos?
Estou em coma.
De olhos fechados ouço murmúrios, ténues, distantes,
como se o meu Eu quisesse comunicar comigo.
Porquê os lábios cerrados, as pálpebras fechadas?
Para que estão ali mudos e inertes, se os possuo e funcionam?
Tento gritar, falar o que calo
Acarear um mundo que me contempla e desafia.
Mas não… olhos e boca continuam hirtos, como se proibidos de expressão.
Ah, se eu pudesse!... Mas não consigo.
Ou não quero, ou não tenho coragem?
Talvez não seja coma, mas cobardia…16. dez, 2021
229 - Os Natais, as crianças e os distribuidores de presentes05h05, 5ª feira, 15/12/21
É Natal, é Natal…
Já pouco me diz o Natal; inicialmente, na minha meninice mais menina, o evento era (na minha família) conotado com o Menino Jesus, era ele quem trazia as prendas para o sapatinho, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Nada de ver os presentes antes da chegada da manhã! Nem sequer era permitido vê-los, porque eles só apareciam quando fossemos para a cama e adormecêssemos. Afinal, a magia de um mito infantil deixa de ser mágica quando surge a dúvida ou quando, inadvertidamente, desvelamos a verdade.
Na minha ideia de criança, o tal Menino Jesus era um pouco ditatorial: Este ano levas isto; para o ano, se te portares bem, pode ser que tenhas uma prenda melhor. E essa prenda, geralmente, não era muito melhor, dependia dos câmbios do Céu…
Uma vez recebi – grande desilusão! -, além de um brinquedo do qual não tenho de todo memória, duas peças de flanela (uma verde e outra castanha) para fazer uns pares de calças. Nesse ano lá estava outra vez o Paraíso a fazer contas à vida. Então, um dia, lembro-me perfeitamente, o véu da fantasia quebrou-se: o Chavalo deu-me uma bola de borracha com um selo impresso que dizia
Made in Germany. Adeus para sempre, mirífica fábula.
Mais tarde, muito mais tarde, já noutros contextos familiares, o Menino envelheceu muito rápidamente à custa da
Coca-Cola, e transformou-se no Pai Natal. Agora, com o distanciamento temporal e o senso comum que a idade nos vai dando, concluo que qualquer um destes personagens natalícios não faz sentido nenhum. São apenas contos, histórias mal contadas, sem pés nem cabeça.
O primeiro – um menino, com um discernimento extraordinário para tão tenra idade e que se põe a dar presentes a crianças mais velhas, porque “sabe” que se portaram bem. Parece, como alguns políticos que davam viagens e frigorificos, que está a angariar acólitos para uma nova religião.
O segundo – um velhinho bonacheirão, feito de borracha para que possa entrar pelas chaminés (agora com os exaustores não sei como é) e meter presentes em meias. Coisa difícil quando as prendas de bom comportamento são bicicletas, violas ou computadores. Usa processos anacrónicos de se deslocar – trenós e renas – e tem um exército de anões ou gnomos ou elfos, ou lá o que é, para fabricar essas coisas que se compram nas lojas.
Compreendo que estas invenções fantasiosas têm a sua génese em tempos muito remotos, e têm a sua razão de ser; são fábulas didáticas e moralistas, usadas, não apenas para premiar o desenvolvimento harmónico das crianças – alertando-as para as consequências da sua irrequietude comportamental – mas também para alimentar o seu mundo de faz-de-conta, para as fazer felizes. São, no fundo, contos de fadas para entreter essas pequenas mentes em desenvolvimento. Eu, como (quase) todos nós, também pertenci a essa multidão de avezinhas inocentes, e foi bom enquanto durou.
5. dez, 2021
228 - O porvir está por vir05/12/2021, domingo, 04h39
Fez no passado dia 1 a pequena soma de 381 anos que recuperámos a nossa independência. A perda temporária da nacionalidade foi apenas um acidente de sucessão dinástica; Filipe II de Espanha (Iº de Portugal) era, por direito de linhagem (genealógico, portanto), o candidato mais indicado para se tornar rei de Portugal. Que os portugueses não gostaram, isso é outra coisa. Eu também não gostaria.
Mas como não estamos aqui para falar no direito sucessório dos reis, passemos para o tema que tenho tratado: as idades do ser humano. É agora a vez do quinzénio que abrange dos 65 aos 80, e que será o último de que falarei. Tudo o que for além disso dilui-se na bruma da conjetura.
Após repassar a vida sob os olhos da consciência (dos 50 aos 65 anos), é chegada a hora do disfrute calmo da velhice ou do desespero melancólico e resignado da sala de espera do passamento. Por mim, espero que seja o primeiro. Embora possua por natureza uma postura um tanto ou quanto pessimista, fatalista e inconformada, tenho, como todos, a esperança de um retiro calmo e pouco problemático. Assim seja.
Acho que já disse tudo sobre aquilo que ainda não experienciei; os dados de que disponho, por análise daqueles que estão, mais do que eu, avançados na idade, são para lá de inconclusivos, porque é muito difícil alguém se pôr a abrir o seu íntimo ao primeiro que passa. Tenho, portanto, de aguardar a minha vez, se o destino mo permitir.
24. nov, 2021
227 - Somos os Legos do Cosmos23h49, 3ª feira, 23/11/2021
Após o anúncio de mais uma vida no Mundo, volto à carga com as tendências de pensamento e comportamento médias dos seres humanos ditos normais, desta vez na faixa etária dos 50 aos 65 anos (um novo salto de 15 anos).
Pois bem, estou no limite; tenho 64 anos e um rol de problemas de saúde que se enquadra perfeitamente na média geral. Quanto a problemas de foro não clínico, direi que cada caso é um caso, pois todos somos diferentes e com vivências diversificadas e, portanto, de mensuração extremamente subjectiva.
É neste período da vida que tentamos — direi que, por vezes, desesperadamente — compensar todo o desperdício do potencial inato, e daquele que fomos desenvolvendo ao longo do nosso percurso terráqueo, seja por termos tido uma vida complicada em termos laborais ou pessoais, seja porque fomos arruinando aos poucos essas capacidades com decisões e atitudes inapropriadas. Por outras palavras, e desculpando o vernáculo, porque fizemos merda.
Em simultâneo, vamos sentindo cada vez mais insidiosamente a presença desinteressada e observante daquela figura negra, estereotipada, munida de uma gadanha. No entanto, o espectro que mais tememos é o da impotência (não, não é essa), da dependência dos outros para (sobre)viver, a pior das quais é a da degradação mental, a demência em qualquer das suas formas incapacitantes.
É cloro que as visões acima descritas são um tanto ou quanto dantescas, negativas, embora hipoteticamente prováveis. Mas nós não vivemos apenas no temor das adversidades; temos a satisfação atávica da continuação da espécie e que em nós, humanos, toma a forma de um relacionamento mais que instintivo e marcadamente emocional: a família. Existe alegria em ver os nossos descendentes progredirem, criarem a sua própria (que também é nossa) família, serem saudáveis e felizes. Embora muitos animais já possuam essa forma de organização social, a da nossa espécie é muito mais complexa a todos os níveis.
Sentimos um prazer filantrópico de gerar vida e um prazer ególatra de sermos simultaneamente uma das incomensuráveis, mas fundamentais, peças da criação e da continuidade do Universo, tal como o conhecemos.
16. nov, 2021
226 - A felicidade dos avós ou de como um nascimento nos envelhece02h24, 3ª feira, 16/11/2021
Por alturas do último post nascia a minha primeira neta. E talvez última, pois pelo andar da carruagem, como soía dizer-se, não vejo jeitos de aumento de capital humano pelas minhas bandas para as próximas décadas, ou seja, provavelmente nunca mais, exemplo único, evento irrepetível. Posso, contudo, estar enganado, como já me enganei desta vez.
Estou satisfeitíssimo, como é de calcular, mas não me vou estender mais sobre a minha vida pessoal. Aproveito o mote para tecer algumas reflexões sobre nós, avós humanos, e a recepção que tais eventos podem provocar na percepção da nossa existência. Até agora víamo-nos como pais – posição há dezenas de anos assimilada e assumida; agora adquirimos o estatuto de pais dos pais, o que, atendendo à idade “avançada” que temos, faz-nos reflectir mais aprofundadamente sobre o nosso mundo pessoal, a nossa paternidade, a nossa velhice, ou seja, a nossa novíssima condição de avós e respectivas implicações morais, familiares, éticas e temporais. Abre-se uma nova etapa etária (perdoe-se a paronomásia) e apercebemo-nos de que os nossos conceitos de tempo e idade se vão, com este evento feliz, infelizmente reduzindo. Mas
cést la vie – uma frase feita que ouvimos milhentas vezes na nossa vida e que vai, progressivamente, fazendo cada vez mais sentido.
Aproveito para informar de que em breve irei migrar para o site www.santofrei.com. Portanto, se já não estiver aqui, estou lá (Uma verdade La paliciana).
8. nov, 2021
225 - Os dias em que começamos a imaginar contagens regressivas08/11/21, 2ª feira, 04h53
Está na altura de, para não ser massudo, avançar, não de novo 7 anos, como fiz até agora — pois que era importante compartimentar mais curta e esmiuçadamente as idades da aprendizagem —, mas 15 anos, uma vez que a generalidade do que temos de conhecer para viver e saber viver já está consolidada e agora já avançámos para outro nível: o da análise da nossa existência. E agora é que elas doem, agora começamos a, gradualmente, ter a percepção da nossa negligência, das nossas asneiras, perdas de oportunidade, desatenções e afins. Olhamo-nos ao espelho da consciência e constatamos que, apesar das atitudes ponderadas que certamente tivemos em profusão, também tivemos inúmeros e escusados episódios de desperdício que, se não nos arruinaram a vida, contribuíram pelo menos para uma quebra significativa da sua qualidade global.
Em simultâneo, e intrinsecamente combinado com a constatação anterior, damo-nos conta de que o nosso prazo de validade se começa a escoar com demasiada rapidez e já não nos é provavelmente possível recuperar o tempo ingloriamente perdido. Aquela ilusória luz que vislumbrávamos ao fundo do túnel começa a esfumar-se (e não só porque os nossos olhos já não veem tão bem) e a desaparecer porque, simplesmente, é apenas uma convenção e não uma realidade palpável.
E começamos a adivinhar o futuro…
28. out, 2021
224 - O porvir contém incertas e incontestáveis certezas10H00, 5ª feira, 28/10/21
Dos 28 aos 35 anos é o meu tema de hoje. É a época da assertividade e das escolhas de vida; é nesta idade que os gostos se vão consolidando, se fixam os estilos e assumimos a nossa posição no mundo. Assentamos os pés no chão e criamos raízes, deixando o nomadismo das opiniões e as incertezas sobre os rumos a traçar. Evidentemente, isto não é chapa 7, mas uma generalização de acordo com as tendências em geral. Eu, por exemplo, andei, ando e andarei sempre um pouco perdido e constituo assim uma excepção à regra.
É normal que estas escolhas definitivas se alterem no decorrer do nosso périplo pelo planeta, pois podemo-nos aperceber que nada daquilo que escolhemos terá sido a opção correcta. Portanto, tudo o que eu referi acima é relativo, não há dogmas, não há escolhas para a vida, apenas uma falsa (embora agradável e necessária) sensação de segurança.
No meu caso pessoal, tudo parecia encaminhado para uma existência confortável, sem muitos problemas, sem escolhos no caminho. Os excessos de confiança fazem-nos descuidar o chão que pisamos; e aí, ou tropeçamos numa pedra ou caímos num buraco – ou ambos. Apercebi-me que não passamos de crianças grandes, imaturas, eternamente imaturas. Cremos demais, confiamos demais e resvalamos continuamente na contumácia por simples e inata cretinice e porque não nos permitimos conquistar eficazmente uma sabedoria, decorrente da experiência e da reiteração dos erros, que é suposto memorizarmos para uso futuro.
17. out, 2021
223 - Para se ser adulto tem-se mesmo que passar pela parvoíce05h21, domingo, 17/10/21
De novo vários problemas me impediram de escrever com a frequência que pretendia. Mas aqui estou, pois comprometi-me a escrever sobre as idades do ser humano e não quero faltar ao prometido.
Falo hoje então da faixa dos 21 aos 28 – o tempo da “curtição”. Atingida a maioridade (que antigamente era aos 21) julgamos estar aptos a fazer tudo o que nos der na real gana. Então, esforçamo-nos por destruir o mais rapidamente possível a nossa saúde, que cremos, não de ferro mas de alguma liga inconsumível, como a que foi descoberta em 2018 e que é composta por platina e ouro (e que afirmam ser 100 vezes mais resistente do que o aço).
São as comidas corrosivas, são os fumos das mais variadas substâncias, são as vigílias repetidas até dormir de pé, são as bebedeiras até à inconsciência, enfim…. Tudo tentamos para pôr à prova a nossa teoria de que somos indestrutíveis e, na verdade, por mais sado-masoquistas que tentemos ser, tudo parece corroborar a nossa teoria, — que não é uma teoria para nós, e sim uma certeza inabalável —, mas que começará a ruir no hepténio seguinte.
Por outro lado, cimentam-se os relacionamentos nos casados. Cuidado, no entanto, com a polémica crise dos sete anos, que poderá destruir uma vida a dois. Segundo esta teoria, ao fim de 5, 6 ou 7 anos de matrimónio, os casais começam a ficar “fartos” um do outro, provavelmente devido ao coarctar da liberdade individual a que tal compromisso obriga. Eu sei porque passei por isso e os casos ficaram muito mal-parados. Porém, uma generosa dose de mútua tolerância, bom senso e reflexão fazem o milagre e, geralmente, superam esta perturbação emocional.
30. set, 2021
222 - Não é a idade dos porquês, é a idade dos porques30/09, 5ª feira, 04h47
Retomando o périplo pelas idades e desenvolvimento físico, mental e espiritual dos seres humanos, segundo uma óptica pessoal, e reflectindo de certo modo a minha vivência, teço agora algumas considerações sobre a perigosa e problemática idade dita da estupidez e da depressão: dos 14 aos 21.
Aqui, todo o cuidado é pouco, mas ninguém tem cuidado. A não ser que tenha tido um bom acompanhamento parental e/ou a sua índole tenda a ser ponderada e comedida. Os relacionamentos afectivos começam a deixar de ser platónicos para se tornarem algo mais sério e duradouro, o que pode também tornar-se um problema pela sua tendência em esquecer a prudência e deixar-se levar pelas emoções, pelo “confronto físico” irresponsável, se bem me faço entender. Por outro lado, as flutuações de humor, que podem ser daí decorrentes ou mesmo nada tenham a ver, podem também tornar-se perigosas. É, como acima disse, a idade das depressões, a “idade Lemingue”, que é, como sabido, um animal que tem tendências suicidas em determinadas alturas do ano. No caso humano não há altura certa para esses surtos psicóticos, eles podem surgir em qualquer momento, aleatoriamente. Quem, na sua juventude, nunca teve algum assomo de impulsos de auto-destruição? Eu tive. Nesses momentos parece-nos que a vida não faz sentido, que não há futuro, que não há solução para os problemas que nos assolam, que a felicidade é impossível. E tudo é desencadeado por reacções ridículas a questões ou situações geralmente de mínima ou nenhuma importância. É o tempo da revolta, das tempestades em copos de água.
O instinto de auto-preservação leva geralmente a melhor e sobrevive-se. Infelizmente nem todos conseguem ultrapassar esses pequenos-grandes problemas e deixam de pertencer à categoria dos viventes.
Mas não é só parvoíce, negativismo e irresponsabilidade que esta idade tem; aqui cimenta-se também o amor pelo próximo (ou pelo muito próximo), a solidariedade, a amizade, o carácter, e todas as características que fazem dos humanos aquilo que eles têm de melhor. Acho que somos o único animal à face da terra que existe para fazer asneiras e emendá-las (ou morrer tentando ambas).
20. set, 2021
221 - Mais uma volta do ciclo vicioso da vida - essa rotunda sem saída.11h02, sábado, 18/09, 19˚, céu limpo
Duas semanas estressantes impediram-me de escrever. Cheguei à conclusão de que estar de férias pode ser mais problemático e extenuante do que estar a trabalhar. Enfim, coisas…
Retomo a minha actividade laboral hoje; tive só o azar de ser obrigado, por solidariedade, a vir de manhã, devido à doença de um colega. Mas, fora isso, tenho a esperança de que tudo volte à normalidade, se é que alguma vez ela existiu. Os hábitos são muito, muito difíceis de adquirir e manter, pelo menos para quem passou dezenas de anos com outros radicalmente diferentes.
Entretanto o verão ou, quiçá, um seu sucedâneo, está a falecer aos poucos. Em breve voltaremos ao frio e à chuva, aos dias cinzentões e aos aquecedores – uma rotina meteorológica que não mudou nem, a meu ver, mudará muito nos próximos anos, sejam quais forem as circunstâncias sanitárias que venham a ameaçar a humanidade neste “jardim da Europa, à beira-mar plantado”.
É estranho ver com olhos de luz solar, a mim, que há seis anos trabalho exclusivamente num horário toupeiral, ou seja, à noite, rodeado pela escuridão. A diferença de raciocínio e sensações é abissal: há mais clareza de pensamento, a imaginação atinge níveis muito superiores aos registados na quietude amelatonínica e selenita.
Em breve continuarei o meu périplo pelas idades do ser humano, tomando como barómetro o meu testemunho pessoal que, evidentemente, poderá não corresponder a outras experiências de outros meus semelhantes. Sendo todos basicamente iguais, somos, afinal, muito dessemelhantes.
29. ago, 2021
220 - A consciência de grupo e a consciência do Outro
05h26, domingo, 29/08/21
7 aos 14 anos – o período da perda da inocência. Vamo-nos despindo das asas de anjinho com que nascemos, porque ser anjinho nestas idades começa a ser uma seca. Há que descobrir o mundo de uma nova forma: fazendo todas as asneiras que pudermos e, melhor ainda, que não sejam detectadas.
O fruto proibido é o mais desejado? Pois então vamos empanturrar-nos de frutos!
Felizmente – dizemos agora – a nossa ainda curta, incipiente e debutante existência, não nos dá geralmente as capacidades de um Arsène Lupin ou outro génio criminoso, de esconder os rastros denunciadores dos delitos praticados. A infracção que seja exercida é, em geral, rapidamente descoberta e a jurisprudência paterna ou materna dita o castigo que, por norma, incide sobre a perda de livre circulação ou ao confisco ou suspensão dos parcos subsídios auferidos à semana ou ao mês, podendo mesmo por vezes, em casos mais graves, chegar à punição física. Tudo, portanto, à imagem e semelhança da sociedade civil dos adultos.
Por outro lado, o sexo oposto que era até então inferido como antagónico, indigno dos nossos grupos de interesses comuns, por vezes considerado como uma cambada de idiotas desmiolad@s que não percebe nada, que não sabe nada, que não consegue participar nas nossas conversas e brincadeiras, que não encara as coisas verdadeiramente importantes que regem o nosso género, começa a aparecer-nos sob a luz de uma outra face do prisma; o que antes nos surgia em tons pouco do nosso contento, adquire agora colorações mais suaves e agradáveis, mas que todavia nos tornam destrambelhados, cegos, irreflectidos, podendo-nos mesmo fazer agir como idiotas chapados.
É o início de uma tomada de consciência de que, afinal, @s outr@s são muito mais interessantes, sob aspectos até então insuspeitados, do que até então pensávamos. São as paixões assolapadas de um amor pedoplatónico, que desaparecem tão depressa quanto surgem, ilusões que nos deixam confusos pela sua existência e perplexos pela sua fugacidade e a que aludem, com o devido enquadramento etário e emocional, os célebres versos de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.
17. ago, 2021
219 - A mentira não se aprende, nascemos com ela02h30, 2ª feira, 16 de agosto
A infância profunda, aquela de que o intelecto se vai libertando como de um casulo, como uma crisálida. É, como já disse, a fase mais primitiva da memória e da consciência, é onde começamos a receber os pontapés formadores (ou deformadores) de toda a nossa vida futura. Isto excluindo, claro, a vida intrauterina, que é uma situação ainda envolta em incertezas.
É nesta fase que libertamos a mentira. Para nos defendermos da dor e da frustração. Para recebermos recompensas, carinho e atenção. Mentir é como o açúcar, pode ser viciante e provocar dependência e nós, humanos em aprendizado, nunca mais nos libertamos da mentira, mesmo no estado adulto.
Há um episódio pessoal do qual nunca me esqueci e que comprova o horror que temos em assumir a verdade por temermos o castigo ou a admoestação – que é também uma forma de sanção, por afectar o amor-próprio num ego indomado que tenta dominar tudo e todos para marcar o seu lugar no mundo:
Certo dia os meus irmãos mais velhos tinham trazido para casa, sabe-se lá de onde, o mecanismo nu de um relógio antigo – cheio de roldanas, molas de aço (a corda para o fazer trabalhar e a corda do alarme), ponteiros e… uma miríade de rodas dentadas que, encaixadas umas nas outras, rodavam em sincronia ou diacronia, para a frente ou para trás, mais depressa ou mais devagar, de diferentes tamanhos e feitios, desempenhando as funções que é suposto esperar de um relógio.
Não autorizado, aproveito a presença dos meus irmãos na escola e pego nele. É um pequeno e estranho tesouro para a minha imaginação, uma peça do meu aprendizado do mundo e uma forma de entretenimento, como tudo o que é novo e estranho é para uma criança de tenra idade.
Utilizando a forma mais fácil e mais possessiva de segurar semelhante objecto, encosto-o a mim e inicio o deleitoso trabalho de ir rodando a chave que permitirá dar corda ao mecanismo, maravilhando-me com o seu tiquetaquear de fruto proibido. Tal é a concentração que o resto do universo deixa de existir, pois que nada é mais importante que aquela peça de relojoaria em fim de vida, mas que pra mim é um tesouro inigualável, cuja chave rodo, tentando abrir mais uma porta para a compreensão do que me rodeia. Nessa altura ainda não sabia que a minha Odisseia (a de todos) era e continua, e continuará a ser enquanto fizermos parte desta existência, a de abrir portas
ad eternum para a percepção do que não é pereceptível, pelo menos durante o nosso estágio actual de evolução do espírito.
Eis que, repentinamente, talvez devido a alguma sensação táctil decorrente da minha exploração, apercebo-me que a minha camisola de lã tricotada pela minha tia tinha perdido um pedaço substancial de fios na zona do ventre, triturados pelas ditas rodas dentadas, transmutadas em agentes de destruição e arautos do castigo. Pânico! Que dizer? Como reconstituir a cena (leia-se: mentir) para me ilibar da tempestade que adivinho? Há que criar uma história plausível e redentora.
Quando pouco mais tarde acabo por, inevitavelmente, me sentar no banco dos réus, elaboro uma ideia luminosa e completamente credível: ao passar por uma porta, cujo puxador se encontrava sensivelmente ao nível da minha testa, o atrás referido enganchou-se inadvertidamente na minha camisola ao nível da barriga, causando tão terrível e destruidor desastre. Nada mais admissível! Não consigo recordar-me do fim do episódio, mas estou convencido que a minha tia acreditou plenamente naquilo que eu lhe disse.
É, sem dúvida, nesta idade que mais mentimos e também que mais nos mentem; no entanto, as razões dos formadores são totalmente diferentes e perfeitamente justificáveis (quase sempre). A maioria das vezes são protetoras.
Posso citar como exemplo o dia em que, copiando os meus irmãos em mais uma aventura proibida para mim, trepei a uma pereira que tínhamos no quintal. Asneira! A meio caminho perco as forças e deslizo pelo tronco de casca dura e rugosa. Como consequência, esfarrapo a barriga. Deitado no quarto, na cama, o ventre a sangrar um pouco, vejo o meu pai a aplicar mercurocromo para desinfectar. Ainda estou assustado e enjoado, vomito. Mal tingindo o refluxo, um pouco de sangue. Calculo que a visão não me terá sido muito positiva.
E aqui vem a mentira protetora: “oh, isso não é nada, deve ter sido um pouco de mercurocromo que entrou para dentro, para a barriga”. Alívio. Afinal não era sangue, estou salvo!
12. ago, 2021
218 - Manual de sobrevivência para nascituros11/08/21, 04h35, 4ª feira
Um dia do mês de Julho, segunda metade dos anos 50 do século XX, de madrugada.
Nasci. Não sabia que tinha nascido. Aliás nada sabia, de nada tinha consciência, era tudo apenas sensação. E instinto de sobrevivência.
Senti pela primeira vez o peso da gravidade, a agressão do frio, do calor, do som, do tacto, da luz. Mas nem sabia que sentia. Tinha vindo de um mundo líquido que me isolava, que me protegia das sensações, embora deixasse chegarem até mim sons abafados e toques suaves que eu não sabia que eram sons abafados e toques suaves. Nem sequer sabia que o meu mundo era líquido e que eu flutuava.
Quando me desliguei do invólucro protector e me cortaram a fonte de alimento, tive o primeiro vislumbre do mundo que me esperava e que não tinha escolhido: pendurado pelos pés, recebi uma palmada nas nádegas e experienciei a dor. Em vários graus e modos, foi a partir daí a minha companheira inseparável. A partir daí também, comecei a desenvolver a memória e mais tarde, muito mais tarde, a consciência. Da dor. Da vida.
Da minha estreia no mundo poderá haver muito a dizer, mas não por mim. E menos, cada vez menos pelos outros que, mais velhos que eu — pois só assim poderiam ter as recordações pretendidas — se vão diluindo nas brumas do tempo, do espaço e da anamnese dos vivos.
Pequenos vislumbres vão-me surgindo, como daguerreótipos esfumados, de uma tenra idade posterior (2 anos, 3 anos?). São flashes que assomam, casuais, a maioria das vezes sem nenhuma importância relevante, como se a mente em formação fosse disparando uma teleobjetiva, fortuitamente, para memória futura. Da idade mais importante do desenvolvimento e formação física, mental e espiritual humana, nada mais há a dizer. É como uma cortina blackout com alguns, poucos, furinhos, por onde escapa um vestígio de luz.
26. jul, 2021
217 - De como é infernal acabar com o Inferno2ª feira, 26/07/21, 01h43
Todos temos medo de alguma coisa. Ou de várias. Excluindo os chamados medos atávicos, que resultam de aversões defensivas impressas pelo instinto no nosso ADN e que nos têm protegido no decurso dos milhares de anos da nossa existência como espécie, a grande maioria dessas fobias, desafectos ou terrores resultam de visões estereotipadas, associadas a conceitos com que nos fomos familiarizando quase desde o berço: histórias contadas geralmente pelos avós ou pelos pais em versões góticas ou fantásticas, transmitidas de geração em geração, casos reais acontecidos geralmente num passado mais longínquo e, portanto, difíceis de confirmar mas a que foram acrescentados muitos pontos (quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto), teorias assumidas como verdades dogmáticas, quase exclusivamente de raiz religiosa, etc. A respeito desta última causa, podemos atentar aos mitos relacionados com a morte e a existência além-túmulo, com os seus inseparáveis anjos e demónios (nada a ver com Dan Brown), muito comuns à maioria das crenças.
Fazendo um pequeno aparte: a palavra “além-túmulo” é indubitavelmente de raíz culta, pois que túmulos, só os abastados os podiam erigir. A esmagadora maioria da população – o povo -tinha (e ainda tem) de se contentar com os vulgares sete palmos de terra. Como agora há uma tendência crescente para a cremação, teremos dentro de algumas décadas de mudar a nomenclatura para “além-cremação” ou o mais refinado e pretensioso “além-tanatório”.
De volta ao assunto, se juntarmos todo o acima exposto num caldo e mexermos bem, teremos como resultado uma humanidade paranóica, cheia de fobias, de medo do polícia que te vem prender, do cigano que te vai levar (felizmente em decadência), do cão que te vai morder se não fizeres ou fizeres isto ou aquilo, do demónio que te espera no post-mortem se não te portares bem cá na terra, do sr doutor que te vai dar uma pica, etc., etc., etc.
Em suma, somos uns cobardolas e uns medrosos porque a nossa própria família e o resto da sociedade, directa ou indirectamente, nos aterrorizou desde que nascemos. E o que é mais estúpido é que perpetuamos esse estado de terror permanente nos nossos filhos e netos através dos mesmos contos e das mesmas atitudes. É evidente que generalizo: muitos, felizmente, já se aperceberam do erro e evitam usá-lo ou passá-lo como herança aos vindouros. No entanto, em nós, essa formatação, essa reiteração do horror e do mal, já tem raízes demasiado fundas para extirpar por completo e temos, mal ou bem, de viver com ela.
Podemos criticar e condenar os nossos antepassados e a nossa sociedade por isso – e, por extensão, a nós próprios? Entendo que criticar construtivamente é legítimo, como forma de evitar a repetição de tais procedimentos. Condenar, acho errado: as famílias e as sociedades do passado estavam condicionadas pelas suas próprias famílias e sociedades, e assim sucessivamente. À medida que recuamos no tempo, em direcção à Idade Média, os espectros que ensombravam a humanidade vão-se tornando progressivamente mais tenebrosos, a ponto de transportar para a própria vida os dogmáticos horrores do inferno que esperavam os infelizes ou os execrados pecadores após a morte. Nós, mais afortunados, e muito graças ao anticlericalismo iluminista, apenas sofreremos essas provações após falecermos.
Podemos então condenar os nossos ancestrais? Julgo que não. Eles – tal como nós – foram o produto da sua época, das suas crenças, das suas superstições, das suas limitações. Há que adoptar uma postura filosófica e social que se adapte à época que analisamos. Falar e olhar para o passado com a mente e os olhos do presente é um erro crasso muito comum.
20. jul, 2021
216 - Umbigos, espelhos e suas semelhanças
3h00, 3ª feira, 20/07/21
Ontem estive a reler algumas das minhas crónicas mais antigas, aquelas do longínquo ano de 2012. Não deixando de me aperceber de alguma ingenuidade própria de quem não tem experiência literária, observei, no entanto, que escrevia com mais exuberância, maior diversidade e riqueza de conteúdo do que agora.
Neste momento o foco restringe-se mais a mim próprio e ao que me está contíguo, como se agora vivesse num quarto fechado, com escasso contacto com o mundo. Efectivamernte, tenho uma forte sensação de que assim é, de que estou encerrado num casulo, do qual é difícil sair. Deste modo, foco-me muito frequentemente naquilo que o meu raio de visão abrange com mais facilidade: o meu umbigo. Tenho que abrir uma janelinha no meu casulo para poder ter alguns vislumbres daquela realidade entretanto perdida, com todas as suas cores e nuances. Certo é que já tenho tentado abrir essas janelinhas para o exterior, mas tudo o que vejo é a noite — tanto a real como a metafórica. Os meus horizontes de escrita estão muito limitados, pois pouco consigo ver no negrume da paisagem.
Como se pode observar em todo o texto acima exposto, tenho razão: contam-se 18 referências ao fulano que escreve (se não mais), o que, convenhamos, é um exagero para quem não se considera egocêntrico, mas que, de facto, acaba involuntariamente por o ser.
Há que reverter essa tendência, há que universalizar, reabrir a esta escrita as portas do Mundo para que se possa reencontrar o equilíbrio algures perdido. Quando começarei esse desafio?
14. jul, 2021
215 - 64 anos ou "de como as primaveras se vão tornando invernos"01h48, 13 de julho, 3ª feira
64 anos! Feitos! (na verdade ainda falta 1hora e 40 minutos). Mais uma etapa vencida.
Cada ano que passa, a partir dos 60 ou mesmo antes, é agora encarado com apreensão e cautela. Nunca sabemos se permaneceremos por cá nem sob que circunstâncias. O receio começa a surgir à medida que nos vamos apercebendo de que amigos, vizinhos, ou simplesmente conhecidos, deixaram de ter a possibilidade de nos cumprimentar e nós de os ver. É também, apesar de tudo, uma sensação fugaz de alívio por eles se nos terem adiantado. Sentimos cá dentro uma alfinetada, um arrepio pelas costas do intelecto abaixo, um — como canta Isabel Silvestre no tema dos GNR — prenúncio de morte. Sabemos que os nossos “5 (derradeiros) minutos de fama” se estão a aproximar, mas desconhecemos quando, como e aonde. Mas, como costumo dizer: adiante. Não vou tecer um manto de negativismo neste dia, não me quero cobrir hoje com ele. Vamos fingir que está tudo bem e que seremos todos longevos e sofrívelmente saudáveis, pois é a única maneira que temos de fugir ao espectro do desconhecido.
Hoje está uma noite tipicamente pandémica. Ou seja, uma noite em que, apesar de ainda ser relativamente cedo, não há movimento, calma e deserta como se a cidade tivesse partido em massa para férias. Pode ser que a expressão pegue um dia destes, seria engraçado.
8. jul, 2021
214 - Os incógnitos, as heteronímias e a anorexia literária.11h30, 5ª feira, 08/07/21
Eis-me aqui de novo. Por “aqui” entendo este espaço de comunicação electrónica que, no meu caso particular, não é verdadeiramente comunicação, pois estou a escrever uma crónica (ou algo parecido) de periodicidade irregular, para um público desconhecido igualmente irregular e que não feedbecka. Aqui chegado, faço uma observação e uma ressalva:
Ainda não existe, nem sei se virá alguma vez a existir, o verbo feedbeckar ou feedbecar. Por vezes os neologismos são necessários ou, no mínimo, extremamente úteis pois o seu intuito é o de evitar ter de usar mais palavras na nossa
matris lingua ou
lingua mater para expressar um conceito similar. É uma questão de economia linguística. A surgir, será certamente na comunidade brasileira da língua portuguesa, pois esta não tem tanto rebuço como nós em (re)criar palavras de que necessite para simplificar a comunicação.
Quanto à ressalva, na verdade existe uma espécie de retorno que, todavia, e embora sujeito à frieza dos números e das estatísticas, (o que também me cria uma certa estupefacção perante contagens tão dispares), existe. Falo do relatório semanal do site onde publico as crónicas e que me fornece valores de leitura por vezes incompreensíveis: há semanas em que tenho 400 ou 600 visualizações, outras em que não passo das 20 ou 30. Certamente haverá uma explicação, mas desconheço-a.
Como no início referi, e embora sinta uma inegável satisfação em saber que sou lido por alguém, uma vez que o amor-próprio também se alimenta desses pequenos sucessos que melhoram a auto-imagem, criei este espaço mais para desabafar, para treinar a aptidão comunicativa, para avaliar as minhas capacidades literárias e para as tentar refinar. No fundo, escrevo para descomprimir e também para me reler e analisar, pois o distanciamento temporal permite avaliar os estados de espírito com uma certa isenção, porquanto o que foi escrito acaba por se “descolar” do
tempus da escrita, e o “analista”, o crítico, deixa de ser – pelo menos em parte – aquele que escreveu, convertendo-se no psicólogo, no juiz do seu Eu do passado. Dar tempo à escrita é, assim, criar um distanciamento crítico entre o Eu presente e o Eu que já foi e que, há que salvaguardar, pode ou não ser o mesmo. É uma espécie de heteronímia temporal – muito diferente da heteronímia pessoana – pois na primeira há um continuum, uma alteração linear,enquanto na última existe uma cisão ou repartição atemporal. Numa o sujeito transforma-se, na outra o sujeito ramifica-se.
Quando termino uma crónica tenho a impressão de que deixo sempre algo no ar, de que os temas da minha intervenção permanecem incompletos, não satisfazendo completamente as expectativas que criaram. É como se interrompesse uma refeição a meio e as glândulas salivares e o estomago continuassem a sua produção enzimática na expectativa de um alimento que não é provido, deixando assim uma desconfortável sensação de vazio.
Hoje não é excepção.
5. jul, 2021
213 - Afinal, mais do mesmo "and life goes on".04/07/2021, 2ª feira, 03h39
Parece que, finalmente, nesta guerra macrocosmo/microcosmo, estou a ganhar vantagem e a extirpar a extirpe (adoro estes jogos de palavras!) bacteriana que me tem causado dissabores nos últimos 20 dias (Pseudomonas Aeruginosa), e conto que a normalização da rotina vivencial tenha retornado desde ontem. Já não basta ter de lidar com vírus potencialmente letais, ainda tenho de me haver com bactérias chatérrimas, que não sabem fazer mais nada senão tentar colonizar o organismo. É imperativo fazer-lhes ver que o colonialismo já era, que essas atitudes chauvinistas, que esses sentimentos de superioridade rácica não fazem sentido nos nossos dias e têm de ser erradicados. Este bacilo Gram-negativo e patógeno oportunista, como é denominado, tem de ser posto no seu lugar, ou melhor, exterminado.
E agora que já destilei o meu ódio sobre este micro-organismo, passemos à frente.
Acabei de consultar as classificações da disciplina que estava a concluir, referente ao término do sofrido 1º ano de mestrado e concluí que, atendendo às circunstâncias e dificuldades com que tenho feito os meus estudos, não fiquei, no geral, muito mal classificado: 16 valores. Não é óptimo mas é bom. A partir de agora é que vai doer, tenho que fazer a tese/dissertação no próximo ano.
Por vezes pergunto-me porque é que me lancei nesta aventura académica, porque é que não me limitei a ler os milhentos livros que tenho em casa, no meu vagar, ao meu ritmo e segundo os meus interesses de leitura e conhecimento. Chego à conclusão de que tal alternativa seria mais utópica do que real, pois acabaria por me dispersar, por me enganar nos meus objectivos, por criar uma cultura falsa ao perseguir um pseudoconhecimento que se traduziria por leituras fáceis, conhecimentos
light, curiosidades inúteis destinadas apenas a dar “pão e circo” ao meu intelecto.
Ao fazer o que fiz, alarguei os meus horizontes e toquei mais profundamente no desconhecido, abrindo compartimentos insuspeitados do Saber, e este não ocupa lugar, mas abre novos compartimentos, ansiosos por serem preenchidos.
25. jun, 2021
212 - To be or not to be sick - that is the question
22h43, 6ª feira, 25/06/2021
Era uma bonita 2ª feira de junho; mais concretamente, o dia 21/06/21, e a hora, exactamente 4h35, quando comecei, um pouco a contragosto, a escrever mais uma crónica para postar aqui. Comecei-a, mas interrompi alguns minutos depois: uma febre fazia-me tremer quase descontroladamente, a sensação de frio era enorme.
Acabei por desistir. Não fazia sentido esforçar-me porque o que escrevia já não fazia sentido. Parei e encorajei-me a suportar o desconforto físico até atingir a hora de saída. A partir daí não mais fui trabalhar, entrei de baixa: uma infecção urinária bem forte, dignamente representada por uma bactéria igualmente resistente, assim o ditou. Já não me recordava de ter de estar tantos dias em casa por doença desde 1983, por ter contraído trasorelho (parotidite epidémica, papeira, caxumba) – uma medida profiláctica completamente inútil, viste que o período de incubação surge 15 dias antes do aparecimento dos sintomas. Mas, para sossegar consciências ignorantes, a lei assim o dita.
E pronto, cá estou em casa, a aguardar a melhoria dos pouco simpáticos sintomas que sinto (aliteração propositada) para poder retornar ao trabalho, porque isto de estar em casa sem fazer nada — e à parte o desconforto — até sabe bem, mas o vencimento também é necessário; não se vive do ar e há compromissos a cumprir.
Estou agora reclinado na cama, como um patrício romano, e cheguei à conclusão de que esse luxo imperial seria totalmente incompatível com as exigências do mundo moderno: basta só tentar escrever num computador para ter a certeza. Aqui, o conforto romano transforma-se numa incompatibilidade física e funcional incontornável (ergonomia
versus ineficiência).
Vou-me desreclinar, estender-me ao comprido e esperar por Morfeu, que sei, de certeza, que não me fará esperar como Godot.
7. jun, 2021
211 - Quem não tem inspiração, não caça com gato.2ª feira, 7 de junho de 2021, 04h47
Na passada 5ª feira tentei escrever. Asneira! Há pouco estive a rever o que tinha escrito e cheguei à conclusão de que o cansaço é o mais eficiente assassino da inspiração e da boa escrita. O que na altura me pareceu razoável era afinal o pior dos textos que elaborei durante estes 9 anos de escrita, e apaguei-o.
Esta é a principal razão de nada ter publicado nos últimos dias e de ter andado a espaçar demasiado as crónicas. Prefiro não escrever a escrever parvoíces, ou então tentar escrever parvoíces menos parvas.
Na verdade tenho, nos últimos meses, guardado o meu tempo disponível para elaborar o último trabalho da última disciplina do primeiro ano do Mestrado. Como já expliquei, tenho estado a fazê-lo desde 2016, por disciplinas – 2 por ano, pois não tenho muito tempo, devido ao trabalho noturno que exerço. Para o ano falta apenas a tese ou dissertação.
Não sei se terei paciência ou capacidade de continuar para o doutoramento; para já, fico pelo mestrado, pois o doutoramento exige muito mais e, até à reforma, em 2024, não me é possível despender o tempo necessário. Serão, ou 3 anos sabáticos ou um “para sempre” sabático. Veremos.
O dia começa a despontar; já vislumbro uns traços de aurora a leste, em breve vai nascer o sol.
É melhor hoje parar por aqui. Nada disse que interesse a ninguém, mas hoje também não sinto que seja o melhor dia para recomeçar a escrever on a regular basis. No dia 23 entrego finalmente o meu trabalho; pode ser que, a partir daí, tenha mais tempo, disponibilidade, descanso e – o mais importante – inspiração (a grande faltosa).
23. mai, 2021
210 - Ó tempo, volta para trás (ou avança um bocadinho...)16h08, domingo, 23/05/21
É domingo e estou acordado. É domingo e não vou trabalhar. É domingo e estou de férias, fracas férias sem programa e sem férias.
Faz já uma semana que estou em casa. Escolhi esta época para poder apresentar o meu trabalho na faculdade, para poder desenvolvê-lo (afinal tenho programa, embora não seja o mais satisfatório para este período).
Nem sei o que são férias a sério, julgo que é qualquer coisa que existiu no meu passado, mas já não me lembro bem o quê. Agora, tiro férias por reflexo condicionado, como o cão de Pavlov, que salivava ao ouvir o assobio que associava à comida. São, pois, férias palvlovianas que gozo porque ouvi um árbitro ou um polícia a controlar o trânsito e isto só prova que sou um empregado por conta de outrem; se eu fosse patrão, não reagia ao assobio porque tirava férias quando queria ou quando me fosse mais conveniente. Um patrão não tem reflexo condicionado e eu gostava de ser patrão, mas não daqueles pelintras, que estão sempre em dificuldades, sempre a abrir falências e não têm onde cair mortos, mas dos outros, daqueles que têm o assobio na mão para mandar de férias pessoas como eu.
Já fui patrão há muitos anos, tantos que quase nem me lembra, mas fui patrão pelintra e não tinha férias; só tive férias muitos anos depois, quando já era empregado por conta de outrem, mas um empregado “à patrão”, que tinha um mês inteiro de férias porque trabalhava num bom restaurante que fechava todo o mês de agosto. O que também ajudava era um ordenado que, apesar de nada por aí além, era suficiente para tirar umas férias decentes, minimamente decentes, num período em que o índice de qualidade de vida era razoável. Depois…. depois foi o descalabro, a vida a andar para trás, o custo de vida a andar para trás, empregos infelizes, que sei eu?!
Hoje estou nim e conformado; faltam dois anos e pouco para a reforma, não vale a pena fazer ondas, se não houver nenhuma calamidade, terei o suficiente para um retirement tranquilo, na companhia da minha Joaquina, que não se chama assim. Atenção: o “nim e conformado” não significa ficar a um canto e esperar o fim, ainda tenho planos para uma velhice activa e proveitosa.
Carpe diem.17. mai, 2021
209 - Ter ou não ter ânimo: eis a questão.04h41, 16/05/21, domingo
Tenho andado muito cansado, e nem sei porquê. Quase me forcei a escrever estas linhas para não abandonar por muito tempo o meu projecto de escrita. Na verdade, sinto-me sem vontade de fazer seja o que for.
Segundo os parâmetros de Fernando Pessoa, a minha alma deve ter mingado, pois os meus impulsos de acção quase desapareceram, são executados penosamente, e apenas o essencial, como se mais nada valesse a pena.
Temo estar num processo de des-coragem, de torpor, de inércia da anima jungiana, julgo que devido ao cansaço físico e psicológico por que tenho ultimamente passado, devido a problemas do foro pessoal que não quero nem acho que deva referir, pois são suficientemente íntimos e também irrelevantes (fora a falta de vontade) para o acto de escrever.
No entanto, como vou ter uns dias de férias a partir de amanhã, estou consciente de que esta prostração desaparecerá e voltarei a ser energético e positivo.
Penso, logo existo
Penso, logo escrevo
Penso, logo escrevo o que penso
Escrevo, logo penso, logo existo(um bocado tautológico e incipiente, não?)
Nunca, até muito recentemente, pensei na reforma; agora é matéria sempre presente nos meus pensamentos, nos meus planos para o parco futuro que me resta. Antes, renegava estes pensamentos como impensáveis, não me revia no papel de um reformado, ocioso e velho. Era uma visão muito negativa. Agora encaro a jubilação como uma espécie de segunda oportunidade, onde “ter tempo para gozar” ocupa um lugar de topo. Não quero, abomino a cultura do sofá – da ensofalite, como em tempos a apelidei; quero e tenho de me mexer, e não só fisicamente (aliás, fisicamente, estou mais emperrado). Mas quem tem um cérebro e o exercita regularmente, não sente tanto as mazelas do corpo. Stephen Hawking é o paradigma do que aqui afirmo: na falta de um corpo funcional, a mente tomou impassivelmente a dianteira, até à morte do físico. Que nos sirva de exemplo.
25. abr, 2021
208 - Como viver uma velhice jovem25/04/2021, domingo, 01h13
Que é feito das conversas de chacha que tínhamos quando éramos jovens? Não generalizando, eram conversinhas pueris, sobre temas pueris, opinando sobre o desconhecido, tentando olhar o mundo com uma “neutralidade” muito própria, muito pessoal. Éramos pequenos deuses que queriam recriar o cosmos à sua imagem e semelhança.
Ainda não sabíamos, mas essa existência onde o riso era fácil e a despreocupação o mote de todos os dias, cedo teria o seu fim. Aos poucos a tez liza encher-se-ia quase impercetivelmente das rugas da preocupação, da responsabilidade, do temor pelo porvir. No entanto, esse nosso mundo primevo, a nossa utopia feliz, não desaparece totalmente. Toda a idade adulta e toda a velhice são refreadas por esses resquícios, essas pequenas raízes que ficaram na terra e que obstam à desestabilização do Ser que cada um de nós é, agindo como um lubrificante que nos afasta da cristalização, da fixidez de ideias e da irredutibilidade, próprias de quem tem a sorte de envelhecer.
25 de abril, a Revolução dos Cravos faz 47 anos e o meu cão faz 6; no dia seguinte, a minha companheira junta-se-me na idade.
8. abr, 2021
207 - Éden versus Paraíso: qual a escolha, se pudéssemos?
01h51, 5ª feira, 08/04/2021
Knorr,
Maggi, leite em pó
Suil e
Primor, farinha
Amparo, brinquedos de madeira, carrinhos de lata e/ou de dar corda, sacas de plástico (protótipos de qualidade ainda deficiente embora, no geral, bastante resistentes), piões, piorras e rapas, brincava-se com aros de bicicleta sem raios, que se faziam rolar pela rua com o auxílio de um pau ou uma guia de arame, contemporâneos dos carrinhos de rolamentos, que ainda existem; avulso o azeite e também o petróleo para os vulgares e necessários candeeiros, a emular com as candeias de carboneto; avulsos também o feijão, a farinha, o arroz, o açúcar e outros; bancos de napa nos carros, autocarros e táxis (maravilhoso conforto dos assentos: gelados no inverno, escaldantes no verão, deformáveis com o uso continuado); bancos de madeira nos comboios (nada ergonómicos: espaldar recto, eram péssimos para as costas), transportes irregulares no geral, com horários pouco cumpridores ou simplesmente suprimidos sem aviso – cheguei a apanhar comboios com 5 horas de atraso: os tramway, agora chamados Regionais, davam sempre prioridade ao “Rápido” ou ao “Foguete”(de longo curso e, como o nome indica, mais velozes), ao Mercadorias e ao Comboio-Correio.
E por falar em Correios, estes serviços trabalhavam ao sábado e domingo e os carteiros entregavam correspondência nesses dias(!). Entretanto, o fornecimento de energia eléctrica tinha apagões inesperados e sem prazo, ou seja, podia demorar minutos ou dias a ser reposto, calhando a interrupção, frequente mas não exclusivamente, aos fins de semana. Óptimo para quem já possuía frigorífico.
Era este o panorama vivido durante minha infância e primeira juventude. Quem estaria hoje disposto a sujeitar-se a tamanhas restrições e irregularidades e a disfrutar de divertimentos tão imersivos e variados? Certamente ninguém, a não ser que tivesse nascido numa ilha deserta ou fosse Amish. Eu próprio já estou “corrompido” pelos avanços tecnológicos, sociais e outros que foram surgindo ao longo destes mais de 60 anos e já me seria particularmente difícil viver sem eles. É a contraface do avanço civilizacional - a criação de um Éden sintético, difícil de evitar, cada vez mais afastado dos ideais arcádicos de um paraíso adâmico conceitual e utópico.
Não há volta a dar-lhe, temos de evoluir, correcta ou erradamente, só o porvir o dirá. Resta-nos começar a ver muitos filmes de ficção científica para nos podermos preparar para as constantes novidades que certamente nos irão surgir e surpreender.
Falo em ficção científica meio a brincar, meio a sério; sou aficionado desse género literário e deparo de vez em quando com autênticos relatos proféticos, por vezes com dezenas ou até centenas de anos de avanço. Basta estar familiarizado com as obras de Julio Verne ou de Leonardo Da Vinci para perceber do que falo.
25. mar, 2021
206 - Vivências e virulências23h50, 4ªfeira, 24/03/2021
O meu mais fiel leitor, mas que nem sempre é o meu mais acutilante crítico (eu) chamou-me à atenção sobre a última crónica que escrevi, dizendo que fui demasiado radical na avaliação dos compatriotas mais
wealthy. Vendo agora a exposição com um distanciamento temporal confortável e, portanto, uma visão mais neutra, mais isenta da carga emocional do momento (menos hegeliana, portanto), tendo a aceitar que não fui totalmente justo na minha avaliação.
De facto, há muito boa gente entre os visados, e que não se enquadram neste panorama de existências mascaradas que apus a toda uma “classe”. Retracto-me assim, parcialmente, desta avaliação demasiado genérica que retratei (gosto muito de utilizar palavras homófonas e/ou homógrafas na mesma frase ou contexto).
Sendo assim, e tendo liberado a minha atormentada consciência, coloco uma pedra sobre o assunto e prossigo com as crónicas da minha postura no mundo.
Desde domingo, voltei a executar o meu profiláctico e preservacional périplo pelo Parque da Cidade. Ao retomar as minhas caminhadas e outras actividades, apercebi-me de que tenho ferrugem acumulada nas juntas e nos músculos, fruto de um ano de estagnação forçada. Felizmente, começo a notar o metafórico desaparecimento de pedaços da mesma, sob a forma de uma progressiva mobilidade e elasticidade. Penso que a reabertura dos parques e circuitos de manutenção é, globalmente, benéfica. A existência de uma interdição é passível de duas análises: por um lado, evita possíveis contactos e proximidades virtualmente potenciadores de transmissão vírica. Isto, se existir um excesso de aglomeração humana.
Pelo outro lado – e se tivermos em conta o respeito pelas regras sanitárias e de distanciamento – que temo não se vir a verificar – a sua reabertura permite uma eficiente e necessária higienização física e mental que possibilita reequilibrar eficientemente todo um processo de rotinas saudáveis que foi brusca e prejudicialmente quebrado há cerca de um ano. Penso que a segunda análise será, se não totalmente segura, pelo menos bastante mais eficaz e produtiva.
A maioria dos humanos já passou, talvez não por todas, mas pelo menos por algumas das 5 fases de Kübler Ross: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Para aqueles que sobreviveram, passo a enumerar mais uma – a cura.
O caminho está aberto; se seguirmos sempre pelos trilhos traçados, com o mínimo de desvios, em breve (tudo é relativo, o conceito de brevidade pode variar) deixaremos para trás mais uma enfermidade controlada, como o foram todas as de que os humanos padeceram no decurso da sua longa e lenta evolução. Outras virão, possivelmente ainda mais graves, mas enquanto apenas existirem num futuro provável, não nos afectam. Deixemo-las, portanto, em paz e preocupemo-nos com o presente para podermos estar mais bem preparados para o porvir e, muito importante: vivos e saudáveis.
23. mar, 2021
205 - A poupança, os pavões e outros exibicionismos00h58, 3ª feira, 23/03/2021
Tenho notado um aumento exponencial na compra de veículos eléctricos, que começam a pulular como cogumelos nas garagens dos prédios das famílias mais favorecidas pela sorte de terem empregos mais bem pagos ou por quaisquer outros meios. Para quem, como eu, tem como garagem a berma do passeio, tal escolha é impossível. E não é apenas por não ter um sítio onde deixar a carregar durante a noite (o dia, no meu caso), mas também e principalmente devido ao custo ainda elevado do veículo em causa e, para os mais precavidos, pela visão de um futuro em que as dispendiosíssimas baterias terão de ser substituídas, acarretando um prejuízo por vezes incomportável para a maioria das bolsas (como a minha). A não ser assim, até seria uma opção interessante a considerar, atendendo à poupança que incrementa.
O nosso país está no topo da tabela dos que mais automóveis eléctricos compram, mas não penso que seja porque tenhamos um espírito inovador ou ecológico. Posso estar redondamente enganado, mas entendo esta tendência como, não apenas uma forma de projecção social – pois, pelo menos actualmente, como ainda é novidade, ter tal tecnologia poderá deixar passar a mensagem de
status – mas também como forma de, a médio prazo, empossamento de dividendos poupados em energia, não por necessidade, mas para empoçamento de património por cupidez, sem nenhuma necessidade premente ou prática. Falo dos que, metaforicamente, cavam um buraco bem fundo, mas nunca suficiente, para acumular as suas exibicionais riquezas, que são tanto mais inúteis e despropositadas quanto mais inerte é o seu usufruto ou aplicação. São pavões que exibem as suas penas iridescentes para se fazerem notados.
Quem eventualmente ler estas linhas poderá pensar que tenho apenas inveja de não possuir uma situação económica similar. Não, falo (escrevo) porque estou em posição de fazer uma análise de proximidade do fenómeno. Não tenho intenção de viver uma vida falsa, plástica, mascarada, como a que pressinto à minha volta. Quero conforto, não luxo, e quero viver no meu cantinho resguardado, invisível, como sempre vivi, longe de olhares que nos avaliam pelo que parecemos e não pelo que somos.
Será que, se estivesse no lugar deles, daqueles a quem critico, faria o mesmo? Será que me sentiria ofendido, injustiçado, escandalizado por todas estas “mentiras” que são verdades? Possivelmente sim. É por isso que eu não quero pertencer a esse grupo formatado dos puros (direi antes, dos puritanos).
Quero, como toda a gente, ser bafejado pela sorte, mas não pretendo ser asfixiado pelo seu bafo.
16. mar, 2021
204 - Os pesos de consciência não criam músculo mas desgastam00h52, 3ª feira, 16/03/2021
Veio-me à ideia o remorso, como tema. Não que eu tenha cometido algo de grave cuja rememoração me faça perder o sono. Bem, tenho insónias, mas isso deve-se ao – se assim se pode chamar –
jet-lag permanente em que me encontro por ter um trabalho nocturno, nada mais.
A compunção de que falo refere-se ao arrependimento tardio e “peso na consciência” provocado por factos ocorridos no passado (todo o remorso é em diferido), dos quais, directa ou indirectamente, tenha sido ou me considere, pelo menos parcialmente, responsável. Há, com efeito, eventos tristes ou desagradáveis no passado de cada um, e pelos quais, embora inocentes, teimamos em recordar como de nossa, pelo menos parcelar, responsabilidade. Embora em nada tenhamos contribuído para um malditoso desfecho, insistimos por vezes em recordá-lo com o amargo de boca de um sentimento masoquista de auto-culpabilização.
No meu caso particular - como particulares são todos os ocorridos com cada alma vivente – recordo, por exemplo, a morte da minha tia quando, devido a uma ausência de minutos, não assisti ao seu último suspiro. Isso ficou gravado na minha memória como um abandono num momento crucial do fim de uma vida.
Ela, também, se sentiu, em momento e circunstância anterior, como que culpada pela morte da mãe (a minha avó), a que assisti, quando ao alimentá-la com um suplemento alimentar líquido, ela sufocou. Era espectável, pois ela estava num caso terminal de pneumonia, mas o sentimento de culpa instalou-se mesmo assim na minha tia, perdurando por muito tempo, até que a razão, a lógica, finalmente o diluiu.
Mais recentemente, recordo impressões vivenciadas em episódios terminais com todos os animais que adoptei e que me adoptaram como companheiro de jornada e com os quais me sinto em eterna dívida pelos momentos felizes que partilhámos, e aos quais tenho a sensação de ter falhado de algum modo nos cuidados ou por altura da sua passagem, seja por não ter estado presente no momento ou momentos em que de mim mais necessitavam, ou por não ter sabido interpretar os seus sinais, os seus pedidos de ajuda. Não posso afastar de mim essa culpa e ser mais frio no meu auto-julgamento, embora saiba que, em consciência, nada podia fazer. Sei que a Natureza tem que seguir o seu curso, mesmo contra nossa vontade, mas fica sempre um amargor e uma sensação como que de dever não cumprido, de quase traição à confiança que em nós foi por eles depositada.
Não pretendo comparar cães, gatos ou hamsters com a minha tia, pai ou avó, mas certo é que, embora em diferentes níveis, com diferentes intensidades e de acordo com conceitos que, embora diferentes, são, a seu modo, paralelos, equivalem-se.
A história (se é que a isto se pode chamar história) repete-se. Possivelmente um dia, por ocasião da minha partida e devido a uma qualquer circunstância fortuita, alguém sinta também um “peso na consciência”. Deixo um conselho: não sintam. A existência tem de seguir naturalmente o seu curso e nada podemos nem devemos fazer para a deter.
É a vida!
10. mar, 2021
203 - A Feira do Livro também era sociologia e nós não sabíamos.
23h19, 3ª feira, 09/03/2021
Há muitos anos – e quando digo muitos, quero referir dezenas – a
Feira do Livro no Porto ainda se realizava nos desaparecidos jardins da Avenida dos Aliados, antes da destruição gratuita desses exemplares da arquitectura paisagística de fins de oitocentos, que privilegiava os jardins públicos, visando a sua fruição por uma sociedade marcadamente burguesa, dominante que, embora por interesse próprio, abria ao povo o que até ao século anterior eram espaços fechados, autênticos jardins proibidos, apenas acessíveis a uma elite restrita. Não posso negar que, numa lógica de utilitarismo estético, a Avenida recriada por Siza Vieira e Souto Moura, tenha o seu quê de belo dentro do seu pétreo minimalismo mas, numa sociedade que diz à boca cheia e por decreto que se devem preservar os testemunhos arquitectónicos de antanho, não acho muito ético nem honesto ter-se feito uma transformação tão radical a coberto de nomes altissonantes da arte, só para que a cidade se possa “orgulhar” de uma intervenção urbanística feita por génios da arquitectura, de reconhecimento internacional. Isso é passar por cima de princípios consensualmente estabelecidos.
Há então dois pesos e duas medidas? Não se pode demolir uma fachada porque se devem manter os traços arquitectónicos de outras épocas, mas pode-se destruir um jardim tardo-romântico que acompanhou a cidade e várias gerações dos seus habitantes? A iniciativa Porto Capital da Cultura 2001, que visava modernizar e criar novos conceitos de arte, arquitectura e urbanística, embora tenha desenvolvido algumas obras dignas de atenção e louvor, serviu também para inventar mamarrachos e intervenções mal feitas e de fraca qualidade, para rechear os bolsos de alguns e dar imerecido protagonismo a outros.
Mas adiante, que o meu tema de hoje visa um conjunto específico de acontecimentos que posso identificar e singularizar num título. Refiro-me à Feira do Livro como a conheci, ainda na pré-adolescência.
Num ambiente ante-revolucionário, onde os divertimentos e as actividades culturais eram raros, esta feira era, para mim, e julgo que para muitos dos meus coexistentes temporais, um local lúdico e potenciador de possibilidades de conhecimento. Quanto às hipóteses de compra, já não eram assim tanto porque os livros iam começando a, lentamente, se tornarem artigos de luxo, com papel de muita qualidade e conteúdo de pouca.
Nesse tempo, grande parte da publicidade às novidades (ou nem por isso) expostas, era sonora; os editores e as livrarias apregoavam a sua mercadoria em grandes e repetidas parangonas auditivas, que apelavam à compra dos mais recentes títulos, prometendo fruições inigualáveis, o que nem sempre sucedia.
Desses tempos recordo algumas colecções e livros muito publicitados, como a
Colecção Vampiro (policiais) e a
Argonauta (ficção científica). De livros, poucos recordo, embora tenha presente
O Macaco Nu, de Desmond Morris, a trilogia
Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr. (Argonauta) e
Que faz correr Sammy?, de Budd Schulberg. Este último foi tão badalado que ficou indelevelmente gravado na minha memória, embora nunca tenha tido conhecimento do tema e do autor até hoje, e que só sei porque pesquisei há bocado na internet, por curiosidade, antes de o mencionar. Talvez um dia o leia, quanto mais não seja para que o título que carrego na memória há mais de 40 anos faça algum sentido. Quanto ao Cântico, por ser um aficionado do género, comprei a trilogia e nunca me arrependi, pois considero-o ainda hoje uma óptima visão possível de um futuro improvável (será?).
A Feira era uma fuga para saborear, para sonhar, para fazer sacrifícios em nome do prazer e da cultura e em detrimento dos bolos da confeitaria e das partidas de bilhar e ping-pong. Só que, nesse tempo, por inexperiência, por juvenil incultura, por impulso ou porque, pelo nome ou referências críticas empoladas, os poucos livros a que tinha acesso (em termos de disponibilidade financeira, pois a mesada era curta) assemelhavam-se às “raspadinhas”: a maioria das vezes não premiavam os leitores como eu, embora alguns, num futuro, à época, mais remoto, até se tenham, por vezes, tornado interessantes. Aprende-se com os erros.
Acima de tudo, ir à feira era como ir à praia, era socialização, era partilha de gostos e interesses comuns, era consenso, era resignação, era aprendizagem, era selecção e aprofundamento de amizades.
3. mar, 2021
202 - Às vezes a vida tem 2 pés esquerdos e faz-nos andar mais devagar
04h07, 3ª feira, 02/03/2021
Não, não morri; não, não estive doente ou incapacitado; não, não abandonei o meu projecto de escrita; não, não tive tempo.
Essa foi a verdadeira razão para uma interrupção tão grande da regularidade irregular das minhas comunicações escritas a mim e ao mundo: não ter tido tempo nem predisposição psíquica para o fazer. Tenho sofrido um período de sono insuficiente ou, direi antes, deficiente, aliado (e também consequência directa) a um aumento de indisponibilidade provocado pela minha reentrada na vida universitária (ainda dizem que quem corre por gosto não cansa!).
Torna-se agora um pouco mais penoso dar continuidade ao que me propus fazer de há quase nove anos até esta data e que teria todo o gosto de que se prolongasse ad aeternum mas que a EMV (esperança média de vida) despoticamente não permite. Seria colossal ter uma obra que se espalhasse por dezenas, centenas de anos, e que espelhasse, não apenas uma experiência de vida entre muitas, mas também o lento mas persistente refinamento da capacidade de escrita, de estilo, de pensamento, de experiência e de sabedoria. Mas, como cantava Freddy Mercury,
Who Wants to Live Forever?Penso que, salvo excepções que não consigo quantificar, se chega a um patamar em que viver já chateia, em que o espírito se cansa do fardo que tem vindo a carregar desde o nascimento, e pede reforma, cada vez mais racional e insistentemente.
Sou muito apegado à vida e esse momento ainda não me chegou, essa “jubilação” pode ainda esperar mais uns anos ou, quem sabe, até décadas, se a funcionalidade física e mental o permitirem sem demasiado sofrimento. Caso contrário - e generalizando -, mesmo que não queiramos e para nosso bem e dos que nos têm de aturar, devemo-nos sujeitar à “reforma compulsiva” final - ao descanso do guerreiro.
Pax anibamus nostris.201 – Comemorações consumistas ou os consumos comemorativos(Ao fim de tantas publicações, acho que já é altura de titular as novas crónicas)
23h12, 14/02/2021, domingo – Dia dos Namorados Confinados
Ora aí está mais um dia tipicamente consumista, à semelhança do Natal, da Páscoa, do Halloween e de muitos outros. A natureza quase descaradamente negocial sobrepõe-se ao simbolismo e é, a maioria das vezes, criada e/ou alimentada propositadamente. Direi até que o significado comercial suplantou ou mesmo matou algumas datas comemorativas, e não me admirará muito se algum dia, num futuro não muito distante e distópico, o verdadeiro significado, a verdadeira essência de uma data, desapareça totalmente da memória da humanidade e se transforme em mais uma Black Friday ou similar, passando a figurar nas enciclopédias e dicionários como – e passo a citar esse futurismo: uma efeméride que se supõe ter sido baseada numa antiga e incerta festividade pagã, ou algo de muito similar, dando deste modo origem a um rol de conjecturas. E assim se vão perdendo as tradições para dar lugar às promoções.
Natal – brinquedos; Páscoa – ovos de chocolate; S. Valentim – flores e ceias; Dia de Fiéis defuntos (como antigamente se chamava) ou
Halloween - disfarces e doces, e tantas outras datas que se irão transformar em algo quase ou totalmente irreconhecível. Um dia, por este andar, a representação simbólica e icónica da Humanidade será um grande saco de compras.
A saturação do mercado é já tão grande que nem os próprios criadores directos e indirectos – os lóbis comerciais e os pequenos comerciantes – beneficiam da situação. Já não vale a pena investir em produtos alusivos pois, como toda a gente vende, o escoamento não é garantido, por saturação, e poderá até ficar desatualizado de um ano para o outro, tornando-se um fardo inútil, um mono e, consequentemente, um prejuízo.
No entanto, o investimento continua, com novas e efémeras formas revolucionárias de esvaziar as carteiras dos consumidores e entupir as prateleiras dos comerciantes com inutilidades poeirentas.
Inverter esta situação é urgente e necessário, para bem da nossa sanidade mental e económica; porém, o retorno à pureza dos bens verdadeiramente essenciais torna-se cada vez mais difícil. Não nego que pequenos luxos, pequenas extravagâncias são sempre necessárias para aplacar e satisfazer o nosso ego, mas nada de exageros, é imperativo mantermos limites racionais, ponderados, sem cair nas tentações de um inferno consumista e fútil.
02. fev, 2021
Post 200
23h30, 02/02/21, 3ª feira
Ao fim de um interregno mais longo do que o normal, decidi-me a escrever novamente. Toda a carga negativizante das provações físicas e psicológicas que, directa ou indirectamente, temos experimentado, condicionam o humor, a disposição e a inspiração para escrever. Por vezes dá a impressão de que não vale a pena fazê-lo, de que nada vale a pena fazer.
Não sou nenhum super-homem nem sequer exemplo de perseverança e positividade, mas tenho consciência de que a inércia é mais prejudicial do que qualquer tentativa, mesmo que incipiente, de movimento, de reacção ao marasmo, que se propende instalar na mente de cada um. Por isso escrevo, por isso “dou corda às sapatilhas” do pensamento racional e debito qualquer coisa, por mais superficial e irrelevante que seja.
Há alguns anos, quem tinha carro, mas pouco o utilizava, punha-o a trabalhar de tempos em tempos, para carregar a bateria e olear as peças do motor, para evitar que gripasse, prevenindo assim arranques difíceis ou manutenções mais dispendiosas. Assim é com a mente e com a escrita, e até mesmo com o corpo: há que dar umas “aceleradelas” de vez em quando, para manter o bom funcionamento e não enferrujar.
Atualmente, tendemos a tomar consciência da nossa fragilidade e efemeridade. Que o digam as estatísticas, que mostram um aumento de preocupação com o porvir, na forma de escrituras e testamentos, visando acautelar as nossas relações com um futuro que, sendo sempre incerto, recrudesce agora de receios e incertezas, levando-nos a salvaguardar mais eficientemente o nosso legado geracional. Digamos que tais disposições legais são “just in case” - só para prevenir.
Há um ano, tal como em outras incontáveis gerações de próximas ou remotas épocas, julgávamo-nos imortais. Hoje já não é tanto assim, e essa revolução na forma de pensar e agir no mundo e com o mundo traz, para além do inevitável stress e seus associados sentimentos de impotência e até desespero, uma nova consciência de nós e do nosso futuro agregado, um repensar da vida e do seu sentido, um reforçar do altruísmo e da espiritualidade.
24. jan, 2021
Post 199
03h41, domingo, 24/01/2021
Pinto-calçudo! Expressão assaz curiosa que os meus familiares mais velhos usavam quando eu era miúdo!
Nunca questionamos essas expressões, esses “dizeres”, pois fazem parte do nosso currículo linguístico desde tenra idade. Até que um dia a curiosidade se instala, cola-se a nós, não nos larga até a satisfazermos. Bem, estou a falar de cor, não sei o que se passa com os outros, mas comigo, a partir do momento em que me proponho tal desafio, largo tudo o que estiver a fazer e procuro satisfazer essa minha curiosidade, esse meu hiato de interpretação etimológica.
Pois bem, hoje foi mais um dia em que a dita se instalou com sem-cerimónia, como acontece em todas as milhentas vezes que me espicaça. Não resisti, ela levou a melhor e, satisfazendo-a, satisfez-me. De acordo com o fidedigno site do “Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”, significa – e passo a citar:
Pinto calçudo é a denominação de um pinto que tem as pernas revestidas, em grande parte, de plumagem. Calçudo é palavra derivada de calças. Essa plumagem do pinto é comparada a umas calças. Nem todos os pintos têm essa plumagem, só algumas espécies, que constituem uma minoria em relação à generalidade dos pintos.
Por extensão, designava-se pinto calçudo o rapazito cujas calças aderem às pernas, que deixou os calções pelas calças compridas, que já não é menino mas ainda não é homem, e se mostra algo desajeitado na sua pele. O termo também se aplica a alguém que usa calças estreitas e ridículas, que não chegam bem ao fundo das pernas ou que está mal-arranjado ou se veste desajeitadamente, ferindo a norma clássica.
É interessantíssimo procurar a etimologia das palavras e expressões que utilizamos e que, muitas delas, se perdem nas brumas do passado. Há quem diga que isso é uma perda de tempo, que não interessa encontrar a raiz, uma vez que o conhecimento do seu significado é suficiente.
Uma palavra é tanto mais “oca” quanto mais desconhecermos a sua origem, o porquê do seu nascimento e do seu uso. Aliás, quando preenchida, permite-nos travar frutuoso conhecimento com todos os seus sinónimos e antónimos e respectivas nuances, enriquecendo, tanto a oralidade como qualquer texto escrito, seja ele uma simples dedicatória ou o mais complexo tratado.
O saber não ocupa lugar, mas ajuda-nos a preencher esses espaços ocos das palavras, recheando-as de significado.
13. jan, 2021
Post 198
23h29, 3ª feira, 12/01/21
Durante o meu percurso diário para o trabalho meditei um pouco sobre o conceito de Aldeia Global e da extrema desfiguração, ou antes e mais justamente, falta de acuidade, do termo. Como podemos nomear o nosso planeta, a nossa cidade, o nosso prédio, com essa terminologia, se nem mesmo neste último exemplo temos a mínima noção de quem são os nossos vizinhos do andar de cima ou de baixo, ou mesmo do lado?
Na autoestrada vejo passar centenas de veículos, conduzidos por pessoas das quais nem vislumbro as características faciais e que são para mim, consciente ou inconscientemente, objectos físicos ausentes de substância, meros entes biológicos amorfos, inidentificáveis. Reconheço muito mais facilmente os seus meios de transporte; sei que me cruzo, por exemplo, com um Toyota Yaris azul, do ano X, com a data de registo de matrícula Y, que contém no seu interior 2 ou 3 formas humanas vagas, ou simplesmente irrelevantes.
Isto pode algum dia ser uma aldeia global? Impossível! Há prédios que contém mais pessoas do que uma aldeia grande ou mesmo uma vila pequena e onde cada morador conhece quantos outros? 5, 10%? Nem isso?
É um conceito totalmente desadequado e impreciso. Para que fosse correctamente utilizado, teríamos, cada um de nós, seus co-habitantes, de conhecer mínimamente a vida, os nomes, as profissões, a família, as características gerais de cada um, o que é manifestamente impossível, mesmo para um génio ou um super-computador. Teríamos de ser um deus, mas não um daqueles deuses delegados do panteão dos deuses das grandes mitologias, pois cada um deles é “especializado” em algo muito particular: guerra, vento, amor, caça, oceanos, etc. Teríamos de ser o Supremo Arquitecto - seja um Zeus, um Jeová, um Alá ou que nome lhe queiramos dar.
Vivemos numa aldeia global sim, mas de cegos, surdos e mudos. Não vemos, não ouvimos, não falamos com o resto do mundo, limitamo-nos a ser grãos de areia numa praia ao sabor das ondas que nos revolvem. Não temos vizinhos ou lar, pertencemos ao Universo, apenas. Essa é a nossa indefinição global.
7. jan, 2021
Post 197
06h28, 4ª feira, 06/01/21 – Dia de Reis ou Festa da Epifania
Ontem à noite foi dia de prendas para as crianças espanholas, pois a véspera e o dia de Reis são, para
nuestros hermanos, o que a véspera e o dia de Natal são para nós, no que toca à oferta e permuta de presentes.
Afinal, quem está certo são eles, porque a raiz da tradição é a chegada dos Reis Magos a Belém, vindos do Oriente, com oferendas para o recém-nascido Messias. Não sei de fonte totalmente segura em que ponto da nossa religiosidade nacional nos separámos deste costume mais lógico do que o da nossa ancoragem natalícia.
Pelo que pesquisei, foi a partir da implantação da República em 1910, e em consequência do marcado anticlericalismo que atingiu, por arrasto, a própria religião católica – maioritária no país – que os feriados religiosos foram abolidos, só tendo sido restaurados em 1952 pelo Estado Novo, consequência directa da Concordata com a Santa Sé, em 1944. Restauraram-se de modo gradual comemorações e cerimónias religiosas e algumas foram renomeadas, como o Natal, que passou a ser o Dia da Família. Esse hiato de mais de quatro décadas (1910-1952) não foi bastante para retirar da alma dos nacionais os sentimentos religiosos, velhos de centenas de anos, embora algumas datas tivessem sido “mexidas” e outras agora já não passem de meras datas de calendário, ausentes ou quase da sua importância original.
Terá sido esse o caso do Dia de Reis, que certamente, antes da data referida, seria comum aos dois países ibéricos. À falta de uma revalorização, o dia perdeu a importância e o simbolismo originais, sendo a tradição “transferida” para o Natal, ou Dia da Família.
Mas pronto, as festividades antiquíssimas que marcavam o Solstício do Inverno e que foram adaptadas às tradições cristãs (eram a 21 e não a 24), acabaram. No fim do ano, se lá chegarmos, haverá mais, outras crianças nascerão para dar continuidade e alegria ao nosso Natal (seja com o Menino Jesus ou o Pai Natal) e ao Día de Reyes dos nossos vizinhos directos. Há mais 365 dias para viver, pontilhados aqui e ali por alguns feriados que servirão certamente para um pouco de olvido dos problemas e canseiras do dia-a-dia, para que o corpo e a mente, sujeitos permanentemente a pressões de variegadas grandezas, possam fazer pequenas paragens para recuperarmos energia e prosseguirmos as nossas vidas, cuja extensão, a bem da nossa sanidade mental, desconhecemos. Devemos dar o justo valor e esses pequenos tesouros calendarizados.
27. dez, 2020
Post 196
04h39, 2ª feira, 27/12/20
Acabou, passou o Natal. Como é sabido, trata-se de um dia que é impacientemente esperado pela maioria dos cristãos, dos religiosamente maleáveis, ou mesmo dos ateus para, pelo menos, estar com a família, e… Puff!! Já foi, ou como popularmente se diz, “já era”.
Este ano, como convinha, o número de presentes (falo dos presentes em carne e osso e não dos “presentes”) foi substancialmente reduzido: éramos apenas 7, embora nos dias de hoje mais de seis seja quase um anátema, um sacrilégio social, pois trata-se de um dogma governamental, apoiado nos dados do SNS e que compreendo, pois alguém tem de fixar limites de modo a evitar abusos que poderão vir a ser dramáticos. Resta-nos o consolo de podermos desabafar, embora com não muita convicção: “para o ano será melhor”. Será? Não é uma certeza, é uma esperança.
Daqui a 4 dias atingimos o portal de passagem para o novo ano (se dissermos ao contrário, fica melhor com maiúsculas: Ano Novo). Lembro-me de ter escrito que augurava cosas boas, tinha um feeling acerca de 2020. Acertei, nota-se.
Por isso vou deixar de me arvorar em adivinho e abster-me de presságios, formulando, no máximo, um “pode ser que…”, pois pode ser que muita coisa.
24, dez, 2020
POST 195
06h18, 4ª feira, 23/12/20
Tinha de escrever, nem que fosse algo de parco valor. A ideia atormentou-me durante grande parte da noite, onde me surgiram “textos” mentais que, a meu ver, seriam dignos de serem escritos, mas, como sempre, deixei passar a oportunidade. Faço-o agora, embora saiba de antemão que o que irei escrever é tão parecido com o que idealizei, como uma écfrase: tem pouco a ver com a inspiração original, será como uma fotografia desfocada ou uma aguarela desbotada pela humidade.
Como estamos a 2 dias do Natal, tento recordar a minha experiência infante, curta e ingenuamente pura, dessas 62 datas do passado. Bem, não serão totalmente puras, pois desde que nascemos vamo-nos tornando “sabidolas” de ano para ano, de dia para dia. No entanto, devido à tenra idade, podemos-lhes chamar puras, sem fugir muito à verdade.
Que recordações tenho desses longínquos períodos festivos, vistos e sentidos com olhos de rebuçados e mãos de prendas? Exactamente isso – gulodices e brinquedos. Por vezes também desilusões.
O Menino Jesus (era esse que dava as prendas, só muito depois é que o Pai Natal lhe usurpou o lugar), em alguns anos, devia ter os câmbios baixos e, como consequência, trazia algo de que eu não apreciava muito, como um brinquedo fraquito ou mesmo uma peça de flanela (verde) para fazer umas calças (este último foi o mais gelado balde metafórico de água fria com que levei).
Mas enfim, era sempre e apesar de tudo, um período mágico, com imensos filmes alusivos na televisão, inúmeros e cativantes desenhos animados, uns eventuais passeios pela longínqua cidade para ver as decorações das montras e a iluminação das ruas. Para uma criança como eu era, movimento, côr e luz apresentavam-se aos meus olhos como uma espécie de magia, um sonhar acordado de uma (ir)realidade idealizada.
Depois (aos 7, 8, 9 anos?) comecei a desconfiar que esse tal Menino Jesus não era o meu verdadeiro fornecedor de prendas. E como? Num desses Natais, há mais de meio século, recebi uma bola de futebol em borracha, resistente, cor de barro, mas que tinha um símbolo, uma marca com os dizeres” Made in West Germany”.
Estranho! Fez-me começar a matutar porque é que o Menino tinha ido à Alemanha comprar(?) a bola para me oferecer. Levantou-se então uma insidiosa suspeita que, na realidade, já andava a crescer há algum tempo na minha ainda incipiente cabeça: “se calhar foi alguém cá de casa que comprou, se calhar andei a ser enganado desde que comecei a ter algum discernimento, se calhar o Menino Jesus afinal não dá prendas nem nunca deu…”.
Estava a deduzir, a desenvolver a minha mente analítica, enfim, estava a crescer. Terminou assim o lado mágico do meu mito Natalício, morreu a fantasia.
Apesar de tão “desenvergonhadíssimo engano”, compactuei com ele, tendo sido mais tarde também desenvergonhadíssimo com as minhas filhas, e espero também que elas sejam igualmente enganadoras com os meus netos, se eventualmente os vier a ter.
14. dez, 2020
Post 194
03h52, domingo,13/12/20
Está uma noite de inverno (que ainda é outono) calma, silenciosa, com chuva miudinha que parece não molhar, mas que em pouco tempo nos encharca até aos ossos. Tempo melancólico, digamos. Traz-me à memória os postais que nos meus tempos de criança recebíamos em casa – por vezes mesmo um pequeno calendário de secretária – de uma associação de benemerência, da qual não recordo o nome, e que pedia donativos para ajudar os artistas que os pintavam. A particularidade e razão do pedido de ajuda era o facto de que todas as obras reproduzidas nos postais terem sido pintadas por artistas sem mãos, que pintavam com os pés ou com a boca, nada ficando a dever em qualidade àqueles outros em plena posse de todas as suas faculdades físicas. Curiosamente, após um interregno tão grande, recebi há dias um conjunto desses postais, enviados pela mesma associação.
Eram (e são) obras de muito boa qualidade, reproduzindo paisagens ou personagens alusivos ao inverno e ao Natal. Apesar de retratarem cenas natalícias (Pais-Natal, crianças a brincar na neve, anjos, pinheiros de Natal, brinquedos) ou outras alegorias festivas, adivinhava-as subliminarmente tristes, melancólicas, como acima referi.
Reflexo do estado de espírito dos pintores, talvez inconscientemente reproduzido e relacionado com a sua condição física, ou algo criado no meu próprio íntimo, por me aperceber dessas mesmas deficiências? Não sei.
Sei que as idealizações infantis têm grande influência na idade adulta, tanto positiva como negativamente, consoante as circunstâncias. Faz tudo parte da aprendizagem, do que experienciamos ao longo da vida, principalmente nessa época tão importante, em que somos marcados na carne e no espírito pelos choques da omnipresente e nem sempre feliz existência.
Iniciei esta crónica com a ideia pré-estabelecida de falar sobre os mitos da infância e juventude, e que são, numa percentagem quase totalitária, relacionados com a família e entes próximos.
Quando somos jovens temos os nossos ídolos, os nossos role models, aqueles de quem seguimos os exemplos, que são os nossos deuses pessoais, exemplares e imaculados. Em geral são o nosso pai, a nossa mãe, eventualmente um irmão ou irmã, tios ou avós. São seres que nos orientam, que nos castigam, que nos fazem a vontade, que nos contrariam, que nos afagam ou nos descompõem, em suma, que nos disciplinam física e espiritualmente, pois que além de role models, é imprescindível que sejam também rule models.
Depois vamos crescendo, não apenas no corpo físico, mas emocionalmente, e esses educadores, esses instrutores de vida, começam natural, progressiva e propositadamente a distanciar-se, a tolerar mais, a darem-nos espaço e livre pensamento. É geralmente a partir daqui que começamos a avaliá-los, já não ingénuos ou imaturos, mas progressivamente analíticos, embora essa análise seja ainda contaminada pela amizade, respeito e convivência. Eventualmente, acabaremos por nos render às evidências:
Eles, os nossos cuidadores e educadores, os nossos orientadores, não passam de seres normalíssimos, cheios de defeitos como nós, geralmente bons, por vezes maus. São mitos que criámos na nossa infância, super-homens e super-mulheres que a pouco e pouco vão perdendo a luz da aura que os ilumina e transformam-se em vulgares mortais, por vezes péssimos exemplos a seguir. São os nossos seres mitológicos, os nossos deuses de pés de barro pessoais.
Não pretendo com isto renegar a sua memória; apenas lembro de que foram seres imperfeitos como eu e que só a minha personalidade em formação os via isentos de pecado, perfeitos. Honro-os na mesma, pois que sem eles, sem os seus exemplos e fraquezas, não seria o que sou hoje. Devo-lhes alguns defeitos, é certo, mas também lhes devo sólidas e mais abundantes virtudes.
E por que falei neste tema? Porque também eu fui um deus no passado. Ao longo dos tempos fui perdendo estatuto, passei a deus menor, a semi-deus e finalmente ao tal ser imperfeito que continuo a ser.
Dou agora o lugar às minhas filhas; se elas tiverem descendência, sentar-se-ão no trono que já foi meu, e antes de mim, dos meus ancestrais. Mas é um curto reinado, menos de vinte anos, em regra. Também elas, por melhores mães que sejam, passarão um dia de bestiais a bestas e só recuperarão um pouco da dignidade perdida quando a sua ausência for sentida, quando nas margens do Estige, pagarem a Caronte a passagem para o outro lado do rio.
8. dez, 2020
Post 193
04h25, 3ª feira, 08/12/20
Vêm-me por vezes – embora mais raramente, com o passar dos anos – recordações dos tempos de infância, adolescência e mesmo de jovem adulto. Acho que a memória vai progressivamente esquecendo o passado pois, à medida que o tempo rola, as ditas começam a deixar de fazer sentido, deixam de ser relevantes, ou mesmo merecedoras de atenção. A grande maioria das recordações do passado é tão relevante como (como era costume dizer-se) “a primeira camisa que vesti”, o que, certamente, foi um acontecimento extraordinariamente marcante na minha – à época – recém-adquirida e rudimentar memória. Da camisa não me lembro, mas recordo-me de, com 4 ou 5 anos, ter feito uma tremenda birra quando o meu pai me fez vestir o primeiro sobretudo, que tinha encomendado e feito por medida num alfaiate conhecido, de Oliveira de Azeméis. Naquele tempo (anos 60) ia-se ao alfaiate, não existia pronto-a-vestir. Porque é que embirrei com o sobretudo? Não faço a mínima ideia, talvez simplesmente porque.
Compreendo que não se deve deixar morrer o passado, quanto mais não seja para dar um testemunho de vida e de época, para que os vivos ou os mais novos possam saber como era existir “naqueles tempos”. Nós, cada um de nós (antepassados, viventes ou vindouros), somos a História, sem a qual não saberíamos bem quem somos, o que vamos legar e o que nos legaram. E para isso é necessária a memória.
No entanto, piedosamente, com o passar dos anos, o oblívio vai-se instalando, vai criando filtros que retêm aquelas nossas recordações que já foram importantes, mas que se vão tornando cada vez mais irrelevantes, lembranças que passaram a meras curiosidades e, portanto, dispensáveis. Se assim não fosse, acabaríamos por nos tornar velhos chatos, que só sabem falar do antigamente, das tais histórias que só interessam a eles próprios, entediando quem lhes ouve sempre o mesmo disco. Para esses, o presente não passa de lixo, pois antigamente é que era bom. Pobres peças de museu…
Eu, confesso, não me libertei muito do passado, ainda relembro coisas de infância. Ao relembrá-las, confronto-me por vezes comigo próprio e vou assim desfazendo muitos auto-enganos e mentiras, vou-me decifrando um pouco mais.
Conhece-te a ti mesmo, lia-se na entrada do Templo de Apolo em Delfos, na Grécia.
30. nov, 2020
Post 192
01h03, 2ª feira, 30/11/20
Quase Natal! Este ano passou lentamente a correr.
Uma afirmação que, embora aparentemente paradoxal, quase um nonsense, tem a sua razão de ser, a sua lógica. Senão, vejamos: este ano foi o mais atípico de todos, se é que houve, na minha existência, algum ano que tenha fugido tão brusca e radicalmente ao que, por vivência, chamamos ano típico ou normal. A partir de fevereiro, e em crescendo, começámos a sentir sobre nós o peso da constatação (ia dizer “da consciência” mas, por ambiguidade, soaria a algo moral, que não é o caso) de uma calamidade potencialmente letal. Eis que, vindo de algum ignorado esconso, abate-se sobre a humanidade o espectro da doença e da morte. Há que confinar, como agora é uso dizer-se, há que abolir beijos, abraços, qualquer contacto físico - a nós, os animais mais parecidos, em comportamento, com os macacos Bonobo; nós, que dependemos maioritariamente do contacto físico para socializar (Excluo, evidentemente, nesta comparação, a desusada interacção erótica dos ditos símios).
É evidente que me estou a referir às sociedades ocidentais, europeias, do Sul, às Américas e talvez à Oceânia. Em África, julgo que há um relacionamento social extremamente heterogéneo, dependendo do país e da miríade de culturas existente. Na Ásia há, em geral, um distanciamento físico muito pronunciado, e nos países do Norte da Europa será igual.
Estou, evidentemente, a generalizar. Haverá países, nos vários continentes, onde a variação dos relacionamentos humanos foge aos parâmetros que citei. Que se me perdoe a relativa taxatividade do julgamento.
Mas, voltando ao início da crónica, dizia eu que o ano foi temporalmente lento e rápido. Pois foi. Lento, no passar dos dias fechados em casa, sem poder sair como habitualmente, sujeitados a um novo conceito de niqab, cafés, restaurantes, locais de diversão nocturna ou diurna e espaços culturais, muito condicionados, ou mesmo fechados. O tempo, quando nos habituamos a gastá-lo em diferentes actividades sociais do mundo moderno, e que vemos abruptamente coarctadas, torna-se uma eternidade.
Por outro lado, e consequência directa do factor anterior, foi tudo extraordinariamente rápido pois, se atentarmos ao que não conseguimos fazer, à actividade que não tivemos, parece que passou num ápice.
Quantas vezes costumamos dizer: não consegui fazer nada, não tive tempo para nada, parece que o tempo não rende? Pois é, o tempo passou num instante, visto que nada se conseguiu fazer, “não tivemos tempo”. E, contudo, passaram-se 10 meses de um longo ano que não existiu.
24. nov, 2020
Post 191
03h17, 24/11, 3ª feira
Neste momento tomo conta do meu silencioso deserto. Nada se passa, não há vento, não há trânsito, não há nada. Isolando as causas, não sei se bendiga ou amaldiçoe este estado de ausência sensorial; estou habituado, desde o meu nascimento, a ruídos, movimento, estimulação ocular, enfim, tudo com que o progresso civilizacional nos brindou logo desde o nosso primeiro arfar, desde o primeiro contacto com este meio gasoso, sem o qual, após a chegada, não subsistiríamos: o oxigénio. O que seria uma vibração surda (já não me lembro – se é que alguma vez lhe tive fugaz memória), velada por uma ou mais paredes de carne recheadas por um líquido amniótico, tornou-se a partir daí a nossa convivência diária, o nosso deleite, o nosso espanto e o nosso susto. Exceptuando-se a palmada no rabo logo após a pouco triunfal entrada neste orbe (o que agora tem tendência a desaparecer) que nos prenunciava o longo e doloroso caminho que teríamos de percorrer até ao reencontro com o Logos dos estóicos (mas sentido não muito estoicamente), será a descoberta - direi mais: o uso - da audição que nos marcará mais fortemente nesses primeiros dias após a perda do Éden líquido em que beatificamente repousávamos. Claro que depois surgirão os outros sentidos: a visão, o olfacto e o gosto, que nesta fase preliminar é muito associado ao tacto.
Porém, o mais marcante contacto desses primeiros momentos é, para mim, o som, a audição como a primeira percepção do mundo exterior, a descoberta dessa coisa sem nome que nos seduz e aterroriza, e que surge muito antes da visão ou do tacto.
Voltemos ao meu “líquido amniótico”, àquele a que dedico 9 horas da minha vida, 5 dias (noites) por semana. Não fora as obrigações inerentes e um ou outro stress, o meu “útero” seria até perfeitamente aceitável. Não há bela sem senão, o mundo não é perfeito, é adaptado, ou então adaptamo-lo a nós. Aqui não existem os problemas, mas a memória dos problemas, e só nos preocupamos, só stressamos, só nos entristecemos porque, embora deixemos os ditos lá fora, na nossa “outra vida”, esquecemo-nos de arrumar a memória junto deles, trazemo-la connosco, e esse é que é o problema do problema. Algumas memórias deveriam estar ligadas à sua origem por um fio muito curto que as impedisse de nos seguir.
12. nov, 2020
Post 190
06h22, 4ª feira, 11 de novembro - dia de S. Martinho
Quase a raiar o dia, que agora, e até 24 de dezembro, começa cada vez mais tarde. Mas isso é do conhecimento geral, passemos à frente.
Esta noite foi das mais silenciosas que passei, em contexto de cidade. Nas aldeias é fácil nada ouvir, aparte algum breve latido ou o pio de um mocho ou de uma coruja. Aqui na cidade, não. O silêncio tem sempre qualquer coisa de barulho, seja um carro que passa, alguns noctívagos que falem, ruido de máquinas ou ventiladores. É sempre um silêncio branco-sujo.
Não posso falar de um silêncio supremo, pois dentro dos nossos ouvidos há sempre um barulhinho, quase imperceptível que, se prestarmos atenção, conseguimos “ouvir”, se se pode chamar ouvir a esta ténue sensação. É a nossa máquina que, também ela, faz barulho. É uma gradação branco-gelo.
Por vezes é muito agradável a sensação de ficarmos surdos no mundo e para o mundo. Direi mais, é imprescindível fazê-lo, pontualmente ou nem por isso, tentar encontrar um pouco de paz, de alheamento, de equilíbrio, ser como uma pedra, que simplesmente existe, que não ouve, não vê, não cheira, não sente, não fala. Apenas é (o mais próximo do Nirvana, o branco absoluto).
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Medeiam quase 24 horas desde que escrevi as últimas linhas do texto acima. A minha falta de fé na consecução coerente e lógica do dito fez com que interrompesse sine die ou, neste caso, sine hora, o raciocínio (meta)físico-filosófico que tinha encetado. Tempus fugit, e com ele a oportunidade.
Constato, no entanto, que o silêncio se mantém como ontem, apenas acrescentado do bramido do mar, quiçá devido a uma acústica melhorada pela direcção do vento.
4. nov, 2020
Post 189
23h52, 3ª feira, 03/11/20
Decidi-me a escrever. Infelizmente, esta situação que vivemos actualmente (terão existido outras similares no passado, com outras gerações) não é, de certo modo ou para certas situações, muito favorável à criatividade.
Apercebo-me, embora quase subliminarmente, da propensão, que os psicólogos têm ultimamente ventilado, de que há uma situação generalizada de desgaste psicológico, de uma tendência para estados depressivos, bastante acentuada.
A minha avaliação da situação é geralmente calma, controlada, racional, por vezes estóica, pese-me embora um certo discurso negativista, no qual, todavia, não me revejo. É como se eu tivesse uma dupla personalidade, ao estilo de Dr Jeckill e Mr. Hyde : uma para a vida, outra para a escrita.
Admito no entanto que todas as actuais pressões psicológicas, potenciadas pelos media, pelos discursos de cariz realista, mas por vezes sensacionalista-catastróficos, minam a confiança num desfecho, que não direi ao estilo dos contos de fadas, onde o príncipe e a princesa vivem felizes por muitos anos, até morrerem pacificamente de velhinhos, mas num registo pré-pandémico onde se morre “naturalmente”, em geral por doença ou acidente, e cada vez menos por velhice.
Afinal, onde está a diferença entre se morrer de A em vez de B ou C ou qualquer outra letra do alfabeto? Morre-se. E por vezes por modos comparativamente piores, mais horríveis, mais dolorosos, mais desumanos. A diferença está na publicidade, na maneira como as causas são apresentadas.
Recordo-me de ter visto há alguns anos uma reportagem num país do Médio Oriente, em cenário de guerra. Veem-se pessoas no mercado a fazerem as suas compras do dia-a-dia, como sempre fizeram até então. A única diferença era os rockets a cair perto dali. Ninguém entrou em pânico, ninguém parou para pensar que estavam a cair muito perto, ninguém fugiu. Era a sua normalidade, era a consciência de que os rockets caíam ali como em outro lado qualquer. E não era fugindo que se conseguia fugir deles. Era, como diriam, pôr-se nas mãos de Allah e aceitar a Sua vontade.
E porquê? Porque a publicidade num epicentro de guerra não existe, ou quase. Porque não há media que pintem a morte com cores horríveis, porque a morte é simplesmente transparente, invisível. Fazer “ver” a morte, que é a função dos media, é torná-la visível no mundo físico, é materializar o etéreo e apelidá-lo de horrível, injusto e eminente – dirão antes, omnipresente. A morte passa a ser o bicho-papão, o Baba Yaga, que não existe, mas é agrilhoado à força na mente de cada um.
28. out, 2020
Post 188
23h52, 2ª feira, 26/10
Pego na pena e escrevo.
Escrevo ao correr da pena.
Noutros dias não escrevo,
e tenho pena.
Por vezes é penoso nada ter para escrever.
Nalguns escrevo muito de uma só penada.
Mas nem sempre algo que valha a pena,
nem o tempo de molhar a pena.
Tenho pena de não morar em Penamacor,
ou mesmo Ribeira de Pena.
Pena Ventosa não, seria muito penar.
Mas Penacova…
Ouço um esvoaçar e cai uma pena do céu,
em cima da minha pena.
Pego na pena caída,
É bonita, mas é-me inútil, a pena.
E deito-a fora com pena.
É uma pena perder tempo com poemas tão pueris, tão incipientes, tão naïve, mas é para o que me dá, às vezes. Posso ser um péssimo aprendiz de poeta mas, pelo menos, partilho a minha mediocridade, na esperança de ir melhorando. Ou piorando.
21. out, 2020
Post 187
01h28, 4ª feira, 21/10/20
Quão volúvel é o tempo! Há cerca de 1 hora havia no ar e nos sentidos uma beatífica sensação de quietude, transmitida pelo tempo atmosférico parado no tempo cronológico, aquele tempo outonal onde a inércia eólica e pluvial traz consigo um calmo silêncio (se é inércia, como pode trazer algo, se não há movimento?), uma poalha líquida que tudo envolve, qual Londres romântica e idealizada, onde impera o fogg, espraiando-se pelos parques, ruas, ruelas e jardins.
Digo Londres idealizada porque, na verdade, não acredito totalmente nesse fogg romântico. Talvez ele exista, mas é, em parte, mitificado pela literatura, pelos filmes produzidos nos anos 50 e 60 do século passado, pelos romances vitorianos e pós-vitorianos de Charles Dickens, Jack London, mesmo até pelos romances policiais de Agatha Christie. Enfim, uma miríade de clichés que foram formatando a nossa visão de uma cidade e de um país, ao longo de décadas.
Acho que todos os países têm, entre outros, o seu mito meteorológico, as suas estações do ano idealizadas, romantizadas, como, afinal, tudo o que um país tem para oferecer e que expõe nas suas artes, nas suas letras e no seu folclore: um fotoshop, uma fotografia retocada da realidade.
Mas, dizia eu, isso foi há cerca de 1 hora; agora o tempo mostra a sua verdadeira ou averdadeirada cara de outono. Vento fresco e desagradável, penetrante, ameaça de chuva que, julgo, se concretizará em breve, num princípio de desolação e desconforto que se vai avizinhando à medida que o inverno se aproxima e do qual, este mês e o próximo são o arauto e o prelúdio.
Ainda teremos, se tudo correr conforme a antiga normalidade de que nos estamos progressivamente a desabituar, o tradicional verão de S. Martinho, um mini-estio variável que ronda o 11 de novembro e dias precedentes e posteriores, e que é cada vez mais incerto.
Aí sim, é (era) a cerimónia da despedida dos dias cálidos e secos - como uma espécie de rebuçado que se dá às crianças antes de levarem a injecção da vacina!
Para o ano há mais! – é a promessa que paira no ar e que vamos aguardando ano após ano, até ao dia em que já não nos fará diferença.
Mas isso são outras histórias.
5. out, 2020
Post 186
05h55, sábado, 03/10/20
O que nos faz sermos o que somos, termos as aptidões que temos, ou a falta delas? Porque é que há quem vença na vida, se destaque entre os demais, como se tivesse nascido já ensinado? Não serão, seguramente, só os genes ou a aprendizagem.
Há quem não tenha nenhum ascendente de relevo ou sequer medíocre e torne-se um génio na sua área de conhecimento. Outros, pese embora o facto de terem nascido em famílias sobredotadas, não apresentam aptidões minimamente aproveitáveis. Outros ainda, providos de educação esmeradíssima, por mais que se esforcem, não conseguem extrair das suas existências nada de útil.
No entanto, há seres extraordinários que, mesmo sendo oriundos de ambientes familiares incultos ou desestruturados, ou ambos, e não tendo tido nada além de uma educação e instrução básicas, ou nem isso, tornam-se génios nas suas áreas de actuação.
Porquê estes percursos de vida aparentemente anómalos, como se o Supremo Arquitecto, o destino, o acaso ou que nome lhe pretendam dar, lançasse os dados aleatoriamente, como se a lógica do universo fosse uma mera tábula rasa?
Afinal, filho de peixe nem sempre sabe nadar. Parece que a humanidade contém nos seus genes de espécie, tanto a possibilidade de criar idiotas como prodígios, ignorando as matrizes, de um modo aparentemente ilógico. Isto numa análise que segue uma perspectiva individual e, portanto, potencialmente falível.
Podemos também considerar como factor a chamada teoria da reencarnação, já aqui focada em outras ocasiões: vimos à Terra para aprender uma lição no decorrer das nossas vidas e, mais tarde, retornaremos, ou para “avançar de classe” ou, se reprovarmos, para reaprender a matéria da aula anterior. Faz um certo sentido. Não significa, porém, que a teoria seja válida, pois é apenas uma teoria, como a da evolução, dos extraterrestres, etc. Todas têm falhas ou perguntas sem resposta, seja por ignorância nossa ou por apresentarem deficiências intrínsecas.
À medida que vamos evoluído, que vamos treinando e expandindo o nosso raciocínio, surgem cada vez mais perguntas e mais perguntas sem resposta. Evoluir traz consigo um acréscimo de incógnitas e incertezas que nos deixam inquietos e frustrados.
O saber traz sofrimento e, simultaneamente, alegria. Parece que quanto mais se sabe, mais perguntas surgem. Cada resposta cabal contenta o inquiridor, mas acarreta também mais dúvidas que o entristecem e afligem.
Felizes, só os pobres de espírito.
29. set, 2020
Post 185
00h42, 3ª feira, 28/07
Há um ano estava em Florença, há dois em Santiago de Compostela, há três em Londres e este ano em casa: quatro anos, quatro destinos diferentes, não me posso queixar.
Isto de estar em casa este ano e nos anos anteriores noutros países, não é ironia. Podemos ficar em casa e ter umas óptimas férias, apenas temos de saber aproveitar o tempo; foi, afinal, o que eu fiz. Há muito para descobrir no lugar onde vivemos, e por vezes admiramo-nos por nunca sequer termos imaginado as pequenas (e grandes) maravilhas que se encontram quase à nossa porta.
Recorda-me um slogan publicitário que correu o país há alguns anos, fruto de uma campanha de promoção turística nacional: “Vá para fora cá dentro”. Este ano, mais que nos anteriores, fez muito sentido, não apenas como substituição de uma difícil saída para fora das fronteiras, devido à situação sobejamente conhecida, mas também por se tratar de uma opção que tendemos a ignorar, como se o espaço em que vivemos e do qual somos cidadãos não merecesse uma atenção, uma exploração lúdica e cultural mais aprofundada.
Londres, Paris, Barcelona, Roma ou Atenas poderão ser destinos maravilhosos – pelo menos para a maioria – mas não podemos esquecer o nosso próprio país que, como qualquer outro, tem muito para descobrir e maravilhar. De que vale conhecermos o resto do mundo como a ponta dos nossos dedos, se desconhecermos o solo que pisamos e é nosso?
Não estou a ser hipócrita, todos os lugares que visitei durante estes anos foram por oferta de familiares e muito os apreciei, pois abriram-me novos caminhos, novos horizontes. Foram viagens agradavelmente compulsivas e involuntárias, pois não sou pessoa de me deslocar muito, em parte devido a circunstâncias particulares de que não falarei, por serem do foro íntimo. Porém, se essas limitações desaparecerem e a mobilidade e as finanças se mantiverem nos mínimos exigidos, terei imenso prazer em conhecer melhor o meu país, como sempre foi meu desejo.
Uma fotografia vale mais do que mil palavras, mas uma viagem vale mais do que mil fotografias.
20. set, 2020
Post 184
23h28, sábado, 19/09
Seis dias de não-trabalho, de não-férias. Não, não vou iniciar um choradinho de auto-piedade; apenas constato uma realidade, da qual ninguém tem culpa: a chuva e as restrições não são o melhor palco para férias. Talvez para o ano.
Mas não foi para isso que comecei a escrever, foi para arejar os pensamentos, para dizer qualquer coisa, mesmo que não diga nada. Chega-se a um momento em que o acto de escrever se torna quase uma compulsão, tal qual os livros que adquiro. São quase uma necessidade, algo de que não consigo abdicar sem me sentir assaltado por uma… Bem, não direi angústia, mas como um sentimento de que estarei a perder algo de que necessito para manter a minha homeostasia, o meu equilíbrio interno.
De certa forma compreendo os avaros, os que amealham tudo o que podem, que sacrificam a sua comodidade, o seu bem-estar, para acumular riquezas, das quais não tiram proveito. A avareza, embora mais desprovida de sentido, mais prejudicial para todos os envolvidos (o actor e o seu círculo de influências), assemelha-se à “livreza” (perdoe-se o neologismo), pois apercebo-me de que, embora tente seleccionar criteriosamente o que compro, refinando os meus padrões de interesses e consequentes gostos de leitura, nunca conseguirei ler em vida todos os títulos que vou adquirindo com relativa regularidade, facto que, para mim, é extremamente penoso. A grande diferença entre um e outro é que o primeiro amealha e não usufrui, enquanto o segundo amealha e não tem tempo suficiente para usufruir.
A exemplo do meu pai – a quem, por isso, estarei eternamente grato – fui, desde criança, um leitor ávido, que chegava a ler um livro por dia, todos os dias. e Isso traduz-se numa capacidade de fazer uma leitura rápida e profunda, sem hiatos nem simples afloramentos. Para mim, ler assemelha-se ao desempenho de um operário experiente, que faz as suas tarefas com uma perna às costas, como sói dizer-se.
Aliado a esta apetência junta-se o facto de que a minha tia, que me criou desde bebé, ter-me legado a sua parte da biblioteca de família. Entretanto, os meus irmãos, por variadas circunstâncias, delegaram-me a responsabilidade da guarda da outra parte, outrora pertencente ao meu pai. Somados aos meus, no cômputo geral, são já mais de 4560 títulos.
Actualmente já não tenho muito tempo para ler, nem a mesma disposição. As voltas da vida trocam-nos as voltas. Leio agora a um ritmo substancialmente inferior ao das aquisições e com a consciência de que os livros de que gosto e compro ficarão, na sua esmagadora maioria, fechados para sempre, pois estou convencido de que os hábitos de leitura desta casa morrerão comigo. Não que não me tenha esforçado no passado, mas porque simplesmente já desisti.
14. set, 2020
Post 183
14/09, 2ª feira, 1h32
Férias, finalmente! Daqui a ¼ de dia, entro oficialmente nas ditas. Para festejar o acontecimento, a própria Natureza, contente por me ver neste período breve de descanso, brindou-me com uma chuva de translúcidos confettis de ….chuva. Parece que estes festejos vão ser recorrentes e eventualmente acompanhados de “fogo de artifício” durante, pelo menos, a próxima semana. Que bom!
O que vale é que o Estado e a Direcção Geral de Saúde, cientes da minha necessidade de repouso, vão restringir a minha actividade exterior por um período indeterminado. Ouro sobre azul!
Deixemo-nos de ironias, o tempo está como está e a situação pandémica exige o que exige, tenho de me adaptar e descobrir modos de apreciar convenientemente o período sabático que hoje se me inicia, se a tanto me ajudar o engenho e a arte.
Como referi aqui uma vez, estamos a entrar no período em que as árvores se despem e os homens se vestem, o prelúdio da estação fria. Não sou muito adepto deste tempo indeciso mas há que reconhecer que, em parceria com a primavera, o outono apresenta as mais belas paisagens e os mais belos coloridos, com a única diferença de que a primeira exibe uma extraordinária exuberância de cores, vivas, alegres, extasiantes, enquanto no último predominam os tons pastel, uma pachorrenta calmaria de cores relaxantes, meditativas, que prenunciam a hibernação da Natureza, um convite à calma e à reflexão (também um convite a ficar em casa para fugir do frio e da chuva).
Tenho nos meus planos fazer todas aquelas coisas que não farei, tomar todas as resoluções que tenho postergado e que agora irei procrastinar. E, quando chegar o dia 28, vou olhar em retrospectiva e estressar com tudo aquilo que não fiz e que certamente não estará feito quando eu fizer a passagem para a fábrica dos tijolos, que é a única coisa que eu adio sem estressar.
13. set, 2020
Post 182
13/09, domingo, 04h09
Está na hora de gastar mais alguma tinta virtual no meu espaço web. Antes, contudo, gasto alguma tinta real numa folha, geralmente A4, que transferirei para o computador, após edição.
Anacronismo? Não, a escrita real dá-nos intimidade, um não-sei-quê diferente e reconfortante que nos sacia mais do que uma escrita por teclado. É algo que saiu verdadeiramente de nós, da glândula exócrina que é o nosso cérebro, instrumento da alma, do intelecto. Um computador é algo frio, impessoal, mecânico, útil mas amoral.
Isto, claro, é o meu entendimento, do alto dos meus 63 anos (e 2 exactos meses). Mas reafirmo que não estou a ser anacrónico, sou apenas um homem do meu tempo, que aprendeu a escrever, aprendeu a escrever à máquina – que ainda tenho: uma Royal, que era do meu pai – e, finalmente, a escrever num computador. O meu mundo era escrito à mão, sendo a máquina de escrever um mero instrumento de trabalho e o computador, uma ideia de ficção-científica.
Escrever à mão é gratificante; dá-nos prazer ver a mão, os dedos a movimentarem-se imperceptívelmente, a imprimirem no papel os nossos pensamentos, as nossas decisões, os nossos desabafos, as nossas parvoíces ou as nossas obras-primas. Escrever à mão investe o escrito de um peso ético muito grande - não tão grandioso, mas similar ao gesto de D. João de Castro, Vice-Rei das Índias, nos idos de 500, que empenhou as suas barbas como garante de um empréstimo que pediu a Goa para reconstruir Diu, arruinado pela guerra contra os turcos.
Quem escreve assume um compromisso, seja ele qual for, selado com a sua própria escrita, a sua própria mão. Falhar esse compromisso é uma desonra para a mão que escreve e para o seu possuidor.
Empenhar as barbas hoje em dia seria um anacronismo digno de chacota, uma atitude que, infelizmente, perdeu o seu carácter nobre e respeitado, tanto pelo credor como pelo devedor. Pena que a integridade, a honradez de antanho tenha deixado de ter valor neste nosso mundo desconfiado e corrupto.
10. set, 2020
Post 181
00h57, 4ª feira, 09/09/20
As minhas musas não se mostraram muito auspiciosas nestes dias e, portanto, não escrevi nada, pois não valeria a pena gastar energia com ideias estéreis ou rebuscadas. Mesmo agora faço um esforço quase desesperado para que elas apareçam a apadrinhar a prosa que tento escrever.
É evidente que nem todas me poderão ajudar: Euterpe e Terpcícore (musas da música e da dança) estarão um pouco alheias a este meu problema específico; quanto às outras, lá me poderão ainda ser úteis: Calíope na eloquência, Clio (nada a ver com a Renault) na história, Érato na poesia lírica, Malpomene na tragédia, Polímnia na poesia sagrada, Tália na comédia e Urânia na astronomia. Esta última sempre poderá dar uma mãozinha (ou as duas) para alinhar os astros a meu favor. Vinde, pois, filhas de Mnemosine (memória) e Zeus!
………………………………………………………..
Esperei alguns minutos para que alguma se manifestasse, mas parece que, talvez devido ao adiantado da hora, elas não virão, devem estar a descansar. Sim, porque isto de inspirar o mundo inteiro deve dar um trabalhão: programação, armazenamento, expedição, entrega, criação de conteúdos, etc., não serão os 12 trabalhos de Hércules mas são, de certeza, um trabalho hercúleo (em sentido figurado, claro), e a ninguém interessa ter musas com esgotamento, com
burn out; não são tarefas que se resolvam mudando as pilhas, mesmo que para
Duracell.
Embora tenha a lamentar que não sejamos um orbe constituído exclusivamente por génios (o que também acabaria por ser muito aborrecido), por outro lado isso obrigaria a que as musas se multiplicassem, se clonassem em doses industriais, pois se apenas continuassem a ser 9, certamente estariam num manicómio e totalmente irrecuperáveis num curtíssimo espaço de tempo. Seriam necessários vários milhares de clones seus para suprir as necessidades, pois que, em caso de colapso criativo, seríamos um planeta de estúpidos, o que se tornaria muito mau e perigoso (mesmo assim já o é).
Termino esta crónica com a plena consciência de que disse muito sem ter, ao fim e ao cabo, dito nada.
As musas não me ligaram, tenho de lhes enviar o meu número de contacto pelo Whatsapp.
28. ago, 2020
Post 180
03h15, 4ª feira, 26/08/20
Sinto-me cansado e não apenas físicamente. Pressinto, mais do que vejo, a vida a andar para trás, como se tivesse nascido com um elástico agarrado a mim e este se fosse estendendo até ao máximo da sua tensão e agora, 63 anos depois, começasse a reclamar o retorno ao estado de repouso, o ciclo completo de um bunjee jumping, ao qual todos estmos ligados, cada um ao seu, e com diferentes tamanhos.
Essa corda extensivel-retráctil é o nosso kit de sobrevivência-surpresa, do qual não sabemos à partida o tamanho nem até onde nos podemos "esticar". Isto se não se romper bruscamente, cortado por nós, por outrém ou por acaso, pelo destino. Curiosamente, é como um cordão umbilical, só que ao inverso. Será que, quando se quebrar, renasceremos noutro lugar, físico ou nem por isso? A eterna incógnita.
14. ago, 2020
Post 179
05h03, 5ª feira, 13/08/20
Já não escrevo há uma semana. Entrei numa espécie de modorra, uma apatia que nem sequer se deve ao calor, pois nem calor tem estado. Será mais uma síndrome ou transtorno disfórico que condicionou a minha disponibilidade e o meu humor. É evidente que este estado psico-físico nada tem a ver com a síndrome ou transtorno disfórico pré-menstrual que, como é óbvio, não tenho. Limito-me apenas a utilizar uma categorização de largo espectro, que pode também incluir esse tipo de sintomatologia feminina.
Não que esteja deprimido mas um pouco apático, como se tivesse tirado uma licença sabática da actividade geralmente entendida como normal. Isto passa.
Tenho-me recordado que houve um período, há 3 ou 4 anos, em que escrevi micro-contos e poemas, cuja intenção seria a de me iniciar numa experiência de escrita criativa, um pequeno laboratório de actividade literária experimental. Desisti de um momento para o outro, nem sei porquê.
E se eu recomeçasse? De certeza que não criaria nada abaixo de péssimo. Então por que não (re)tentar?
Fica registada a intenção.
05,ago,2020
Post 178
04/08/2020, 06h10, 3ª feira
Antes, o meu nome era feto. Depois, nasci e fiz-me bebé. Só me fiz homem muitos anos depois, embora que parcialmente. Residualmente, continuo criança, ainda insegura, ainda não desencantada, ainda ingénua, ainda pura, embora a pureza tenha já tons de branco (muito) sujo.
É isto a chamada idade adulta: desencanto, insegurança com upgrade, ingenuidade quase sempre perdida, a linda roupagem branca da candura com que nascemos, coberta de lama, de fuligem, de excremento. Ecce Homo.
Pois, nasci. Da minha primeira infância só tenho um ou dois flashes; o resto, como é normal, está muito, muito escondido no subconsciente. É arquivo morto que só está lá porque está lá, como os arquivos temporários do disco duro de um computador.
Depois… Depois as memórias vão-se formando, ainda incompletas, ainda imaturas, recordações falsas ou empoladas pela distância temporal e pelas impressões que o desenrolar dos acontecimentos causa no nosso cérebro em formação. É aqui que aparecem as situações, coisas ou animais, monstruosamente grandes ou infinitamente pequenos, as distâncias incomensuráveis que, na realidade, são apenas 5 ou 10 metros, 2 ou 3 centímetros, etc. É aqui que nasce o que nunca aconteceu, as efabulações feitas memória, os factos não factuais. O nosso “aparelho de medição” está, nesta idade, ainda a ser construído, e os parâmetros estão todos baralhados.
A seguir vem a pré-adolescência, de delimitação variável, onde aprendemos aos poucos, geralmente por intermédio de frustrações ou episódios embaraçosos, a medir, não as distâncias referidas nos parágrafos anteriores, mas as outras: as distâncias sociais, as noções mais aprofundadas do bem e do mal, a moral nas suas múltiplas formas – social, religiosa, sexual, etc. Esta última ainda não a percebemos muito bem porque só atinge a sua plenitude e, portanto, a sua compreensão, na puberdade e seguintes.
Ora bem, a puberdade. Aqui é que a coisa se complica. A razão e as emoções digladiam-se ferozmente, e muitas vezes as emoções vencem. Começam as asneiras, os descuidos, a irreverência, o questionamento dos valores que os progenitores pacientemente inculcaram, o que indigna os ditos e os enfurece, porque se esqueceram que já foram como os seus descendentes e também quiseram mudar o mundo à imagem e semelhança dos seus pensamentos, dos seus ideais. Isso inclui-nos também, quer queiramos, quer não, pois que santinhos, só no céu, se o céu existir.
Não é por acaso que se diz que a história se repete, e não apenas como disciplina escolar, mas também como experiência de vida de cada um.
Ah! Finalmente somos adultos, acabaram as marés vivas! Bem, quanto a isso, apenas posso comentar que somos suficientemente estúpidos ou ingénuos – com os resquícios de ingenuidade que ainda temos – para acreditar na paz.
Não há paz! Há arranjar emprego, casa, casar, ter filhos, educá-los para eles depois (na nossa opinião) estragarem tudo, enfim… os problemas fazem-nos felizes nos raros momentos em que não os temos, nos intervalos entre o fim ou pausa de uns e o início de outros. A nossa felicidade é isto mesmo: efémera como um soluço e, tal como este, aparece ou desaparece num ápice.
Depois vem o Futuro, que é a reta final do nosso futuro, o período em que aguardamos a todo o momento ser descontinuados. Calmo ou tumultuoso, ele está lá, algures, à nossa espera. Preparemo-nos.
30. jul, 2020
Post 177
26/07/20, sábado, 02h46
Está um silêncio brutal. É curioso que me aperceba disso, quando noutros dias o ignoro, ou antes, não me apercebo da sua presença. O silêncio pode ser uma presença? Ou simplesmente o nome que se dá a uma ausência? Podemos nomear algo que é a inexistência de qualquer coisa e que, portanto, não é nada? Ou existem vários nadas coisificados para estabelecer diferenças entre inexistências? Parece paradoxal, embora possa também ter uma (in)certa lógica.
A nossa estrutura mental não nos permite deixar passar seja o que for sem um apodo, sem uma etiqueta. Se analisarmos essa nossa rotulagem virtual, encontraremos milhentos frasquinhos catalogados com os mais variados nomes; mais de metade nada contém: são as diferentes nomenclaturas do nada.
Silêncio, escuridão, insipidez, inodorabilidade, etc., são algumas das qualidades de que essas inexistências podem usufruir.
E voltamos assim à questão fulcral: como podemos classificar inexistências? Como atribuir características a um adjectivo que qualifica algo como não tendo características (não tem cheiro, não tem sabor, etc.), mas ao qual fornecemos o classificativo de “algo que não tem características”? isso é a negação do nada! Em que ficamos?
18. jul, 2020
Post 176
06h04, 5ª feira, 16/07/20
Ainda aqui estou, alive and kicking, como cantam os Simple Minds, embora noutro contexto. Já sobrevivi mais 73 horas ao 63º sucedâneo do meu nascimento. Quanto faltará para a deadline (no sentido literal do termo)? Não que interesse nem que eu esteja muito preocupado; por muito ou por pouco, ainda estou vivo e, enquanto estou, saboreio a vida que me resta o melhor possível.
Está a ficar um calor sufocante, a aragem forte da manhã traz um prenúncio de “forno”, como se de um vento do deserto se tratasse.
Dou-me mal com o calor, muito especialmente com o do Norte, que é húmido; no Sul, a temperatura é geralmente superior, mas aguenta-se muito melhor, é seco, não existe a sensação desagradável de termos tomado um banho de suor vestidos. Em termos globais, e apesar do desagrado húmido, ainda continuo a gostar do verão: dá-nos uma certa sensação de alegria e liberdade de que o inverno não é capaz.
No inverno parece que vamos sempre de viagem: transportamos sobretudo, impermeável, luvas, guarda-chuva, cachecol, gorro, pullover, camisolas interiores, meias grossas e, provavelmente, mais algumas pequenas coisas de que não me lembro. Saímos à rua só quando necessário e a contragosto. Sair é uma seca (na verdade, é mais uma molha).
No verão, não. Excluído o impacto inicial abrasador ou liquefactor da temperatura, saímos com o mínimo de roupa e, para quem não esteja a trabalhar, com o intuito de passar um bom bocado em qualquer sítio fresco ou, masoquísticamente, grelhar nalguma praia.
Há mais liberdade de movimentos, mais alegria, as nossas endorfinas saltam mais cá para fora. Quanto a queixarmo-nos do tempo horrível que faz, da canícula que comparamos com a entrada no Hades - que nem se pode pôr um pé na rua, que sufocamos, que não se aguenta… Isso são queixumes de alegria.
Bom, como em tudo, há excepções que fogem ao considerado normal; há dois ou três anos referi nestas crónicas que, já lá vão uns longos 44 anos, tive um professor cujo comportamento fugia totalmente à normalidade: no inverno, em dias bem chuvosos, ele (que, à data, teria sensivelmente a minha idade actual) vinha muito bem disposto, envergando um fato verde de tom médio a pender para o claro; no verão ou em dias solarengos, a sua alegria desaparecia sob um rosto carrancudo, a emparelhar com o fato preto ou cinzento escuro que envergava. Mais “normal” do que isto é, certamente, quase impossível.
Vistas bem as coisas, não existe uma normalidade irredutível. Nós somos todos “anormais” segundo os padrões dos outros, ou seja, o que para mim é normal, poderá não fazer sentido para outros, do mesmo modo que a sua normalidade poderá ser, para mim, estranha ou ambígua. Como sói dizer-se: “eu sou normal, os outros é que são doidos”. Cada um rege-se, não por normas padronizadas, mas pelas interpretações pessoais dessas normas. E está tudo dito.
13. jul, 2020
Post 175
03h55, 13/07/20, 2ª feira
Nasci há 25 minutos, há 63 anos. Quem diria!
Retrospectando (acho que não é um neologismo, mas sim português do Brasil) todas essas dezenas de anos e mais alguns, fico abismado com aquilo que vivi. Nunca, nem nos meus melhores ou mais fantasiosos sonhos, pensei conseguir chegar aqui, ultrapassar esta barreira que o Eu-jovem vislumbrava tão longínqua, como um número inatingível e insanamente grande, impossível ou duvidoso de alcançar.
E, afinal, eis-me aqui, o Eu-jovem já morto e enterrado e substituído pelo Eu-velho que sou. Continuo, no entanto, a duvidar das evidências, a duvidar que estou aqui (e vivo). Tento-me capacitar de que sou apenas um sonho mau do jovem que ainda sinto dentro de mim e que, tal como a Branca de Neve, vai despertar em breve da letargia em que se encontra.
Mas é apenas ficção, triste e amarga ficção. Estou bem desperto, mas persisto em tentar viver num passado que nunca mais voltará. É difícil aceitar as limitações que surgem agora, a cada passo que damos.
No entanto se, in illo tempore, me dessem a escolher, qual escolheria: a desenvolta irresponsabilidade juvenil ou a calma sageza dum ancião?
Difícil pergunta, mas, no meu caso, acho que escolheria, apesar de tudo, a última. Não apenas pela sua inevitabilidade, mas pelo desejo oculto que cada jovem tem de querer copiar aquilo que um dia, se tudo correr bem, se tiver cabeça, virá a ser - e quando refiro copiar, será apenas a ponderação, pois a juventude quer-se e crê-se eterna. Mas tudo tem um preço…
Quanto tempo me resta neste sonho? 20 anos, 10, 1, nem isso? Não vale a pena fazer apostas nem especular. O que vier, veio, será eventualmente bem-vindo.
Carpe diem.
9. jul, 2020
Post 174
09/07, 5ª feira, 03h14
Sono! A minha besta tentadora, o meu Inferno de Dante, a minha tentação de Santo Antão (que eram muitas), a minha serpente de Eva.
Que exagero! Já agora, só resta comparar com uma das 10 Pragas do Egipto, que figuram no livro bíblico do Êxodo, ou com a maldição de Tutankamon.
Na verdade, o sono é o meu maior inimigo em período de trabalho, que compartilho com um período de estudo pois, como é sabido, trabalho à noite, que é a altura em que a melatonina atinge os seus valores mais elevados. E, para este efeito, de nada serve dormir durante o dia: ela é produzida na mesma durante a noite e complica bastante o desempenho laboral e o estudo.
E agora, após toda esta autocomiseração, passemos para outras coisas igualmente pouco importantes.
E o que é, afinal, importante na vida de um vivente? Tudo e nada. Tudo, porque é pela junção, pelo conjunto de todos esses pequenos nadas que a existência “existe”; nada, porque todos esses pequenos nadas são realmente isso: pequenos nadas. Logo, nada, multiplicado por nada, o que dá é….. Nada.
É evidente que o que escrevi acima não passa de um mero exercício filosófico, embora tenha o seu fundo de verdade. Ligamos demasiado, damos demasiado valor às pequenas circunstâncias da vida. Não digo que não seja importante - é-o – na nossa reduzida perspectiva, no nosso mundo pessoal e intransmissível, mas não o é à escala cósmica.
Nessa escala, somos como as formigas que calcamos sem sequer notar, todos os dias. E é precisamente isto que eu quero dizer: à escala cósmica, ao nível da consciência cósmica, somos formigas calcadas sem remorso, invisíveis, exactamente como o fazemos nos microcosmos do nosso (também) microcosmos. Ninguém pergunta a uma formiga quais são os seus planos de vida; o nosso (para elas) cosmos não quer saber.
Somos formigas, ponto. E sujeitamo-nos às leis do nível em que nos encontramos, dentro da escala hierárquica do Universo.
01,jun, 2020
Post 173
01/07/2020, 4ª feira, 02h42
Nota de abertura: pesadelos de infância. Julgo que todos os tivemos ou, pelo menos, é o que os pedopsiquiatras e psicólogos dizem. Acredito que sim.
Os meus mais recorrentes “sonhos maus” de infância – se não os únicos – eram dois:
Um colocava-me numa farmácia, da qual só me apercebia do balcão, do farmacêutico e do meu pai. Eu sabia que era uma farmácia, mas nada visível o indiciava, era apenas o balcão e o farmacêutico, de bata branca e feições indefinidas. Nada de armários, nada de medicamentos, nem sequer um fundo detrás desses dois elementos. Do outro lado, o meu pai.
Estou da parte de fora, supostamente na rua, agarrado ao beiral da janela sem caixilhos nem portadas; um simples buraco de janela. Estou pendurado, sem apoio, apenas os braços fincados na beira interior da janela, para não cair. Por baixo de mim, o vazio, um abismo sem fundo. O meu pai e o farmacêutico, cada um do seu lado do balcão, observam-me impassíveis; não falam, não esboçam nenhum movimento, nada. Apenas olham, vivos, mas estáticos, não lhes adivinho nenhum impulso para me ajudar.
A situação aflitiva permanece até que acordo num pânico controlado, pois já sei, talvez pela recorrência, de que é apenas um pesadelo que tenho de ter e do qual acordarei antes de perder as forças e cair. Angústia.
O segundo era mais um sonho que um pesadelo: eu descia pela rampa em caracol, branca, de uma espécie de poço muito amplo, similar à espiral de acesso de algumas garagens públicas. Ao fundo adivinhava, mais do que via, o fundo, com água.
Ao descê-la, tinha o desejo de que ela fosse comprida, quase interminável, quase mágica, como um poço iniciático. Essa era a ideia subjacente ao início do sonho: a água ao fundo, num buraco grande, a rampa sugerindo grandeza, quase enormidade.
A parte “pesadélica” do sonho consistia na desilusão do que me ia apercebendo à medida que descia: a rampa era muito curta, quase só uma meia-volta e o poço não passava de um pequeno buraco no chão, como aqueles que os esquimós fazem no gelo, para pescar. A água não era estática, como se de uma pequena nascente se tratasse. Frustração.
Onirismos estranhos, como só estranhos podem ser os pesadelos de infância.
E eis-me aqui e agora, geração moribunda, a relembrar os primeiros dias da Criação, da minha criação, tão íntima e pessoal como só pode ser a de cada um.
Somos como que partículas subatómicas do Tempo, de Cronos¸ e ele só existe porque existimos e nós só existimos porque ele existe. É como uma relação simbiótica, como a relação entre uma rémora e um tubarão.
Se o Tempo fosse estático, ele não existia, por inércia; qualquer acção seria uma não-acção e, portanto, não geraria memória, qualquer memória, pois não podemos ter recordação de algo que não existe. A falta de inércia é acção, é acontecimento, é memória gerada pelo movimento do Tempo.
A vida é cinesia que cria memória e esta é como uma gravação que nos torna conscientes de termos vivido num passado que nunca deixará de o ser, porque aquilo a que chamamos presente não existe, é apenas uma linha limitatória entre o que foi e o que poderá ser. É aquilo a que chamamos futuro e que não passa de uma dádiva enganosa que Cronos nos dá, pois, um dia, ele no-la tirará sem aviso, sem apelo nem agravo.
Que seria da nossa existência se esse - para já - meio milhão de pessoas que, vítima do inominável, já morreu “a mais” no mundo, continuasse viva ou mantivesse a sua linha de existência como deveria ter sido naturalmente? Qual será (e já foi) o impacto na nossa existência? Toda a sucessão de acções ou não-acções que tivessem sido ou seriam produzidas por eles, a que ponto alteraram ou alterariam a nossa vida? Aqui, a não-acção toma outro sentido: não é a inércia, mas a ausência de um desempenho que teria sido feito se a pessoa ou pessoas em causa tivessem seguido o curso considerado natural e expectável da sua existência terrena.
Pelo chamado “efeito-borboleta”, há a hipótese de sofrermos as mais variadas consequências: ficar ricos, morrer, permanecer vivos, partir uma perna, perder um amigo ou familiar, não conhecer alguém que poderia ter nascido, ou então qualquer outra coisa, exactamente ou inexactamente ao contrário. É uma incógnita, ao jeito da chamada “experiência do gato de Schröeder”.
Vivemos num Universo flutuante, onde andamos ao sabor das marés do Tempo.
29. jun, 2020
Post 172
01h02, 2ª feira, 29/06/2020
Parece que as pandemias têm o condão de despertar a estupidez. Ou, numa explicação mais apologética, danificar a memória e o instinto de autopreservação.
Atendendo ao recrudescimento de casos dos últimos dias, provocado por festas, falta de proteção mínima e distanciamento e outras circunstâncias igualmente anómalas, poder-se-ia também atribuir a uma irreverência juvenil, à crença dos jovens de que nada lhes sucede de mal, pois isso acontece apenas aos outros. Mas não, o fenómeno estende-se aos mais velhos, não é exclusivo da juventude.
Será tão somente impaciência? Seremos como aquelas crianças que roubam a caixa dos chocolates porque não querem esperar que lhos deem, não tendo a noção de que irão ser castigadas pela sua atitude?
Seremos então, como espécie, os seres mais inteligentes e simultaneamente os mais estúpidos do nosso universo-lar? Teremos uma enorme apetência para criar coisas belas, boas, úteis e produtivas e, simultaneamente, estragar tudo o que de bom tenhamos feito com atitudes irreflectidas? É tão idiota como criar uma vacina para uma doença que ainda não existe e depois esforçarmo-nos por produzir a doença, mas de modo que ela resista à sua própria vacina.
Inconsciência? Estupidez? Raciocínio distorcido? Todas e mais alguma que me tenha escapado?
Há dias falei na memória de peixe e refiro-o de novo, pois parece que é o melhor exemplo para a época que atravessamos. Nessa altura dei tudo o que tinha a dar como exemplos, pelo que, quanto a este assunto, fico por aqui. A vida continua e nós, bem ou mal, continuamos nela e com ela.
Entretanto, vou preenchendo as outras secções com pequenos contributos que me vão surgindo à feição de publicar. Agora que terminou o ano lectivo, poderei dedicar um pouco mais de tempo a mim próprio e ao meu pseudoblog, como lhe chamo. Está na altura de refrescar o cérebro, sacudi-lo como um cão molhado e olhar em frente, que isto de viver tem que se lhe diga e, deixemo-nos de tentar tapar o sol com a peneira, eu já estou na contagem decrescente.
Carpe Diem quam minimum credula postero .
16. jun, 2020
Post 171
00h42, 3ª feira, 16/06/20
Resiliência. É a palavra que mais tem sido utilizada nos últimos anos e que agora, nas actuais circunstâncias, faz cada vez mais sentido. É resistência, é adaptabilidade, é capacidade de “dar a volta por cima”; é também estoicismo, um pouco de fatalismo, mas sobretudo esperança.
Vou parar estas considerações, já estou a ser muito lírico, a entrar em aforismos poéticos e moralistas a cheirar a romantismo, e não é essa a minha intenção.
Mudando de assunto, pois não quero falar ou aludir a coisas desagradáveis, embora por vezes tenhamos de o fazer, pois que a vida não é sempre um mar de rosas (às vezes é um daqueles cactos de espinhos compridos e duros), vamos mudar de assunto (epístrofe, tautologia propositada).
Bem, tudo aquilo de que se possa falar refere-se ao nosso pequeno universo conhecido ou cognoscível, aquele pequeno mundo muito pessoal, muito individual, que rara e muito residualmente partilhamos com os outros porque é por vezes demasiado nosso para podermos usufruir seja com quem for.
Todos temos um armáriozinho fechado a sete chaves, armadilhado e com código de segurança, onde guardamos as nossas secretas vergonhas e tesouros que não queremos ou devemos partilhar e que, avaramente, levamos connosco para o oblívio final. Essa é uma das características e a prova da nossa individualidade e da nossa personalidade.
A abertura total não existe nem pode existir pelas mais variadas razões e uma delas, talvez a mais relevante, prende-se com a sociedade, o relacionamento com os nossos pares. O que pretendo dizer é que a franqueza em demasia traz, não amigos, mas maioritariamente inimigos, pois nós – animal social – não aceitamos bem a verdade sem filtros, a exposição do Outro perante nós, o desnudar sem pudores dos seus sentimentos, dos seus pensamentos, das suas opiniões. E não se trata apenas do que o Outro pensa de nós, trata-se principalmente do que o Outro pensa, independentemente de quem ou do quê.
Digamos que, para um bom relacionamento, para que possamos aceitar e ser aceites, temos, neste orbe, de nos “vestir” e “pintar”, de fazer uma operação de cosmética, para que ninguém possa contemplar com os olhos da Verdade o nosso Eu profundo, tal qual ele é.
11. jun, 2020
Post 170
11/06/20, 5ª feira, 00h23
Noite fresca, vento fraco, mas persistente, céu parcialmente nublado: a Primavera a ser o que é.
Haverá comedimento este verão ou as pessoas vão-se comportar como se o amanhã não importasse, como se nada tivesse acontecido ou esteja a acontecer? Inclino-me mais, quase com certeza, para a 2ª hipótese.
A espécie humana sempre se comportou como a Dory, do filme de animação Nemo, ou seja, não tem memória, esquece o passado como se este tivesse apenas sido um sonho mau e nada mais.
Contra mim falo, que já experienciei uma espécie de sanduiche de anomalias vasculares (dois AVC’s com dois AIT’s pelo meio) e continuo, mesmo assim, a esquecer-me de vez em quando dos cuidados necessários. Afinal sou apenas o próprio foco da minha crítica, o mero humano que critico.
Somos assim, temos todos a memória curta, tanto para o bem como para o mal e a prova disso, como o melhor (pior) exemplo, são as duas guerras mundiais catastróficas, destruidoras, separadas por um intervalo de apenas 20 anos, e com os mesmos intervenientes principais, que não aprenderam com os erros cometidos. E as guerras continuaram, continuam e continuarão, justificadas sempre como legítimas; talvez não ad eternum, mas seguramente por um longo e inumerável rol de anos.
É a animalidade atávica a que aludi há dias num assunto que nada tem a ver com este exemplo, mas que tem, afinal, muito a ver: o marcar do espaço, o aqui e agora e daqui para o futuro, o “pisar de calos” que sucedeu há 10, 100, 200 ou 500 anos, que não está esquecido e que é rancorosamente guardado (para isso já há memória), a inveja do espaço que o Outro ocupa, a repulsa pela raça, cor de pele, religião ou qualquer outro pretexto, o ódio por quem é, de alguma maneira, diferente de nós, a birra simples e despropositada de um animal senciente que ainda não evoluiu para níveis por ele próprio demarcados como minimamente aceitáveis.
Embora tente com afinco, ainda não consegue resistir aos apelos do animal que se esconde sob a capa de uma racionalidade ainda incipiente. Pode ser que, entre avanços e recuos, a evolução intelectual deste bicho chegue finalmente ao nível do qual usurpa o nome: Humanidade.
7. jun, 2020
Post 169
01h07, domingo, 07/06/2020
Sinto a falta da minha “musa inspiradora”, da minha antiga actividade diurnal, onde a presença impactante do visível e do palpável permitiam absorver mais fluidamente as reflexões transformáveis em escrita. À noite não é a mesma coisa, há uma diferença abissal entre a visão psicológica e intimista e a observação empírica da realidade, tal qual se nos apresenta no momento vivido in situ e in loco ou, por outras palavras, no momento vivido “no momento”.
A visão diária salta-nos aos olhos, entranha-se-lhes e atinge a imaginação com muito maior força e pitoricidade, com um realismo vívido, quase palpável, que nos permite pintar, descrever o mundo com mais e mais brilhantes cores, mais pormenores e mais positividade.
Prefiro (ou, pelo menos, tenho saudade) da écfrase da realidade que antes descrevia; a visão nocturna é apenas a écfrase de uma écfrase, é uma descrição psicológica de uma descrição física e, portanto, idealizada. É certo que esta terá também o seu valor, mas para mim não se compara ao gozo de uma observação e descrição directa.
Escrever à noite é o mesmo que pintar uma paisagem de memória. Se a écfrase, se a descrição escrita é já de si uma ficção (por ser uma cópia da realidade), a narração nocturna passa a ser a ficção de uma ficção, pois a realidade não está fisicamente presente, apenas existe no nosso intelecto, sem nenhum contacto visual imediato, tornando-se assim uma memória virtual e imprecisa.
2. jun, 2020
Post 168
00h33, 3ª feira, 02/06/2020
Porque será que datamos tudo o que fazemos, mesmo que disso não haja, aparentemente, necessidade? É como se quiséssemos marcar a nossa presença no tempo e num determinado espaço. Sentimos a necessidade de dizer: “Eu estive aqui, eu estive no ano ou dia ou mês tal”.
A nossa marcação do espaço e do tempo tem uma grande importância para a personalidade, para a individualidade. Queremos deixar em tudo a nossa marca de água, como algo muito importante que deve ser comemorado ou lembrado espácio-temporalmente. As datas tornam-se relevantes, mas a presença física é algo de imprescindível. Aliás, a primeira não existe sem a segunda.
A presença é, indirectamente, uma declaração de propriedade, um atavismo que surge das origens da humanidade, já como seres pensantes, mas ainda muito próximos da animalidade primária. Deixámos para trás a marcação por odores, como muitos animais ainda fazem, e substituímo-la pela foto, pelo filme, pelos recuerdos que trazemos dos lugares que visitamos. É a nossa afirmação de “posse” do território, é muito importante no nosso percurso vital e perdura por intermédio da nossa memória. Quem não tem memória do espaço e do tempo que ocupa ou ocupou, não existe como ser humano, é um vegetal.
É importantíssimo marcar, afirmar uma presença espácio-temporal, provar que se existiu em tal lugar e em tal data, nem que se tenha vivido toda a vida no mesmo lugar, no mesmo espaço que ocupa e que a mais ninguém pertence porque se está lá, e dois corpos físicos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Quem nunca viu duas criancinhas a embirrar uma com a outra porque querem ocupar um determinado espaço só porque sim? É a herança genética primordial, a afirmação de posse de um lugar físico e cronológico.
Isto poderá levar-nos a considerações sobre as verdades ou inverdades de inúmeras teorias materialistas: Quem já leu, por exemplo, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de Friedrich Engels e Karl Marx, certamente reparará nas discrepâncias entre a teoria e a realidade, entre o que o Homem pensa e o atavismo que a Natureza determina.
Note-se que não se fala de política, mas de filosofia; falar de política, futebol ou religião é, muitas das vezes, destruir o princípio de neutralidade por que devemos pugnar. Exceptue-se, evidentemente, uma ou outra expressão de opinião a que se tem direito, como qualquer outro ser humano, e que deve ser entendida como tal e, como tal, respeitada, mesmo que as crenças ou ideais não se correspondam. Essa é a essência do Homem.
28. mai, 2020
Post 167
06h28, 5ª feira, 28/05/2020
Quase de saída, não resisti a escrever uma pequena elegia à madrugada, que engloba simultâneamente o meu trabalho e o meu período criativo. Já teci o meu inexistente hino ao Sol, nascido mais ou menos há 22 minutos, momento imortalizado em parte nenhuma, pois o Astro-Rei nasce e fenece todos os dias e será, portanto, uma perda de tempo dedicar-lhe odes diárias ou homenagens funéreas.
Sim, sim; eu sei que o sol não nasce e morre todos os dias, não passa tudo de uma ilusão provocada pela rotação deste seixo rolado, à superfície do qual moramos. Mas também sei que nós, seus habitantes, vivemos dentro da nossa cabeça num mundo de faz-de-conta e agimos em conformidade com ela e com ele. Fingimos e metaforizamos, encarnamos o papel para o qual nos preparámos desde o dia do nosso nascimento, somos actores (in)voluntários deste teatro de superfície terreno. Bons ou maus protagonistas, não interessa; não ouviremos apupos ou palmas quando sairmos de cena, o que significa que, afinal, representamos para nós próprios, somos os nossos egóticos espectadores, convencidos de que ocupamos o lugar central de uma qualquer epopeia sublime.
Quase parafraseando o cineasta Manoel de Oliveira: é a vã glória de viver.
26. mai, 2020
Post 166
00h39, 2ª feira, 25/05/2020
Antes de chegar ao meu posto nocturno habitual, tenho por hábito parar numas bombas de combustível aqui perto, para tomar café. É uma espécie de ritual que, em termos práticos, não aquece nem arrefece a minha capacidade de produção de melatonina, a hormona do sono. Ou, por outras palavras, não tira nada à minha capacidade de aguentar as investidas de Morfeu, cedência que seria perfeitamente normal e mesmo expectável, não fosse a desafortunada circunstância de trabalhar de noite.
É um hábito, parece que falta qualquer coisa se o não fizer; por isso condescendo comigo próprio e apetrecho-me sempre com 60 cêntimos para que possa morrer descansado, sabendo que degluti prazerosamente uns míseros mililitros de água castanha aromatizada e quente.
Hoje, porém, fui apanhado de surpresa por uma notícia que, embora directamente triste, ou mesmo chocante, é indirectamente aliviadora: soube que um dos funcionários da bomba, que já não via há meses, faleceu em abril passado, supostamente vítima de um cancro hepático, metastizado em outros órgãos vitais. Essa foi a parte directamente triste, ou mesmo chocante.
A parte aliviadora é o facto de que o rapaz (à medida que se envelhece, cresce a mania de chamar rapaz ou rapariga a toda a gente igual ou abaixo da nossa faixa etária), apesar de ter (tido) provavelmente a metade da minha idade, morreu primeiro do que eu. Não que eu seja insensível ou egoísta, não que lhe tenha desejado algum mal ou que não gostasse dele – até me era simpático -, mas apenas porque, sempre que algo de semelhante sucede, sinto alívio e gratidão para com a vida, por me ter sido possível sobreviver àqueles que foram ficando para trás, que se foram extinguindo com menos idade do que a minha pessoa.
Apesar dos grandes revezes da existência, é sempre gratificante podermos dizer que ainda cá estamos, que ainda não chegou a nossa vez e “alegrarmo-nos” por termos permanências temporalmente mais alargadas.
O Grande Arquitecto – seja Ele quem for, o que for, ou se sequer existe – tem permitido a nós, os remanescentes, prosseguir a Sua/nossa obra, seja ela também o que for. O que interessa é que, para já, estamos aqui para contar a história.
20. mai, 2020
Post 165
00h33, 4ª feira, 20/05/20
Back in business again! Como antigamente se dizia: por mal dos meus pecados, voltei. Estava melhor em casa mas a vida é assim, não há benesses eternas, e o ganha-pão tem de ser retomado, pelo menos até à temida/desejada reforma, que é um momento crítico, uma espécie de andropausa da vida (ou menopausa, conforme os casos), com os equiparáveis efeitos físicos e psicológicos, por vezes negativos, de tais estados.
É nesse momento que se lançam contas à vida e à bolsa e se avaliam as possibilidades de sobrevivência física e mental e onde, também, se começa a pensar mais no reduzido futuro que temos pela frente. Cabe a cada um criar o seu próprio fiel da balança, valorizando mais o aspecto positivo ou o negativo desta etapa da vida.
Apesar da minha propensão para o existencialismo, encaro essa fase pelo seu lado mais positivo, vejo nela (se conseguir sobreviver por mais alguns anos) a possibilidade de dedicar-me àquilo de que mais gosto, aos meus hobbies, aos meus estudos, sem os entraves evidentes de uma qualquer obrigação laboral. Por outras palavras, quero absorver o mais possível tudo o que a existência tem para me oferecer gratuitamente, que é o conhecimento.
A curiosidade humana é um poço impossível de encher, mas do qual podemos sempre retirar dividendos. A satisfação de saber ou, pelo menos, saber um bocadinho, é gratificante. Infelizmente essa necessidade não é inata, como o instinto de sobrevivência, o que é pena pois, se assim fosse, seríamos todos muito mais sábios, e o mundo seria um melhor lugar para se viver. Continuariam sempre a existir algumas excepções, alguns ignorantes, mas, com jeitinho, reduzir-se-ia drásticamente a praga dos estúpidos.
14. mai, 2020
Post 164
23h09, 2ª feira de férias, 11/05/20
Neste momento estou na cama, a escrever. Caso raro, geralmente estou a esta hora a pegar ao trabalho e quando estou de férias não escrevo.
Bem, estou de férias que não são férias, que não sabem a férias, é mais parecido com um fim-de-semana prolongado. É um modo upside down: ficar em casa para passar férias e sair de casa para trabalhar.
Não que eu não goste, não que eu estranhe muito, eu até aprecio uma certa solidão, longe do bulício normal de uma cidade, de uma sociedade, e não é por ser anti-social, é pela paz, pela fuga às convenções, porque ninguém me chateia, porque posso pensar por mim e não ser pensado pelos outros.
Sim, é bom estar só, é bom termos de procurar companhia quando necessitamos em vez de termos de aguentar uma companhia de que não podemos escapar, é queremos ser associais, é quando pedimos silêncio, quando o Nirvana significa estar sós connosco próprios, quando paramos tudo e fechamos os olhos para nada ver, nem sentir ou pensar.
Gosto de sonhar acordado um sonho calmo, gosto de me sentir e de me pensar, gosto de não ter tempo de ter tempo, de necessitar de tempo. Gosto da utopia, do impossível, da fantasia e da ficção, gosto de voar sem asas, gosto de tudo aquilo de que gosto e gostaria que houvesse momentos eternos e simultâneos.
Gosto do sono também, de dormir, porque gosto de estar cansado e poder “desligar a ficha”. É o que vou fazer.
4. mai, 2020
Post 163
07h06, domingo, 03/05/2020
Amanhã entro de férias. 15 dias completos. Vou finalmente poder viajar. Tenho os meus planos feitos com a devida antecedência, com as reservas e as visitas já programadas:
Irei à Minha Rua, hospedo-me no Hotel Home, que tem uma imponente vista para o quintal das traseiras. Terei tempo para visitar o Templo das Abluções Diárias e a Esplanada do Lazer e da Comunicação Audiovisual, que tem um óptimo serviço de catering, servido pelo Restaurante “a Cozinha”, mesmo na porta ao lado. Poderei contemplar a vista do patamar ao cimo das escadas, que nada deve ao miradouro do Sacré Coeur de Paris (que só tem as ditas um pouco mais numerosas e largas), e relaxarei, se o tempo o permitir, no frondoso jardim, de 165m², logo à saída da porta das traseiras, com prados verdejantes a perder de vista. Daí poderei contemplar os românticos telhados do casario vizinho, como só é possível nas grandes cidades históricas. Eventualmente, visitarei a Praça do Pão e a Baía dos Legumes. Como estamos, dadas as circunstâncias, em época alta, terei de esperar pacientemente no exterior, pois as visitas são controladas, para não deteriorar os magníficos frescos de renomados artistas panificadores e hortícolas que se encontram no seu interior. Poderei também visitar o Museu da Farmácia e um ou outro (super)mercado típico. Vão ser umas férias de luxo, a preços de ocasião!
Com tantas atracções e distrações, nem sei se terei tempo para estudar, mas vou fazer um esforço, pois as datas de entrega dos meus trabalhos de mestrado estão-se a aproximar.
29. abr, 2020
Post 162
06h01, domingo, 26/04
Quando vejo escrita ou ouço algures a frase que se está a tornar chavão - o mundo nunca mais será o mesmo -, não deixo de lhe dar inteira razão, aquiesço totalmente, como raramente o fiz com quaisquer outras afirmações que tenha ouvido ou lido até agora.
Na verdade, creio que uma vez aparecido, o inominável marcará o futuro da humanidade por algumas décadas(?). Não sendo tão notório no Norte da Europa e em algumas sociedades orientais (o resto do mundo não sei), as manifestações de amizade e carinho são, para nós sulistas, muito físicas: muitos beijos, muitos abraços, vigorosos apertos de mão, festas na cabeça, nos braços ou nas costas, todo o corpo sociabiliza.
A partir de agora temo um recrudescer de fobias, decorrentes do medo de contágios, uma “ouricização” ou “porco-espinhalização” nas relações entre humanos. E o que sucederá à nossa carinhosa e proverbial socialização? Tornar-nos-emos fisicamente frios como os citados europeus do Norte, ou prevalecerá o calor humano, mesmo com os riscos inerentes? Estou confiante de que, dentro de poucos anos e com os avanços dos meios de vacinação e da medicina em geral, voltaremos a esse pequeno Éden semi-perdido; talvez não totalmente, pois incidentes tão graves deixam ferretes, marcas difíceis de apagar, mas voltaremos.
A Humanidade, esse conjunto de frágeis animais sem carapaça ou qualquer outra espécie de protecção que não seja a sua admirável capacidade de, de algum modo, rodear as ameaças que a cercam, tem sobrevivido a tudo: desde guerras terríveis (1ª e 2ª Guerras Mundiais e outras menores, mas proporcionalmente mortíferas) a cataclismos naturais, como terramotos e tsunamis subsequentes, ou a furacões cada vez mais violentos. E também às doenças: A gripe espanhola, o tifo, a varíola, a cólera, a peste negra ou bubónica, o ébola, o zica, a malária, a sífilis, a tuberculose, a gripe suína (H1N1), a gripe das aves (H5N1) e outras variantes, etc., das quais algumas ainda vão fazendo os seus estragos, mas muito mais controlados, muito mais reduzidos. E, claro está, o inominável contemporâneo.
Proteger o corpo é um trabalho árduo para nós próprios e para a medicina; proteger a mente é mais complicado, pois as sequelas são mais difíceis de curar.
Spe habemus.
19. abr, 2020
Post 161
23h55, sábado, 18/04/20
De volta à rotina (?).
Tenho vindo a cogitar sobre a extraordinária adaptabilidade da maioria dos humanos em sujeitar-se a novas rotinas, novos procedimentos, novas restrições.
Afinal, não é muito de admirar essa capacidade de adaptação: o Homem, como ser individual e como sociedade, viveu durante milénios uma vida simples e pouco complicada. Embora não sendo despiciente a submissão, a servidão que a constituição de sociedades minimamente organizadas subentendia, ou seja, a obrigatoriedade de contribuir no esforço de guerra, os impostos omnipresentes, etc., os habitantes do planeta limitavam-se a existir sem muitas perguntas, sem muitas crises existenciais, conformados com a sua sorte.
Em contraponto às “benesses” providas pelo crescente incremento civilizacional a que nos fomos sujeitando, foram-se formando novos parâmetros de comportamento que redundaram, com maior incidência nos últimos 2 séculos, num acúmulo de hábitos e necessidades, ou falsas necessidades (direi, vícios), pelos quais nos deixámos subjugar e dos quais já dificilmente prescindimos.
Consequentemente, a nossa actual situação de recolhimento físico - voluntário ou não - pode originar estados como que de dependência. A liberdade transforma-se numa droga, por falta da qual apresentamos sintomas de privação, acusamos “ressaca”. Nas prisões, por exemplo e como resultado, sucedem-se esporadicamente actos de extrema violência; nestas instituições existe uma situação permanente de tensão de fluxo piroclástico - um autêntico vulcão, sempre pronto a explodir ao mínimo incitamento. Por similaridade, há actualmente na sociedade livre, e por força das circunstâncias, um aumento tendencial de agressividade, de stress, de descontrolo, tanto a nível físico como emocional.
Essa dupla instabilidade, além dos previsíveis prejuízos sociais, representa um acréscimo preocupante de fragilização, propício à exposição e/ou eclosão de doenças de ambos os foros. Mesmo estando conscientes disso e apesar da nossa já referida adaptabilidade, é-nos por vezes difícil fugir às investidas destas tensões. Podemos, a qualquer momento, “explodir”, sem que a razão, o bom senso, actue atempadamente. É imperativo que afixemos à entrada da nossa consciência um post-it virtual bem grande, com os dizeres:
Cuidado! Perigo de acidente! Mantenha-se atento!
16. abr, 2020
Post 160
00h55, 5ª feira, 16/04/20
Ao sermos intrinsecamente bons, amaciamos a dor das encarnações vindouras. Reconheço, porém, a minha irrefutável impotência perante as tentações do mundo, porque as estradas do erro são sempre as melhor pavimentadas.
Anónimo (fui eu, mas fica mais bonito assim)
Escrevi este apotegma (aforismo) no dia 20 de fevereiro com o intuito de o inserir numa aleatória crónica futura. Pois bem, e antes que perca a referência, chegou hoje esse futuro, que já se vai esvaindo no passado. Fica o registo.
É evidente que esta afirmação não é universal, muitos dos que a lerem não se identificarão com ela, ou porque acreditam em outra vida mas encaram outros desfechos, ou porque, simplesmente, a sobrevivência do espírito lhes seja inconcebível e/ou disparatada. Nada posso fazer para refutar quaisquer deles. Somos únicos e temos formas de pensar únicas, talvez formatadas, mas não formatáveis.
Assim é também o acto de escrita: formatado por todo o nosso background de crenças inculcadas, educação social, ambiente familiar, etc., a que se junta a nossa visão, a nossa moldagem muito própria, muito pessoal, do material que extraímos desse cadinho fervilhante de ideias herdadas ou impostas desde a nascença. Visão não formatável porque mais ninguém pode (re)moldar a nossa criação, acabada e irrepetível.
É o que cada obra saída das nossas mãos tem de bom ou mau: poderá ser copiada mas nunca verdadeiramente emulada, porque é um produto acabado, cristalizado, preso num passado físico e histórico.
5. abr, 2020
Post 159
05/04/20, domingo,00h15
Não ignoro o real, mas apenas a irrealidade do real; por isso evito falar do que foi tema das últimas crónicas, pois já existe (des)informação a mais, começando o assunto a tornar-se uma obsessão e a perturbar-nos o dia-a-dia, os relacionamentos, as próprias experiências oníricas.
Em vez disso prefiro falar do passado, não como “antes de…”, mas apenas como passado, por vezes melancólico, como uma experiência empírica que a vida nos oferece. Assim, fora algumas raras e desagradáveis excepções, todo o passado poderá ser encarado com nostalgia. Mesmo aquelas situações incómodas ou embaraçosas por que passámos, vistas hoje com distanciamento físico e emocional e das quais até nos podemos rir, são uma forma de recordação nostálgica.
Há uma rememoração de experiências, de aprendizagens e de relacionamentos, irreprodutível. É como usufruir de uma obra de arte, recordando ou imaginando todo o seu tecido constitutivo, seja ele físico, situacional ou emocional pois, como diz a canção de Vítor Espadinha: Recordar é Viver – e nós só queremos recordar o agradável, o nostálgico.
Numa das minhas primeiras crónicas (talvez em 2012 ou 2013), aflorei o facto de ter sido proprietário de um estabelecimento de hotelaria. Tal, apesar de ter sido a maior “dor de cabeça” da minha vida, responsável por dívidas que arrastei durante 20 anos, um AVC, uma depressão e um deficiente acompanhamento à familia, além de outras “benesses”, fez-me conhecer melhor a sociedade que me circundava e na qual, por mal ou por bem, tinha de me inserir ou adaptar. Conheci explêndidas e péssimas pessoas, exemplos e não-exemplos de vida, situações e vivências caricatas, algumas felizes, outras tristes, e das quais farei breves referências, salvaguardando no anonimato a sua privacidade:
Havia um senhor cuja alegria de viver era admirável e contagiante: tinha 90 anos e um sorriso radioso, reflexo de uma aura carregada de positividade que nos dissipava por contacto os problemas e maus-humores. Muito activo, trabalhava por conta própria em ourivesaria de prata. Morreu repentinamente, para consternação de todos.
Outro, uma alma inofensiva mas inconveniente, era funcionário camarário, um guarda de jardins, a trabalhar ainda, certamente por piedade. Tinha sido chefe de pessoal, mas um acidente grave afectou-o mentalmente, obrigando a autarquia a atribuir-lhe tarefas simples. Tinha um ar a seu modo desvairado, falava incomodativamente alto e, bebendo um copito a mais, tinha atitudes que podiam ser tomadas como agressivas, embora, na verdade, não fizesse mal a uma mosca. Era o que se costuma chamar uma “figura típica”. Começou a aparecer pouco, até que sumiu por completo.
Outro “cromo” era um senhor já velhote, adepto de uma crença religiosa, sempre com a bíblia debaixo do braço. Alguns gostavam de o provocar, só para o ver irritado e excomungar todo o mundo. Quando bebia, dava-lhe para cantar o fado, mas fazia-o com uma voz extraordinária. Morreu atropelado ao atravessar uma rua sem tomar as devidas precauções, por, ao que dizem, estar já alcoolizado.
Estes são apenas três exemplos de caracteres dignos ou indignos de exemplo e com os quais me cruzei, entre milhentos outros. Não posso negar que todas essas experiências foram positivas, no sentido em que enriqueceram aos mais variados níveis a minha enciclopédia mental. Tudo na vida tem importância, mesmo aquilo que não aparenta valer a pena.
Não há maus livros – alguém disse -, todos eles contêm algo de aproveitável, por ínfimo que seja.
23. mar, 2020
Post 158
00h58, 2ª feira, 23/03/20
Voltando ao inominável, que foi o meu tema da semana passada, verifico que o histerismo irreflectido de alguns está a desaparecer e a normalidade nos abastecimentos de primeira necessidade e demais consumíveis, cujo açambarcamento foi racionalmente injustificado e posteriormente ridicularizado como merece, está a ser reposto para valores normais, atendendo às circunstâncias.
Neste momento atravessamos uma falsa calmaria, precedendo uma tormenta a médio prazo. Aliás, serão duas as borrascas que se avizinham, uma a seguir à outra: o recrudescimento exponencial da afecção – o que é perfeitamente normal e previsível para quem tem dois dedos de testa. Posteriormente, uma crise económica e laboral, que já se encontra em florescimento e infrutescência precoce – esta também previsível, e que cabe nos dois dedos que acima referi. No entanto será, para alguns, uma bomba que explodirá inesperadamente, mesmo em frente aos seus olhos míopes ou cegos. Lá está a falta dos tais dois dedos… Bem, eles existem, mas muitos não os usam, não querem, ou sequer sabem usar.
Diz-se que depois da tempestade vem a bonança, é um facto, pois não há mal que sempre dure. No entanto, o ditado não refere o caos que a dita deixa por onde passa e com a qual temos de nos haver. Nisso ninguém pensa.
Por isso, para muitos, após a “banalização” do actual estado das coisas, virá a negação das consequências e, por último, a queda na dura realidade. Então, apenas para esses, dar-se-á início ao Apocalipse.
Não pretendo ser alarmista nem áugure do desastre; apenas previno cenários possíveis, para os quais todos devemos estar preparados, não caindo no desespero, que leva por vezes a reacções irreflectidas, muitas delas irreversíveis. Essa avaliação deve sempre ser feita “por cima” ou, como é usual dizer-se, “na pior das hipóteses”, para que não sejamos apanhados de surpresa.
Costuma-se dizer que a única coisa que não tem solução é a morte. Tentemos então solucionar o que nos aparece, à medida em que vai surgindo. Quanto à irresolúvel, não nos apressemos.
16. mar, 2020
Post 157
16/03/2020, 2ª feira, 04h24
Após o início de um período bastante conturbado da nossa civilização…….
Vou reformular:
Após o início de um período bastante conturbado para todas as civilizações do planeta…..
Vou re-reformular:
Após o início de um período bastante conturbado para todos os seres humanos do planeta, civilizados ou não, encontramo-nos num período de incertezas, de pânico ainda (mal) controlado, de despertares sobressaltados, de adormecimentos medrosos, de informações contraditórias e de imensas fake news.
Actualmente, há muitos arautos da “verdade verdadeira”, que se entretêm a disseminar notícias que reputam por fidedignas mas que apenas servem para atiçar o fogo da desinformação e do medo, avolumando, não apenas uma histeria colectiva (ainda latente), mas também a adopção de más, deficientes e desinformadas práticas de defesa e contenção.
Porque é que esses filantropos não guardam para si essas práticas, a maioria das quais fruto, ou da extrapolação oriunda da massa indefinida que têm no lugar do cérebro, ou então de fontes fidedignas de ali, ao virar da esquina? Deixem os outros, os tansos, a ouvir os médicos e os investigadores!
Há, é certo, gente bem-intencionada que passa essa desinformação com o intuito de ajudar, mas que não se preocupa em confirmá-la e transmite-a tal qual lhe foi transmitido, o que não passa, mesmo assim, de inconsciência a raiar a estupidez.
Por favor, não entrem em teorias da conspiração ou em práticas e mezinhas milagrosas e infalíveis. O caso é sério, mas é necessário manter a cabeça fria e pesar bem os nossos actos, pois estes poderão ter resultados perniciosos e irreversíveis.
Querem um exemplo? Consultem o link
https://ionline.sapo.pt/artigo/686074/indiano-mata-se-por-estar-convencido-que-tem-coronavirus?seccao=Mundo.
5. mar, 2020
Post 156
00h03, 5ª feira, 05/03/20
Mais um dia (noite) em que começo a escrever cheio de vontade e vazio de ideias. Não é que a mente esteja oca, limpa como um quadro de escola deve estar no início de uma aula, ou como uma metafórica e aristotélica tabula rasa. O que acontece é que as “boas” ideias, as inspirações frutuosas, são como as “urgências” de um padecente prostático: só surgem nas piores alturas, nos momentos menos propícios. Quando estão reunidas as condições para efectivar o acto, geralmente desvanecem-se ou, a não ser assim, serão como a montanha que pariu um rato, pois a chispa ígnea quase desapareceu e só lhe restam brasas moribundas.
Será um pouco estranho ou, pelo menos, invulgar, fazer semelhante comparação, mas quem sofre de hiperplasia benigna sabe a que me refiro; quanto aos outros… informem-se e usem a imaginação.
Não podemos andar sempre com um caderno de apontamentos ou um gravador (agora um telemóvel serve) para escrever ou enunciar os picos de inspiração, de génio, que vão surgindo fortuitamente, quando menos se espera; quando corremos para a caneta, “já é tarde, Inês é morta”, como antigamente se dizia, e quem conhece minimamente a literatura e a história portuguesa, entende o que eu quero dizer.
Mas como o caminho se faz caminhando, o texto vai surgindo, vai tomando forma, tematizado ou não, justificado ou não, pois é isso que a mente humana tem de bom: encadeia, conta uma história, tece uma trama, cria do nada. Podem-se escrever páginas e páginas de um texto que não diga necessariamente nada útil e coerente, ou muito pouco. Ou muito.
É escrever pelo prazer de o fazer, o lavar da mente, uma espécie de ginástica espiritual que nos vai preparando para o próximo texto, para uma produção mais musculada, mais rica e fluida.
Os grandes pensadores, os grandes mestres da literatura, aconselham a escrever muito e a ler ainda mais; só assim se adquire a capacidade de criar obras que valham minimamente a pena serem lidas. Não tenho essa pretensão nem tempo para a ter. Além do mais, o meu ciclo vital não terá a lonjura suficiente para concretizar esse sonho, que não passará de um sonho feliz, só isso.
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce, escreveu Fernando Pessoa. Mas esse era um génio inato. Nem sempre o comum dos mortais está fadado para ser um génio ou tem tempo para o ser.De facto, é necessário ter tempo para se ser génio, e as vicissitudes da vida roubam-nos as possibilidades de atingir esse estado precioso. Quantos desconhecidos e extraordinários seres se terão cruzado, cruzam e cruzarão connosco sem que disso tenham e tenhamos noção, seres que murcham antes de desabrochar, homens e mulheres que nunca conseguirão desenvolver o seu desconhecido potencial, envolvidos que estão em existências frustrantemente absorventes, vampirescas, que lhes sugam ou embotam o talento!
26. fev, 2020
Post 155
06h57, 23/06/2020, domingo
Amanhece. Recomeça o ciclo vital, sob a influência da melatonina. Não é o meu caso, pois trabalho de noite. No entanto, aprecio-a bem nos dias de descanso.
Melatonina, serotonina, ocitocina, dopamina e endorfinas: tudo o que é preciso para se ter uma ilusão de felicidade. (não confundir as últimas com as pitufinas, que em espanhol é o nome porque são designadas as strumpfs).
A primeira regula o sono e a vigília; a serotonina é, basicamente, um antidepressivo; a ocitocina socializa-nos; a dopamina dá-nos a vontade de lutarmos pela vida e dela obtermos prazer. Finalmente, as endorfinas são o nosso analgésico e fazem-nos rir, não porque sejam uma espécie de droga do riso, como a canábis, mas porque nos dispõem bem. Todas juntas e a funcionar em condições é, como sói dizer-se, “Deus com os anjos”.
9. fev, 2020
Post 154
05/02/20, 5ª feira, 00h49
É sabido ou, pelo menos, é crença comum que a Terra e o seu habitante mais mediático – o Homem – regem-se por ciclos, por ondas periódicas, com os seus zénites e nadires ou, mais vulgarmente dizendo, os seus altos e baixos, condicionando os auges e decadências da história da humanidade e do planeta. Nesta perspectiva, o homem tem momentos de franco desenvolvimento, onde tudo corre bem, sem preocupações, e momentos de queda, de declínio mais ou menos acentuado.
A ser verdade, já passei por dois ciclos, um ascendente e o outro a sua contraparte. No primeiro, tudo vogava de feição, o futuro adivinhava-se auspicioso, sem nuvens no horizonte; quanto ao segundo, iniciado nos términos da década de 80, esse representou para mim uma queda profunda onde só não bati no fundo do poço porque, se calhar, este era muito profundo. Muito mais tarde, já no princípio da primeira década do século, notou-se uma lenta, lentíssima ascensão, da qual só agora parecem querer nascer tímidos rebentos. Ainda é muito cedo para comemorar, para entoar cânticos de vitória, pois há sempre que temer eventuais “geadas” que poderão ainda exterminar essas frágeis inflorescências.
No entanto, estou confiante que o futuro próximo me trará mais alegrias que dramas, embora deva ter em conta alguns acontecimentos mais negativos mas incontornáveis e que fazem parte da passagem dos seres sobre o planeta. Digamos apenas que serão consequência das leis da Natureza.
Apesar da minha faceta existencialista, fatalista, negativista, romântica no seu lado mais tenebroso, antevejo ainda um futuro próximo mais positivo, mais desanuviado.
E o estado do Mundo? Pois…nem sei! Estamos constantemente a dar, ora dois passos em frente e um atrás, ora um passo em frente e dois atrás. Enquanto concernir ao Homem determinar o seu destino – o que acontecerá sempre – mover-nos-emos inevitavelmente numa corda bamba, em constante risco de nos estatelarmos.
Não acredito na extinção da espécie ou num retrocesso civilizacional catastrófico, pois esse tipo de discurso, por excesso de uso, está gasto há milénios. É certo que existe a lenda/mito da Atlântida, de que falam Platão e algumas correntes espíritas, teosóficas e esotéricas. Nada provado, nada comprovável, apenas especulações. Eu próprio sinto simultaneamente crença e desconfiança nesta teoria tão improvável e, contudo, tão possível.
Muitos dirão que é pura fantasia, mera ficção científica ou uma espécie de teoria da conspiração inculcada por umas quaisquer entidades secretas, charlatães, illuminati ou similares. No entanto, existem no passado muitos factos inexplicados. A dúvida sistemática será a melhor solução, aliada a uma mente aberta para as mais variadas hipóteses, por mais mirabolantes que elas sejam. Não nos esqueçamos de que Julio Verne e, muito especialmente, Leonardo Da Vinci, foram visionários ridicularizados e desacreditados pelas mentes cultas da sua época.
No meio está a virtude: nem crença dogmática nem cepticismo fundamentalista.
2. fev, 2020
Post 153
02h20, 02/02/2020, domingo
Deixei chegar esta hora quase propositadamente, esperei por este momento único para começar a escrever. É apenas pela piada, pela curiosidade, não tem nada de mágico, astrológico ou cabalístico, pois todos os dias e todas as horas poderão ser mágicos, astrológicos ou cabalísticos. Depende apenas da vontade, da crença ou da intenção de quem assim os considera.
Chamei-lhe momento único porque em verdade o é, constitui uma capicua pouco frequente, também chamada palíndromo ou palavra enclástica (neste caso, número enclástico) e pertencente a uma categoria literária chamada escrita constrangida (mais não explico, quem quiser vá pesquisar na internet).
Por falar em datas, faltam-me só 4 anos para a reforma, se até lá não resolverem aumentar a idade de jubilação para os 80 ou 90 anos.
Só 4 anos??? Estou definitiva e irremediavelmente velho! Parece que foi há tão pouco tempo que tomei consciência de mim como ente pensante, que entrei na conflituosa puberdade, que namorei, que casei, que nasceu a 1ª filha, que nasceu a 2ª… Nem elas nem ninguém escaparão à mó voraz do Tempo, que reduz tudo a uma fina poalha, dispersa nos incomensuráveis campos do Esquecimento, onde jazem as memórias de todos os passados e onde aguardam, abertos, os túmulos de todos os futuros.
Já aqui cheguei, quanto tempo me resta? Um segundo, um dia, dez anos? Vinte? Mais, será difícil. À medida que se envelhece, o intelecto vai-se adaptando à ideia de finitude, embora, por vezes, com relutância.
É o meu caso: aceito, compreendo, mas recuso-me a morrer tão cedo (é sempre “tão cedo”). Pode ser que um dia, se chegar a esse estágio, aceite e, até mesmo, queira morrer; se até agora passei da fase da recusa total à de aceitação, então poderei ou, seguindo a lógica, deverei aceder ao da espera impaciente, da jubilosa resignação.
Afinal, é o desfecho lógico: em novos, lutamos pela vida, depois pela família, pela perpetuação da espécie e depois… é o descanso do guerreiro, é quando concluímos e aceitamos que a nossa missão nesta etapa está terminada e podemos partir em paz, com a satisfação do dever cumprido.
27. jan, 2020
Post 152
02h11, domingo, 26/01/20
Que aconteceu ao mundo, tal como o conhecemos no passado de que somos contemporâneos? No meu caso, poderei dizer desde há 50 anos, mais ou menos, desde os pálidos e indefinidos alvores da minha idade da Razão. A sua face mudou, e não apenas fisicamente. Aliás, física ou geograficamente mudou pouco; na primeira metade do século XX as alterações foram muito mais significativas.
Refiro-me, isso sim, à “face” humana, às características da humanidade, às suas componentes de honra, honestidade, respeito, piedade e outras virtudes reconhecidas como tais. Parece que estamos a regredir para antes da Idade Média, para uma época em que a sobrevivência se pautava quase exclusivamente pela lei do mais forte. Não que essa lei tenha deixado de existir, ela foi diminuindo gradualmente a sua influência ao longo dos tempos (não falando em guerras, são casos à parte). Nos entanto parece que, ultimamente, essa vertente mais animalesca da humanidade tem tido um incremento muito forte.
Ou será que a minha visão actual está contaminada pela de há 50 anos, pelos valores em que fui educado, pelo idealismo de uma juventude longínqua? É possível.
Sempre tive consciência de que o discurso das gerações mais velhas é de desencanto e não de contentamento, de crítica e não de aquiescência. A perspectiva dos ancestrais relaciona-se sempre ou quase sempre com a visão de um paraíso perdido (o Paradise Lost, de John Milton), de uma época onde os valores acima referidos eram cultivados e respeitados.
Mas seria mesmo assim? Ou estaremos nós, as gerações do “antes de agora”, a comportar-nos como os Velhos do Restelo, de que fala Camões, cuja visão era deturpada pelas influências da sua época, dos seus valores, ignorando tudo o que os sempre renovados ventos de mudança vão trazendo?
Serei eu também um Velho do Restelo, defenderei eu também valores obsoletos, ou estarei certo, ainda que parcialmente, e existem valores que foram sendo progressivamente deturpados ou perdidos pelas gerações que me seguiram?
É difícil ser-se imparcial á medida que a nossa mente, os nossos princípios se vão cristalizando. O mundo avança (direi antes, à cautela – modifica-se) mais rapidamente do que nos é possível acompanhar, e essa diferença de velocidades confunde-nos, não nos permitindo assimilar convenientemente a sua mudança ou avaliar atempadamente a sua justeza.
A única coisa de que tenho a certeza é de que desde há milhares de anos o discurso dos “velhos” tem sido e continuará a ser apocalíptico. No entanto, o planeta vai seguido o seu caminho, girando à volta do Sol e acolhendo novas gerações, adaptando-se a elas e adaptando-as a si, contrariando os vates que anunciam o fim do mundo.
22. jan, 2020
Post 151
00h09, 4ª feira, 22/01/20
Surgiu-me no espírito uma dúvida: será que ando a centrar-me demasiado em mim, nas minhas vivências, em detrimento de assuntos mais importantes, de interesse geral ou, pelo menos, mais generalizáveis?
Será o meu pseudo-blog, nos seus temas e cogitações, uma leitura interessante ou instrutiva, geradora de reflexão e da qual se possa retirar algum sumo útil, ou não passará de um exercício frívolo, produto da mente de alguém que não tem mais nada que fazer senão criar textos fúteis para se manter ocupado nos momentos vagos?
Por vezes sou, qual John Stuart Mill, utilitarista, ou seja, pego (metafóricamente, claro) nos meus textos e examino-os à lupa, tentando descobrir neles algo de útil para outros que não eu, e mesmo para mim próprio: serão as minhas reflexões profícuas ou agradáveis de ler? É, para mim, um eterno questionamento humanista-existencialista, um pesar na balança, não do politicamente correcto mas do correctamente político.
Diz-se que não há maus livros (leia-se: textos) porque neles existe sempre algo, por pouco que seja, de útil ou aproveitável; é a minha derradeira esperança, e da qual não quero ouvir a resposta. Mantenho a crença de que o que aqui escrevo é, no mínimo, lisível – quanto mais não seja, para passar o tempo, como um conto de ficção. Caso contrário, ruiria toda a estrutura que fui construindo ao longo destes 7 anos de escrita, a minha tabula rasa, que é também a minha tábua de salvação. Ámen.
17. jan, 2020
Post 150
23h56, 14/01, 3ª feira
A chuva e o vento voltaram para nos lembrar de que é Inverno e que este não é um mero e gélido mar de rosas.
Embora haja sempre uma razão oculta para explicar o inexplicável – pois acredito que nada sucede por acaso e o livre arbítrio não é assim tão linear – o facto de as apetências físicas e mentais (estas, principalmente) só surgirem ou surgirem maioritariamente com a idade madura e a velhice, coloca questões importantes e hipóteses de resposta cabal, no mínimo, frustrantes.
Na vida, tudo surge tarde ou tardiamente: o aperfeiçoamento das habilidades manuais, a destreza nas variadas actividades físicas, o amadurecimento das capacidades mentais, tudo isto vai surgindo progressivamente, à medida que vamos envelhecendo e perdendo a resistência física e a agilidade mental. Quando estamos prontos para a vida, quando os equilíbrios homeostático e mental começam a despertar, é quando entramos no declínio, quando, de facto, começamos a morrer; uma morte lenta, tanto mais lenta quanto mais nos apercebemos das limitações que vão surgindo e quando receamos aquelas que possam surgir, prejudicando o usufruto pleno das nossas faculdades.
Muitas vezes, quando começa este estado involuntário de dependência, inicia-se também um processo de auto-extinção, de inadvertido e insidioso suicídio, que degrada ainda mais a nossa força de viver e perante os quais apenas nos mantemos vivos por força do instinto de sobrevivência.
Aqui entra a nossa força de vontade, de carácter; resistir ao desapego, ao desinteresse pelo que a existência nos pode ainda dar – e que é muito – faz toda a diferença. As atitudes e pensamentos positivos são muito importantes: olhar para nós próprios como um copo meio cheio e não como um copo já meio vazio é essencial para reverter o processo de degenerescência, dando-nos satisfação pelo que ainda somos capazes de concretizar.
7. jan, 2020
Post 149
00h17, 3ª feira, 07/01/20
Encerrado há minutos o ciclo de festividades de Natal e Ano Novo, concentremo-nos na gestão de todo um renovado período de actividade a que convencionamos chamar ano, seja ele civil, religioso, astronómico ou outro.
Voltemos ao Panem et circenses de Juvenal, à labuta diária pelo sustento familiar ou individual (depende dos casos) entrecortada por breves momentos de diversão, de escape das dificuldades inerentes à primeira premissa.
A expressão acima utilizada, embora na sua origem e através dos tempos tenha tido e ainda tem forte e justificada conotação política e social, é também psicologicamente legitimada no sentido de permitir (ou, pelo menos, tentar) um bom equilíbrio homeostático.
Que vamos fazer neste ano de 2020? O mesmo de sempre: auto-enganarmo-nos de novo, fazermos promessas e planos de correcção de vida, de elisão ou eliminação de vícios e maus hábitos, olharmo-nos ao espelho e imaginarmos o nosso íntimo coberto pelo ouro da rectidão, da vontade e da verdade, quando na realidade ele está envolto pelos ouropéis da mistificação.
É inútil tentarmos ser verdadeiros; temos uma enorme apetência pelo teatro, pela ficção, pela mimese da realidade. Usamos placebos com plena consciência da sua função, da sua ilusão, e imaginamo-nos felizes e completos, mas não passamos de balões cheios de ar, inflados de orgulho e pretensiosismo, cuja única realidade é o latex colorido que cobre a vacuidade da sua volumétrica mentira.
Hoje termino por aqui; sinto sobre mim o funesto e etéreo influxo de Sartre, moldando-me o texto, filtrando-me o pensamento num crivo existencialista, pesado e negativizante (embora, a seu modo, verdadeiro).
Mas, curiosamente, estou optimista.
1. jan, 2020
Post 148
23h45, 31/12/2019, 3ª feira (terminado em janeiro de 2020)
É a última vez que datarei algo como criado em 2019, a não ser algum eventual documento referencial. São (eram) 15 minutos que cerram o que se convencionou chamar um ano. Como é usual entre, pelo menos, os ocidentais, faço uma resenha dos seus 12 meses, desde o nascimento até à sua morte, daqui a escassos minutos:
Guerras e cataclismos naturais similares aos dos anos precedentes e, eventualmente, dos procedentes; níveis de felicidade e infelicidade com poucas variações, avanços e recuos na política, nos acidentes, na religião. Enfim, um ano-fotocópia.
Interrompi por breves minutos para poder “sentir” o passar do ano, apenas por um hábito velho de 62 anos. Na verdade, o hábito é mais novo, terá uns 55 ou 57 anos, visto só por essa altura (5-7 anos) eu ter começado a interiorizar essa tal mudança que não é mudança, apenas um convénio firmado entre humanos culturalmente equivalentes.
O que espero do novo ano? Como ano, nada. Como um futuro não balizado pelo tempo, espero evolução, paz interior, saúde dentro do possível, estabilidade financeira, harmonia familiar e vicinal; só isto é-me suficiente.
Boa Ano para todo o planeta e circunvizinhanças (há lá por cima alguns astronautas).
24. dez, 2019
Post 147
04h10, 23/12, domingo
O Natal está à porta, apenas a um degrau da entrada. No entanto, já pouco me importa, desapareceu a magia da infância e o fazer-magia da parentalidade. Como a “avozabilidade” tarda a chegar, deixo as festividades para os outros, para os filhos, pais e avós do resto do mundo.
Quando se começa a entrar na idade adulta da idade adulta, as mundanidades começam a perder significado, o que, por um lado, é bom. Vemos que aquilo a que dávamos tanta importância (festas, aniversários, baptizados), não têm afinal a importância que lhes atribuímos, não passam de uma feliz ilusão ou de uma ilusão feliz.
No entanto, esse desapego que a idade oferece tem também os seus perigos: o isolamento, a sensação crescente de que não se está aqui a fazer nada, que nada interessa.
O esvaziamento do sentido da vida é um dos piores dramas da velhice e atinge o seu climax quando um ser humano chega à conclusão de que está aqui, neste mundo, a mais. Não é a morte do corpo, é a do espírito, é quando nos tornamos fantasmas mesmo antes de termos carnalmente expirado. E é desse perigo que nos temos de precaver através de uma gestão ponderada daquilo que abandonamos e do que conservamos, do que já não importa e do que não devemos largar mão.
As vicissitudes da vida fizeram-me perder quase todos os meus amigos. Bons amigos, esses conto-os pelos dedos das mãos e ainda sobram dedos. Nenhum deles é meu íntimo. Conformei-me. Adaptei-me porque não consigo ter tempo para estreitar os laços com aqueles que ainda tenho. C’est la vie. Esforço-me por manter algum significado do muito que a actividade de relacionamento humano dantes tinha. Não quero terminar só, não quero tornar-me um sem abrigo social.
Existe, claro está, a família; no entanto, ela também seguirá a sua vida, criará laços e romperá aos poucos com os antigos. O rumo é para a frente, não para o passado. É natural e inevitável, nós também o fizemos e sabemos que, pouco a pouco, vamos ficando mais sós, mais isolados e vemos os amigos da nossa juventude e a família da nossa faixa etária desaparecerem e o nosso mundo com eles. Há, pois, que criar estratégias de sobrevivência social, evitar um tendencialmente crescente estado vegetativo, um viver só por estar vivo. É o nosso grande e derradeiro desafio.
Feliz Natal e, como dizia o já falecido Raúl Solnado: “façam o favor de ser felizes”.
22. dez, 2019
Post 146
22/12, 02h07, domingo
Ponho-me por uns momentos a pensar sobre o que hei de escrever. Por vezes, a maioria das vezes, é difícil, não há um guião, não se tem algo já preparado e que basta copiar. O improviso que escrever representa tem os seus riscos: podem surgir textos de extraordinária lucidez, narrativas dignas de menção, pensamentos ao nível dos dos melhores filósofos ou descrições vívidas e absorventes, mas podem também surgir histórias medíocres, temas desinteressantes ou rasgos da mais pueril estupidez.
Se falar é um risco, escrever pode ser um ferrete indelével, pois o que se escreveu está escrito e pode ser lido por quem quer que seja, copiado, citado, apresentado como libelo acusatório. O acto de fala pode ser emendado como se fosse um mal-entendido, uma audição deficiente, um “não foi isso que eu disse”. O acto de escrita é um “preto no branco” onde as justificações ou pseudojustificações aplicáveis à acção verbal deixam de fazer sentido. Por alguma razão se fala na letra da lei e não na fala da lei (palavras, leva-as o vento).
É, pois, melindroso escrever, ser lido, ser interpretado por poucos ou muitos. A recepção dos textos molda a fama ou a desgraça, a consideração ou o desprezo, o crédito ou a desconfiança, a sintonia ou a diferença. Assim, quando o faço, tento ser coerente, sem ambiguidades, sem duplos sentidos. Cabe, evidentemente, aos leitores a interpretação dos textos, avaliar o seu valor, passe a expressão. Uns gostarão, outros nem por isso, pois aqui manda o livre arbítrio e a competência estética individual que, tal como as impressões digitais, são únicas em cada ser humano.
Aprendi que Jorge de Sena escrevia os seus poemas como testemunho de algo, não de forma confessional, não centrada em si. Quanto a mim, não sei em que estágio ou postura me enquadro, mas penso que estarei algures entre os dois: por vezes sou um queixinhas cheio de autocomiseração e desculpas, enquanto noutros momentos veiculo experiências vividas – os tais testemunhos de épocas, de situações isentas de valoração emocional, relatos neutros de um passado, de uma vivência comum a tantos outros co-viventes.
Sou piegas ou analista, ingénuo ou calculista, tendencioso ou isento? Não sei, mas não estou muito preocupado em saber. Escrevo o que surge, o que paira dentro da minha cabeça, os pensamentos que esvoaçam e que capto quando pousam (é tão difícil eles pousarem o tempo suficiente para os agarrarmos!).
Gostava de ser um encantador de pensamentos, saber enfeitiçá-los para que pousassem na ponta da minha caneta o tempo suficiente para os poder aprisionar no papel, numa prisão que, se ou quando for dolorosa, só doi ao carcereiro.
18. dez, 2019
Post 145
18/12, 01h03, domingo
Assertividade.
Ser assertivo não significa ter razão. Por vezes (muitas) escrevo sobre temas com plena consciência de que estarei eventualmente certo, embora posteriormente essa minha assertividade se desloque para um campo que poderá ser diametralmente oposto.
Assertividade nada tem a ver com valores ou moral, embora seja evidente que se tocam e influenciam. É lógico que os últimos guiam as nossas convicções, formatam aquilo que pensamos e escrevemos.
Por exemplo, se eu for um católico convicto não poderei (ou, pelo menos, não será normal que o faça) defender o satanismo, ser assertivo nesse tema. Alhos e bugalhos são vegetais. Só. Isso não os liga de mais nenhum modo.
A mente é muito dúctil, muito elástica, adapta-se com relativa facilidade a novas formas de pensar, desde que não colidam com a nossa personalidade de base. Não é necessariamente errado ou condenável mudarmos de opinião, desde que o façamos com a convicção de que estamos certos, à luz de novas e, para nós, sólidas ou irrefutáveis evidências que ponham em causa aquilo em que antes críamos. Exemplos dessa mudança, por vezes inimaginavelmente radical, encontram-se por todo o lado: políticos, escritores, pensadores, teóricos, historiadores ou mesmo gente comum, pois as mudanças de opinião são como as gripes – podem afectar toda a gente, independentemente do sexo, cor, idade, nacionalidade ou estado civil e podemos já não concordar com as suas ideias mas não devemos deixar de os considerar por isso. No fundo, acabamos por nos rever neles, mesmo que o neguemos. Todos nós, algures num passado remoto ou recente, cometemos o mesmo “pecado”.
E que ninguém venha a armar-se em santo ou virtuoso, já o fez; pode é, convenientemente, ter-se esquecido ou confundido mudança de opinião com mudança de personalidade. Deixemo-nos de hipocrisias.
Citando um sobejamente conhecido aforismo, que é tradicionalmente atribuída a Jesus Cristo:
Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra.
17. dez, 2019
Post 144
03h52, 16/12/19, 2ª feira
No decorrer dos últimos anos – direi: décadas -, habituei-me a ver a involução dos portadores da carta de condução. Não que eu seja isento de críticas, mas pelo menos tento cumprir as regras mais importantes em termos de segurança e também de respeito, do Código da Estrada.
Isto vem a propósito do hábito generalizado de aguardar pela mudança do semáforo num ponto da via em que os olhos do condutor conseguem abarcar mais eficientemente as cores que o compõem, em todo o seu esplendor, ou seja, directamente em cima da passadeira e imediatamente antes do poste luminoso, como se estivessem na pole position de algum torneio automobilístico. Em maioria, não é porque queiram arrancar à frente de todos os outros, numa manifestação de superioridade do carro ou do condutor, nada disso. Muito frequentemente estes adoradores de semáforos limitam-se a arrancar a uma velocidade normal ou até, por vezes, desesperadamente lenta, como se os condutores tivessem mais de 90 anos.
O percurso pedonal da passadeira fica comprometido mas nós, enquanto peões, comportamo-nos maioritariamente como os membros de um rebanho: atravessamos, pachorrentamente ou não, contornando o obstáculo, quiçá resmungando entre dentes aquilo que gostaríamos de verbalizar mas que contemos por medo, comodismo, indiferença ou educação.
Inclino-me para a crença de que os exames médicos para atribuição da carta estão a ser pouco rigorosos, permitindo que míopes profundos conduzam. É esta a justificação que acho mais plausível para semelhante fenómeno de passedeirofobia e semáforofilia.
Há ainda outra hipótese que é por vezes apresentada, mas que deve ser apenas produto das más-línguas, de calúnias sem fundamento: que esse fenómeno se deve à crescente falta de educação e desrespeito pelas normas estabelecidas numa qualquer sociedade de direito no sentido de criar um mínimo de ordem no galopante caos automobilístico provocado pelo enorme e progressivo aumento de veículos em circulação e pela crença de que a maioria dos manobradores de máquinas de transporte faz a sua própria lei da estrada (posso referir milhentas outras situações, não necessariamente ligadas a esta aptidão).
Pondo de parte a ironia com que envolvi este assunto, e para que fique bem claro o que pretendo transmitir e que defendo, considero que, em matéria de condução, o respeito, tanto pelo próximo como pelas regras do Código da Estrada, têm vindo a ser gradualmente esquecidos e tratados como meras e inúteis formalidades:
Ego sum rex via.
Até quando o atropelo (neste caso particular, na sua mais pura significação)?
3. dez, 2019
Post 143
02h10, domingo, 01/12
…e fez-se chuva e vento.
Parece extraído de uma citação bíblica, mas é apenas uma constatação meteorológica e não um relato do Génesis.
Por que criamos, por que pintamos, escrevemos, inventamos? Qual é o objectivo? Quer sejam epicuristas, filósofos, misóginos, mecenas, humanistas, sádicos, místicos, misantropos ou filantropos, todos apreciam as artes; e continuo a perguntar: porquê? Que nos faz apreciar toda a criação humana, tecer-lhe observações críticas, coleccioná-la mesmo? Convém observar que existem “obras” criadas por animais, mas geralmente ligadas ao campo da engenharia, da física ou, eventualmente, da química, como é o caso das abelhas, dos castores, ou até de alguns pássaros, que mimetizam a arte nas suas colmeias, nos seus diques ou nos seus ninhos, sem nenhum intuito estético (embora possamos ver arte e estética nelas). Latu senso e strictu senso, não passam de técnicas de sobrevivência.
O Homem é o único ser vivo que cria para desfrutar de um prazer sensorial e espiritual. Como e porquê tal surgiu? Terá sido de algum modo numa tentativa de play God, como dizem os nossos aliados mais antigos ou os americanos?
Terá surgido no Homem, há incontáveis gerações, através das primeiras representações pictóricas (Foz-Coa, Lascaux e outras), cuja finalidade – de início, mágica – era de captar/capturar as presas de que se alimentava e vestia, numa crença que se foi interiorizando de que a representação desses animais, quanto mais perfeita fosse, maior seria a probabilidade de os poder reter e dominar. Ao pintar e, posteriormente, ao esculpir os objectos de desejo, e consoante o esforço e perfeição mimética da “obra”, o grau de sucesso seria directamente proporcional: a representação como que os capturava, os subjugava à vontade do caçador, anulava-lhes ou embotava-lhes a vontade própria, o instinto de sobrevivência. Tudo isto é magia, capacidade imaginativa, é fé, é crença, é religião, é arte.
Da representação mágica à arte que entendemos como tal, foi um processo muito longo, numa gradualização quase estática. Presumo que os “artistas” tenham começado a ser admirados pela sua destreza em tais representações de “alta magia”, o que levou a um inevitável e cada vez maior esforço de mimetização da natureza, de profissionalização pelo refinamento das capacidades artísticas e inventivas.
Daí surge a arte própriamente dita, que se foi aprimorando ao longo dos milénios e, por força da progressiva melhoria das condições de existência humanas, como o pastoreio ou a agricultura, foi perdendo cada vez mais o seu carácter mágico. Surge então o primeiro rudimento do sentido estético, começam a formar-se os primeiros apreciadores do mimetismo, já não como instrumento xamanístico de captura e domínio, mas como arte (qualquer destreza humana é uma arte). Porém, no fundo, o carácter mágico da arte ainda subsiste, bem fundo, no inconsciente colectivo: acompanhando as tendências do pensamento progressivamente mais evoluídas, com alto grau de subjectividade, começa a surgir já no séc. XIX uma tendência para a arte cada vez mais abstracta, minimalista, conceptual.
Essa arte esforça-se por se fundir com o intelecto, abjurando de qualquer representação (mimética ou não). É um retorno evoluído ao primitivismo pré-cavernícola, à união com a Natureza, com o Cosmos, dispensando já todo e qualquer simbolismo ou iconografia.
21. nov, 2019
Post 142
06h18, 4ª feira, 20/11
Noite aborrecida. Não passa e nada se passa. Quanto a esta última premissa, até fico satisfeito, visto que, quando se passa algo aqui, não é geralmente prazeroso.
Tal como a noite, estou aborrecido; a única diferença é que eu estou, eu sinto-me, enquanto que ela, como entidade abstracta que é, não está, não sente. Em breve far-se-á dia e a noite deixa de ser e eu deixo de estar. É mais difícil para um dia o ser aborrecido, embora por vezes o seja. No entanto, toda a azáfama, todo o movimento que o caracteriza, ajuda-o a tornar-se mais sofrível, mais interessante.
Lato sensu, a parte obscura do dia, até pode ser repousante, produtiva, propícia à reflexão, à meditação; basta estarmos “para aí virados”. Uma noite bem aceite, bem aproveitada, até pode ser de grande utilidade, permitindo “arrumar melhor as gavetas do último andar”.
Infelizmente para mim, a capacidade que tenho para usufruir de uma “boa noite” pode por vezes diluir-se por força de variados factores, a começar pela idade, tocando outras infindáveis situações (um pouco exagerado) e terminando no tirânico gestor da duplicidade sono/vigília – o ciclo circadiano. Mais 5 anos e terei todo o tempo do mundo, se for vivo; se, entretanto, morrer, então terei toda a eternidade.
Todavia, não faz muito sentido dizer toda a eternidade; se é eternidade, então não tem princípio nem fim. Logo, é incontável e imensurável.
Ora, isto põe em causa o próprio conceito de eterno, pelo menos para aqueles que terminam o seu tempo entre nós, o que, no fundo, será também o nosso irrecusável destino: se eterno é existência “sempre antes” e “sempre depois”, como emparelhá-lo com o nascimento e a morte?
Segundo a teologia cristã, após a morte do corpo, a alma desencarnada parte, de acordo com os seus méritos, ou para a bem-aventurança, ou para a danação perpétua.
E antes do nascimento? Nada, não havia nada? se a eternidade não começa nem acaba, e já pondo de parte essa concepção ambígua do destino eterno da alma, como explicar o nascimento desta, que encarna num corpo também nascituro? Não faz muito sentido e as doutrinas teológicas omitem-no completamente.
Então nós, alguma parte de nós é, foi e será eterna? E sendo assim, tudo o que existe é, foi e será eterno? A aceitar estas premissas, Lavoisier estaria certo, muito para além da física e sem sequer o suspeitar (?), ao enunciar a sua bem conhecida Lei:
Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma (basta apenas entender Natureza como Infinito).
19. nov, 2019
Post 141
00h37, 19/11, 3ª feira
Escrever, pintar, esculpir ou congéneres, são actos que, depois de concluídos, pertencem ao domínio público? Ou podem ser pessoais? E se forem pessoais, são uma manifestação egocêntrica, um acto de pura vaidade, uma misantropia, ou apenas uma reacção de timidez, de baixa autoestima, de medo da crítica?
Quem publica será um orgulhoso que cria para se auto-vangloriar, alguém que necessita de um público para alimentar o seu ego? Ou quem o faz, fá-lo para dar sentido à vida, para justificar o ar que respira, para dar ao mundo um pagamento pelo espaço que ocupa?
Será o acto de criar uma necessidade, como deixar descendência ou ajudar velhinhos a atravessar a rua? Ou será como grafitar uma parede pristina ou partir o vidro de uma paragem de autocarro, como mera manifestação oca de afirmação de existência, uma vandalização da consciência dos outros?
Julgo que se trata de um caso muito íntimo e assaz diferente de pessoa para pessoa. Cada um age de acordo com um seu plano interno, intransmissível e, por vezes, críptico, mesmo para o seu detentor.
Porque fazemos seja o que for que fizermos? No fundo, saberemos explicá-lo? Ou agiremos por impulso, pelos ditames do espírito e incônscios da causa? A maioria dirá que tem plena consciência dos seus actos mas, na realidade, ninguém tem. As causas últimas estão bem escondidas no Id (link na página "Fotos"), relegadas para o canto mais esconso da mente, esse nosso gigantesco e charadístico labirinto.
Um iceberg.
13. nov, 2019
Post 140
05h09, 2ª feira, 11/11/19
Escrevo no único sítio onde, geralmente, tenho oportunidade de o fazer e onde lá vou usufruindo, mal ou bem, do mínimo de sossego e isolamento necessários. É, digamos, a minha “sala de chuto” literária, o local onde cedo ao vício da escrita, onde a metáfora transmuta a seringa e a “branca” na caneta e no papel com que, e onde, escrevo.
Gostaria de ter mais tempo e de me sentir mais isolado, mais despreocupadamente entregue à minha pequena compulsão, para poder abrir as asas a pequenos e pretensiosos voos que, infelizmente, não passam ainda de esvoaçares inseguros, por vezes destrambelhados.
Acho que a idade e o cansaço têm aqui uma palavra a dizer, embora a minha limitada capacidade de “desligar” do mundo danifique sobremaneira as minhas pretensões. Estou sempre a perder a concentração, sempre a, figuradamente, olhar para o lado.
Como dizia Mário Soares, “temos que viver com aquilo que temos”, o que se aplica, não apenas à economia, mas a tudo o que faz parte da nossa existência. No entanto, há em mim (e suponho que em todos os meus equi-pré-idosos, assumidamente ou não) uma dualidade de posturas perante uma situação de reforma que se vai aproximando:
Por um lado, o desejo de que o merecido tempo de descanso de uma vida de trabalho venha rápido, para que possa gozar e compartilhar o meu recém-adquirido tempo livre em repouso ou em actividades não compulsivas. Infelizmente, para alguns, e geralmente por questões económicas, tal não se torna possível.
Pelo outro lado, a obtenção da reforma surge como um espectro, um prenúncio de morte (como canta a Isabel Silvestre), a lembrança de um prazo de validade que irá expirar a curto ou médio prazo.
Depende agora de nós, os futuros reformados, interpretar essas mudanças nas nossas vidas, tão ou mais importantes e transformadoras como que se de uma menopausa ou andropausa se tratasse.
Pelo lado bom, surge uma renovada panóplia de oportunidades de desenvolvimento pessoal, de enriquecimento interno; bem gerido, dá-nos tempo para o que mais valorizamos, sem metas nem prazos, sem obrigações. Se, em contrapartida, a encararmos pela negativa, transmuta-se na nossa agonia, num inferno em vida que nos matará mais cedo que o que seria suposto acontecer.
Por tudo isto, tenho muita pena daqueles que começam a vaguear sem rumo, a vegetar numa jubilação frustrante e sem sentido, letal. Para esses, o quadro não pode ser mais negro pois, além da reforma do trabalho, reformam-se da vida. É uma anulação lenta e progressiva do sujeito, uma desintegração da própria personalidade, cuja única solução será o supremo paliativo – o decesso (que é uma versão mais pretensiosa da palavra morte – só para dar um ar de erudição pedante).
28. out, 2019
Post 139
06h38, domingo, 27/10
Os pernilongos estão a morrer. Falo daqueles insectos que parecem mosquitos gigantes e que surgem no início do outono. Chama-se geralmente pernilongos aos mosquitos e melgas, mas estes que refiro merecem verdadeiramente o título, devido ao seu tamanho e, principalmente, à lonjura das suas patas. Em termos científicos, são conhecidos por típulas ou mosquitos-gigantes e são inofensivos.
Pois, como dizia, termina mais um ciclo de vida destes (pouco) simpáticos insectos. Não que me prejudiquem em nada, mas a minha simpatia por eles nunca foi muito grande, limitando-me a tolerá-los, e julgo que esta é a opinião da esmagadora maioria dos meus congéneres.
Há insectos com que simplesmente não atinamos e por vezes nem sabemos porquê. Centopeias, aranhas e baratas estão no topo dos mais detestados, logo seguidos pelos mosquitos e pelas moscas.
Pensando melhor, julgo que os mosquitos estarão no primeiro grupo e em lugar destacado, por serem tão “melgas” e tão lesivos, não só do nosso sistema imunitário, como do sensorial (táctil e auditivo). Quem não se irrita quando eles “ligam o zumbido” mesmo junto aos nossos ouvidos?
Pois, como eu dizia, fora raros momentos de desorientação motora destes insectos (quando eles vêm contra nós), as típulas nunca me fizeram qualquer mal, raramente fui incomodado com o seu toque, nunca me picaram (porque não picam), nem sequer alguma vez senti o seu zumbido (porque não se ouve). No entanto, talvez pelas parecenças com os detestados e detestáveis mosquitos e melgas, a aversão é manifestamente comum. Coitados, têm uma vida curta e são malvistos, que mais podem eles almejar?
Todos os seres vivos, sencientes ou não, têm um papel na Natureza e que por vezes é difícil de definir. Veja-se, por exemplo, o caso de alguns humanos, que nem isso parecem ser: o seu papel na evolução e no equilíbrio natural é incerto, por vezes até parasitário, não parecendo fazer nenhuma falta à Grande Engrenagem Universal. Mas, no entanto, têm uma função, embora para nós desconhecida, tal como a efémera – esse pequeno insecto de curtíssimo ciclo de vida (1 dia) - o terá. Desconhecemos a que ponto o equilíbrio natural poderá ser rompido com a desaparição, tanto de uns como de outras, mas eles não existem por acaso.
Aceitemos a sabedoria do Cosmos.
22. out, 2019
Post 138
06h47, 2ª feira, 21/10
Ainda não despontou a aurora. No curto espaço de um mês, nota-se bem o seu atraso galopante. Ou seja, é cada vez menos visível a horas precoces, como antes. De dia para dia, a escuridão absorve mais manhã.
Agarrei-me à esferográfica para queimar tempo, já não dá para fazer mais nada no curto espaço que me resta antes de me virem substituir. Tenho andado um pouco “por baixo”, a vontade de escrever existe, mas a disposição necessária para o fazer e os temas (ai, os temas!), têm acompanhado as tendências da moda, ou seja, andam também por baixo.
As ideias estão cá, a turbilhonar, apenas não sei como dominar a tempestade, canalizar a energia em escrita, em algo com significado. O grande desafio é pegar nessa imensa sopa de letras, que é o intelecto (sim, também tenho um, seja lá isso o que for) e transformá-la em algo coerente, algo que faça minimamente sentido. É por isso que pouco ou nada tenho escrito ultimamente.
Estou plenamente consciente de que não sou nem jamais serei escritor (a não ser que tenha uma milagrosa e reveladora epifania), nem cronista, contista, bloguista ou algo relacionado; no entanto, sinto prazer em escrever, mas escrever algo que seja, pelo menos, sofrível. Quero deixar o tal testemunho, a tal pegada, não no planeta, mas na humanidade, ser lido nem que seja para que gabem a minha mediocridade, ou menos que isso.
Ninguém quer ser apagado da existência sem deixar algo que persista – muito ou pouco – na memória humana. Nem que seja apenas naquela pequena humanidade a que pertence, ao seu grupo restrito de família e amigos e, talvez, conhecidos. É muito importante para o nosso equilíbrio emocional termos a consciência de que somos recordados em um futuro cada vez mais próximo, quando a nossa presença deixar de estar fisicamente disponível a quem quer que seja, e se limite a uma simples recordação que, um dia, também se desvanecerá.
Não estaremos cá para ajuizar do impacto dessa nossa pegada na comunidade humana: o de alguns subsistirá durante largas centenas ou até mesmo alguns milhares de anos; o de outros será como as folhas do outono, varridas e dispersas pelo vento, esquecidas.
Cá para mim, as folhas de outono são mais a minha cara.
13. out, 2019
Post 137
13/10, 03h58, domingo
Está vento. E fresco. Está um vento fresco e um tanto desagradável. Noite típica de um outono jovem, onde um verão inconformado se agarra às folhas caducas que teimam em não se despegar da árvore-mãe, num gesto de desespero, prenúncio do inverno próximo.
O vento brame nas frinchas das portas, as folhas volteiam ruidosamente e em grupo, aproveitando aquele para uma derradeira dança de despedida. É a Natureza que recria ciclicamente os seus rituais milenários.
Em breve choverá, para desencanto daqueles que ainda creem que o estio retorna, entre as brumas de uma manhã de nevoeiro.
Entretanto, tenho muito sono. São os malefícios das férias: habituamo-nos a horários anómalos, por vezes desregrados, não coincidentes com os ciclos laborais. Isso paga-se caro nas primeiras semanas do regresso. Depois… a rotina faz o resto, durante mais dez ou onze meses.
8. out, 2019
Post 136
01h30, 08/10, 3ª feira
Neste verão (ou sucedâneo de verão), durante as minhas deambulações profilácticas pela praia de Matosinhos, reparei nalgumas zonas de eventual confluência de correntes ou qualquer outro fenómeno marítimo que não sei explicar, pois não sou biólogo marinho, meteorologista ou com conhecimentos de alguma outra ciência ligada ao mar. Nessas zonas, no fluxo e refluxo da maré, nessa vetusta fonte de toda a vida planetária, rolavam na areia restos, fragmentos de seres outrora vivos - estrelas do mar, caranguejos, conchas e búzios vazios. Enfim, um cenário de morte, um autêntico cemitério que nós, habituados a tais panoramas desde o início da nossa existência, ignoramos como natural, como fazendo parte da vida.
É verdade, a morte faz parte da vida desde o seu início e nós, rodeados de vida e de morte desde o primeiro contacto com o planeta, encaramo-la como natural. Na verdade, nem sequer encaramos – faz parte do cenário, é um simples adereço no palco da nossa representação teatral.
Salvaguardando o enquadramento emocional que algumas espécies de vida representam na nossa senciência (que incluem obvia e mais fortemente a humana que nos diz mais directamente respeito), tudo o resto é paisagem, não passa de “natureza morta”, ou menos que isso.
Uma Natureza Morta, enquanto obra de arte, é apreciada quanto à sua expressividade, à técnica utilizada, aos materiais e ao que é retratado; uma natureza morta real é ignorada após um relance do olhar, esfumando-se da memória em segundos. No geral, tal é a nossa relação com a morte. Talvez por isso a banalização das guerras e outras carnificinas seja tão “normal”. Entendo o facto como um mecanismo mental de defesa, uma barreira emocional que nos impede de pensar muito naquilo que um dia, mais tarde ou mais cedo, fará de nós também uma natureza morta, vista – ela também – com indiferença pelos que não são chegados, tal como faríamos se tivéssemos tido a sorte(?) de não termos sido os primeiros a partir. Para esses que nunca ou pouco nos conheceram, nada mais seremos que fragmentos de caranguejos, inertes estrelas do mar, conchas e búzios vazios que se movem para cá e para lá no fluxo e refluxo da maré.
6. out, 2019
Post 135
03h21, domingo, 6 de outubro
Terminaram as férias. Hélas! – à antiga francesa; por mal dos meus pecados – à antiga portuguesa.
Foram boas e deixam saudades, sem dúvida, mas há que prosseguir com a rotina da vida até, pelo menos, à idade da reforma. Aí, teremos 3 hipóteses: ou já estamos em férias eternas, ou mantemos uma suficientemente confortável vitalidade, ou já não temos forças ou saúde senão para apanhar um bocado de ar à janela, devidamente resguardados das correntes de ar. No meio está a virtude: pode ser que sejamos bafejados pela deusa Fortuna e prossigamos ainda sãos, sob a protecção de Hipócrates e com a bênção de Esculápio (o resto do trabalho é com S. Cristóvão).
Entretanto já posso dar-me ao luxo de invocar (um tanto a despropósito) metade daquele ditado: “Roma e Pavia não se fizeram num dia”; não fomos a Pavia, mas em Roma levámos 3 dias, mais 1 em Pisa e 3 em Florença e, no entanto, muitos mais necessitaríamos – talvez um mês ou dois, ou três, para as “fazermos”. Há imenso para conhecer.
Quando voltamos de férias, temos sempre uma sensação de incompletude, de que não conhecemos quase nada e de que um dia teremos de voltar para ver o resto. Puro engano! A nossa “sede” de conhecer e de conhecimento (num sentido turístico e cultural) rapidamente ultrapassa o visitado e adapta-se a novos lugares e novas oportunidades, porque o que conta não é o visitar, é o conhecer, é o prazer da montagem do grande puzzle que é a história da Europa e do Mundo, seja através da arquitectura, dos usos e costumes ou da arte. Cada viagem, cada visita, é mais uma pedra no edifício da nossa cultura individual, mais uma etapa na nossa quase imperceptível evolução.
Para o ano, se cá estiver, quero ir à Lua!
10. set, 2019
Post 134
00h00, 10/09, 3ª feira
Samelo, canhão, vasculho, armado em Fangio (ou, mais recentemente, Fittipaldi), afiambrar, sendeiro, achandrar (ou achantrar), básico, diacho, estar um barbeiro, dar às de vila Diogo e tantas outras expressões do calão português de antanho que eu conheci e que conheço mas que entraram em desuso e, para as novas gerações – mesmo os já trintões – nada significam, são crípticas.
É a vantagem de ter convivido com pessoas cuja existência remonta aos fins do século XIX e durante a primeira metade século XX, com as quais a minha geração aprendeu muito do que forma a sua personalidade actual e a sua cultura social e etnográfica, entre outras. Ao ter estado em contacto com estes testemunhos outrora vivos e connosco coexistentes, tivemos o privilégio de manter um conhecimento que os mais novos dirão ser ultrapassado, anacrónico, bota-de-elástico (mais uma expressão de argot pré-histórico). No entanto, tudo faz parte do conhecimento que cimenta a nossa civilização, ajuda à compreensão do passado e, consequentemente, espelha-se no presente e no futuro.
Há quem defenda uma nova escola onde o conhecimento prático impera, em detrimento da memorização de factos irrelevantes para o nosso dia-a-dia. Concordo e não concordo.
No meu tempo de escola decoravam-se coisas inúteis, como rios, linhas de caminho de ferro ou redes de estradas. Neste caso, estou totalmente de acordo: seria e será tão infimamente necessário fazê-lo como decorar o percurso e nascente do rio Aar na Suíça, o do Volga, na Rússia, ou saber qual o caminho de ferro que passa por Abidjan ou o percurso do Transiberiano. Actualmente, quem disso necessitar, pode aceder à internet e tem lá tudo escarrapachado. Antigamente era um pouco mais complicado mas, com um pouco de esforço, conseguia-se.
Há, porém, saberes e saberes. Defendo acerrimamente a cultura geral, que poderá passar pela literatura, a música, o teatro, a ópera, a poesia, algumas línguas, mesmo o latim ou o grego, e um know-how do mundo em termos gerais, tanto num contexto físico ou da química, como geográfico, etnográfico, político, etc.
Os defensores da nova escola certamente concordarão que não basta aprendermos apenas de acordo com as nossas aptidões (embora tal seja da maior importância), mas também necessitamos de conhecer a nossa “paisagem envolvente”. Caso contrário, não passaremos de animais instruídos que quando necessitam de algo para além das suas profissões, utilizam a internet. Passa-se já comigo e passar-se-á com todos, em maior ou menor extensão. Estamos a perder progressivamente a capacidade de, através de apenas as nossas sinopses cerebrais, mantermos uma correcta e coerente conecção com o mundo. Agora e cada vez mais, só conhecemos o mundo se soubermos recorrer à internet e seus meandros (embora este conhecimento seja também cultura geral).
É preocupante, começamos a perder o contacto com a realidade e dependemos cada vez mais do virtual. Citando como exemplo a tabuada, esta tem sido progressivamente relegada para a categoria do supérfluo. Quem quer fazer uma operação matemática, ou usa os dedos, nos casos mais simples, ou a calculadora, que se pode encontrar em qualquer telemóvel.
É evidente que defender o conhecimento de uma cultura geral é entrar num campo de grande e complexa ambiguidade. O que é útil ou interessante saber? E porquê? Cada cabeça, sua sentença, nunca existirá consenso, pois cada caso é um caso.
Quem optar por nada saber para além daquilo que necessita no momento para sobreviver ou singrar na vida, poderá tornar-se um técnico muito competente na sua profissão, mas não passará de um analfabeto.
Será aqui relevante apontar a sociedade norte-americana, com os seus livros de instruções, ou o próprio presidente, em quem a ausência de um mínimo aceitável de cultura é deplorável, reflectindo-se em toda a sua actuação, tanto a nível nacional como internacional. Nele, o mais grave ainda é não reconhecer essa gritante limitação.
4. set, 2019
Post 133
00h55, 4ª feira 04/09/19
Cada acto de escrita é irrepetível, seja ele bom ou mau. Diz-se que o que a boca pronuncia perante um ou mais receptores, é indelével, não pode ser apagado. É um facto, mas tal como o acto de fala, o de escrita também não pode ser eliminado, no sentido em que aconteceu. A única diferença entre estas duas acções é o veículo pelo qual se expressam. A destruição da escrita não implica o seu desaparecimento como produção. Na realidade, formalmente, ambos existiram, independentemente da presença ou não de um receptor.
Observo estes factos à luz da lógica e não da física quântica, onde algo só executa uma acção se existir um espectador, ou na perspectiva de um ramo da filosofia, de que não me recordo o nome, em que a realidade só existe se houver um observador.
Algumas filosofias transcendentais acreditam que a natureza, o éter ou algo algures entre ambos, guarda um registo fiel de tudo o que sucede ou sucedeu connosco, à nossa volta, à volta e a respeito de tudo. Parecerá algo inconcebível, utópico, irreal. No entanto, ao longo dos últimos séculos, os humanos desenvolveram técnicas de gravação de som, imagem, actividade cerebral ou comportamentos químicos ou físicos. Nestes últimos, a relativamente recente disciplina do conhecimento chamada Quântica, tem feito e observado verdadeiros e paradoxais “milagres” . Será o registo, afinal, assim tão inimaginável?
Para qualquer leigo, essa abordagem será tão fantástica, tão fantasiosa como uma obra de Tolkien, de Jonathan Swift, Lewis Carrol ou mesmo a tão actual J. K. Rowling. No entanto, existem muitas “antigas” fantasias que se tornaram actualmente realidade. Basta atentar nas obras de J. M. Low, Robert Heinlein ou mesmo Julio Verne – para não mencionar os projectos científicos de Leonardo Da Vinci ou do Padre Bartolomeu de Gusmão.
Apercebi-me de que me estava a desviar da linha de pensamento com que iniciei esta crónica. Assim, e voltando à ideia original, o que eu queria focar no início era o facto de que detesto começar a escrever e, ao cabo de meia dúzia de linhas, interromper o raciocínio, seja por falta de oportunidade ou de inspiração. Nessas escassas palavras grafadas produzi um discurso que, ou reaproveitarei parcialmente (o que originará uma perda de originalidade e espontaneidade) ou remeterei ao arquivo morto akáshico, – que é o nome por que tal gravação trancendente é conhecida entre os budistas, os hindus ou os teosóficos – o tal suposto registo universal que atrás referi.
Embora creia e aceite sem contestação a Lei de Lavoisier, de que nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, é contudo penoso abandonar o meu acto de criação, mesmo que péssimo, do mesmo modo que não se abandona um filho, mesmo que ele seja um deficiente profundo. (Evidentemente, neste confronto, não estou a comparar qualidade, mas intensidade).
Esforçamo-nos por criar coerência e continuidade, embora nem sempre com sucesso. A título de consolação, o nosso espírito não descartará totalmente esses ensaios artísticos “falhados” e reaproveitará a sua essência primordial para (re)criar algo melhorado.
O criador, o artista, vai produzindo obras progressivamente mais refinadas, mais aperfeiçoadas, fruto da experiência adquirida em cada falhanço, em cada insucesso, e que servirá de pedra de toque para a próxima génese, numa perene e eternamente improfícua tentativa de atingir a perfeição.
1. set, 2019
Post 132
2h00, 01/09, domingo
E acabou Agosto. E com ele uma grande percentagem de esperança num verão decente que só o país do fado, futebol e Fátima, com o seu sol maravilhoso, pode dar (versão publicitária do Estado Novo, estilo António Ferro, via SNI). Agora já nem a versão Verão Quente, à moda de 1975, conseguimos ter. A meteorologia só nos prega partidas, aparafusa-nos desilusões e rebita-nos suspiros de saudade.
Não que eu seja um saudosista (bem, talvez 30%), mas lamento aqueles meus tempos de infância e juventude em que havia Verões e Invernos com letra grande – e não estou a falar na grafia: frio a sério, calor a sério e chuva q.b.
Serão as tais memórias falsas de que falam os psicólogos e também os meteorologistas? Estes últimos apresentam sempre gráficos e tabelas para demonstrarem que estamos enganados, que afinal o tempo, antigamente, também nos pregava partidas, e algumas maiores que as de agora.
Por outro lado, há meteorologistas e outros “istas” que nos avisam de que o tempo está a mudar radicalmente e que não podemos continuar a contar e a acreditar numa normalidade a que estávamos habituados. Uns e outros dão provas do que afirmam… com gráficos e tabelas!
Em que ficamos, então? Acho que mais vale continuarmos a confiar nos nossos sentidos e lamentarmos esse Éden meteorológico perdido em que soíamos viver, num passado ainda não muito longínquo. E desconfiemos de todos os arautos da normalidade e da mudança que nos confundem:
São os loucos de Lisboa (e doutros lados)
Que nos fazem duvidar
A Terra gira ao contrário
E os rios nascem no mar.
(canção da Ala dos Namorados)
28. ago, 2019
Post 131
05h00, 3º feira, 27/08/19
Pedras.
Existem há biliões de anos. Espantoso.
Observar uma pedra e atentar na sua idade é surreal, é inabarcável pelos nossos sentidos (que se fixam no presente e na memória de curíssimo prazo, em termos cosmológicos) e difícil de extrapolar. Quando a analisamos à luz desta constatação, sentimo-nos sufocados, microscópicos, e apercebemo-nos da nossa pequenez temporal.
Durante o verão, como já relatei em posts anteriores, e para recuperar e manter uma certa forma física de que sinto saudades e necessidade, costumo sair do trabalho e caminhar pelo Parque da Cidade, como tantos outros atletas matinais. Embora bem visíveis, nem nos damos conta dessas existências pétreas nas quais tropeçamos, que contornamos ou nos servem de assento, nas ruínas construídas de ruínas, naquela moagem que nos escorre entre os dedos dos pés, na praia, e nos massaja e esfolia as plantas dos ditos. Vêmo-las mas não as interiorizamos, calcamo-las com indiferença e naturalidade.
O Parque está delas generosamente guarnecido. Algumas, esparsas, talhadas propositadamente para integrar um fragmento de muro ou um pórtico; as outras, a esmagadora maioria, são constituídas por blocos de variados tamanhos que já tiveram, visivelmente, outra função. São os restos de construções demolidas, desaparecidas do rosto da cidade, que a Câmara aproveitou para emoldurar e embelezar este espaço de lazer. É ver aqui uma cornija, ali um vão de janela, a ombreira de uma porta ainda com o buraco para a lingueta de uma desaparecida fechadura, e outras inidentificáveis, mas marcadamente modificadas pelas mãos dos homens a que sobreviveram, quem sabe durante quantas gerações.
Estas pedras narram estórias que não ouvimos porque não somos sensíveis à sua linguagem, não as sabemos traduzir. Na memória das pedras existem todos os ingredientes de uma história universal:
Alegrias, dramas, namoros, assassinatos, confidências, estupros e discussões, roubos e actos de bondade, inveja, inocência. Tornados, incêndios e inundações. Negócios. Trapaças e risos. Abandono, ruína. Tudo por elas passou, a tudo assistiram impassíveis, sem julgar, sem condenar, mudos e passivos espectadores do Tempo e do espaço.
São sábias estas pedras, mais do que os homens que as moldaram. Nelas encerra-se uma sabedoria atemporal, pronta a ser compartilhada. Nós é que ainda não entendemos as suas mensagens.
25. ago, 2019
Post 130
23h54, sábado, 24/08
Admiro a resiliência de algumas pessoas, para não dizer de alguns povos:
Entre os americanos do Norte (EUA), a região central é insistentemente fustigada por tornados destruidores e, contudo, eles continuam a refazer a sua vida nos mesmos lugares onde ela foi posta em causa, tanto física como material ou emocionalmente. São como as formigas ou as abelhas, ou mesmo os castores - essa espécie autóctone do norte do continente; refazem pacientemente, as vezes que forem necessárias, aquilo que a Natureza (quantas vezes adulterada ou influenciada por mão humana) destruiu.
O mesmo se passa com alguns povos do Médio e Extremo Oriente, que sofrem na pele (e no resto do corpo) as consequências da sua fixação em locais de forte e recorrente actividade sísmica. A sua resiliência – direi, por vezes, resignação – é extraordinária. Enterrados os mortos, começam imediatamente a tratar dos vivos, a refazer as suas casas e a sua existência, sem olhar para trás. Sabem que, de um momento para o outro, a sua vida pode terminar abruptamente, a sua labuta diária pode ter sido inútil e/ou os seus bens reduzidos ao seu corpo. E, como os americanos, igualmente estóicos, recomeçam de novo as vezes que forem necessárias. O seu apego à terra mantém-se, apesar de e para além de todas as vicissitudes.
No nosso cantinho da Europa não temos nada disso, desses pequenos e aterradores apocalipses. Temos sorte, nascemos num país telúricamente estável e pouco sujeito às crueldades da Natureza - tsunamis incluídos.
Contudo, como ninguém está bem com a vida que tem, choramo-nos do calor extremo, da seca extrema, da chuva extrema, da porcaria do verão e dos invernos rigorosos. É natural, quem nunca teve dores a sério, chora com uma picada de alfinete. Não porque sejamos piegas mas simplesmente porque não estamos habituados e respondemos emocionalmente em proporção.
21. ago, 2019
Post 129
20/08, 3ª feira, 5h28
Não é raro encontrar no YouTube vídeos engraçados de animais e de animais engraçados. Aí vemos reacções dos nossos amigos de 2 ou 4 patas ou mesmo sem patas, como os peixes ou os patos solitários e, por serem anómalos em relação ao comportamento humano dito comum, chamam-nos a atenção. Não é apenas por serem diferentes e/ou cómicas, mas também por apresentarem respostas que os humanos acham ser rasgos de inteligência inusual em animais irracionais.
Aliás, é um pouco estúpido pensar que os animais são estúpidos ou ainda assombrar-se com os rasgos de inteligência de uma criança pequena como se ela também tivesse a obrigação de ser estúpida. Não nos esqueçamos de que também já fizemos parte dessa categoria de crianças “estúpidas”.
Cada animal, seja irracional ou humano, é dotado pela Natureza do grau de inteligência de que necessita para o seu estágio evolutivo (salvo raras ocorrências, positivas ou negativas). No caso dos animais pequenos, estes estão em progressão no seu desenvolvimento mental e aprendizagem e devem ser tratados e encarados como tal e não como génios precoces, com, evidentemente, algumas felizes excepções.
As reacções que achamos fora do comum não passam de um aprendizado que, através de um conjunto de sinapses fortuitamente combinadas, origina uma ligação neuronal mais clara, mais “avançada” que o normal expectável. Chama-se a isso evolução.
Dou um exemplo: o Nuno – um meu falecido gato – tinha por hábito abrir a porta do frigorífico para roubar comida. Decerto aprendeu empiricamente, por observação. Quando demos conta, reforçámos a porta do frigorífico com uma “fechadura” de velcro, convencidos de que tal resolveria o problema. Mas, - sinopsis jacta est –, ele já se tinha apercebido da forma de abrir e, portanto, não desistiu, fazendo mais força. Evoluiu, portanto.
Se fosse uma gata e tivesse filhotes, todos eles teriam aprendido a superar essa dificuldade.
25. ago, 2019
Post 130
23h54, sábado, 24/08
Admiro a resiliência de algumas pessoas, para não dizer de alguns povos:
Entre os americanos do Norte (EUA), a região central é insistentemente fustigada por tornados destruidores e, contudo, eles continuam a refazer a sua vida nos mesmos lugares onde ela foi posta em causa, tanto física como material ou emocionalmente. São como as formigas ou as abelhas, ou mesmo os castores - essa espécie autóctone do norte do continente; refazem pacientemente, as vezes que forem necessárias, aquilo que a Natureza (quantas vezes adulterada ou influenciada por mão humana) destruiu.
O mesmo se passa com alguns povos do Médio e Extremo Oriente, que sofrem na pele (e no resto do corpo) as consequências da sua fixação em locais de forte e recorrente actividade sísmica. A sua resiliência – direi, por vezes, resignação – é extraordinária. Enterrados os mortos, começam imediatamente a tratar dos vivos, a refazer as suas casas e a sua existência, sem olhar para trás. Sabem que, de um momento para o outro, a sua vida pode terminar abruptamente, a sua labuta diária pode ter sido inútil e/ou os seus bens reduzidos ao seu corpo. E, como os americanos, igualmente estóicos, recomeçam de novo as vezes que forem necessárias. O seu apego à terra mantém-se, apesar de e para além de todas as vicissitudes.
No nosso cantinho da Europa não temos nada disso, desses pequenos e aterradores apocalipses. Temos sorte, nascemos num país telúricamente estável e pouco sujeito às crueldades da Natureza - tsunamis incluídos.
Contudo, como ninguém está bem com a vida que tem, choramo-nos do calor extremo, da seca extrema, da chuva extrema, da porcaria do verão e dos invernos rigorosos. É natural, quem nunca teve dores a sério, chora com uma picada de alfinete. Não porque sejamos piegas mas simplesmente porque não estamos habituados e respondemos emocionalmente em proporção.
11. ago, 2019
Post 128
02h57, 11/08, domingo
Ainda hoje, por mera associação de ideias, espoletadas por uma conversa com uma pessoa das minhas relações e que não interessa discriminar, relembrei a minha infância e adolescência inicial, não numa perspectiva pessoal mas da sociedade em geral e do modo como eu/ela encarávamos o nosso (à época) presente, que hoje está enterrado, embora muito mal, pois a memória é um coveiro deplorável que deixa os zombies do passado quase a descoberto.
Nesse tempo andávamos, como diz Camões, naquele engano de alma ledo e cego, indiferentes e ignorantes do que se passava no nosso mundo, à nossa volta, ao nosso lado. Era assim e pronto! Não se questionava porque é que a Avenida dos Aliados ficava interdita e cercada por um cordão policial no dia 1º de Maio ou porque é que não se podiam apanhar do chão aqueles panfletos que caíam como chuva, despejados por alguma incógnita avioneta.
Também ninguém reagia muito virulentamente aos atrasos de 5 horas nos comboios tranvia de passageiros, mesmo quando o foguete, o rápido, o comboio-correio (com as suas típicas carruagens bordeaux e estofos a condizer) ou o mercadorias lhes passavam à frente: tinham prioridade – era assim. Tudo isto justificado pela renovação da Linha do Norte, feita a passo de caracol.
Faço aqui um aparte: por vezes apanhávamos o comboio-correio, com os tais estofos bordeaux, feitos de esponja coberta de napa. Era muito diferente, muito mais luxuoso do que as carruagens ordinárias do tranvia. Neste, os bancos eram de madeira nua na II e III classe (sic) e na I classe em cetim vermelho, recheado de sumaúma recalcada e já desconfortável.
Era normal existirem escarradores em esmalte nas barbearias e, muito especialmente, nos tascos e tascos-mercearia. Nem calculo sequer como é que os donos dos estabelecimentos tinham estomago para limpar aquilo e arredores.
As crianças eram muitas vezes mandadas a esses tascos-mercearia para comprar géneros pelo sistema de apontar no livro, que era uma espécie de cartão de crédito primitivo. Aí, o azeite e o petróleo – os motores do lar – eram vendidos lado a lado, por intermédio de bombas de êmbolo montadas em cima do balcão, ao lado da faca fixa de cortar bacalhau (uma espécie de guilhotina, uma peça de museu que deve ser raríssima, pois nunca mais vi nenhuma) e, junto às paredes, o arroz, a farinha, o milho e outros géneros, alimentares ou não, dentro de uma espécie de gavetas fundas, que hoje seriam certamente confundidas com cestos de roupa suja: tudo isto era vendido a retalho, pesado em balanças de pratos, dentro de cartuxos de cartão grosso riscado, com o fundo colado com cimento ou doses generosíssimas de cola espessa.
Pois estas crianças deparavam aí, na parte tasco da mercearia que, a maioria das vezes nem separação tinha ou era meramente simbólica, com o seu provável e expectável futuro: vizinhos, desconhecidos ou o próprio pai, entretidos a embebedar-se e a discutir temas, geralmente do mais básico e rasca possível.
Era normal, como o era ver ao fim do dia crianças de 10(?) ou 12 anos a regressarem do trabalho, na companhia de colegas mais velhos ou mesmo dos seus pais-colegas.
Recordo ainda as longas noites sem luz – horas e horas de cortes de energia saídos do nada, sem aviso. Apenas aconteciam, e por tempo indeterminado. A casa estava cheia de velas de estearina, candeeiros a petróleo, lamparinas de azeite e lâmpadas de carboneto - estas pintadas de verde-claro.
Não havendo luz, não havia notícias do Mundo exterior ao meu pequeno mundo. Nada de rádio ou televisão, apenas os jornais. “O Primeiro de Janeiro” e “O Século” eram os jornais que se recebiam regularmente em casa. Notícias falsas, censuradas ou insignificantes, onde o Estado veiculava uma imagética de paz e progresso e onde os ventos do mundo quase não se sentiam, porque Portugal era uma ilha isolada e feliz.
Hoje encaro tudo isto com estranheza. Refinei-me, refinei a minha consciência social, perdi a cegueira de quem faziam acreditar que não havia nada mais para ver, porque era aquela a vida real e ideal. Não sei bem se gosto do que vejo…. Mas não quero voltar a cegar.
6. ago, 2019
Post 127
05/08/19, 2ª feira, 07h15
O que é o ridículo? É o risível, é o trágico, o estúpido? Tudo depende das circunstâncias, das pessoas, dos lugares, até das épocas. O ridículo não é uma norma ou um estado, é um conceito.
Para nós, ridículo será alguém ir trabalhar vestido de palhaço (a não ser que seja a sua profissão), andar na rua de fato de banho no pino do inverno ou transportar – se o deixassem – uma vaca no metro.
Mas seria assim tão ridículo? As opiniões podem divergir. Cada cabeça, sua sentença. Para muitos, alguns dos exemplos abordados até teriam a sua lógica ou seriam aceitáveis, enquanto para outros seria, no mínimo, bizarro, lamentável ou impensável. Achar algo ridículo é o mesmo que gostar de azul ou preferir o campo à praia, é uma questão do foro íntimo de cada um, de opinião. Nem sequer se pode invocar a maioria: se em cem há um que aceita e acha natural, isso fará dele um “anormal”? Claro que não, é apenas livre-arbítrio, e escudarmo-nos com a opinião da maioria acaba por ser uma falácia. Se calhar, noutro país ou noutra cultura, os termos se invertam, isto é, apenas 1 discorda e 99 estão de acordo.
Ser-se humano e pensante é complicado. O falso ou o verdadeiro, o ridículo ou o normal, o aceitável ou o inaceitável, o feio ou o belo, são muito pessoais, muito nossos, e temos, por vezes, que os gerir ao agrado da maioria, sermos hipócritas para podermos usufruir de um bom relacionamento social, viver como Deus com os anjos – embora deste modo os anjos possam andar stressados (ou Deus).
31. jul, 2019
Post 126
04h47, 4ª feira, 31/07
Acabei de criar uma página neste meu cofrezinho de memórias, à qual dei o nome de Tributos Culturais. Nela figuram os meus trabalhos académicos mais relevantes no campo da literatura comparada, os quais acabariam por se perder na caótica arrumação electrónica do meu computador.
São pequenos trabalhos de opinião e investigação que não aconselho nem desaconselho a ler porque, como abordam temas muito específicos, muito direccionados para a teoria literária, poderão, para um leigo, ser demasiado maçudos e desinteressantes. Contudo, be my guests, se desejarem, o saber não ocupa lugar.
Para aceder, basta clicar no "mais", que se encontra no cabeçalho e procurar.
30. jul, 2019
Post 125
02h34, 3ª feira, 30/07/19
Por vezes ponho-me a pensar no que é, foi e se tornou este nosso mundo. Quando eu era jovem, e aparte as crises típicas da adolescência, a vida era ou parecia simples, despreocupada, embora por vezes difícil. Tenho de ter em linha de conta que a consciência política, social e outras, eram escassas ou inexistentes, enquanto atualmente somos literalmente bombardeados por elas.
Tudo bem, é louvável essa tomada de consciência do que nos envolve, de quem nos envolve, das circunstâncias, das atitudes, das consequências da nossa pegada neste belo planeta que pisamos e que beneficia ou sofre pelos nossos actos e pelos nossos resíduos, assim como todos os nossos co-viventes, passados, presentes e futuros.
No entanto, penso que, em alguns aspectos, essa tomada de consciência colectiva sofre do mesmo mal de que sofreu a dinastia dos Plantagenetas que, como é sabido, após gerações de inter-relacionamento genético, acabou por dar origem a perfeitos idiotas, padecentes de múltiplas mazelas físicas.
O que pretendo dizer é que, tão grande é a ultra-ortodoxia de alguns dos seus arautos, tão importante se tornou o cultivo do politicamente correcto, tão fanática é a sua aplicação, que o que deveria ser algo louvável e virtuoso tende a transformar-se em atitudes veladamente hipócritas, servindo propósitos obscuros. Está a surgir uma autêntica caça às bruxas de Salem, que de diferente apenas tem a época e os interesses que esconde. Fechada sobre si mesma, a virtude degrada-se e infecta tudo à sua volta.
Basta deslizar os olhos pelas notícias e atentar nesta nova arma político-social (já nem sequer é religiosa, com antigamente) que corruptos utilizam para perseguir corruptos, ladrões para acusar ladrões, mentirosos para denegrir mentirosos. Deixou de ser a arma dos virtuosos para se transformar num instrumento de destruição social. Penso que, agora, há demasiados Edgar J. Hoover, demasiados “beatos” a conspurcar a Terra sob a égide do Bem.
Posso e espero estar errado. Caso contrário, os novos jihadistas da moral farão, a curto ou médio prazo, mais estragos do que aqueles a quem tentam retirar o poder.
Com estas palavras não apoio os corruptos, apenas alerto para os pseudo-puros de coração que se estão a fanatizar. Muitas ditaduras começaram assim, com salvadores sem mácula.
28. jul, 2019
Post 124
00h16, domingo, 28/07
É sabido que o mundo tem ciclos, altos e baixos, que podem durar séculos. As civilizações também, e estou em crer que até as localidades, as famílias e, por último, cada ser humano. Todos sofremos as consequências destes altos e baixos, seja individual ou colectivamente.
No entanto, esses ciclos não são coincidentes em todos os escalões; podemos experienciar períodos áureos enquanto a nossa cidade, o país ou o mundo em geral, dele não beneficiam, ou vice-versa. Não há sincronia, não há ciclos coincidentes – a não ser ocasionalmente – nem períodos temporais definidos.
Eu, como toda a gente, também tive e espero voltar a ter, nesta curva física descendente em que já me encontro há largos anos, um novo e durável período de bem-estar social e económico. “Não há mal que sempre dure…” – já dizia a minha avó.
Omiti a segunda parte do ditado popular – “…nem bem que nunca se acabe” -, pois seria desconfortavelmente negativo, no meu estágio actual. Omitimos sempre as coisas más ou que não nos interessam, o que comprova mais uma vez a sempre presente hipocrisia, a interesseirice (não consta no dicionário, mas dá para perceber) humana, latente em cada um.
É certo que, se não fosse assim, a vida seria demasiado neutra e sensaborona, ou demasiado trágica. Enganamo-nos porque nos sabe bem, porque nos faz sentir bem, porque essas omissões levantam o moral, embora, no fundo, saibamos serem falácias intencionais.
No geral, quem dentre nós, e perante uma adversidade, não pratica o auto-consolo de dizer que “amanhã será melhor, já passou tudo”? Mesmo doentes terminais (e que o sabem) mantêm o moral alto, minimizando ou ignorando a sua condição fatal e irreversível porque se sentem bem com isso e porque os ajuda a suportar o inevitável.
É por esta linha de pensamento que acredito (ou finjo acreditar) numa melhoria das condições de vida, de que tenho lógicas saudades. Já estive bem, já vivi razoavelmente despreocupado e creio e quero voltar a experienciar um novo ciclo ascendente.
Entretanto, uso o piedoso fingimento para me convencer de que tudo está bem e amanhã estará melhor.
17. jul, 2019
Post 123
23h42, 3ª feira, 16/07/2019
Este ano nem questionei a minha passagem pelo orbe por ocasião da coincidente 62ª translação da Terra à volta do Sol, ou seja, para não parecer tão rebuscado, não teci dúvidas existenciais sobre a minha sobrevivência ou não por altura do meu aniversário natalício. Também, que haveria mais a dizer além do que já foi veiculado aqui em aniversários anteriores? Mais do mesmo, dito de outra forma?
O que interessa (?) é que os 62 “já cá cantam” e ninguém mos tira, o que me recorda com cada vez mais premência o meu embrulho definitivo. Embora pense sempre nisto, passe a expressão, não quero pensar muito nisto, pois esperar o fim é e não é simultaneamente, esperar por Godot: é, porque esperamos por algo que nunca chega; não é, porque um dia, num futuro para nós sempre remoto, ele chegará, quando geralmente não esperamos que ele apareça.
Chega por hoje de tanato-filosofia. A vida é para ser desfrutada enquanto existe, desde que a encaremos pelo lado mais positivo. Como já mencionei há uns tempos, as minhas considerações sobre assuntos de cariz negativo ou existencial não veiculam necessariamente uma postura perante a vida, mas referem apenas uma opinião desapaixonada sobre temas que os seres humanos, geralmente, não gostam de referir. Serei um tanto ou quanto sartriano ao abordá-los, mas alguém tem que o fazer, o mundo não é um mar de rosas, mas também não é um mar de espinhos, ambos coexistem no mesmo espaço e no mesmo tempo, quer queiramos, quer não. Não há mundos perfeitos e a consciência dessa realidade tem também de ser abordada, não esquecendo nunca a contraparte positiva, pois esta age como contrapeso na balança da existência.
Para mim, tocar na negatividade significa apenas ser realista, ver no mundo a sua face oculta e encará-la como natural e necessária.
16. jul, 2019
Post 122
11/08, 06h05, 5ª feira
Fico furioso quando descubro um bom tema de desenvolvimento a destempo e depois, passadas horas, ele esfuma-se como se nunca tivesse existido, deixando na boca o sabor amargo da sua perda irreparável.
Na manhã passada, durante o meu retomado exercício diário, deparei, como coelho saído de uma toca, desprevenido e súbito, e num flash de pensamento, com um tema apelativo e passível de óptimo desenvolvimento.
Agarro-o, exploro-o, saboreio as suas potencialidades e, ingenuamente - direi antes, estupidamente - encosto-o num canto da minha actividade mental, confiante que o encontraria com facilidade para o expor nestas ou noutras linhas, durante a noite.
Sou como aqueles idiotas, aqueles fracos de espírito que caem sempre no conto do vigário, nas falinhas mansas com que a procrastinação nos engana vezes e vezes sem conta. Já deveria saber (já estou farto de saber) que não posso confiar em mim próprio, ainda para mais com as minhas lacunas de memória.
Tudo perdido, mais um once in a life time que desperdicei e que nunca irei recuperar. Há mesmo alturas em que, embora se consiga recordar o tema esquecido, a chama, a centelha ígnea já lá não se encontra, e a exposição que teria sido brilhante, perdeu o fulgor, o orador transformou-se num gago.
4. jul, 2019
Post 121
1h17, 5ª feira, 04/07/19
Retomei as minhas caminhadas profilácticas, interrompidas em setembro do ano passado. Tenho feito 8 km por dia ou, no mínimo, 5,3 km, dependendo do cansaço ou de compromissos que eventualmente surjam.
Já não era sem tempo, pois a ferrugem nas articulações das pernas e a crescente gravidez estavam a tornar-se preocupantes, não apenas em termos de mobilidade e resistência mas também devido aos riscos acrescidos derivados da relação estreita entre o perímetro abdominal e a possibilidade de ocorrência de problemas vasculares graves que eu, com o historial que possuo, tenho que tentar, a todo o custo, evitar.
Não é bem verdade que só agora o tenha podido concretizar, pois até ao momento pouco me esforcei nesse sentido. É evidente que o bom tempo que se tem feito sentir propicia o incremento da actividade física; no entanto, poderia já ter optado por outras formas de contenção dos referidos problemas físicos, se para tal tivesse havido vontade.
Nas minhas caminhadas vieram à baila, novamente, questões existenciais: há dois dias, quando estava em pleno exercício, deparei com um carreiro de formigas, que evitei calcar. Tenho respeito por todas as formas de vida que não me ameacem, pelo menos directamente. As formigas estão nesse grupo. Poderei, eventual e involuntariamente, levar algumas para casa, junto com os meus pertences; nessa altura, e reparando que elas lá estão, é evidente que tentarei eliminá-las para que não me criem incómodos desnecessários (aparecer no açúcar, p. ex.); à parte essas situações pontuais, evito matá-las, pois, como todos os insectos e animais (e plantas) são seres necessários ao equilíbrio ecológico e, além do mais, desgosta-me fazê-lo. Voltando ao carreiro de formigas: ultrapassei-o, deixando-as indemnes, e segui o meu caminho. No entanto, como os olhos estavam ainda focados no chão, começo a ver formigas por todo o lado, isoladas ou em grupos. Não tive outro remédio(?) senão retirar o meu olhar do chão, meter os escrúpulos no bolso e seguir caminho, consciente de que a minha caminhada teria já matado e iria matar talvez centenas de formigas e estropiar outras tantas, que ficariam a sofrer (serão mesmo sencientes?) até que as suas funções vitais terminassem por falência, ou algum pé ou pneu de bicicleta misericordioso terminasse com a sua desdita.
A minha ética impele-me a poupar vidas, sejam elas de que espécie forem: por vezes, em casa, esforço-me por encaminhar quaisquer insectos que encontre – mesmo que sejam aranhas ou centopeias – para o exterior, onde não incomodarão. É evidente que, se não o puder fazer, sentir-me-ei na obrigação de os eliminar para que não causem dano ou incómodo a pessoas e bens. Do mesmo modo o farei com mosquitos, melgas e moscas pois, além de extremamente irritantes, podem constituir risco para a saúde, porque não só pousam em qualquer lado como a sua picada pode causar inflamações e contágios das mais variadas doenças.
Após esta exposição, reflito e questiono-me se a minha ética será assim tão ética: respeito outras vidas enquanto não me incomodam, o que significa que a ética é uma norma de conduta hipócrita, que se esquece de si própria a partir do momento em que nos “pisam os calos”. Significa, portanto, que a ética é interesseira e egoísta, que não tem ética, que a sua conduta como norma de conduta segue ao sabor da maré, é permeável e flexível, consoante os interesses do seu portador.
Ética, moral, carácter, etc., todas as pedras basilares do comportamento humano, não passam afinal de hipocrisias que servem unicamente os interesses “interesseiros” do Ego.
Afinal, perante semelhante conclusão, o que fazemos na vida é tirar os olhos do solo, deitando para trás das costas o quantas formigas vamos pisar, deitar para trás das costas a ética, a humanidade e o remorso, amordaçar a personalidade e a moral e seguir em frente, pois estas qualidades aqui referidas têm a memória curta, para que os nossos actos não nos pesem na consciência.
18. jun, 2019
Post 120
00h57, 18/06, 3ª feira
Finalmente! Acabei a minha análise crítica, para entregar na Faculdade. Tenho pela frente três meses de dolce studiare niente. Mais uma etapa vencida, pelo menos a avaliar pelo trabalho que apresentei. Posso agora fazer o que quiser: dedicar-me à cultura de alforrecas, aprender natação, escrever disparates com maior frequência ou simplesmente criar bolor, nada me prende.
Neste momento e desde há cerca de 5 anos a esta parte, estou sentado onde habitualmente escrevo: numa secretária virada para o meu mundo nocturno e semi-estático, decorado com uma paleta de carros estacionados e, na minha rectaguarda, no jardim, um grupo de patos que aqui habitualmente pernoita. São 4, às vezes 5 patos, e uma pata. Desconfio que os patos já sejam de 2ª geração e a pata sempre a mesma. Felizmente, muitos residentes já os aceitam como parte integrante do seu condomínio e há quem habitualmente lhes dê de comer. Tirando alguma sujidade, não incomodam ninguém e passaram já a fazer parte da paisagem.
Que mais dizer? Nada me ocorre, como nada me tem ocorrido ultimamente. Sinto-me um pouco frustrado (bastante) por esta falta de rasgo, de inspiração para escrever. Pergunto-me por vezes a que se deve isto, será simplesmente cansaço ou haverá outras causas ocultas que me começam a condicionar o raciocínio?
Tenho notado um quase imperceptível acréscimo de dificuldades de memória, principalmente aquela relacionada com os acontecimentos mais recentes. No entanto, curiosamente, à medida que esses acontecimentos se vão esvaindo no tempo, a sua memória torna-se mais vívida. Não falo na memória mais antiga – todos sabem que, mesmo os idosos, têm sólidas recordações de acontecimentos passados há décadas. Falo da memória recente, aquela da qual tenho frequentes dificuldades de rememoração: com o passar dos dias ela torna-se mais sólida ou, por outras palavras, a memória que quase se apagou, renasce dos mortos e consolida-se. Estranho, não é?
Já pensei em todas as causas possíveis, desde o cansaço de que acima falei, passando pela degenerescência ligada à idade, a Alzheimer, enfim… Tudo isto preocupa-me um bocado.
A este respeito, o meu barómetro tem sido, como fiz transparecer no início deste escrito, as crónicas que escrevo e que me apercebo não terem aquela sequência, raciocínio e profundidade de antanho.
Talvez eu esteja enganado e tudo não passe de uma exigência de qualidade que não tenho ou não consigo imprimir no que escrevo. No entanto, apercebo-me de que há mudanças de aptidão literária.
11. jun, 2019
Post 119
04h47, domingo, 09/06
Hoje foi noite do fogo de artifício no Senhor de Matosinhos e do encerramento do NOS Primavera Sound no Parque da Cidade, que ainda está nos últimos estertores.
Uff! Um mês atribulado. Não um mês de nome, mas de extensão, ou seja, 30 dias de confusão e barulho, a começar com a Queima das Fitas e a acabar agora. Continuarão a surgir outros eventos, mas ocorrem durante o dia e por isso já não me afectarão, ou quase.
Na imobilidade quase fotográfica das trevas envolventes, movem-se noctívagos isolados ou em pequenos grupos; assemelham-se àqueles cães vadios que por vezes deambulam por aqui, com particular incidência no período de cio das cadelas. Não que os primeiros tenham algo a ver com esses animais nem com o período fértil deles, mas apenas porque surgem igualmente em pequenos grupos, andando uns atrás dos outros ou a par, é simplesmente uma comparação cinésica, uma metáfora. Bem, julgo que é mais um mimetismo.
A aurora vai surgindo, mas continua a batida. Parece que ainda há resistentes que não querem ir-se embora. Pelo menos são mais calmos que os da Queima, ainda não me apercebi de nada anómalo, nem sequer qualquer vozearia fora do aceitável. Outro público…Ao referir-me à Queima em termos depreciativos, não estou verdadeiramente a depreciar essa juventude, embora muitos pouco tenham de louvável. Eu também, no “meu tempo”, fazia coisas pouco louváveis e antes de mim, gerações antes de mim, os jovens faziam coisas ainda menos louváveis. Já a minha avó falava das tropelias, por vezes mais que estúpidas: graves -, dos estudantes de Coimbra.
Em verdade, o que concede gravidade a certos actos, não é a liberdade (direi: libertinagem) e descaramento com que são praticados, é a desfaçatez com que são tolerados ou permitidos. A sociedade tornou-se demasiado tolerante à estupidez e inconsciência que existe e sempre existiu na juventude, mas que sempre foi mais ou menos reprimida e castigada com o intuito de evitar repercussões futuras, tanto a nível da sociedade como dos membros prevaricadores, os quais, a maioria das vezes, acabam por ser eles próprios a colher os frutos podres da sua imaturidade. Tal atitude de “travão” serve maioritariamente para fazê-los caír em si e evoluir moral e emocionalmente. Atualmente, os jovens até têm sorte, essas chamadas de atenção, antigamente, eram feitas à lambada (e não estou a falar da música). Resultava muito bem e ninguém era acusado de violência.
Hoje já não é assim e muitas vezes nem é por culpa dos educadores. Estes, a maioria das vezes, estão demasiado ocupados a trabalhar para sustentar a sua prole e com isso a vigilância esmorece, as próprias relações familiares têm-se vindo a diluír, esfumam-se, tornam-se tão diáfanas que por vezes desaparecem.
Os pais sabem cada vez menos o que os filhos fazem ou com quem andam. Esse poder foi-lhes retirado e substituído por um certo utilitarismo, ao estilo de John Stuart Mill, onde os progenitores trabalham para o bem-estar da sociedade, sacrificando os seus filhos ao bem comum e estragando-lhes o futuro e, por consequência, a estabilidade do próprio edifício social.
Estamos encurralados neste mundo que construímos e do qual só concebo uma fuga possível: para a frente, para um futuro com poucas hipóteses de futuro. Do modo como as coisas estão, nada vejo de promissor.
Enquanto há vida, há esperança; o pior, mesmo o pior, é se a esperança morre primeiro que a vida.
31. mai, 2019
Post 118
06h00, 5ª feira, 30 de Maio
Tenho 1 h e ½ para queimar, ou seja, neste espaço de tempo não tenho nada que fazer senão esperar que me venham substituir.
Podia estudar ou ler ou passear pelas redondezas, mas sinto-me no “dever” de dar continuidade às crónicas do ócio, que tenho ultimamente descuidado. Não porque desdenhe de o fazer; o tempo tem sido curto para elaborar o meu ensaio e a vontade de o fazer tem tido a mesma dimensão. Assim vai a vida até ao fim de Junho. A partir daí nada (?) me impede de reatar a escrita.
Hoje, (aparte o facto de a minha miopia ter vindo a regredir, embora o astigmatismo tenha aumentado ligeiramente), encaro o dia nascente com bons olhos. Poderá eventualmente revelar-se uma desilusão, mas para já não vislumbro nada de negativo.
Os dias quentes e solarengos voltaram como, até agora, todos os anos tem sucedido. No entanto, ainda virão algumas chuvas, como é expectável até à primeira quinzena de Julho. O que é certo é que, ultimamente e cada vez mais, torna-se difícil contar com qualquer estação do ano nos moldes tradicionais.
Nos últimos 50 anos (período que menciono por já ter consciência própria, maturidade mental que me permitem ter memórias minimamente fiáveis) têm-se alterado os marcos basilares do comportamento meteorológico. O tempo geralmente associado a uma dada estação do ano, já não é um dado adquirido.
Há “Niños”e “Niñas”, superfícies frontais e anticiclones desfasados, correntes marítimas desviadas, tornados e dilúvios inesperados, secas extremas, fenómenos totalmente descontrolados.
Mas serão estes fenómenos esporádicos, normais? Pelo que vejo, cada vez menos. Porém, tenho lido amiúde que sim, que tais anomalias sucedem com regularidade, embora delas não nos apercebamos.
A minha memória não me diz tal coisa, mas sei que, por vezes, somos enganados por falsas recordações, que nos baralham.
Pode ser que o rol das anomalias meteorológicas seja agora mais visível devido a uma cobertura mais mediática. A globalização dá-nos a possibilidade de estarmos mais completa e rapidamente informados dos males do mundo.
22. mai, 2019
Post 117
00h38, 4ª feira, 21 de Maio
Tenho muito, muito sono; só dormi esta tarde cerca de 3 horas. Bastaram 10 dias de férias para f…* tudo (é assim que aparece nos media, é assim que se usa escrever para não chocar as mentes mais sensíveis, como se a palavra substituída pela sua letra inicial e astericizada não invocasse nos tais sensíveis uma imagem mental correspondente à da palavra subentendida. Assim já não ofende, assim já é aceitável {!?}).
Não posso condenar esses fiscais da moral porque já fui um pouco assim, fruto de uma educação que, embora já decadente e pouco flexível, anda incutia determinados valores e comportamentos. Alguns eram talvez preconceituosos, outros de um pudor virginal e muitos, parados no tempo. No entanto, foram esses valores que me formaram, que me moldaram como sou.
Todo o indivíduo é educado de uma determinada maneira, não importa qual; o tempo, a experiência de vida, o meio social e a própria personalidade de base, fazem com que essa educação se vá transformando, para bem ou para mal. Não podemos afirmar que somos o que os nossos pais nos inculcaram; nós somos, na verdade, o que os nossos pais nos ensinaram, mas adulterado ou purificado, de acordo com os nossos próprios instintos. Essa é a grande diferença.
Um ser humano modelo pode ter vindo de uma família que nada tenha que se recomende, do mesmo modo que um “sola grossa” ou um escroque pode ter surgido no meio de uma família exemplar. Não somos, portanto, o que os nossos pais fizeram de nós, não existe determinismo que nos force a ser o que intimamente não somos. Parte depende de nós, da firmeza das nossas convicções e do íntimo da nossa alma.
Mas dizia eu, logo no início, que os meus ciclos circadianos estão afectados pelas curtas férias que tive o mês passado. É verdade, é assim todos os anos, o que me acarreta défices graves de sono, de descanso. Aliás, tenho um trabalho para apresentar na faculdade que, como se costumava dizer, me está a dar água pela barba (eis aqui uma expressão popular “sexista” que poderá pôr em pé os cabelos de muitos moralistas modernos, excepto, evidentemente, aqueles que são calvos).
Voltando à faculdade, dizia eu que estas circunstâncias estão a afectar fortemente a minha capacidade de raciocínio, o meu necessário relaxamento e a minha memória – essencial para tudo isto. Estou convencido que esta será a disciplina em que, até ao momento, terei classificação mais baixa.
Sinto-me mental e fisicamente de rastos, necessito de descanso – descanso a sério -, mas sei que é uma utopia.
Cá me vou aguentando, que remédio!
13. mai, 2019
Post 116
00h15, 12/05/19, 2ª feira
Livre de novo, ao fim de uma semana de barulho, álcool e vómito. Enfim, livre da Queima por mais um ano.
Sou aberto a muita coisa, mas há limites. Todos os têm, uns mais outros menos, outros se calhar nenhuns. Desses tenho pena pois fazem e farão coisas de que um dia se poderão arrepender.
Aliás, o tema da Praxe, da Queima na sua pior faceta, é recorrente nesta altura, ano após ano, em tudo o que é média, pelos incidentes e espectáculos lamentáveis a ela associados.
Notícias e artigos de opinião dos mais variados sectores políticos e sociais são, infelizmente, marcada e justificadamente negativos. Tratando-se de um tema que daria “pano para mangas” mas que, contudo, é extremamente desagradável e delicado, ponho aqui para já um ponto final.
Regresso, pois, à normalidade possível de um emprego nocturno, entremeado com uma salutar, embora custosa, actividade académica. Coragem, falta apenas um mês e meio para o término de mais um ano lectivo.
Não quero ser saudosista e melancólico, mas tenho de o ser: continuo a sentir o estrago que os cerca de 30 anos (uma vida!) de inactividade cultural a quase todos os níveis me provocou. É costume dizer-se que não se chora sobre leite derramado mas, no fundo, cá muito no fundo, chora-se sempre, embora o escondamos, mesmo de nós próprios. Como eu já disse uma vez: “adiante, que haverá sempre mais leite para derramar”.
Tenho o computador na mala, tenho três livros e apontamentos, mas não tenho força nem coragem para lhes pegar. Talvez ligue o computador, não com uma intenção de didatismo académico mas apenas para “folhear” a Internet, os mails ou ver apenas um filme. Caso contrário dá-me o sono e o resto da madrugada torna-se um inferno.
17. abr, 2019
Post 115
5h57, 3ª feira, 16/04/19
Noite longa, tão longa como qualquer outra, anterior ou vindoura; noite que custa a passar, tanto como qualquer outra, passada ou futura; noite escura, tanto como as que passaram ou hão de passar.
Porquê longa, custosa e escura? Que a faz ser assim? Uma noite é uma noite como qualquer outra noite, quer queiramos, quer não. O tempo é que no-la modifica, alonga, escurece, torna-a maçadora e custosa.
O Tempo! O tempo não existe, assim como a noite não existe nas diferentes gradações que lhe conferimos. E se assim é, como gradamos algo que não existe, utilizando outra inexistência? Como classificamos um produto dos nossos sentidos através de uma medida imensurável, de algo impalpável cuja extensão não existe ou, se existe, é infinitamente dúctil?
A noite não existe se o tempo não existir e ambos não existem se não existir observador e o observador não existe se não existirem circunstâncias assimiláveis ou mesuráveis pelos sentidos (para não referir que os sentidos não existem se não existir observador). Curiosamente, a mecânica quântica já comprovou algo que até agora pertencia à especulação filosófica e que é o Efeito Zeno Quântico, que tem, de certo modo, a ver com a Experiência do Gato de Schroeder.
23h57, 3ª feira, 16/04/19
Estou cansado. Não devia, após uma tarde de sono. Talvez tivesse sido insuficiente, talvez tivesse a ver com os ciclos circadianos, talvez não tenha tido a ver com nada em especial. Certo é que estou cansado.
Escrevo com exactamente 18 horas de intervalo. Desci neste interregno, à terra, à materialidade. Estava no domínio da filosofia, do virtual, do pensamento; de vez em quando é necessário alternar entre o modo mental e o modo físico. Nem só de pão vive o homem, mas filosofar é necessário como de pão para a boca, a bem do equilíbrio, da homeostasia.
Somos o que comemos, mas também somos o que pensamos; o corpo ressente-se do stress, dos sentimentos negativos, da falta de descanso intelectual. Por vezes estamos doentes porque a nossa mente está doente, porque os pensamentos são deprimentes, porque os problemas surgem e agarram-se à mente como rémoras a um tubarão.
Acredito na meditação, no Reiki, no Ioga, mas não os pratico. Falta de tempo, de oportunidade? Acho que é apenas falta de vontade, o “não se querer dar ao trabalho” típico de quem procura um pretexto para justificar as suas maleitas e a sua preguiça.
Esbofeteio-me virtualmente, à boa maneira de Jean-Paul Sartre, pois por vezes é necessário fazermo-nos isso, a bem da coerência e da saúde mental. Somos juízes extremamente parciais dos nossos comportamentos porque raramente temos a coragem de nos olharmos ao espelho – no sentido figurado, evidentemente. Que moral teremos, como poderemos avaliar os outros de cabeça levantada, se não olharmos primeiro para nós próprios?
Blá, blá, blá, que lindas palavras que me saem da mente, mas que, passada a ênfase do momento, caem no meu próprio saco roto! Bela autocrítica que me sai da boca para fora! E acções, e compromissos com o que defendo? Pura demagogia para me enganar, papalvo que sou! Que somos! Todos nós, a seu modo, somos demagogos e tansos, caímos no nosso próprio conto do vigário e acreditamos sempre que o fazemos pela última vez.
Cordeiros hipócritas em pele de lobo e lobos escondidos em pele de cordeiro.
10. abr, 2019
Post 114
00h11, 10/03/19, 4ª feira
Estou a fazer uma recensão crítica sobre um capítulo de uma obra de Plotino, um filósofo neoplatónico do séc. III. É um tratado sobre o Belo, entendido como bom, positivo.
Que lindo serviço, estou bem arranjado, estou metido numa bela alhada. Espero conseguir levar a bom porto esta empreitada, a bem da minha prestação académica. Mas, como não há bela sem senão, tenho perdido uns bons pares de horas de sono num esforço para que tudo saia bem. Estou convencido de que farei um belo trabalho.
Pelo parágrafo anterior, nota-se bem a importância que as palavras, os conceitos de Belo e Bom como sinónimos, têm na nossa existência. Curiosamente, a maior parte das frases de cariz negativo utiliza palavras de categoria contrária para hiperbolizar os actos ou conceitos que focam, ou seja, as noções de belo, bom, justo, claro, etc., são utilizadas, não apenas para significar o que realmente significam, mas também para reforçar elocuções negativas.
Não tem lógica ou não soa bem dizer (reportando-me aos exemplos acima): que feio serviço, estou mal desarranjado, estou metido numa feia simplicidade, não há feia sem senão, perdi uns maus pares de horas. Deste modo, ao hiperbolizar todas essas expressões negativas por intermédio de conceitos positivos, estamos simplesmente a utilizar a ironia. Deduzo daí que, mesmo os mais bonzinhos dentre nós são, afinal, mauzinhos disfarçados, ou seja, a ironia é uma figura de estilo que utilizamos com um sentido mais ou menos explícito de gozo, de crítica, de censura, de desvalorização. Outros ainda mais mauzinhos serão ao utilizar o sarcasmo, que é uma ironia mais explicitamente maldosa. Ao fim e ao cabo, os bonzinhos utilizam também a ironia, o que indicia a latência de um lado negro indelével na espécie humana.
Tomos somos maldosos no mais íntimo da nossa alma, todos temos o mal, o mau, o feio, o negativo, num quartinho fechado, algures dentro de nós. Porém, a porta que o encerra tem frinchas, e alguma feiura e negatividade extravasam por aí.
Não há santos, há apenas seres humanos que conseguem tapar melhor as frinchas da porta, contendo sofrívelmente a sua faceta obscura
9. abr, 2019
Post 113
06h57, 08/04/19, 2ª feira
Ora cá temos um “inverno” tímida e tardiamente assumido. Parece que S. Pedro, Zeus, qualquer dos múltiplos deuses responsáveis pela chuva, como Téfnis (egípcia, filha de Ra), Hoder (filho de Odim), Chaac (Maia) ou, para os ateus, a Meteorologia, têm andado a beber uns copos e esquecem-se de mandar chuva no seu devido tempo e lugar. Poderá também ser um problema logístico, de distribuição. Ou os funcionários encarregados da chuva serem subcontratados e estarem-se marimbando para o serviço.
Bom, seja como for, ainda estamos a tempo de levar com uma chuvinha. Diz o velho ditado: “Abril, águas mil…”.
01h52, 09/04/19, 3ª feira
Parece que a minha “reclamação” chegou a quem de direito, pois esta noite está a chover mais um bocadinho do que ontem. Ainda não é significativo, mas demos o volume pluvial por suficiente, não vá algum responsável começar a ficar demasiado zeloso.
Pois é, nunca mais vem a reforma para eu poder começar a apodrecer na inacção, refastelado no sofá ou a jogar as cartas com velhos batoteiros, sabidos e barulhentos.
Nunca! Alapar-me na poltrona, ainda vá que não vá, de vez em quando. Estupidificar-me a jogar às cartas é que não. Aqui atrasado, emiti a minha opinião sobre isso: detesto perder tempo com tamanhas futilidades e semelhantes ambientes.
Se fosse xadrez, ainda pensaria duas vezes. Poderá haver outros, mas este jogo é o único que eu conheço que oleia o cérebro, pela complexidade do raciocínio dedutivo necessária. Falta é parceiros, seria uma boa opção, mas esporádicamente, para evitar uma insalubre cultura do sofá. Conhecer novas terras (se houver dinheiro para isso), ler muito (imprescindível), andar q.b., serão essas as minhas prioridades no pós-laboral definitivo. Um hobby para os dias em que não se sai de casa, também seria salutar e aconselhável.
Tudo isto, claro, se lá conseguir chegar. Se não conseguir, só me restará permanecer eternamente deitado ou esfumar-me por aí e esperar que alguém me sacuda algures o pó. Sim, porque a minha família não é daquelas de ter esqueletos no armário; a não ser que fosse para um dia ensinar anatomia aos meus (para já) hipotéticos netos em idade escolar: “Ora olha aqui para o teu avô: isto é a tíbia, aqui o perónio, estas são as….. etc, etc.
Hmmm…….não me parece.
18. mar, 2019
Post 112
20h49, 17/03, domingo
Tenho uma noite perante mim. Miro e remiro essa entidade obscura, cuja ausência de luz em tempos jovens me atemorizava, me fazia ver os demónios dos meus medos mais íntimos e irracionais. É na infância que nos é impresso esse cunho de temor, muitas vezes de terror insano, indiscritível e injustificado. Freud, tem piedade de nós e faz-nos ver entre as trevas que nos rodeiam!
Passo à frente, já não me incomoda, os pesadelos das tenras idades há muito que desapareceram.
O que me aborrece hoje em dia é a sensação de semi-inutilidade que o meu trabalho, nestas particulares circunstâncias, transmite. Não há muitas hipóteses de criatividade numa tarefa que exige simultaneamente vigília e inacção, onde a concentração é constantemente interrompida por pequenos, embora necessários, arroubos de vigilância, próprios da actividade que exerço.
Em suma, o “desligar do mundo” nunca acontece aqui, o empenho no estudo e investigação é sobremaneira prejudicado por estes altos e baixos da atenção.
Há que viver de acordo com as nossas possibilidades, o que nem sempre é fácil e quase nunca satisfatório.
Neste sentido somos, infelizmente, frustrados, incompletos, seres que nunca conseguimos atingir o nosso ideal ideal (passe a redundância). Existe uma tensão permanente entre a frustração e a completude, um ondear raiano entre a satisfação e o desapontamento, mas que é, simultaneamente, o tempero que necessitamos para dar algum sentido à existência – o comummente chamado sal da vida.
Este jogo de tensões mantém-nos em luta permanente com a negatividade, a frustração, a inércia. Desistir do combate seria morrer em vida, numa existência vegetativa, inútil, de morte cerebral sem morte cerebral. Que o teísmo agnóstico nos livre de semelhante contingência!
15. mar, 2019
Post 111
19h03, 6ª feira, 19/03
Não era minha intenção repisar temas funéreos mas, por desafortunada coincidência, o meu gato, César, que estava internado durante o fim-de-semana numa unidade veterinária devido a problemas renais que necessitavam de tratamento urgente, faleceu dia 10, de madrugada, quiçá durante o meu episódio de escrita. Tal acontecimento causou perplexidade e dor, por inesperado, pois tratava-se de um felino ainda jovem, com apenas 10 anos.
Custa. A afeição entranha-se e torna-se muito difícil de extirpar. Resta-nos a triste e, em simultâneo, aliviante certeza de que nada é eterno, nem mesmo as emoções. A médio prazo a mágoa atenuar-se-á e cederá lugar a uma recordação melancólica, esfumada no passado. Felizmente é assim; doutro modo sucumbiríamos, asfixiados pelo “peso” dos nossos mortos.
O condigno epitáfio foi escrito, prossigamos.
10. mar, 2019
Post 110
04h03, 4ªfeira, 27/02/19
Hoje estou a escrever para não adormecer: tive um dia complicado, com problemas que não são para aqui chamados, e só dormi 2 horas, contra o meu costume de dormir, pelo menos, 6 a 7 horas.
Embora tenha uma consulta de manhã, conto, após a referida, compensar esta vigília de modo minimamente satisfatório. Amanhã (5ª feira) recomeçam os meus seminários de mestrado e devo descansar para poder dar o rendimento necessário para a prossecução dos estudos.
Mais uma vez, durante estes dias em que não escrevi, tive magníficos pensamentos, ideias merecedoras de interessante e prometedor desenvolvimento, observações e constatações extraordinárias que não pude aproveitar como mereciam (a meu ver, pois tudo é relativo) por não me encontrar nas condições requeridas para as recolher ou no momento oportuno para o fazer, para registá-las, materializá-las no papel ou no computador para tratamento e memória futura.
Pérolas perdidas, espalhadas, esquecidas pela memória. A maioria surge naquele estado meio de vigília, meio de sono, onde nos encontramos suficientemente acordados para ter consciência, mas insuficientemente despertos para nos mexermos; aí surgem as reflexões mais claras, mais originais,
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05h00, 3ª feira, 05/03/19
Afinal tive de interromper o fio dos pensamentos que estava a começar a desenvolver na semana passada, dando razão ao meu lamento sobre a dificuldade ou impossibilidade de (d)escrever o íntimo, o inner self, em tempo útil. São as tais pérolas perdidas…
Agora, com o início de um novo semestre e a necessária focalização nos temas veiculados nos seminários, tornar-se-á difícil retomar o ritmo que já estava a tentar imprimir às minhas crónicas; fá-lo-ei como antigamente, ou seja, sempre que o tempo mo permita e a predisposição me impila (curiosa e pouco utilizada conjugação do verbo impelir, mais concretamente, o presente do conjuntivo. É correcta mas tem uma conotação que poderá parecer quase pornográfica).
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04h22, domingo, 10/03/19
Pelo acima exposto, disperso temporalmente e fragmentado como um vestígio arqueológico, pode-se constatar que a minha projecção mental feita grafia constitui, feliz ou infelizmente, um patchwork nem sempre visivelmente lógico (pelo menos na aparência).
Porém essa lógica existe e, tal qual o exemplo do patchwork que referi, pode ser entendida numa macro-escala, ou seja, apenas fará sentido na visão da sua totalidade relativa. Melhor dizendo, é necessário um certo distanciamento para obter uma visão de conjunto e que é, entenda-se, todo o leque existencial e conceptual reflectido nos testemunhos, aqui gravados, dos últimos quase 7 anos e que, no fundo, abarcam 6 décadas de vivências, sucessos, fracassos e outras circunstâncias mais ou menos neutras ou mais ou menos relevantes.
O leitor deste tipo de escrita autobiográfica e figurativa tem que investir-se filósofo, psicólogo, tornar-se arqueólogo e juntar os fragmentos para “adivinhar” o todo ou a parte que lhe permitam ter a percepção do que realmente é dito, numa construção que nunca terá fim, mas que será interrompida algures no porvir. É, digamos, um continuum sem continuum, uma “obra de Santa Engrácia” que, ao invés desta, nunca terá conclusão.
(E, de novo, veladamente, subreptíciamente, retorno ao meu tema preferido que, para não me repetir, chamarei eufemisticamente decesso ou passamento).
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27. jan, 2019
Post 109
00h25, domingo, 27/01
Nem parece Inverno, a temperatura está demasiado “amena” para esta época do ano, ou seja, há uma ausência atípica do frio espectável num mês de Janeiro, assim como também não há chuva relevante. Nota-se que o tempo está preocupantemente mudado.
Vejo passar o tempo (cronológico) e comparo-o a um registo fotográfico; é como se estivéssemos permanentemente a observar uma fotografia, ou melhor dizendo, uma sequência de fotografias, sempre no pretérito.
Sim, sei que, por natureza, as fotos são sempre registos de algo que já sucedeu, nem que apenas “mostrem” o ar. Uma foto tirada por acidente, a um muro, ao chão, para o céu, mostra esse muro, esse chão e esse céu num dado momento do passado, é irrepetível.
Outro registo, mesmo respeitando os mesmos parâmetros, mostra outro passado, nunca o mesmo. Se tirarmos agora um auto-retrato e o visualizarmos imediatamente, mesmo assim ver-nos-emos como éramos e nunca como somos.
É costume dizer-se que o tempo voa, passa rápido. Porém também o podemos sentir como algo que passa muito lentamente, o que não nos permite observar as diferenças, de forma significativa, no nosso dia-a-dia. O que nos dá a visão do passado é o afastamento temporal, reflectido na forma física e nos faz ver no “agora” o “agora” do passado.
Bem, isto está a ficar muito complicado, o nível de abstracção está-se a tornar demasiado complexo para poder ser “traduzido” com recurso a palavras. É, pois, conveniente mudar de assunto para algo que seja minimamente tradutível.
Pensando melhor, acho que fico por aqui.
17. jan, 2019
Post 108
2h43, 5º feira, 17/01
Faltam 5 horas e 17 minutos para a minha “liberdade condicional” de todas as semanas. Como já disse há dias, não sei se é óptimo ou terrível.
O tempo, agora, passa com uma velocidade assustadora, como passaria um TGV a um contemporâneo da Época Vitoriana e, a médio ou longo prazo (não muito longo), mudarei de profissão, com um lugar garantido na produção cerâmica: a fazer tijolo.
Será bom, será mau? Estou simultaneamente curioso e horrorizado com a perspectiva. Curioso por saber como é o “outro lado”; horrorizado ou, melhor dizendo, aterrorizado, pela mesma razão. É uma dicotomia muito interessante, mas muito desconfortável, e não tem nada a ver com a visão ou o dogma religioso, que é um bicho-papão com que nos sugestionaram desde pequeninos.
Aceitarei muito mais facilmente uma teoria budista do que o dogma cristão do céu e do inferno, não esquecendo o limbo ou purgatório, ou prisão preventiva ou alfândega, ou como lhe queiram chamar. Simplesmente não faz sentido.
Em tempos veiculei aqui a ideia da parvoíce total que nos é impingida há milénios, primeiro pelos judeus, depois pelos cristãos e, no fundo, por todas ou quase todas as religiões, de que há um castigo horrendo, inominável e eterno, assim como uma recompensa maravilhosa, um paraíso, por vezes misógino, como é o dos muçulmanos, tudo em directa consequência da nossa performance terrena.
Há, pois, um Deus premiador/castigador que, partindo do princípio de que somos todos uma parte Sua e a Ele voltaremos, é simultaneamente sádico e masoquista, pois inflige a nós, suas partes integrantes, castigos impossíveis de descrever, e para todo o sempre.
Aceito muito mais facilmente a teoria budista ou a espírita da reincarnação, do carma ou lei da causa e efeito.
Essas farão mais sentido: voltamos a encarnar para aprender o que falhámos e, eventualmente, para sofrer pelo que fizemos sofrer.
A outra teoria, a dos ateus, para mim também não faz sentido, pois seria incongruente virmos à Terra só para a melhorarmos (ou piorarmos) para as gerações vindouras. Qual seria o sentido “dessa” vida? Nenhum. Isso significaria evoluirmos em direcção a quê e para quê?
As nossas vidas são regidas por recompensas, quer queiramos, quer não, consciente ou inconscientemente. Então, qual seria a nossa recompensa? Morrer e acabou! Pronto, está dito! E legarmos aos nossos filhos um mundo onde eles possam morrer melhor. E guerras para que as gerações vindouras possam morrer melhor e mais cedo.
É este o sentido da vida? Curtir umas festas, sofrer doenças e desgostos, fazer filhos perecíveis como nós, iludindo-os com a crescente esperança média de vida e, finalmente, morrer sem saber quando? Essa eu não compro.
15. jan, 2019
Post 107
1h37, 3ª feira, 15/01
E cá estou de novo a escrever, ainda nem sei sobre o quê, mas é sempre assim. O acto de escrita, se for muito pensado, perde a sua originalidade, a sua simplicidade, e passa, ou pode passar a ser, um acto rebuscado, onde o que se escreve reflecte quase sempre um não sei quê de artificialidade. É evidente que excluo aqueles actos de escrita cujo fim é premeditado, ou por se tratar de algo temático, ou pela imposição de circunstâncias que exijam esse tipo de atitude.
Continuo sem saber, há dias assim.
Ouço Chopin no meu telemóvel, em altavoz (mais propriamente em altamúsica). Quando faço as minhas rondas, costumo ouvir uma selecção de músicas que baixei do YouTube, geralmente clássicas. Tenho outras – rock, pop, disco, etc – quase todas dos anos 80 e 90 e que, por qualquer razão, merecem presença no meu Top auditivo, tudo depende da disposição e das circunstâncias. Mas do que eu mais gosto é, sem sombra de dúvida, a música clássica. Talvez seja por influência da minha infância, onde a minha tia pianista marcou forte presença, física, emocional e musicalmente. Dela herdei esse prazer.
Ainda criança, tentou (assim como aos meus irmãos mais velhos) ensinar-me a tocar piano, mas sem resultado; faltava-me a costela da música, que os genes não legaram, circunstância de que tenho muita pena.
Se não ficou o jeito, pelo menos o gosto, louvado seja Apolo, o deus da Música, e Euterpe, a musa dessa sublime arte.
Há quem já nasça com dons específicos, mais ou menos marcados; outros, como eu, nunca souberam verdadeiramente quais as suas aptidões naturais (se as há ou houve) e como desenvolvê-las. Sim, porque nem sempre são evidentes as capacidades de cada um, por vezes são outros que no-las descobrem. Infelizmente, no meu caso, nem uma coisa nem outra. Por isso, toda a minha vida pratiquei profissões ou actividades nas quais não me revia e que acabaram por se revelar, com o tempo, medíocres ou pouco exitosas.
Culpa minha? Talvez. Provavelmente não soube escavar na direcção certa, falhei o filão que me levaria, se não ao sucesso, pelo menos a uma vida mais completa, mais feliz. Dizem que nunca é tarde e eu acredito, mas os meus 61 anos não são o argumento mais apelativo para o sucesso. Contudo, mantenho a esperança naquela tal revelação epifânica que todos esperamos pois, como se costuma dizer, a esperança é a última a morrer (Olha! Fiz um verso!).
14. jan, 2019
Post 106
06h19, 2ª feira, 14/01
Hoje, contra meu costume, estou a escrever estas linhas bastante tarde. Bem, bastante tarde para mim, para o comum dos mortais será bastante cedo, eventualmente hora de levantar ou perto disso.
Não interessa, não vou escrever resmas de páginas só para falar no sexo dos anjos que, a fazer fé num dogma religioso que diz que o que está em cima é como o que está em baixo, deve ser constituído pelos dois sexos e, novamente fazendo valer esta badalada máxima, haverá outros mais ambíguos. Teremos, portanto, anjos e anjas, anjos transexuais, bi, etc., e não falemos mais nisso.
Em breve notar-se-ão pálidas nuances de vermelho, laranja e amarelo, a leste, prenúncio de mais uma radiosa e fria aurora, emoldurada pelo crescente azular do céu, pontilhada aqui e ali por tímidas nuvens e envergonhadas estrelas e planetas que teimam em não deixar o firmamento. As aves iniciam suavemente a sua sinfonia, como se não quisessem perturbar a calmaria do estertor da noite. Em breve emitirão os seus pios e gorjeios a plenos e miniaturais pulmões, como se contentes pelo nascer do dia.
Paralisei. A caneta, levemente afastada do papel, aguarda pacientemente a ordem do reinício. Não sei que escrever. E, contudo, há um mundo inteiro fora de mim, um mundo do qual, por mais que eu viva, não conhecerei nem a centésima parte e sobre o qual há um inesgotável manancial de histórias, de contos, de tradições, de usos e costumes, de maravilhas e tragédias, sobre que escrever. No entanto, nada me salta à vista ou à memória.
Saltar, salta. Porém a mente (a minha, a nossa) escorraça esses pensamentos por os considerar demasiado corriqueiros, não importantes, vulgares, indignos da tinta que se gastaria ou do papel.
Mas são pensamentos úteis, são pensamentos escrevíveis, são a massa que molda os sonhos, a história, as vivências do dia-a-dia. Somos demasiado elitistas para os utilizar, não são interessantes, não são grandiloquentes, não interessam a ninguém. E, contudo, são esses pequenos, insignificantes pensamentos, que moldam grandiosas histórias. Há muitos grandes escritores que usam pequenos pensamentos. Aliás, são a grande maioria. São os alquimistas das palavras, aqueles que transformam o chumbo em ouro, os desprezados e minimalistas produtos da nossa mente em obras deleitosas e memoráveis.
6. jan, 2019
Post 105
23h52, sábado, 05/01
A última vez que “croniquei” foi no mês passado e no ano transacto. Não posso dizer que não tenho tido tempo, apenas não estive para aí virado.
Certo é também que não tenho conseguido gerir o meu tempo livre, tenho utilizado os meus períodos de lazer de uma forma stressada, ou seja, querendo fazer tudo ao mesmo tempo ou, pelo contrário, entrando em modo de dolce fare niente, o que apenas me cria mais ansiedade. No fundo, quero optimizar o tempo de uma maneira minimamente útil ou criativa mas não o consigo fazer, não encontro energia suficiente para rodar o motor de arranque.
Tenho que me actualizar em mecânica de automóveis, pois parece que agora já não existe motor de arranque, tudo é regido pela centralina, que é uma espécie de domótica para carros. Novos tempos, novos processos, novas palavras.
Bem, como toda a gente, em todos os inícios de ano, prometi a mim próprio que a partir de agora vai ser tudo diferente. E, como toda a gente, em todos os inícios de ano, chegarei novamente à conclusão, incessantemente repetida e experienciada, de que de boas intenções está o inferno cheio.
No entanto, a chispa pode saltar um dia, quando menos se espere. Foi assim que eu deixei de fumar, quando a força de vontade superou o vício, quando a dinâmica superou a inércia.
Não estou feliz com o que sou, nem como sou ou como ajo, nem sequer estou conformado. No entanto, aceito-me como um ser em progressão, como uma consciência que toma consciência ( passe a expressão) de uma mudança positiva – embora irritantemente lenta – da maneira de pensar e agir.
Se eu vivesse mais algumas centenas de anos, transformar-me-ia num santo, disso não tenho muitas dúvidas. O mal é que, com o tempo limitado que usufruímos nesta vida terrena, as tais boas intenções raramente chegam à prática.
Admiro aqueles que têm vontade férrea, embora tal possa constituir um perigo a longo prazo, pois essa postura poder-se-á transformar, ou em despotismo ou em ideias fixas, como não é raro suceder em pessoas avançadas na idade. Aqui, a tal vontade férrea transforma-se, com o envelhecimento e consequente cristalização da forma de pensar, na certeza inabalável de que apenas está correcto aquilo que entendemos que está correcto. Tive muitos exemplos disso na família e afins.
O problema é que deveríamos tomar esses exemplos como lições mas, à medida que caminhamos para anciães, essa consciência da fossilização do pensamento vai-se desvanecendo e acabamos por tornar-nos naquilo que hoje criticamos.
Há uma canção de Miguel Araújo (Dª Laura) que é o exemplo perfeito daquilo que eu quero dizer (link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=UImEBsYTOm4. também está na nova página que criei - Videos).
Mas, como diria o historiador Joel Cleto, no Porto Canal, são outros factos, outras histórias, seguramente outros posts do pseudo-blog.
25. dez, 2018
Post 104
25/12/18, 3ª feira, 01h15
Natal. Noite. Nostalgia.
Lembranças de Dickens. Scrooge e os contos da Disney. Bolo-rei com brinde, as rabanadas, os bolinhos de abóbora e de cenoura, a espera ansiosa pela manhã, pelas prendas, pelos doces.
Já se passaram mais de 50 anos desde que comecei a questionar a existência desse tal de Menino Jesus (uma espécie de Pai Natal menos comercial e de formato católico), que deixava os presentes durante a noite. Continuo, no entanto, com saudades dessa época longínqua de cândida e feliz ilusão.
Tempo de descoberta e de magia, de aprendizagem e desengano, simultâneamente triste e venturosa. Não quero entrar no estereótipo do “quem me dera voltar atrás”, mas não resisto e penso: quem me dera voltar atrás, para essa inocência pura, crédula, irresponsável e resiliente.
Mas já sei que, no fundo, ninguém quer voltar atrás (nem eu), mesmo com o passado, passado. Ninguém quer reviver a inteligência imatura de uma criança; isso é o que sai da boca para fora, como se costuma dizer. Quem aceitaria agora voltar a esse desenvolvimento mental embrionário para (re)viver fugazes momentos de felicidade sob o olhar limitado de um intelecto em formação? Ninguém.
Essa ideia é muito linda de um ponto de vista romântico, mas não resiste a uma análise racional. As vivências são para ser vividas uma vez, se assim me posso exprimir. Não podem nem devem existir repetições, pois é assim que a vida funciona: através de experiências singulares que tornam a própria vida, ela também, única e, por isso, merecedora de ser vivida, mau grado alguns episódios negativos, pontuais, mas inevitáveis.
19. dez, 2018
Post 103
23h40, 3ª feira, 18 de dezembro
Tenho pela frente uma noite de trabalho. Vou, como quase sempre, utilizá-la para estudar, pois em janeiro tenho um resumo de leitura para apresentar na faculdade.
É deveras curioso o facto de que, quanto mais evoluído é o ser humano, mais questões se propõe, mais teorias apresenta, mais sugestões de conhecimento expõe à consideração dos seus pares. Pergunto-me a que ponto, nalguns aspectos que adiante focarei, tal é benéfico, tal é necessário ao desenvolvimento intelectual da espécie.
Somos seres muito complicados; será útil complicar ainda mais uma existência, já de si, complicada? Por vezes questiono o objectivo de algumas propostas de conhecimento, de algumas teorias, de alguns temas de investigação, e não consigo vê-los senão como um simples exercício mental que, de benéfico, de útil, apenas será o de “muscular” a mente.
Se eu expressasse publicamente o que aqui confio, seria por certo apelidado de inculto, ignorante e outros epítetos igualmente abonatórios da minha capacidade intelectual. Mas não seria possível que muitos me dessem razão, apenas amordaçados pelo receio de ostracização, de lapidação às mãos dos seus pares ou outros congéneres considerados superiores?
Cada nova forma de pensamento emergente é uma invenção. No bom ou no mau sentido. Haverá quem o faça na convicção de que isso irá contribuir para o desenvolvimento intelectual da humanidade – pelo menos o de alguns dos seus elementos; outros fá-lo-ão como forma de se auto-proporem a um nível superior, a uma deificação desejada, por reconhecimento das suas capacidades pelos demais académicos.
A esse respeito, abstenho-me de comentários. Apenas fico confuso e questiono certas derivações teóricas, das quais não vislumbro o interesse prático, nem a curto, nem a médio ou longo prazo.
Talvez um dia eu próprio elabore raciocínios similares, talvez um dia eu renegue ou ignore o que agora defendo e, se tal vier a suceder, certamente o farei com a convicção da sua utilidade e da lógica do que defendo.
Pode ser que ainda não tenha recebido “luz” suficiente e aguarde por uma fulguração epifânica que me desvele os cantos obscuros do meu espírito e a razão de algumas complicadas criações intelectuais.
Então aí eu, outrora descrente, poderei igualmente criar algo, também aparentemente inútil.
9. dez, 2018
Post 102
00h49, domingo, 09/12
Estou cheio de sono e não sei o que hei de escrever. Contudo, apetece-me fazê-lo.
Hoje fui a um funeral em Vila Pouca de Aguiar. É daqueles funerais em que é a primeira vez que vemos a pessoa que está dentro do caixão, nunca tivemos contacto com ela em vida, nada de amizade ou outros laços, um corpo neutro em que inevitavelmente nos espelhamos, independentemente do sexo ou da idade. Nem o nome dela eu sabia!
Mas quando olhamos para aquela forma que ali jaz inerte, vemo-nos no seu lugar, a ser velados, chorados e esquecidos. Tornamo-nos um pedaço de carne sem valor que tem de ser enterrado o mais depressa possível, antes que apodreça e cheire mal, antes que o espelho se deforme e nos horrorize com a sua/nossa aparência, com a sua/nossa condição de objecto perecível e degradado. Lixo com ele, enterra-se que já não presta! Cumprido ou não o seu papel, não importa, não é reutilizável.
Quando contemplo um corpo morto, estou a mirar-me, a ver-me no seu lugar, como a uma peça que visto numa loja de roupa. Acho que inconscientemente estou a preparar-me para um dia ocupar esse lugar, imóvel e horizontal, como compete a um defunto que se preze.
Depois? Incógnita! As nossas crenças, as nossas opiniões, não significam necessariamente a verdade, que poderá mesmo ultrapassar o inimaginável, porque ninguém voltou para contar a história, nem mesmo o tão falado e mítico Lázaro.
Ninguém nos consegue dar respostas, só suposições ou teorias fantasiosas. Morrer é (fazendo um paralelo com a cosmogonia) entrar num buraco negro sem saber o que acontece do outro lado. Seja o que for, pode não ser o fim, mas é seguramente o fim de uma etapa, o abrir de uma porta que dá para o desconhecido, para uma infinidade de possibilidades ou para o nada.
Não tenho mesmo emenda! Voltei pela enésima vez a abordar o meu tema favorito, a minha cisma de estimação – a morte. Não consigo evitá-lo, penso nela porque ao fazê-lo, não estou a pensar nos outros, mas em mim próprio, a questionar a minha própria existência.
Porquê? Porque tenho memórias e porque morrer é perder as memórias por completo, e isso é deixar de existir. Como escrevi há uns meses, não ter memórias é não pertencer a nenhum universo, a nenhuma forma, nem mesmo a nenhum nada. não ter memórias é o zero mais que absoluto.
25. nov, 2018
Post 101
25/11/18, domingo, 01h04
Falta um mês para o Natal, uma data que, para mim, já perdeu muito do seu significado.
Há 40 anos…. Bem, digamos 30 anos, e isolando a conotação que a data tem nos termos da religião em que fui educado e que nunca verdadeiramente me convenceu, os natais eram uma época alegre, de reencontro familiar e de amizade. Enfim, um período que as pessoas aguardavam com impaciência, com expectativa, pelas mais diversas razões: as crianças, impacientes pelas prendas, pelos doces e por toda aquela azáfama bem-humorada que entretinha os mais velhos – as mães principalmente, e as avós; os adultos, que anteviam com satisfação a reunião dos clãs e as indispensáveis visitas e votos dos amigos e respectivos retornos de cortesia e amizade. Os velhos, talvez mais do que ninguém, porque viam reunida a família, os descendentes, afastados ao longo dos anos pela canseira da sobrevivência e pelo apelo atávico de, eles próprios, criarem novas raízes.
Hoje os tempos são diferentes. Perdeu-se ou tem-se vindo a perder a tradição, os núcleos familiares vão-se fragmentando e afastando cada vez mais, por imposições laborais ou mesmo por perda das noções seculares da família.
Algumas alterações aceito, visto compreender que existe, tem de existir, uma constante evolução e a nossa “formatação” já se encontrar obsoleta; outras não consigo aceitar porque subvertem os ditames do senso comum. Mas destas nem vale a pena falar.
Lembro-me quando as minhas filhas eram pequeninas e desdobrávamo-nos em esforços para que tudo corresse bem, para as fazer felizes, especialmente nesse período. Inventávamos mil e uma maneiras de receber o Pai Natal e as prendas. Cheguei a atar uma campainha, com um fino fio de nylon a um poste a cerca de 50/70 metros de casa, para anunciar a presença sempre misteriosa do velhinho das barbas brancas lá em casa. Tínhamos vindo de passar a consoada em casa da minha mãe e dirigíamo-nos para a nossa, a fim de cumprir o sagrado ritual da aparição e abertura das prendas (antecipadamente espalhadas à beira da árvore, às escondidas das pequenas).
Antes de chegarmos, puxei o fio para que ela soasse, fazendo parecer à mente ingénua da miúda (neste caso, a mais nova) que era o Pai Natal quem lá estava. Lógico que, quando entrámos, e para afastar suspeitas e manter a magia por mais um ano, corremos a casa toda com ela para comprovar que ninguém estava e todas as saídas estavam fechadas. Entretanto, alguém fez desaparecer o “móbil do crime”.
Bons tempos esses em que “mentíamos” descaradamente às crianças para as fazer felizes e dar uma aura de mistério ao invisível “fornecedor” das prendas.
Depois era o convívio, os comes e bebes (outra vez) festivos e despreocupados, com a família e um ou outro amigo que eventualmente convidássemos. O dia seguinte era descanso sagrado, para curar a ressaca e arrumar toda a confusão e começar a pensar noutra, a do Ano Novo.
No meu caso, como atrás referi, os tempos agora são outros, as datas festivas são mais comerciais, já ninguém tem tempo nem paciência para todos aqueles preparativos de antanho. Os mais novos ainda vão fazendo alguma coisa, mas o cariz íntimo de antigamente, a ligação forte com as raízes vai-se perdendo a pouco e pouco, os conceitos mudam, o dinheiro agora escasseia mais.
Há que aceitar a lei de Lavoisier: “na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, infelizmente nem sempre para melhor.
(Será que o Natal também evolui de acordo com as teorias de Darwin?)
19. nov, 2018
Post 100
00h26, 2ª feira, 18/11
Por vezes fico estático, com a caneta a pairar sobre o papel, o olhar perdido no limite do horizonte visual que o local me permite e que, infelizmente, não é muito propício a inspirações. As musas, por mais “in” que se tenham tornado ao longo dos tempos, dificilmente aparecerão para inspirar quem as procura num ambiente de blocos de apartamentos, bombas de gasolina e candeeiros públicos. Certamente escolherão lugares, se não mais bucólicos, pelo menos não tão declarada e cansativamente urbanos como este. Se ao menos o meu posto estivesse voltado 180º, para o Parque da Cidade, talvez vislumbrasse alguma musa a pairar sobre o lago ou os campos verdejantes do local (que nem se veem daqui). Infelizmente, tudo o que eventualmente posso ver serão gaivotas e patos, nada de muito inspirador.
Paisagens campestres são difíceis de encontrar num ambiente urbano ou mesmo suburbano; aliás, são a sua antítese. O mais caricaturalmente parecido com os ambientes arcadianos de antanho serão os pastores das variegadas seitas, evangélicas ou não, que pululam com os seus rebanhos, como cogumelos, dentro das florestas de betão.
13. nov, 2018
Post 99
00h25, 3ª feira, 12/11
“Quase” Natal; ainda há bem pouco tempo transpirava-se com o calor inusual de um Setembro atípico e agora, de vez em quando, entramos num sucedâneo de clima de monção ao qual só lhe falta o calor, ou seja, não escasseia a chuva a potes, torrencial, “que Deus a dá” como se dizia antigamente.
Bem, pondo de lado as habituais menções meteorológicas que caracterizam os meus pontapés de saída gráficos, falemos de outras coisas que, no momento de escrita em que me encontro, não faço a mínima ideia do que sejam.
Por outras palavras, apetece-me apenas escrever “não sei o quê”. Tento fugir aos meus temas recorrentes, tais como o tempo, o existencialismo, a comiseração reflexiva, a morte e similares e apercebo-me que, embora existam milhentos assuntos sobre que falar, nenhum me ocorre e aqueles que dariam “pano para mangas” são demasiado pessoais para este cantinho electrónico semi-público.
De que falar então? Do sexo dos anjos? Da pouca sorte do vizinho do lado ou dos mexericos sobre os moradores do 2º esquerdo daquele prédio ao virar da esquina? De política? Das doenças? Talvez uma dissertação sobre o meu cão ou o meu gato ou mesmo sobre os meus falecidos cães e gatos? A Casa dos Segredos? (desinfecto o ecrãn sempre que, por azar, ao fazer zapping tal aberração me aparece).
Ando cansado, stressado, tenho um emprego nocturno que já não é para a minha idade nem para o meu estado de saúde; por isso tudo e outras causas o meu cérebro já não consegue fazer fluir ideias e pensamentos como eu desejaria que sucedesse (lá vem a auto-comiseração…).
Nada a fazer, é esperar melhores e mais produtivos dias. Até lá vegeto numa auto-reflexão um tanto ou quanto limitada. Continuo a acreditar nos tais melhores dias de um futuro que pode nunca suceder, mas são essas crenças não comprovadas que fazem avançar o nosso mundo e o dos outros.
21. out, 2018
Post 98
00h25, domingo, 2 de Outubro
Está um tempo óptimo - 20◦, sem vento, sem chuva.
Como geralmente nós, humanos, temos o costume de duvidar, desconfiar das benesses que se prolongam por mais tempo que o normal – daí o “quando a esmola é grande, o pobre desconfia” -, há a sensação de que este limbo meteorológico é apenas um prenúncio de travessia do Estige, esse mítico rio que a alma, após a morte do corpo - e se de tal merecedora - , atravessava para o inferno (entenda-se aqui como inferno, não o de Dante mas o do IPMA ou do AccuWeather).
Bem, este pobre (eu) desconfia.
Façamos como a formiga, que prossegue a sua incessante labuta sem pensar na hipótese de ser pisada por quem passa. O que tiver que ser, é. Ponto, parágrafo.
Falando de outro tempo que não o atmosférico, mas o cronológico, por mais familiar que a situação seja, é sempre de admirar a ductilidade do tempo, que nos permite esticá-lo ou encurtá-lo consoante as circunstâncias.
Utilizando um exemplo muito pessoal e intransmissível, falo dos meus períodos de descanso semanal do trabalho.
Consoante factores que ainda não consegui bem determinar - talvez porque nunca me tenha debruçado a sério sobre o assunto –, há alturas na existência em que esses repousos cíclicos assumem dimensões liliputianas; outras em que a dimensão é, não direi pantagruélica (porque nunca é) mas notávelmente alargada (julgo que o Einstein é o culpado, visto ter sido ele quem elaborou a Teoria da Relatividade).
Assim foi este fim de semana, que, apesar de não ter tido muito tempo para nada (nunca se tem), soube como umas reconfortantes miniférias. Outros fins de semana há, porém, em que o tempo se comprime, de modo a que, mal entramos no período de descanso, estamos logo a saír dele, o que cria uma sensação mais ou menos depressiva de frustração, uma impressão de não-descanso extraordináriamente negativa e óbvia e redundantemente fatigante.
O espaço-tempo estica e encolhe, muitas vezes contra os nossos desejos e as nossas necessidades. Controlá-lo significaria gerir o nosso bem-estar físico e mental. Tal repercutir-se-ia numa melhoria efectiva da saúde e aumentaria a esperança média de vida da humanidade.
Com treino, é possível, mas ninguém se quer dar ao trabalho de o tentar e, contra mim falo, eu também não.
Em suma, sofremos porque assim o desejamos, por protelação e preguiça.
7. out, 2018
Post 97
00h34, domingo, 7/10
Fresco. Um estio prolongado mas moribundo que se e nos tenta enganar com anémicas tentativas de aquecimento. As noites já não têm força, o frio, coadjuvado pelo vento, leva vantagem e, em breve, a sua aliada – a chuva - entrará em campo. Mas, como prognósticos só no fim do jogo, esperemos para ver.
Do alto dos meus 61 anos contemplo a vida. A meus pés a íngreme escadaria que me elevou a este patamar, feita de tempo e vitórias, derrotas e experiências, saber e sacrifício; perante mim os degraus que ainda não subi e que não posso contar, pois estão envoltos em espessíssima neblina.
Do alto dos meus 61 anos não é a vida que contemplo, é o passado que já não é vida. Esta, não passa de uma fronteira, uma linha divisória entre o passado e uma promessa que, como todas as promessas, poderá ou não vir a existir.
Darei o próximo passo? Encontrarei terreno firme ou precipitar-me-ei no vazio(?) do pós-vida, aquela incógnita tão receada?
Direi que todos a temem, embora haja quem o negue. Todos têm receio. Ninguém gosta de dar passos no desconhecido, ninguém aceita verdadeiramente diluir-se na bruma. Podemos não ter medo da morte, mas tememos sempre o desconhecido.
Diz-se que recordar é viver e, ao fim e ao cabo, é verdade; sem memória não há vida, não há céu, inferno ou purgatório, não há sofrimento ou alegria.
É o passado, todos esses muitos ou poucos degraus que subimos, que nos dá a ilusão de existência.
3. out, 2018
Post 96
00h11, 4ª feira, 02/10/18
Fim de verão (já é outono), temperaturas amenas, anúncios de frescura no vento. Temos que nos preparar para o inverno.
No entanto, e atendendo à meteorologia atópica dos últimos anos, este discurso peca por inconsistente. Verões e invernos já eram, perderam toda a tipicidade; as modificações climáticas sentidas e vividas nos últimos decénios, atestam-no.
As estações do ano da minha infância e adolescência andam travestidos, inconfiáveis, como se Zeus os tivesse baralhado como a um jogo de cartas.
Estaremos a fazer juízos de valor errados? Será que “no meu tempo” essas alterações anómalas eram tão recorrentes como agora e a minha visão de velho, a minha memória do passado, prega-me partidas?
Não me posso esquecer que é muito normal a pessoas mais velhas (e não só) considerarem que no seu tempo as coisas eram muito diferentes.
Teriam sido? Ou a memória é uma falsa memória, deturpada pelo distanciamento temporal e pela consequente falta de nitidez?
Todos nós temos memórias falsas, as quais se insinuam imperceptívelmente nas reais, acabando por delas serem indistinguíveis; pseudo-recordações de actos e momentos que nunca existiram mas nos quais acreditamos piamente, e ai de quem nos diga que são apenas fruto da nossa imaginação: ninguém gosta de passar por mentiroso, nem que seja por um acto involuntário, pois fere a credibilidade e o amor-próprio.
Neste caso, no caso do tempo meteorológico, temos um tira-teimas que são os registos históricos. Mas quem se dá ao trabalho de pesquisar e comparar esses dados com os actuais e com as memórias, verdadeiras ou falsas, de quem viveu longas décadas em outras experiências e outros rigores do clima?
Não raras vezes a nossa teimosia prevalece sobre esses dados históricos (para nós, errados) e relatamos climas ameníssimos ou autênticos cataclismos apocalípticos que só existiram com tal intensidade na nossa imaginação.
Todos somos, a nosso modo, Fernões Mendes Pinto e narramos factos mirabolantes que, dependendo da nossa credibilidade social e da nossa capacidade retórica, aliadas a sólidas memórias falsas, são altamente credíveis.
Afinal não estamos, cronológica e mentalmente, assim tão longe daqueles navegantes de antanho que relatavam a existência de monstros terríveis, seres geralmente mais aumentados, modificados e demonizados pela recordação posterior e pelo exagero, o que lhes concedia, por vezes, ainda maior credibilidade.
Continuamos a ser assim e a querer ser assim; basta atentar em certas publicações sensacionalistas e revistas cor-de-rosa, que transformam as lagartixas em crocodilos, os vermes em jibóias, as pintas de sangue em lagos onde se pode andar de barco e os seres humanos em demónios ou megeras.
Quem nunca relatou algum facto passado através de uma lente de aumento, que atire a primeira pedra…
9. set, 2018
Post 95
00h47, domingo, 9 de Setembro
Há planos na nossa vida que nunca foram nada mais senão isso: planos. Muitas das vezes esse incumprimento prende-se com questões monetárias, familiares, de dificuldade ou impossibilidade funcional, etc. Porém, em grande percentagem, essa imobilidade que impede a passagem da teoria à prática, tem a ver com a nossa própria indisponibilidade, cujas únicas justificações são a preguiça ou o protelamento institucionalizado, sistemático.
Existem milhares (exagero) de pequenos projectos, velhos de anos (ou mesmo de décadas), que agora, no “fim da vida” (não é para interpretar à letra), tenho tentado pôr em prática. Pecam por tardios mas, dentro das agora mais reduzidas possibilidades físicas, tento concretizar à laia de “ reformado que faz obras na casa para poder acabar os seus dias com a consciência tranquila de que concretizou os seus sonhos de juventude (?)”.
Pelo texto acima, torna-se evidente que me refiro a projectos de obras, de melhoramentos estruturais ou estéticos da casa onde vivo. Travados pelas mais variadas (e muitas justificadas) circunstâncias, na minha força da idade, acabaram por se transformar num círculo vicioso de adiamentos sucessivos que agora tento reverter. Não é ainda tarde; é, isso sim, pelos condicionalismos da idade, do emprego e da saúde, mais difícil.
Haja força de vontade, essa energia masoquista que nos faz lutar contra tudo e contra todos.
2. set, 2018
Post 94
12h47, sábado, 1 de Setembro
Calor. 33◦ C hoje, durante o dia, e 26◦ C neste momento. O mês de Setembro enunciou-se tal qual o de Agosto: o 1º dia foi “de arrebentar”. Seria bom se se mantivesse calor, um calor aceitável durante este mês, pelo menos para compensar os de Junho e Julho, que foram muito fracos.
Com este clima ameno sabe bem fazer uma caminhada nocturna à beira-mar, sentir a brisa suave e fresca do oceano, fazer parar o tempo num momento de fugaz prazer. Mas tudo passa e essas breves e agradáveis sensações são (es)tragadas pela voracidade do Tempo.
Esse (Chronos, o Tempo) é o verdadeiro Papão da humanidade, chamem-lhe Homem do Saco, Baba Yaga, Bougeyman, Épouventail ou Croque-Mitaine, Schwartz Mann, Ogro, Coco ou Hombre del Saco, Ronca ou tantos outros nomes que povoam a imaginação da maioria das crianças e adultos à superfície do nosso planeta.
Este come-criancinhas é afinal um come tudo e todos, digere-nos a pouco e pouco, sem piedade e sem se fazer notar. Quando dele nos apercebemos, já é tarde, sempre foi tarde logo desde o nosso nascimento, ou mesmo antes. Autêntico buraco negro, suga tudo, mesmo o nosso bem mais precioso – as memórias – , os pilares da nossa existência.
Há, pois, duas coisas positivas/negativas na vida e nas quais esta se resume: o Tempo e a Memória; nenhum deles pode existir ou desaparecer sem o outro, é a simbiose indissociável que move o Mundo, tal como o conhecemos.
29. ago, 2018
Post 93
23h23, 3ª feira, 28/08
Mais umas linhas escritas do meu balcão de trabalho e de (tentativa de) criação literária.
Fim de um verão chocho mas que teve, no entanto, alguns dias bons. Neste momento já se vislumbra o prelúdio de mais um outono que esperamos não seja muito agressivo.
Dentro em breve cessam todas as actividades de veraneio, acabam as férias, quem as gozou volta ao trabalho, quem estuda volta à escola, começa-se a pensar no que é necessário para atravessar a invernia que se aproxima. Enfim, toda a parafernália necessária num país que não é, nem equatorial nem tropical e que tem, por isso, que suportar temperaturas que, embora não extremas, são por vezes bastante díspares entre estações.
Não me posso queixar muito pois, embora não propriamente de carácter lúdico, mas fisioterápico, as minhas caminhadas matutinas pelo Parque da Cidade e praia de Matosinhos têm sido boas e contribuído para elevar a minha auto-estima, a minha saúde física e o meu “bronze”, embora este último ainda contenha uma percentagem maior que o normal de estanho, em relação ao cobre.
E os banhos de mar terapêuticos? Acho que, a não ser no Algarve, há quase 20 anos, nunca tomei tantos banhos em tão curto espaço de tempo (3 semanas). Aproveito sempre para uns sniffs de água do mar, que fazem bem às vias respiratórias, para não falar na descarga energética que tais banhos proporcionam.
“Zé, aproveita enquanto não és tão velhinho” – digo eu a mim próprio – “que só por meteres o dedo grande do pé na água apanhas uma pneumonia, ou já nem força tens e corres o risco de te afogares em 20 cm de água. Isto para não falar no imenso e penoso deserto que terás que atravessar só para chegar à orla do oceano”.
Pois é, nessa altura, mar, só em fotografias ou nas memórias do passado.
De músculos férreos e ossos resistentes passamos a frágeis peças de porcelana de Limoges ou Vista Alegre, que têm sempre que ser muito bem-acondicionadas para o transporte e manuseamento. Os lares de 3ª idade não são mais que prateleiras onde, quais bibelots, se põem os velhinhos para que não se quebrem. Mesmo assim, a fragilidade osteoporótica continua a ser responsável por muitas mortes.
14. ago, 2018
Post 92
23h53, 2ªfeira, 12 de Agosto
Sabe bem passear de manhã pelo parque e pela praia, molhar os pés e, eventualmente, tudo o que está acima deles.
Quando inicio no parque o meu reconhecimento diário, noto sempre algo um tanto ou quanto paradoxal: há, na periferia do referido, 2 ginásios cheios de gente. É evidente que neles existem aparelhos (poucos, a meu ver) que trabalham a musculatura e/ou desempenham outras actividades que não é possível fazer cá fora. Mas… o tapete rolante, a bicicleta, outros talvez de que não me lembro e que fazem as vezes de exercícios que podemos fazer sem ajuda?
É um pouco como ter uma máquina de venda de comida dentro da cozinha de um restaurante ou fazer publicidade à Ryanair dentro de um avião da Tap. Não desfrutariam melhor se corressem ou andassem de bicicleta ao ar livre? Apercebo-me que há quem não saiba andar de bicicleta, tudo bem. Sei que o tapete também não é igual à corrida no exterior. Mas, excluindo os comodistas e os eventuais ignorantes velocipédicos, pergunto: Porquê?
Será status? Será show-off? Será porque é in andar num ginásio ou porque tem todas as comodidades, incluindo cafetaria para repor os níveis de calorias perdidos? É o oposto a todo o conceito de exercício físico, que implica algum sacrifício e contenção.
Pelo amor de Deus (embora eu seja agnóstico), não vamos fazer campismo para um hotel! Do mesmo modo, não devemos fazer exercício num health club (?) paredes-meias com um parque fortemente vocacionado para esse efeito!
É a minha opinião e vale o que vale. Radical, intolerante, pouco conhecedor das razões por detrás deste tipo de comportamentos? Talvez. Mas exerço o meu direito de opinião que, perante a eventual existência de argumentos válidos que se me apresentem, poder-se-á modificar. Para já mantenho o que disse, é a minha convicção. Estou aberto a esclarecimentos.
12. ago, 2018
Post 91
11/08, domingo, 00h16.
Será que subir e descer 52 escadas + 28 e percorrer 100 metros, multiplicado por 3 e a alombar com móveis, substitui o agora usual percurso do perímetro do Parque da Cidade e uma caminhada pelo areal, desde a Anémona ao Paredão e volta (cerca de 5 km)? Ignorando a lombalgia, espero que sim, pois foi o que eu fiz hoje. É mesmo amor ao exercício!
Pois é, de há uma semana até à data, tenho andado a fazer exercício físico mais intenso, a desenferrujar as partes (não as íntimas, tudo o resto), as quais estavam preocupantemente emperradas. Os braços, as pernas (principalmente), a elasticidade abdominal e lombar, tudo estava a necessitar de WD40. Felizmente, parece que estou no bom caminho, já me consigo mover melhor, com menos esforço.
Só há uma coisa que me preocupa sobremaneira: o ventre. Pareço grávido e nem é de comer ou beber muito; julgo que é mesmo da falta de exercício localizado, o que, como acima escrito, tenho andado a tentar colmatar.
Bem, deixando de tratar os meus problemas como se fossem os únicos males do mundo dignos de serem mencionados, passemos de alhos a bugalhos – expressão muito usada no “meu” tempo e que julgo estar a caír em desuso, como tantas outras expressões que, ou deixaram de fazer sentido por o que lhes deu origem já não o fazer (sentido), ou foram substituídas por outras, mais actuais, mais ligadas aos tempos que correm.
(Pedindo desculpa pela tautologia das 2 orações antecedentes, passemos à frente).
Outro dia, por mero acaso, surgiu-me perante os olhos um artigo sobre as origens, modificações e polémicas que, ao longo dos tempos, têm rodeado uma das representações simbólicas do país – a bandeira –, assim como do hino que a acompanha e, a seu modo, mitifica.
Referindo-me apenas ao hino, encontrei uma informação curiosa que julgo virá justificar e explicar uma expressão que referi há algum tempo e que era utilizada pela minha avó e que deduzi, após pesquisas entretanto efectuadas, ser algo negativo: canhão.
Ora bem, não me enganei. Aliás, a conotação dada na sua utilização, pouca margem deixava para dúvidas.
Reportando-me às origens do hino nacional, composto por Henrique Lopes de Mendonça, em 1890, com música de Alfredo Keil, há quem diga que, no lugar dos actuais canhões da letra, estavam bretões, o que era fruto do ressentimento nacional popular (e não só) contra os ingleses, em consequência do polémico ultimato britânico, aquando do projecto português vulgarmente designado como Mapa cor-de-rosa, de 1890, que pressupunha a ligação territorial das 2 colónias ultramarinas de Angola e Moçambique, formando um só território.
Embora desmentido pelo historiador Rui Ramos, essa versão d’A Portuguesa pode, todavia, ter circulado como uma versão patriótica com alguma aderência entre as massas populares.
Seja como for, o hino nacional sofreu algumas modificações ao longo da sua existência, tendo sido finalmente fixada a versão que hoje conhecemos durante a vigência do Estado Novo, mais concretamente em 16 de Julho de 1957, tinha eu três dias de idade. Também convém não esquecer que A Portuguesa é um hino que, embora escrito e musicado no início da última década do século XIX, é intrinsecamente republicano, só foi adoptado após a implantação deste regime político, pois antes era proibido. Em seu lugar existia o chamado Hymno da Carta (grafia da época), de 1834.
Bem com tantas considerações, perdi o fio à meada, já nem Ariadne me pode valer. Há, entretanto, outros assuntos que exigem a minha atenção e que não posso protelar por mais tempo. Fico por aqui.
7. ago, 2018
Post 90
01H13, 6 de Agosto, 2ª feira
Eis-me de novo a escrever. Sobrevivi à fornalha marroquina que assolou o país na última semana. De (micro-)vaga de calor semelhante não tenho memória. Ou antes, tenho uma ténue recordação de temperaturas dignas do Hades em anos recuados, mas que, pela sua invulgaridade, se vão diluindo no passado e confundindo-se com a fantasia própria das memórias longínquas que, num esforço de recordação, acabamos por transformar em algo em parte ficcional e de cuja veracidade já nem nós temos a certeza.
É assim que se criam os mitos, os contos de fadas, as histórias heróicas dos nossos antepassados que, de simples figurantes de um acto de uma peça do teatro da vida, perdidos num passado que maioritariamente desconhecemos, passam a personagens importantes, quando não principais.
É assim que o trisavô (que nem sabemos bem quando nasceu, morreu e onde) se transforma de cabo em general, de pedreiro em arquitecto, de curandeiro em médico, de lavrador em nobre. As histórias de família reinventam-se, do nada faz-se um herói.
Do mesmo modo, das temperaturas que mal fazem subir dois centímetros no mercúrio do termómetro (agora são digitais) criam-se tempestades de fogo apocalípticas dignas de figurar nos anais do Guiness. Somos assim: uns exagerados.
Pois bem, dessas pretéritas temperaturas que fariam o meu forno da cozinha corar de vergonha, passámos para valores que, embora um pouco baixos para a época, são perfeitamente aceitáveis, confortáveis até.
Na frente do prédio, fruto de um ventinho fresco que surge esporádicamente a varrer os resquícios das poeiras do Sara, vejo, nas árvores, formas animalescas ou antropomórficas, fruto da minha imaginação e da aglomeração peculiar das folhas. Vejo um urso, que pode simultâneamente ser uma hiena, ou um burro, ou um cão, a agitar as patas da frente, empinadas, e um focinho que mau grado se agite inquieto, não projecta medo.
As árvores são como nuvens agarradas à terra, assumem as formas que a imaginação molda. São, porém, menos volúveis; assumem, pela sua natureza, papeis mais duradoiros. Formas não voláteis, mais fiéis ao pensamento que lhes deu forma. As nuvens são caprichosas, recusam-se a assumir identidades de longa duração: o que era um elefante há cinco minutos, é agora um automóvel ou um vaso c/ flores.
Felizmente na natureza nada é estático e esse movimento aparente permite-nos criar sonhando.
24. jul, 2018
Post 89
01h07, 24/07, 3ª feira
Eis-me de novo virado para a janela do meu pequeno mundo, o diminuto universo que abarco com o olhar, daqui, do meu posto de observação.
Os seres humanos têm uma capacidade, dir-se-ia infinita, de não “enjoar” a visão repetitiva a que frequentemente estão sujeitos, seja em casa ou no trabalho ou em qualquer outra situação.
Esse é o meu caso: faz 4 anos que tenho como pano de fundo sempre a mesma paisagem estática – os mesmos prédios, os mesmos postes de iluminação, a mesma rua, o mesmo passeio, o mesmo horizonte celeste, limitadamente visível.
Mas as paisagens não são estáticas, não são pinturas ou fotografias, há sempre elementos que quebram a sua monotonia. Podem estar sempre os mesmos veículos estacionados, porém em diferentes lugares; podem existir as mesmas árvores, mas vão crescendo e ganhando ou perdendo folhas ao correr das estações do ano e vão sendo sacudidas suave ou violentamente por brisas ou tempestades; pode chover, estar tempo seco ou nevoeiro. Em suma, a paisagem não é estática, é simplesmente lenta, funciona a um ritmo cineticamente diferente do nosso e é isso que a faz parecer o que não é. Se calhar é também por isso que não a enjoamos.
E agora, muito Montypythonicamente, algo que não tem nada a ver):
Onde reside a originalidade? No génio? No acaso? Nalguma predisposição genética ou malformação (bemformação) cerebral?
Por que não somos todos originais? No fundo somos todos, mas não no sentido criativo; digamos que somos medíocre ou medianamente originais. Certo é que se fôssemos todos “fora de série”, a vida seria de uma insuportável sensaboria. O incentivo da originalidade consiste na diferença qualitativa, no rasgo, em fazer algo que ninguém fez, em criar.
Aqui, entram muitos factores: a autoestima, a vaidade, o orgulho, a filantropia, o ódio, a necessidade de ser diferente, de se destacar da mediania, o prazer, o amor. Todos estes factores, isolados ou em diversificadas combinações, fabricam a originalidade. Todo o efeito tem uma ou várias causas, fruto de uma intencionalidade, por vezes camuflada, por vezes ostensiva. A arte não surge de borla, tem um custo emocional.
19. jul, 2018
Post 88
23h55, 18/07, 4ª feira
Pois é, mais uma vez sobrevivi ao meu aniversário,
against all odds. A percentagem de sucesso reduz-se cada vez mais por cada ano que passa. É a lógica ilógica da passagem do tempo, responsável pelo expirar da data secreta do nosso prazo de validade. Seja como for, 61 já cá cantam, ninguém mos tira.
O que escrever, como escrever? Aguardo sempre aquele rasgo de génio que espreita a cada esquina do nosso percurso existencial. É arisco, fugidio, sempre que o julgamos ter alcançado quando dobramos a tal esquina de onde o vimos a espreitar, ele já lá não está, avançou para a seguinte. É volátil, etéreo, por vezes quase que o apanhamos, mas ele escapa-se-nos por entre os dedos.
A maioria dos mortais passa a vida a vê-lo a espreitar, alguns nem isso.
Fate.
Depois das minhas recorrentes considerações filosóficas, volto ao velho problema: escrever e o quê.
Parece fácil, há montes de assuntos sobre que escrever. Também há paisagens maravilhosas, temas cuja captação óptima depende das definições que aplicamos ao aparelho fotográfico (ou gráfico). Porém falta algo, a sensibilidade de escolher o ângulo certo, a luz, a perspectiva, o momento. …e o génio fugidio!
Todos esperamos por Godot. Ele virá por nós?
10. jul, 2018
Post 87
Domingo, 01/07, 00h24
De vez em quando vêm-me à memória flashes do passado; não apenas imagens ou situações, mas frases, ditos populares, modos de dizer e fazer que hoje já não farão sentido.
Sinto-me medievo perante a juventude de hoje, do mesmo modo que a geração anterior à minha se terá sentido a respeito daquela a que pertenço. Quando se é novo, tudo o que é precedente é bota de elástico (expressão mais que anacrónica que já no meu tempo o era), antiquado, desatualizado. É e será sempre assim de geração em geração, não tenhamos dúvidas.
Tem lógica, cada nova fornada humana - e usando termos informáticos (sinais dos tempos) - faz upload de software novo, actualizado. Porém, tal como o material informático, chega uma altura em que já não há actualizações e aí é o ponto de partida para a obsolescência, não importa o volume da informação que se contenha.
Isso já é outra coisa. Esse conhecimento, esse saber precioso que a vida vai dando para o nosso armazenamento ilimitado, é muito importante, mas pouco conta para os novos modelos. Deveria contar.
Teho a certeza que o que penso agora acerca disto já foi pensado por incontáveis gerações antes de mim; e eu, no meu tempo, também não quis saber, o que contava era o novo, a novidade. Poderia ter contrariado a corrente? Impossível, faz parte do aprendizado individual da maioria das formas de vida sencientes e é o motor empírico da evolução.
Seria esta mais rápida se se aproveitasse a informação já disponível? Sim, seria. Mas não é assim que funciona. A nova vida em desenvolvimento é demasiado presunçosa para aceitar a experiência das anteriores.
25. jun, 2018
Post 86
23h35, domingo, 24/06
Dia de S. João, do calendário católico, o santo que devia gostar de sardinhas e alho porro.
No “meu tempo” (como se o tempo fosse algo que me tivesse alguma vez pertencido) dava-se com o alho porro – a flor – na cabeça das pessoas; o martelo já existia (desde 1963) mas ainda não tinha expressividade, não fazia ainda parte da tradição.
Era um quase aflorar, um leve toque do alho, como uma investidura na ordem dos foliões de S. João; não como agora em que é necessário um movimento mais rápido e forte para que o sucedâneo estilizado e plastificado da planta original produza o seu efeito musical.
Aliás, o simbólico vegetal partir-se-ia se fosse lançado com força contra o objectivo.
Os carecas eram o seu alvo preferido; era vê-los a roçar os crâneos alopécicos aos 3, 4 e 5, numa orgia de cabeças.
Outra tradição era o raminho de cheiros, geralmente de erva-cidreira, que se fazia passar imprevistamente pelo órgão pituitário do folião ou foliona desprevenidos. É claro que também havia uma versão aromática mais desagradável, feita com outras plantas ou com algum produto que, aspergido no ramo, pudesse fazer surtir o efeito desejado.
Mas tudo isso eram outros tempos, outras tradições, seguramente outros caminhos da História, como diria Joel Cleto, o nosso mediático historiador.
Não fui à Baixa porque estava a trabalhar. De qualquer dos modos, também não iria. É muita confusão e agora, à medida que se envelhece, quer-se cada vez mas sossego e descanso. Não porque nos deixemos derrotar pela idade, mas porque é assim. Os interesses, as prioridades mudam, muda o modo de ver o mundo, muda o modo de usufruir dele. Já não queremos ser actores no filme da vida, preferimos ser seus espectadores. Não que o nosso tempo tenha passado, mas interagimos mais estáticamente, mais analiticamente, somos os seus críticos e não os seus autores.
13. jun, 2018
Post 85
06h57, 3ª feira, 12/06/18
Há dias em que apetece escrever; hoje é um deles.
Não sei o que irei grafar nesta folha que converterei mais tarde em Word e farei desaparecer, como por artes mágicas, algures num espaço virtual do éter.
Magia negra, bruxaria, pacto com o diabo! Consequência: fogueira. É do que seria acusado e o que me sucederia se e caso me fosse possível cronotransportar e teletransportar para o passado, para a Idade Média, junto com o meu computador ou smartfone. Claro, devidamente carregados pois a demoníaca energia eléctrica só surgiria algumas centenas de anos depois e mostrá-la seria mais uma acha na fogueira onde me queimariam.
Escrita virtual? Satânica manifestação que muitos jurariam ter visto materializar-se (?) envolta numa terrível nuvem de fumo que emanava do objecto demoníaco, acompanhada pelo fétido e indispensável cheiro a enxofre, vindo das profundezas do Inferno. Um efeito cénico e olfactivo que o diabo certamente não dispensaria, pois fazia parte da sua manifestação teatral para atingir a verosimilhança e o efeito catártico preconizado por Aristóteles.
Enquanto o diabo esfrega um olho – passe a expressão – surpreender-me-ia na margem do Estige, esperando que a barca de Caronte me transportasse para o Hades e confiando que o barqueiro me aceitasse o pagamento em euros.
Triste fim morrer grelhado como se fosse um porco…
Voltando à vaca fria (velha expressão em desuso) e retornando à gatafunhagem desta folha de papel que em breve, como já dito, tornar-se-á virtual, continuo sem saber o que dizer (escrever). Limito-me a ir escrevendo ao sabor dos pensamentos que me vão surgindo.
14, mai,2018
Post 84
00h09, 4ª feira, 13/06/18
Fui ontem obrigado, por motivos de serviço, a fazer uma IVG (interrupção voluntária de grafia) e que, apesar de voluntária foi, ao fim e ao cabo, involuntária, pois eu não queria interromper o que estava a escrever, embora voluntariamente o tivesse feito.
Bom, deixemo-nos de silogismos e recomecemos a grafia. Não confundamos com grafagem, que é a soldadura das peças de uma máquina, geralmente a carroçaria de um automóvel.
Estou às voltas com uma recensão crítica do ensaio de Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo. Neste, o autor pinta um quadro muito negro do estado da cultura no mundo actual.
Diz ele que já não há cultura, que esta foi transmutada em espectáculo, que o nivelamento da dita, para a tornar acessível às massas, foi feito muito por baixo, dando origem a que, agora, todos somos cultos e ninguém é culto.
Não deixo de lhe dar razão, embora em certos aspectos ele exagere na sua visão catastrófica.
Porém, no tocante ao abaixamento da fasquia daquilo que se entendia por cultura, é real, infelizmente real. Não que eu encare isso segundo uma perspectiva elitista (que defendo) mas apenas perante o senso comum. Exemplo disso é o que até agora se fez no campo das habilitações literárias (as tais 2ªs oportunidades), onde se saltaram vários níveis de ensino para atingir o almejado 12º ano através de um curso ridiculamente simplificado e pelo qual pessoas quase analfabetas são agora detentoras, por equivalência (!!!), da invejada escolaridade mínima obrigatória.
Não que quem o fez tenha alguma culpa, mas tal equivalência é um insulto à cultura e a quem se esforçou, ano após ano, para lá chegar. Mais valia estes últimos terem interrompido os estudos na 4ª classe e depois, em 2 ou 3 anos, ficarem milagrosamente aptos para entrar na universidade. Chegar-se-ia assim à consecução plena do significado do dito popular: “um burro carregado de livros é um doutor”.
14. mai, 2018
Post 82
07h02, 14/05/18, 2ª feira
Não está frio, mas molinha desde as 4 horas; é um daqueles dias nevoentos e melancólicos.
Já não escrevo há 25 dias, não tenho tido tempo nem disposição. Então a semana passada, com a Queima… nem é bom lembrar.
De qualquer modo e até ao fim do ano lectivo ser-me-á muito difícil escrever com regularidade, visto ter trabalhos para entregar, trabalhos esses que requerem muita concentração, muito estudo, muita investigação e tem havido dias em que nem tenho conseguido raciocinar devidamente porque o cansaço embota-me o discernimento. São sinais da idade, agravados por outros factores como o horário de trabalho e…. a idade.
Dia 8, terça-feira passada, morreu o homem que propiciou o início das minhas crónicas; sem ele, talvez nunca as tivesse começado a escrever.
Chamava-se Filipe e contratou-me para as entregas ao domicílio do Restaurante Paraíso, na rua com o mesmo nome. Filho da Lapa, aí nado e criado, era uma alma generosa, estimado por todos e a quem eu considerava um amigo quase (talvez mesmo) íntimo logo desde o início. Detentor de uma personalidade cativante, bondoso, honesto, alegre, bom marido e bom pai, era um empreendedor inteligente, um “fura-vidas” que julgava(mos) que teria à sua frente um futuro promissor e duradouro. Enganou-se.
Um cancro no fígado (paradoxalmente, não fumava nem bebia), já demasiado metastizado, tardiamente diagnosticado (em Fevereiro) e com um tratamento desatempado (início de Abril) – que nem chegou a ser iniciado, por tardio – ditaram o seu fulminante declínio e morte e o fim dos seus sonhos. Tive o privilégio de ainda o poder visitar, há cerca de 1 mês e 1 semana, não adivinhando que seria o nosso derradeiro encontro, a nossa última conversa. É dos poucos seres humanos que conseguiu, pela sua personalidade, ficar gravado no meu coração. A ele deixo esta breve mas expressiva homenagem.
19. abr, 2018
Post 81
23h48, 18/04/18, 4ª feira
Voltou a primavera ou, pelo menos, já se levantou a ponta do véu de chuva e frio com que até agora se encontrava coberta.
Já apetece viver de novo, libertos do pessimismo cíclico que nos envolve ao vermos aproximarem-se as amplas redondezas do equinócio de inverno. Bem, regra geral.
Tive um professor de português no 5º ano liceal (actual 9º) que era o paradigma do paradoxo: em dias de chuva, de invernia, era vê-lo alegre, bem-disposto, activo; quando fizesse bom tempo vestia-se de escuro, mal-disposto, nada simpático, carrancudo. Excepções à regra….
Não que eu goste particularmente do calor do verão, pelo menos do verão do Norte; é pegajoso, incomoda com tanta humidade. Já mais para o Sul é razoavelmente tolerável, é seco, não se sente o incómodo da roupa colada ao corpo.
No entanto, o verão é mais triste a Sul, mais propriamente Centro-Sul (pelo menos no nosso e no de Espanha). É desolado, desértico, monocromático, com depressivos tons de palha e ocre.
No Norte é o verde que domina. São os nossos mini-trópicos, com toda a sua carga clorofílica mas também, infelizmente, toda a sua carga hídrica volátil (leia-se epidérmica).
E do inverno, podemo-nos queixar? Antes de o fazermos, olhemos para o Canadá, a Sibéria, ou mesmo Nova York (a nossa Serra da Estrela ou o Marão são fracas amostras).
Agora ponhamos a mão na consciência e respondamos. Afinal o Diabo não é tão mau como o pintam.
Contudo, para quem nunca sentiu dor para além da picada de um alfinete, uma injecção é tortura. Tudo é relativo, o nosso inferno pode ser o paraíso dos outros.
11. abr, 2018
Post 80
23h28, 10/04/18
Tenho um pouco de sono, dormi mal. Bem, o meu sono, actualmente, não é de grande qualidade, basta para tal dormir de dia, contrariando assim os ciclos circadianos.
Dia em que durma bem, noto-o no meu desempenho físico e intelectual: as ideias fluem, os músculos respondem mais eficientemente, o esforço crónico e, por vezes, alguma dor ou desconforto, decorrentes das sequelas do meu episódio vascular dos inícios de 2016, atenuam-se. Aprendi a viver com essas maleitas, mas cá no fundo ainda sinto uma certa amargura. Nada a fazer, apenas seguir em frente.
Ao prosseguir os meus estudos, apercebo-me que o chão que piso está cheio de fracturas, de soluções de continuidade evidentes e penosamente lesivas da eficácia da aprendizagem. Usando uma metáfora: circulo na senda da cultura com os pneus mal cheios.
As 3 dezenas de anos (grosso modo) que interrompi e negligenciei esse bem precioso que é o conhecimento, estão a dar frutos, porém tocados, ameaçados pelo bicho da ignorância que deixei que se instalasse no período de inflorescência e maturação.
Sinto agora a falta que me faz essa continuidade cultural: obras que deveria ter lido, temas sobre os quais deveria ter-me debruçado, enfim…Uma miríade de actos ou processos de conhecimento simplesmente ignorados ou desperdiçados.
Não se deve chorar sobre leite derramado, é certo; mas choro essa Hagia Sophia que perdi, maioritáriamente por culpa própria.
A ignorância gera ignorância, mas não nos isenta de culpa; mesmo aos ignorantes dever-se-ão imputar responsabilidades por não pensar, por não utilizar o senso comum, por não reagir à sua própria estupidificação progressiva.
Sei que ainda não é tarde, que nunca é tarde, mas, como dizia Ricardo Araújo Pereira, não é a mesma coisa.
Tenho actualmente grandes dificuldades na prossecução de um esforço voluntário de conhecimento: idade, situação laboral (trabalho à noite, com o cansaço e a falta de tempo decorrente), falha de algumas bases culturais relevantes. No entanto, tenho tido bons resultados e isso incentiva-me a continuar. Além do mais, no tocante à absorção de cultura em geral, procuro ser uma esponja.
10. abr, 2018
Post 79
23h35, 9/4/18
Passaram hoje 100 anos desde o fatídico dia em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado na batalha de La Lys, em França, na I Guerra Mundial. Já não haverá ninguém vivo que tenha sofrido na pele, na 1ª pessoa, este acontecimento trágico.
Que nos diz esta data, a nós, nascidos maioritáriamente na 2ª metade do séc. XX? Relativamente pouco. À parte esparsos laços geneo-históricos (desculpando o neologismo), como é o caso do meu tio-avô Aníbal que participou na I Guerra como oficial-médico e que faleceu novo, 23 anos antes do meu nascimento, em consequência da inalação de gás mostarda lançado pela facção alemã, essa data perde-se no passado, é-nos tão pouco relevante como a Implantação da República ou a Guerra Peninsular, do mesmo modo que as Invasões Francesas o foram para os revolucionários republicanos.
São factos importantes, é certo, mas apenas num contexto histórico, impessoal, como parte episódica de uma herança cultural que vai perdendo, ao longo dos tempos, os laços de proximidade que tenha eventualmente mantido connosco ou com os nossos antepassados mais próximos.
O mesmo de poderá dizer de D. Afonso Henriques ou da Restauração; são datas importantes, mas meramente a título histórico, cada vez mais “curiosidades” do que relevâncias.
A Revolução dos Cravos está-se também progressivamente inserindo nesta categoria das curiosidades: 44 anos após o seu acontecimento e exceptuando a nós, suas primeiras pessoas, é já algo que pouco diz às gerações pós-revolução, as quais só conhecem meras “estórias”, contadas pelos seus pais ou avós.
A relativização temporal da história “mata” a própria história.
Viriato ou D. Afonso Henriques, o Semeador ou o Desejado, o Mestre de Aviz ou o Navegador estão conceptualmente tão longe de nós como Noé, Maomé ou Jesus Cristo, Alexandre O Grande ou Nabucodonosor, Xerxes ou Platão, tornando-se cada vez mais episódios de ficção histórica.
2. abr, 2018
Post 78
00h00, 2 de Abril de 2018
Vagueio pelos mais antigos e esconsos arquivos da minha memória, procurando algo a que me agarrar para manter activas as recordações nostálgicas do passado.
Não que seja saudosista (?? Quem não é?), mas sabe tristemente bem recordar os momentos felizes do arquivo, os quais, a não serem pelo menos esporádicamente utilizados, têm tendência a apagar-se definitivamente, como uma velha cassete que se vai desmagnetizando com o tempo.
Todos temos um pouco de Alzheimer inato na nossa estrutura mental, o que é tão destrutivo para os registos de memória como aquele com que nos vamos acostumando cada vez mais a ver à nossa volta e que nos pode dramática e irremediávelmente transformar em seres vegetativos, se não nos matar antes. A única diferença é que o nosso Alzheimer natural apenas apaga os arquivos de memória antigos e não afecta o resto do cérebro ou do corpo no seu todo; o outro, o mais temido, afecta tudo e, o que é mais triste, vamo-nos apercebendo disso, tomando consciência e sofrendo com a percepção de que lutamos em vão contra algo que nos vai inexorávelmente destruindo.
Ainda há dias estive a ler correspondência pessoal, recebida e enviada há 40 anos. Grande parte da informação que recolhi, se não estava já definitivamente apagada, estava apenas suspensa por um ténue fio em vias de quebrar. Relembrei coisas que já quase tinha esquecido, outras de que não tenho a mínima recordação, algumas que ainda mantenho.
Relembrar o passado é mantermo-nos vivos. Sem ele não há vida senciente, há apenas seres que existem porque comem, respiram e o coração bate, nada mais.
É uma falácia dizer que o passado é passado, que não interessa. Sem ele de que valeria viver? Nós somos as nossas memórias e as dos nossos ancestrais. Todas as sociedades têm o seu culto dos mortos, não para se lembrarem deles, mas para preservarem a memória que eles representam.
Após mais esta pequena pérola expositória do meu
dark side, acho que por hoje nada mais tenho a dizer.
21. mar, 2018
Post 77
23h50, 20/03/18, 3ª feira
Frio médio sem chuva. Ponto. Ausência de vento. Ponto. Céu parcialmente limpo. Ponto, parágrafo.
Lacónico e tautológico. E meteorológico.
O tempo já não passa nem flui: corre. A vida orgânica prossegue ao mesmo ritmo, o que até seria bom em termos desportivos – de fitness, como sói dizer-se – mas a nível fisiológico, de suporte de vida é, no mínimo, preocupante.
Não que não saiba o que nos espera a todos, mas a preparação psicológica que acompanha o envelhecimento não tem em mim a mesma pedalada, ou seja, ainda não me sinto preparado para terminar pacificamente as minhas funções vitais.
Porque é que tudo o que escrevo toca na morte física, porque é que tudo acaba na morte?
Penso que a maioria das pessoas tem horror à morte e evita falar nela. Porém, o “inimigo” tem que ser encarado com realismo, com a consciência de que existe e de que mais cedo ou mais tarde o enfrentaremos. Não há que fugir pois não escapamos.
Longe vai o tempo em que, jovem, pensava ser imortal; visão quimérica que eu alimentava e que com o amadurecimento mental foi desaparecendo progressivamente. Pois que melhor haverá que, para aceitar o término, falar nele como de um conhecido, tratá-lo por tu? Assim, quando ele chegar, e se de tal dermos conta, será como o reencontro entre dois velhos amigos.
Blá, blá, blá, muito lindo no papel, quero ver quando chegar a altura do frente a frente. Quase nunca são fáceis esses reencontros. Como será? Vou esperar (claro) para ver.
8. mar, 2018
Post 76
03h57, 5ª feira, 08/03/18
Estou num impasse: sem vontade para ler ou estudar, nada. Tanto que posso fazer e nada me apetece.
Há dias assim (ou noites, no meu caso), dias em que apenas nos apetece pastar, ceder ao spleen e stressar por o termos feito, ficando com uma sensação de vazio, de inutilidade, de tempo inglória e irremediavelmente perdido.
São aqueles momentos que nada rendem e não e nem nos esforçamos para que o façam, são horas sabáticas a que nos entregamos com a plena consciência que nos sabem depressivamente bem e frustrantemente mal.
Conformo-me. À medida que envelhecemos, habituamo-nos a “comer” coisas das quais antigamente nem o cheiro suportávamos. Há quem lhe chame a sabedoria da idade….
Tenho saudades dum certo “antigamente”, da inexistência dos telemóveis e dos computadores, das televisões de canal único, dos cafés tradicionais e das conversas com os amigos para passar o tempo. Não que eu seja antiquado ou retrógrado mas porque se era mais focado no mundo que nos rodeava. Hoje é-se generalista, numa conotação geralmente negativa, ou seja, sabemos um bocadinho mínimo de tudo mas acabamos por não saber nada de nada; não há aprofundamento, não há verdadeiro interesse no que nos rodeia. É como se em vez de termos um jardim, olhássemos de passagem para a montra da florista.
Quero com isto dizer que, embora tenhamos o mundo na mão por intermédio do monstruoso volume de informação ao nosso dispor através da internet, jornais, revistas, televisão, rádio e milhentos outros processos de actualização, nada conseguimos fixar ou saber em profundidade, somos como crianças numa loja de brinquedos ao fim de um par de horas: é tanta a diversão que até chateia, deixamos de lhe prestar atenção.
É isso o mundo de hoje, é isso que me faz ter saudades desse “antigamente”, onde havia tempo para ler, brincar, estudar, ter um hobby, passear e cultivarmo-nos; hoje passamos a vida agarrados ao computador ou à TV e, quando os largamos, ficamos vazios, pouco ou nada conseguimos assimilar ou aprender.
O grande problema é que nos tornámos junkies da tecnologia e dos media, fomos sendo progressivamente, imperceptivelmente, formatados há muito tempo, já não vai lá nem com uma desintoxicação. Sabe-se de tudo sem verdadeiramente saber de nada, há excesso de informação e os nossos flippers estão sempre a dar tilt.
É caso para implorar: “Salvem-me do progresso!”
4. mar, 2018
Post 75
Sábado, 23h53, 03/03
Back in business, os dias de descanso passam muito depressa. No entanto, faço o reparo de que a sua qualidade tem melhorado a todos os níveis, o que depende sobremaneira da minha predisposição mental. Digamos que a qualidade e eficácia de um período de repouso assenta maioritáriamente num modelo que vai sendo optimizado empiricamente, permitindo, através de múltiplas experiências, encontrar uma fórmula cada vez mais aperfeiçoada de o pôr em prática. Não há uma ciência, não há um módulo único, um processo específico de repousar eficiente e satisfatóriamente; tudo resulta de tentativas sucessivas que visam obter, retirar o melhor partido das circunstâncias em que se desenrolam e que estão em constante mudança, permitindo e obrigando à reformulação das suas premissas, que são muito pessoais e intransmissíveis; ou seja, o nosso modelo de obtenção das condições mínimas satisfatórias para um repouso eficiente, não pode ser utilizado como uma regra válida para todos, não é nem pode ser um medicamento que interage com outros indivíduos como connosco, uma panaceia universal. Cada vivência, cada circunstância temporal e psicológica, é única e intransmissível, não obedece a nenhuma regra específica e não pode ser tratada por nem como nenhum genérico.
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Cortei por alguns minutos o Fio de Ariadne e já não consigo retomar a ponta perdida nos labirintos do meu pensamento. Não tem muita importância, o essencial está escrito, pouco ou nada haveria mais a dizer.
Tenho à minha frente uma longa noite. Não a Longa Noite Fascista, como apelidavam, no pós-25 de Abril, o período de vigência de 48 anos do Estado Novo, mas uma longa noite de vigília (que também não é Pascal) cujo objectivo é, como sabido, a vigilância de pessoas e bens, motivo pelo qual sou remunerado.
Vigência, vigília, vigilância. Curioso como inadvertidamente consegui juntar 3 vocábulos, aparentemente com a mesma raíz semântica, num único parágrafo. Não é muito comum.
Só me faltava referir uma palavra semelhante, que é o nome do colega que geralmente me rende de manhã, ou seja, Virgílio (não o autor da Eneida, outro). Para não iniciar outra similaridade semântica, não aponho nem mais uma vírgula, mas um ponto final, fazendo assim um ponto final ao que tenciono escrever hoje.
Ipso facto, chau.
01, mar, 2018
Post 74
00h11, 01 de Março 2018
Já não escrevo há muito tempo. Está na hora de pôr em dia (ou antes, em noite) os meus escritos, tempo de grafar a minha “prova de vida”.
Começando, como quase sempre, com o boletim meteorológico, relato que o Inverno parece ter finalmente chegado, há dois dias. Chuva, vento e frio, queda de neve nas terras altas e queda de árvores um pouco por todas as terras. Parece que a estação acordou finalmente da sua longa letargia.
Deitando agora a meteorologia para trás das costas – claro que é uma metáfora, senão ficaria com as costas todas molhadas e apanharia quase de certeza uma pneumonia, podendo eventualmente obter assim um passaporte para ir desta para melhor. Felizmente sou masoquista e não quero ir para melhor, prefiro manter-me onde estou o mais possível. O Além não pertence ao Espaço Shengen, não poderia ir e voltar quando quisesse. Digamos que o Além é um espaço (será?) de onde os seus cidadãos não podem sair livremente, uma ditadura tipo “Hotel Califórnia”, onde
you can check out any time you like, but you can never leave.
Mas, dizia eu, deitando metafóricamente o tempo para trás das costas, vou falar de outra coisa qualquer que me venha à cabeça, uma qualquer dissertação sobre algo ou sobre nada (será possível dissertar sobre nada?).
Posso começar por referir que ontem saíram os resultados da disciplina de mestrado que estive a frequentar na Faculdade; não me querendo gabar, gabando-me, conquistei o “tri”, ou seja, é a 3ª vez consecutiva que subo ao pódio no 1º lugar, desta vez ex aequo com outros(as) colegas. Fiquei satisfeito, aumentou a minha bagagem cultural e o meu ego, deu-me forças para continuar. Não que me sirva para nada, pois não conto com esta idade utilizar os conhecimentos que adquiri, uma vez que a sociedade considera-me refugo, algo que só terá valor numa loja de antiguidades, e mesmo assim… Bem, por este andar, qualquer dia necessito de um contentor para levar a dita bagagem.
Deixando o intelecto e voltando à condição de simples mortal, nada há a assinalar. A minha condição física mantém-se quase estática, com um desenvolvimento, não direi mínimo, mas minimalista, a passo de caracol – embora os caracóis não deem passos, deslizam, por um processo que já esqueci, guardado nalgum arquivo morto da minha memória, na secção de “Ciências da Natureza” do antigo 4º ou 5º ano liceal ou até talvez do Ciclo Preparatório.
Estou convencido que a manter-se a progressão neste ritmo, quando for mesmo velhinho, lá para os 90 anos (se lá chegar, o que duvido), poderei ir ao encontro do Criador de boa saúde e na posse de todas as minhas faculdades locomotoras. A única coisa que eu desejo é que a caixa de comando, a centralina, se mantenha em boas condições, até me levar para a derradeira sucata. Depois… um bom apetite para os bichinhos, que lhes saiba bem o bife tártaro ou a carne assada, a preparação já não dependerá de mim.
Tenho dito.
7. fev, 2018
Post 73
06/02/18, 3ª feira, 23h27
Continua o frio, mas não chove, o que começa a tornar-se preocupante, porque as barragens ainda estão vazias. Este ano é um pouco a antítese do trágico 2001, ano em que a ponte Hintze Ribeiro, em Castelo de Paiva, caiu. Entre novembro de 2000 e março de 2001, choveu quase ininterruptamente, tornando este o período mais chuvoso desde o longínquo ano de 1900.
Ainda estamos no período límbico em que acreditamos que este ano vai superar as espectativas quanto à melhoria das condições gerais de vida , muito particularmente, as nossas. É o sonho do mito, do qual só acordaremos quando finalmente, mais mês, menos mês, nos tivermos convencido de que irá ficar tudo mais ou menos na mesma, como nos anos precedentes.
É cíclico, lá para dezembro voltaremos a sonhar. Chama-se a isso Esperança que, como todos sabemos, é sempre a última a morrer. Entretanto, vamos culpando ou agradecendo à sorte ou ao destino, a Deus ou aos Vates, às bênçãos ou ao mau-olhado, os sucessos ou revezes que nos forem acontecendo. Somos animais de crenças, muitas delas irracionais, mas que para nós fazem todo o sentido, mesmo sabendo ou suspeitando que sejam falácias. É a Fé, e esta move montanhas.
Portanto, com uma fé que move montanhas e uma Esperança que é a última a morrer, que nos pode acontecer de mal?
Tudo!
6. fev, 2018
Post 72
06/02/18, 3ª feira, 03h55
Hoje, sem mais nem menos, abruptamente, de modo inesperado e sem contar, decidi-me a criar uma nova página no meu pseudo-blog; chamei-lhe (In)vulgaridades. Aí, insiro palavras (in)vulgares da língua portuguesa, sua origem e significado.
Sempre gostei de conhecer (e utilizar) palavras novas que muitas vezes conduzem a novos significados, novas interpretações, ou que aprimoram a definição das antigas, das que sempre usámos com o mesmo significado ou equivalência. São palavras “novas” que podem ser usadas em benefício da compreensão dos textos, da mesma maneira que usamos alguns neologismos, palavras inventadas ou termos importados. São por vezes palavras cujo significado abarca conceitos que, de outro modo, teríamos que grafar mais extensivamente, com mais palavras. Assim, constituem um enriquecimento linguístico, ao fazerem parte da nossa bagagem cultural.
Entretanto, na página Pensa/mentos, vou acrescentando poemas, aforismos e citações que aí mereçam ser transcritas.
A noite apresenta-me hoje um panorama acústico invulgarmente silencioso. Dá a impressão de que, quando faz frio, os sons retraem-se, como se não se quisessem expor a tão baixas temperaturas. Há muitos anos que me apercebo desse fenómeno. Parece que a natureza se recolhe, numa espécie de hibernação.
Não estou a inventar, nas noites frias tudo emudece, o silêncio sobressai, numa espécie de calmaria simultaneamente desagradável e orgásmica. Para mim, este tempo frio desperta-me uma certa melancolia, construída com as histórias da minha meninice e juventude, com as aventuras rocambolescas de Ponson Du Terrail e as descrições românticas e aventurosas de Júlio Verne. São escritores que contribuíram bastante para moldar o meu percurso literário, não esquecendo também, noutras vertentes de leitura, nomes como Henry Dalton e Philip Gray, Emílio Salgari, Philip K. Dick, Robert Heinlein, Ursula K. Le Guin e tantos outros que seria fastidioso enumerar. Ao meu pai, esse devorador de livros, e a esses escritores, devo a minha apetência pela leitura e a minha “obsessão” pela aquisição de livros, alguns dos quais, provavelmente, nunca conseguirei ler.
Tenho um desgosto
avant la lettre: temo que a geração que me vai suceder na linha temporal encare a biblioteca que fui criando (ou antes, que fui acrescentando à de raiz) como um estorvo, como algo sem utilidade, um mono a despachar. O futuro, esse futuro do qual já não farei parte, o dirá.
1. fev, 2018
Post 71
24/01, 4ª feira, 00h12
Tão depressa passou janeiro! Na verdade, o relógio mental, com a idade e com o uso, deve ter as molas mais frouxas e acelera muito. Sim, porque o meu relógio ainda é dos antigos, de dar corda, desgastou-se com o uso.
Se hoje pudesse voltar atrás no tempo, para a minha juventude, gostaria de ter sido pintor (de quadros, não de paredes). Sinto que não consigo exteriorizar tudo o que me vai no íntimo e pintar (como escrever, esculpir ou qualquer espécie de criação artística) é dar voz ao ego, esse triste mudo que usa o corpo para comunicar as histórias que tem dentro, os anseios, os temores, as paixões. Aquele que não o consegue fazer morre entupido, asfixiado pelos sentimentos, perece de frustração. É um infeliz que não vive porque não consegue dizer que viveu.
Um artista é um comunicador, “fala” por intermédio das suas obras porque tem necessidade de que os outros (e ele também) saibam o que guarda, o quanto tem para partilhar. Pro bono!
24. jan, 2018
Post 70
23h58, 23/01, 3ª feira
Estive a pensar (já o faço há mais de 60 anos) e cheguei à conclusão de que existe actualmente um certo vazio de análise crítica da minha parte sobre o mundo que me rodeia, justamente porque existe também um vazio de relacionamentos, de contacto mundano que o meu trabalho, pelas suas características, condiciona. Como falar do dia-a-dia se a minha vivência é no noite-a-noite, onde convivo (direi antes, apenas cumprimento) com 2 ou 3 pessoas? Como falar de um mundo que vive enquanto eu durmo e dorme enquanto estou de vigília?
Antes, os meus temas fundavam-se na observação do mundo in loco; agora, ao vivo e a cores só eu, se me mirar ao espelho ou se me espelhar no que escrevo. Daí o meu egocentrismo, não num sentido pejorativo mas no sentido analítico.
Tenho actualmente o meu universo muito reduzido. Sinto-me como naquele filme de ficção científica em que a humanidade, devido a qualquer cataclismo apocalíptico, ficou reduzida a escassos milhares de pessoas espalhadas pelo mundo. Um mundo quase vazio, onde qualquer movimento se destaca num pano de fundo estático. Isto é a noite, isto é o meu trabalho nocturno. Deve ser por isso que tenho pensamentos tão sombrios (just kidding!).
21. jan, 2018
Post 69
01H09, domingo, 21/01/18
Estamos num S. João invernoso! A 6 meses de distância da festividade de Junho, a “molinha” reapareceu e é tão chata como a do verão.
Memórias, memórias… há recordações que nunca revelamos a ninguém, são demasiado pessoais, tão íntimas que mostrá-las seria como que uma auto-violação. Outras há que, mesmo mostrando um pouco de nós, não violentam o nosso íntimo, são confidências consentidas, onde as intimidades estão salvaguardadas, como que a nossa fotografia, a nossa representação mental em fato de banho. Às primeiras, levá-las-ei comigo para o túmulo ou para o crematório; quanto às outras… bem, essas recordações que mostram o lado superficial de cada um, que mal há em expô-las, em escrevê-las?
A partir do fragmento de memória de que falei num post recente e à medida que a infância caminha para o seu termo, as recordações vão-se desfragmentando, criando continuidade, numa lógica temporal.
Do que me lembro dessa idade da inocência que vai dos 3 aos 5/6 anos? Das camisolas de lã que a minha tia fazia, à mão ou na máquina de tricotar Passap, para mim e para os meus irmãos mais velhos, em tons coloridos ou lisas, de umas calças de malha cinzentas com fecho éclair, onde um dia trilhei a….bem, adiante!
O desvelo com que o meu pai construiu no quintal um conjunto de canteiros, numa simetria cuidadosa, feita de losangos e círculos, onde ele cultivava flores. Recordo o Fox-Terrier preto e branco malhado, o Boby, que anos mais tarde morreu de pneumonia. Vejo o meu pai a vender a moto Norton verde, o pequeno barco à vela “Plâncton”, do senhorio, que estava na loja da casa (espaço amplo, tipo garagem, por debaixo do piso habitacional) e que ainda lá estará, completamente podre. Lembro a Páscoa, os verdes à porta, à espera do compasso, as amêndoas de licor, o pão de ló. O quintal com as suas árvores de fruto: 1 limoeiro, 2 pereiras, 1 ameixieira, 1 pessegueiro, 3 laranjeiras, 1 tangerineira e outra que dava o que chamávamos tanjas (tangerinas maiores). Recordo o maravilhoso espectáculo dos pirilampos nas noites de verão, a bomba de água com que enchíamos o depósito, o poço, a fossa, o sabugueiro que o meu pai plantou e que agora ainda existe e está monstruosamente grande.
Lembro também os maus momentos: não era uma criança débil mas estava sempre doente. Ora gripes, laringites, faringites ou amigdalites que me prostravam na cama dias a fio, crises de vómitos violentas, ataques idem, de fígado, problemas intestinais, febres a causar delírio. Lá vinha o Dr. Ramalho e, numa fase posterior, o Dr. António Ferreira de Sá. Nessa altura era perfeitamente normal os médicos virem ao domicílio, agora é quase um luxo.
Nesse tempo as curas passavam pela administração de antibióticos injectáveis e dolorosos, que eu sofria na pele e na carne, nas veias que as agulhas não encontravam por serem finas e profundas (ainda hoje o são). Era espetado 4, 5 ou mais vezes, até o médico acertar. Ainda hoje tenho marcas, que se converteram em sinais. Quase até ao fim da minha adolescência, tinha calafrios só pela visão dessas agulhas.
Não posso deixar de relembrar a minha avó, velhinha que me adorava mas que era implacável quando tocava à educação e ao respeito. Foi a primeira morte a que assisti e que me marcou profundamente, não só pela ocorrência em si mas também porque gostava muito dela.
Recordo-me também criança que até aos 11 anos não saía de casa sozinha, acompanhado e educado por 3 velhos, uma experiência que não recomendo.
Não posso dizer que tenha tido uma infância muito feliz, mas a felicidade, encontrava-a então nos pequenos nadas da vida: ir a Espinho à feira, ir ao Porto, sair da gaiola, enfim. Eles viveram e fizeram-me viver a vida que achavam correcta, não posso condená-los. Outras mentalidades…
18. jan, 2018
Post 68
01H21, 5ª feira, 18/01/18
Já alguma vez me questionei sobre o que queria ser ou ter sido nesta vida que me coube em sorte? Ou será que me limitei a vogar ao sabor da maré, sem realmente ter a mínima ideia de para onde ela me levava?
São perguntas irrespondíveis que me consomem há largos anos. Não sei se tenho que ter remorsos por não ter dado um rumo à vida ou terei que me limitar a resignar-me com o que tenho, não sei se advogue o livre arbítrio ou curve a cabeça ao destino. O azar é que acredito em ambos; por um lado o livre arbítrio torna-se-me aceitável porque a existência é feita de actos ou situações, ora forçadas ora evitadas, como, por exemplo, aproximar-me ou afastar-me da beira de um penhasco. Pelo outro lado, acredito que, apesar dessa possibilidade de escolha, o destino também tem um papel na evolução dos acontecimentos: evitada ou não, a queda ou não queda do penhasco já está contemplada no plano global do universo, independentemente ou não da existência de qualquer entidade reguladora, vulgo Deus ou Grande Arquitecto. Caso contrário, o mundo seria um caos total, onde os acontecimentos se processariam de um modo total e irracionalmente aleatório.
Por tudo isto, não acredito que se possam alguma vez fazer viagens físicas no tempo porque isso pressuporia a possibilidade de modificar os acontecimentos, tanto passados como futuros, o que conduziria a um caos ainda pior que o anteriormente mencionado, pois essa manipulação acabaria por criar paradoxos irresolúveis, como poder matar os meus pais no passado, antes de eu ter nascido, e existir no presente para o fazer.
Ora, se eu os matei no passado, nunca fui concebido, portanto não existo no presente nem nunca existi ou existirei e, sendo assim, não os posso ter morto.
Acredito, isso sim, que possa haver algum processo de leitura do passado, uma espécie de gravação equivalente a um registo fílmico, onde se possam apenas consultar acontecimentos passados. Os budistas acreditam que tudo fica registado no éter ou algo similar e pode ser consultado em condições muito restritas e apenas por pessoas espiritualmente muito desenvolvidas.
E quanto ao futuro? Será possível consultar algo que ainda não aconteceu? Tenho sérias dúvidas. Ver o futuro seria como matar a vida, retirar-nos todo e qualquer ânimo ou vontade de continuar a lutar por algo que já sabíamos que, fosse como fosse, iria acontecer. Além de que, obviamente, esse conhecimento tornaria impossível a consumação do futuro.
14. jan, 2018
Post 67
01h05, domingo, 14 de Janeiro
Está frio (6 graus) e aguaceiros esparsos que poderão converter-se em chuva.
Boletim meteorológico feito, falemos de outras coisas.
Bem, há dias em que nada sai da cabeça, nem caspa. É como se tivesse por lá passado uma brigada de limpeza e aspirasse tudo indiscriminadamente, sem ter em atenção a o quê. É nesses dias que nos apercebemos da enorme importância do pensamento e do conhecimento a ele associado.
Bem-aventurados os pobres de espírito – são felizes! Quanto maior o grau do conhecimento, quanto maior a consciência de si, maiores serão as hipóteses de infelicidade, de frustração, de incompletude, de inadaptação. Quem mais tem mais quer (e não me refiro a bens materiais): é este o cerne da natureza humana e que muitos desconhecem porque vivem da (na) superficialidade. São os tais felizes…
Há 2 tipos de pessoas: os que vivem para viver e os que vivem para perguntar. Os primeiros limitam-se a isso mesmo – viver; os outros vivem para perguntar, para ter respostas. E cada resposta conduz a outras perguntas. É um círculo vicioso, não tem fim, é um percurso sem retorno. Sentimo-nos felizes por questionar e infelizes pelas respostas, é o preço a pagar.
Acabou a filosofia de bolso, apetece-me falar do passado, das memórias. Há algumas que estão tão profundamente enterradas que podem passar-se dezenas de anos até que reapareçam; às vezes basta uma palavra, um cheiro, um fugaz déjà vu, uma foto, um sabor: a memória ressurge e em breve arrasta outras co-existentes, como se tivessem ocorrido ontem. Outras, a grande maioria, mantêm-se enterradas para todo o sempre.
A memória mais antiga de que tenho memória (passe a expressão), a primeira manifestação que conheço do nascimento do meu ego, da minha individualidade, foi ver-me a olhar para o meu irmão mais novo deitado num berço de palhinha creme com losangos marron do mesmo material, teria eu 2 anos e meio. É evidente que parte da recordação pode ser falsa, é muito comum; no entanto, o facto aconteceu.
É um flash, segundos de consciência fotográfica que ficaram retidos na memória, sabe-se lá porquê. São momentos que até nem são de relevo, mas são marcantes porque indicam o início de uma individualidade, o princípio do fim da máquina de mamar que todos somos até atingirmos a consciência, como entidades únicas e sencientes.
11. jan, 2018
Post 66
11 de Janeiro de 2018, 04h02
O que é que é escuro, molhado e dura 7 horas? A madrugada de hoje (piada seca sobre um item molhado).
As minhas crónicas, últimamente, têm sido um corolário de auto-comiseração, uma ode ao “coitadinho de mim”, sobretudo após o episódio da doença que me atingiu e marcou ligeira (?) mas indelevelmente. Acho que nunca mais recuperei totalmente aquela joie de vivre que me caracterizava, pelo menos superficialmente.
Isto, claro, para não falar dos tenebrosos segredos, dos dantescos monstros do meu Id, dos macabros recônditos do meu espírito, etc.: Ora aqui está um bom exemplo de atitude gótico-romântica que caracterizou a literatura e o pensamento do século XIX; se eu tivesse nascido nessa época, teria certamente suplantado Edgar Alan Poe ou Mary Shelley e as suas histórias de horror e suspense. Continuo a crer que nasci na época errada, deveria ter vivido no período vitoriano, com o seu romantismo negro, fantástico, povoado de ogres e almas penadas, de revivalismo gótico e demónios terríveis, de loucos e deformados.
Todos os revivalismos são ilusões, desejamos viver ou ter vivido em ambientes passados que apelam a uma certa nostalgia, a um desejo pueril de pertença. Afinal, sempre que concretizamos um anelo, e passado o período da ilusória satisfação inicial, constatamos que tudo não passou de uma quimera, de uma miragem que nos deixa quase tão vazios como antes da conquista. Somos como os cães, que nunca estão satisfeitos com o que se lhes dá, querem sempre mais e esse mais nunca é suficiente, nunca concretiza o desejo de completude.
Aliás, se pudéssemos reviver esses nossos sonhos de épocas passadas, seríamos com certeza bastante infelizes, pois estaríamos condicionados por noções de vivência totalmente diferentes dos desses períodos, já para não falarmos dos abismos tecnológicos com que nos depararíamos e no desconhecimento dos conceitos básicos (a todos os níveis) que tornam a vida contemporânea relativamente mais fácil e segura.
Sonhemos com essas utopias mas apenas como meras fantasias recreativas, pois que a sua concretização constituiria uma decepção inimaginável e um tremendo retrocesso evolutivo que condicionaria perigosamente o nosso equilíbrio psíquico.
Carpe diem (e
Carpe noctem).
1. jan, 2018
Post 65
00h17,2ª feira, 01/01/2018
Embora data meramente simbólica, momento cronológico puramente virtual, ele chegou – o Novo Ano. Como sempre, faz parte da tradição toda aquela caterva de votos que é costume desejar nesta altura do calendário e que nos faz sentir melhores, mais felizes e solidários. É talvez o segundo momento mais “humano” do ano, logo a seguir ao Natal, independentemente das crenças de cada um, porque o que conta é o espírito, a intenção com que foi exteriorizado (e interiorizado) esse momento particular que sai directamente do mais íntimo da nossa faceta “boa”.
Pena é que esses sentimentos elevados de irmandade cósmica duram breves horas ou mesmo minutos; tratamo-los como uma caixinha de chá, a qual, após servido, é rapidamente tapada para não perder os aromas; deveríamos era usá-lo como um pot-pourri: deixá-lo exposto para que as suas fragâncias chegassem a todo o lado e se mantivessem indefinidamente.
Sei que é pura utopia, mas que mal há em sonhar? O sonho comanda a vida, como dizia Rómulo de Carvalho, vulgo António Gedeão. Sonhemos pois, que esta vida são dois dias e só nos apercebemos disso quando chegamos ao terceiro, que não existe.
31. dez, 2017
Post 64
30/12, sábado, 23h38
Estamos a chegar ao último dia do ano sem sequer sabermos se sobreviveremos a este (a e oeste, e a norte e a sul). Conto estar cá daqui a um dia e daqui a um ano e daqui a dez anos, mas também sei que posso contar com uma estimativa cada vez mais reduzida por cada dia que passa. O Tempo mata…
Tenho saudades da feliz despreocupação da juventude, onde o tempo era lento e nós imortais, onde só sucedia aos outros o que agora sucede a nós, onde o futuro era um dado adquirido e nem valia a pena pensar nele. Agora o futuro é o nosso dia-a-dia, cada vez mais curto e mais incerto, volátil.
Só escrevo, só exteriorizo pensamentos em tons de cinza ou negro (talvez porque o negro me faz mais magro), e dentro desses pensamentos ainda consigo fazer humor negro; é simultaneamente engraçado e triste.
Cheguei, como todos os ainda vivos, àquele período do ano – entre o Natal e o Ano Novo - em que inconscientemente deitamos contas à vida, fazemos um balanço dela (geralmente pela negativa) e esforçamo-nos por não nos atolarmos nas sombras das nossas vidas. Há quem não consiga, e por isso há muitas mortes súbitas ou esperadas, muitos suicídios cometidos por aqueles a quem a vida apresenta um saldo de bancarrota. Para esses, o futuro deixou de existir há muito, e quem não tem futuro já está morto antes de morrer.
Já foquei o tema do suicídio há largos meses, talvez mais de um ano, e disse (e reitero) que não está nos meus planos fazê-lo, nem agora nem nunca. Cheguei a ter essas ideias no início da adolescência, mas isso acho que todos por lá passam, é uma idade muito conturbada, cheia de paradoxos e pensamentos desconexos, dúvidas existenciais, conflitos connosco próprios e com os outros. É normal e geralmente ultrapassa-se. Aí, questionamos a nossa existência mas aguardamos pelo dia de amanhã, a ver se é melhor; agora, questionamos a nossa existência sem sabermos se temos amanhã, é diferente.
Eu sou como Claudio Magris: desespero com a razão mas acredito com a vontade e é isso que me faz ter esperança nesse amanhã incerto. É lógico que com esta atitude a ideia de solução de continuidade não está nos meus planos, mas lá diz o ditado: nunca digas “desta água não beberei”. No entanto, estou demasiado agarrado à existência para sequer considerá-lo como opção (ainda bem).
Já chega de pensamentos tétricos (não tem nada a ver com o Tetris), amanhã também nascerá o sol; se calhar as nuvens tapam-no, podemos não o ver, mas ele está lá e nós sentimo-lo.
25. dez, 2017
Post 63
20h16, domingo, 24/12/17
Calhou a mim fazer a véspera de Natal. O que vale é que já estou numa idade em que essa ausência de ambiente familiar já não afecta tanto. Contento-me em celebrar por reflexo, nas famílias de aqui, esse momento.
Não me importo, a sério! É certo que está sempre subjacente uma certa nostalgia, uma memória dos bons tempos passados, mas tudo, afinal, não passa de uma ilusão, uma espécie de estereótipo de felicidade, ao qual nem sempre corresponde o real. Por vezes, nesse passado, houve momentos menos felizes, mas que a nossa piedosa memória dilui ou faz esquecer.
Como exemplo, recordo o meu Natal de 2013, talvez o pior de sempre: um emigrante (quase) sozinho, ainda por cima no meio de uma cultura (cambojana) que não valoriza o Natal, apenas o aproveita, logicamente, para, também eles, juntarem a família (os únicos ocidentais presentes eram eu e o meu cunhado). Dói, quer queiramos, quer não.
Estou rodeado de silêncio. A esta hora toda a gente está metida em suas casas, em amena confraternização. No entanto, há ainda alguns raros familiares ou amigos que vão chegando para a celebração; em breve, e durante umas 4 ou 5 horas, não haverá barulho nem vivalma. Depois começa a debandada dos sinceros ou menos sinceros visitantes, dos que vêm por amor, por simples amizade, por piedade ou por hipocrisia.
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Afinal, os raros familiares e amigos de que estava a falar, estão agora a chegar em força. Por isso, tive que cortar temporariamente o fio dos meus pensamentos e já não sei da ponta, já não tenho ponta por onde se lhe pegue. Vou ter que terminar por aqui, com as interrupções seccionei as veias da criatividade e estou a esvair-me de pensamentos coerentes; por hoje, morri (intelectually speaking).
17. dez, 2017
Post 62
5ª feira, 14/12/17, 00h00
O tempo (não o atmosférico, o outro) tem sido escasso para escrever. A faculdade – quando não o sono - absorve grande parte do meu tempo útil.
O tempo (desta vez o atmosférico) está a voltar aos padrões normais para a época, como dizem os meteorologistas.
Estou num impasse; nem triste nem alegre, nem esperançoso nem desesperado, nada. Digamos que é um estado de espírito insípido. Mas sempre sono, muito sono; é curioso que sempre que tenho férias, sempre que fujo às rotinas subordinadas a Cronos e a Morfeu, sempre que experiencio essa espécie de jet-lag vivencial, demoro cerca de 3 meses a reorientar, normalizar o meu (forçado) ciclo circadiano, o que é muito desagradável e inconveniente.
Esse défice de “proper rest” reflecte-se, evidentemente, na minha vida do dia-a-dia, o que se traduz por períodos em que a vigília cede lugar ao sono, em que a concentração se dissipa, em que a memória se esquece, em que o corpo, mesmo que em repouso, não descansa.
Consequência do trabalho ou da doença? Ou de ambos? É stressante ter agora que gerir o descanso ao milímetro, ter que medir a vida pela escala dos minutos. Vejo um quadro muito negro à minha frente – porque é de noite e os candeeiros públicos não iluminam tudo (pelo menos ainda mantenho o humor).
(Ponto, parágrafo):
Vivo há 35 anos na “minha” casa, tantos quantos os anos de casamento. Tudo mudou: o comércio tanto desaparece como regressa (ou não), as pessoas nascem e morrem, está tudo em constante mudança.
Quando eu era jovem, via as coisas como se imutáveis, como frames: estáticas, sempre iguais. Agora vejo um filme repleto de anacronismos e imagens do passado, mudanças colossais, nem sempre para melhor. Antes havia ourivesaria, 2 papelarias, mercearias, pastelarias, banco, 2 sapateiros, 2 estofadores, fábricas, 2 sucateiros, 2 serrações, cafés, barbearia, casa de móveis e electrodomésticos, armazéns variados; hoje não há ourivesaria, só há uma papelaria, não há banco nem barbearia, nem fábricas, nem casa de móveis, nem sucateiros ou serrações, metade dos armazéns, menos cafés, imensos espaços devolutos, com anúncios de aluga ou vende. Progresso? Não parece. A zona está degradada e envelhecida (eu incluído), não há aqui nada que sirva de incentivo a nada, morte lenta. Mais abaixo, está-se a construir um hospital privado; virá a tempo de curar a zona ou não passará de cuidados paliativos?
Paralelamente, vejo o meu mundo – o meu mundo interno – a arruinar-se, a envelhecer, a caminhar para o fim e não encontro nele nada que me permita dizer que valeu a pena ter existido.
Cumpri a minha “obrigação” vital: o esforço de perpetuação da espécie. Fora isso, pessoalmente, não vejo muito sentido em viver e ter vivido. Mas isto é apenas a minha visão do mundo; poderia ser mais colorida mas, se calhar, sou daltónico.
2. nov, 2017
Post 61
00h05, 5ª feira, 02/11/17
Acabou de acabar (passe a expressão) o dia em que prezámos não ter sido homenageados, o dia em que agradecemos não ter recebido flores na nossa residência nem familiares ou amigos a visitarem-nos. Comemorámos ontem o Dia dos Vivos, o Dia de Todos os (ainda não) Santos. Neste dia celebrou-se um ritual de sobrevivência, uma elegia à senciência terrena activa; foi o dia do alívio mas também do medo do porvir, da lembrança profética da inversão expectável (embora temporalmente incógnita) da nossa posição face ao mundo sensível e anímico (soa a tautológico...).
Neste dia cantámos uma ode à vida, camuflada de dor e saudade pelos que já não se encontram fisicamente presentes. Não que essa dor e essa saudade não existam, mas no fundo, bem soterrada no inconsciente, espreita a alegria de viver e a satisfação perante a posição que detemos face àqueles a quem fomos recordar.
30. out, 2017
Post 60
23/06, sábado, 28/10
Ora bem, isto não é um blog; ou antes, é. Não é no sentido tradicional (mas já há uma tradição? Os blogs nasceram há quê? 10, 15 anos?) em que o autor pega num tema-base ou trata de vários assuntos de interesse mais ou menos alargado e expõe-nos para um público que está “na mesma onda”. Não, isto é mais uma sequência de flashes de vida, de pensamento, ao estilo “diário” de Miguel Torga.
Perderei com isso hipotéticos leitores, mas é o meu estilo, é a manifestação da minha zona de conforto, da qual, todavia, me quero eventualmente libertar, partir para outros voos, mas que, ao oposto de Ícaro, não me atrevo a tentar. Pés de barro, asas de cera, insegurança? Pode ser que nunca saia do meu cantinho, pode ser que irrompa repentinamente, qual vulcão adormecido, quem sabe se nunca.
Neste momento apenas tenho as minhas “cartas” electrónicas, os meus solilóquios virtuais que ninguém (dos 7 que dele têm conhecimento) lê. Apenas um aflora irregularmente, talvez num momento de ócio, de quem nada mais tem para fazer.
Isto prova que os mais próximos são os mais distantes, que ler um jornal ou revista é mais importante que ler uma vida.
Resignemo-nos, estamos votados ao esquecimento, o que escrevemos vale menos que uma fotografia num álbum de família, se é que ainda existem. Provávelmente, também elas estarão esquecidas num disco duro ou numa nuvem, um objecto arqueológico para as gerações vindouras.
Não importa, continuarei a escrever em atenção ao meu seguidor mais fiel: eu.
24. out, 2017
Post 59
Sábado, 21/10, 13h35
Hoje, contra o costume, a minha paisagem mudou; não vejo o meu espaço à luz dos candeeiros da rua, mas à luz do sol. É igual, mas é diferente, com o hábito tornei-me uma ave nocturna.
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Domingo, 22/10, 23h35
Ontem não deu para mais, acabei por interromper algo que, a continuar, seria uma manta de retalhos literária, sem qualquer coesão.
Dei conta há muito tempo ou, pelo menos, suspeitava (não é suspeita, é certeza, mas insinua-se tão sub-repticiamente que nem é perceptível) que estou mesmo a entrar no processo natural, progressivo e irremediável do envelhecimento. Como? Pelo processo mais fácil e comum de detectá-lo, embora a maioria das vezes, por medo, por negação, o não façamos: observando a nós próprios com olho crítico.
São pequenos tiques, são ruídos (palavras ou não), mais coerentes ou menos coerentes, que começam a fazer parte do nosso dia-a-dia vocal, é uma atitude mental mais conservadora a alguns níveis e mais liberal noutros. É, enfim, uma postura menos preocupada com as convenções sociais que espartilharam a maior parte da nossa vida e que agora são encaradas com uma abertura por vezes inusitada, que os mais novos têm tendência a confundir com a rebaldaria ou o desleixo, próprios dos velhos.
Em parte, isso sucede (o desleixo) mas muitas das vezes confunde-se o libertar das convenções com a degenerescência mental, o que é normal, pois não é concebível para um humano mais novo a ousadia, o sacrilégio da quebra dos tabus nos quais assentámos a nossa existência. Chega-se a um ponto em que we don’t give a damn sobre o que os outros poderão pensar e tornamo-nos politicamente incorrectos. É a irreverência tardia daqueles que, em novos, não tiveram a coragem de a assumir.
16. out, 2017
Post 58
23h52, domingo, 15/10/17
Acabou o verão, acho que definitivamente. Esta noite espera-se chuva que, em princípio, durará toda a semana. Embora o meu “Eu” citadino peça mais bom tempo, o outro, o da razão e bom-senso, está satisfeito pela vinda da chuva (esperemos que moderada).
Já há rios secos, enormes áreas florestais ardidas, culturas destruídas pelo fogo ou pela seca; é tempo de dar voz ao outono e ao seu patrão, o inverno.
Entretanto, o meu jet-lag pós-férias continua a incomodar: noites (dias) mal dormidas, cansaço constante, défice de atenção e memória… Enfim, uma panóplia de estados psico-físicos indesejável. É como se o trabalho, a rotina, nos fizessem pagar caro por os termos abandonado tanto (?!) tempo. À parte isso, tudo bem.
Que se passa com os incêndios? Toda a gente sabe que são fogos provocados. Que se passa com as pessoas? Como é que gente, aparentemente normal, se põe a atear incêndios sem sentir escrúpulos, arrependimento, sentimento de culpa, remorsos por destruir vidas – no sentido de percurso de existência – e vidas – como entidades anímicas? Como é possível que possam viver com isso, como podem ignorar todo o prejuízo e sofrimento que causam?
A sociedade está gravemente enferma e – o que é ainda mais grave – sente-se inimputável, arranja bodes expiatórios para justificar a sua loucura, sejam eles o sistema, os vizinhos, a falta de emprego ou qualquer outro pretexto. Ela está gravemente enferma nos seus valores, na sua ética. A transmissão das normas de conduta moral e cívica é cada vez mais deficiente e há-que culpar a sociedade como um todo mas também e muito particularmente cada indivíduo em si, cada unidade singular como transmissor de valores que está esquecendo progressivamente e que está esquecendo de transmitir ou que está deturpando, e isso vê-se em todo o lado: é um progenitor que deita lixo para o chão em frente de todos, incluindo os seus descendentes, é um pai ou uma mãe que faz um escândalo público ou agride um professor numa escola, são os autocarros com os velhos de pé e os novos sentados, é o desrespeito progressivo e generalizado nas posturas físicas e na linguagem, é o vanglorio público de actos reprováveis ou desonestos.
Estamos a atingir um pico de decadência em marcha acelerada. Já houve outros, é certo, porém vivemos neste e é este que nos interessa, não nos vamos desculpar com os anteriores.
Apercebo-me de que estou a falar como um homem de 60 anos, mas tal é expectável, como também é de esperar que os hajam, para manter o equilíbrio. Sou velho mas não sou um Velho do Restelo, aceito mudanças no bom sentido, não aceito é a vulgarização da má educação e das atitudes desonestas.
5. out, 2017
Post 57
05/10/17, 5ª feira, 00h28
Já está! Já se foram as férias, como se nunca tivessem acontecido. Só ficaram as memórias, boas, em geral.
No entanto, estas férias, apesar de apenas de 2 semanas, valeram por muito mais do que a vivência dos últimos anos (Quantos? 10? Já perdi a conta!), onde não tive o que verdadeiramente se pudesse chamar um emprego, com todos os seus direitos e deveres nem, em consequência, férias.
Aqui reside a diferença: quando se fazem biscates ou se está desempregado, os tempos livres não são de lazer, são de insegurança, angústia, frustração, são não saber o dia de amanhã, não ter futuro, não ter sequer dinheiro disponível para algo fora do essencial, ou nem isso. Em contrapartida, ter um emprego estável (já não há empregos estáveis) significa descansar e ser pago por isso, saber que no fim tem-se um trabalho minimamente garantido e, por tal, saborear todo e qualquer bocadinho de lazer com mais satisfação.
Bem, foi óptimo enquanto durou, alarguei um pouco mais os horizontes do espírito, e isso valeu por tudo o resto. Tirando uma gripe de coffin to the grave, a minha experiência de 5 dias em Londres valeu mais (não sei bem explicar porquê) do que os 9 meses que passei em Paris.
Não nego que, para mim, Paris foi uma experiência extraordinariamente enriquecedora, mas Londres foi, a seu indefinível modo, superior.
Ambas as cidades têm a sua aura mítica: Paris é, por excelência, a capital do conhecimento e da arte e reflecte bem uma hegemonia simultaneamente cultural e romântica; Londres é o retrato de um império, também ele fortemente cultural mas notóriamente de glória, de grandeza. Embora ostente um passado imperial, não se lhe nota a hipocrisia francesa, traduzível por uma burguesia invejada e invejosa, um capitalismo encapotado sob a divisa Liberté, Égalité, Fraternité.
Londres é rica e mostra-o sem ostentação e parte do seu encanto reside nessa atitude.
Resumindo, acendi mais umas luzinhas no meu mapa-mundi íntimo; são luzinhas modestas, mal iluminam, mas já vão orientando, criando uma ainda ténue penumbra onde antes só havia trevas. Enquanto for vivo e válido tentarei aumentar essa visibilidade, ver ou tentar ver onde não via, iluminar o meu caminho.
6. set, 2017
Post 56
00h21, 4ª feira, 05/09/17
Cada vez se nota mais a despedida do verão, um adeus sentido por quem fica e nunca sabe se assistirá ao seu retorno.
Dia 19 vou a Londres tentar catch up um pouco do que foi a minha juventude perdida, tal como uma velha árvore que absorve ávidamente nutrientes da terra sabendo, contudo, que não terá mais frutos; é uma questão de sobrevivência do espírito.
Quando falo em juventude perdida, não me refiro à sua integralidade mas apenas àquela parcela, a meu ver, mais importante, que é a abertura a novas realidades, àquela 5ª dimensão que nunca tive oportunidade de viver: viajar, conhecer novas terras e culturas, interagir, sacudir mitos e preconceitos, pensar como o “outro”, ser o outro, nem que por breves momentos. É difícil viver num mundo que desconhecemos, confinados ao nosso buraco, como uma toupeira cega que nunca viu o sol e que é cega porque se habituou a não vir à superfície. É um pouco tarde para curar essa cegueira congénita, mas nunca é tarde para tentar; por pouca visão que se ganhe, vale sempre a pena (quando a alma não é pequena – como diz Pessoa). No fundo, temos medo de sonhar porque, quando sonhamos, assustamo-nos com a grandeza dos nossos sonhos. Não vivemos felizes, vivemos acomodados.
Hoje a Cristina fez 24 anos; dia 12 de outubro, a Sofia fará 33. Cronos é impiedoso (para mim e para elas). Não há futuro.
3. set, 2017
Post 55
03/09, domingo, 00h33
Depois do período de acalmia próprio dos meses de verão, volta-se gradualmente ao “mesmo de sempre”: retorno ao trabalho, início de aulas, perda acentuada do bronzeado, sensação de satisfação/perda/nostalgia própria de quem terminou as férias, novo vigor para retomar a rotina contrabalançado pelo desgaste de a ter de retomar; enfim, a dicotomia típica dos humanos dos 2 últimos séculos ( este incluído), pois antes, essa sensação de euforia/tristeza não existia, a nossa formatação não incluía a invenção moderna das férias e seus efeitos secundários.
Essa revolução social pós-romântica e pós-modernista foi uma conquista dura de obter, principalmente (ou, direi mesmo, exclusivamente) devido à resistência das entidades patronais, que viam reduzida a sua força de trabalho e aumentados os seus importes, directos ou indirectos.
Mas todo o prazer tem os seus custos. Não só permite uma liberdade de excessos que não seriam possíveis em período laboral normal – com os consequentes resultados malfazejos na saúde – como provoca adicção – o que por vezes resulta em depressões ou quebra de tónus vital no período pós-férias, com a consequente quebra de produtividade, alterações de humor, sentimentos de tristeza, desânimo ou revolta.
Não que critique ou abjure as férias, não senhor! Venham elas, serão sempre bem-vindas. Apenas digo que não há bela sem senão e que cada conquista de bem-estar pessoal ou colectivo traz sempre consigo uma contrapartida menos agradável, um preço a pagar. Quanto mais evoluirmos a este nível, mais preocupações teremos por tentarmo-nos despreocupar.
As benesses que foram sendo conquistadas ao longo dos últimos séculos pelas classes trabalhadoras trazem consigo uma data de “preocupações de felicidade” que não sei se as gerações de há 100 ou 200 anos e anteriores conseguiriam suportar. Toda a logística inerente a uma vida que incluísse relações trabalho-férias surgiria como um problema e não como um alívio. Julgo que o nível de felicidade-padrão da sua época seria de tal maneira abalado que as repercussões seriam devastadoras.
Tudo isto a propósito de quê? Absolutamente de nada, limito-me a pegar nos meus pensamentos e dar-lhes forma com palavras, livremente, como uma criança pega em plasticina e molda o que lhe vem à cabeça.
Escrever comporta 2 opções: ou tese ou dissertação, ou ter um objectivo definido e falar sobre ele, explorá-lo, esmiuçá-lo, ou pegar em algo ou coisa nenhuma e deixar fluir. Evidentemente, isto não é assim tão linear. Se tomarmos um romance como exemplo, encontramos algo híbrido, que não é nem tese nem dissertação (isto no sentido que lhe aponho). Não há géneros absolutos como não há louros absolutos ou negros absolutos ou whatever.
Tenho pena da minha inconstância literária, da minha impaciência. Não sou criador de grandes textos, como um romancista ou um enciclopédico; serei mais um cronista, escrevo uma coluna ou pouco mais e chega. Será um defeito, uma constatação de incapacidade de produção literária ou terei nisto alguma virtude? Não sei, não sou crítico, satisfaço-me com pouco.
Embora cada mente produza grandes torvelinhos de forças, autênticos ciclones, o resultado reduz-se por vezes a nada mais que um saco cheio de vento.
31. ago, 2017
Post 54
11h44, 26/08, sábado
É interessante observar as diferenças entre vivências e sensações pró-pessimistas e pró-optimistas, entre dias-sim e dias-não.
Nos últimos tempos os meus dias de descanso têm sido melhores que os observados (e vividos) nos últimos meses. A sensação de compleição e alacridade tem subido de qualidade. Não que tenha conquistado grandes feitos ou experienciado senão pequenos prazeres corriqueiros; tudo se resume a uma postura interna, um laisser faire, laisser passer consciente e responsável que faz toda a diferença.
Antes, deixava-me assoberbar pelas preocupações, pela ansiedade (leia-se stress) das metas não cumpridas, da consecução tantas vezes sobrevalorizada ou mesmo utópica de tarefas às quais impunha prioridades, não direi exageradas mas forçadas e que, por consequência, eram geralmente não cumpridas ou pírricamente cumpridas, gerando ainda mais stress que satisfação. Neste momento (pois que todo o processo é cíclico) desvalorizo a importância das metas, permitindo-me deste modo cumpri-las mais eficientemente devido à ausência dessa “pressão opressiva” compulsória. Talvez demore mais tempo, mas as conquistas obtidas não soam a forçado, a empreitada, a obrigação.
É evidente que o que neste momento exponho não terá mais validade daqui a dias ou meses, tudo depende do estado de espírito do momento, dos altos e baixos do “astral”.
And now – como diziam os Monty Pyton – something completely diferent:
Agora, com os meus sessenta anos feitos (está escrito em cursiva para não parecerem tantos) e tristemente bem disposto (para já), reparo no meu mundo cada vez menos meu e cada vez mais da segunda e mesmo terceira geração, e assusto-me com o que vejo.
Será que os olhos de um Velho do Restelo substituíram os meus, ou o mundo está, na verdade, a tornar-se preocupante? Só vejo valores basilares desaparecidos ou distorcidos, extremismos absurdos, corrupções monstruosas e monstruosamente aceites, laxismos preocupantes e inconcebíveis.
Não posso dizer que “antigamente é que era bom”, porque não era, mas parece que agora a Terra está-se a tornar num local perigoso para viver.
Lembro-me da legenda de um cartoon que li num livro humorístico, na minha juventude (talvez uma obra de André Brun), em que a rábula focava as enormes diferenças entre ricos e pobres (dejá vu?). Lia-se: devante a dura realidade, o tapume da fantasia. Quero com isto dizer que “no tempo da outra senhora”, muita coisa era escondida, é certo; mas mesmo agora que já disso temos conhecimento, mesmo agora que nos apercebemos das muitas mentiras, injustiças e atrocidades, o mundo apresenta-se-nos com tons cinzentos, ainda e cada vez mais carregados. Será que se eu tivesse nascido na geração seguinte, veria as coisas mais cor-de-rosa ou na verdade estamos a descambar para o caos? Gostaria de ter a certeza.
O fim do mundo já foi anunciado muitas vezes ao longo dos últimos milénios por mentes assustadas ou esclerosadas (ou simplesmente estúpidas). Serei uma ou os jovens também vêm o mesmo?
21. ago, 2017
Post 53
23h35, domingo,20/08
Calor abrasador. Ou antes, desagradávelmente sticky. Hoje obtive a confirmação definitiva de que, ou nasci no lugar errado ou que a minha última reencarnação foi na Era Glaciar.
Claro que isto é a perspectiva de um trabalhador ao serviço, que está do lado errado das férias; se estivesse do lado certo (das férias), seria uma oportunidade de sofrer esta vaga de calor com prazer. Digamos que quem está de férias é, a seu modo, um masoquista.
Isto leva-me a pensar até que ponto, ao longo de incontáveis gerações, a mente humana se modificou, não sei se produto da evolução natural, se de um processo voluntário ou voluntarioso, ou seja, se a transformação mental se ficou a dever a uma atitude mais ou menos “pensada”, de uma mudança, não de adaptação mas de vontade, um processo que, ao longo de gerações, se foi automatizando e acabou por tornar-se inconsciente. O que quero dizer é que não foi o homem que se moldou pela evolução natural (em parte, foi) mas que ele próprio moldou a sua evolução.
Não sei se já existirá alguma teoria coincidente mas, a existir, nada mais fará que provar que não estou assim tão errado.
Há comportamentos que o Homem adquiriu, algures nos últimos milénios ou centúrias, que me levam a raciocinar desta maneira, comportamentos esses que não se observam nos povos ditos primitivos. Falo, por exemplo, do já citado masoquismo, do sadismo, mas não só. Muitas atitudes e gostos um tanto ou quanto bizarros ou desviantes, ou mesmo outros considerados normais, são partilhados por largas camadas da população humana. Isso parece significar que não foi apenas o “passa-palavra” que os despoletou, há algo mais que condiciona essas atitudes, como uma espécie de memória colectiva, um registo arquetípico a que todos, inconscientemente, têm acesso e ao qual vão, regular ou esporádicamente, fazer o seu upgrade. Digamos que é um ADN comum, constantemente actualizado.
Como existencialista que me considero, tenho de vez em quando estes ataques de questionamento ao Infinito, que questiono também se é assim tão infinito. Há coisas que não cabem bem, não se encaixam bem no meu discernimento e que são explicadas muitas vezes através de elaboradíssimos processos matemáticos e/ou fórmulas químicas, físicas, quânticas, atómicas ou outras que até podem fazer muito sentido para os entendidos mas que eu comparo com as análises literárias. Nestas, um investigador encontra razões, ligações, segundos sentidos e afins, que correspondem a díspares realidades, tantas quantos os críticos, algumas das quais que nem o próprio autor suspeita existirem.
Serão todas realidades? Serão todas falsas? Ou paralelas? Quem me garante mesmo que estou a viver ou a sonhar ou ambos, cada um de mim no seu universo muito próprio, cada um real, embora antagónico ou auto-excludente. Ou pretensamente auto-excludente.
Não há ciências exactas, há é teorias mais elaboradas que se apresentam como a suprema e irrefutável verdade. Einstein veio destruir algumas. Porém, agora, mesmo ele está a ser questionado, nem mesmo ele não foi detentor da verdade absoluta. Nem os actuais, nem os que lhes sucederem.
Vivemos uma vida que desconhecemos, somos órfãos da nossa própria existência. Metafóricamente, somos seres intrínseca e eternamente frustrados.
7. ago, 2017
Post 52
11h25, 6 de Agosto, domingo
Estou enferrujado! Estou manifestamente enferrujado, tanto física como mental ou gráficamente.
Porém, atente-se: estou enferrujado, não esclerosado. O sedentarismo forçado a que estou submetido por razões profissionais óbvias, emperrou também um pouco a minha capacidade criadora. Estou um tanto ou quanto “animal enjaulado”, com pouco por onde expandir. Não há bela sem senão, lá diz o ditado; o que perdi em capacidade imaginativa, ganhei em concentração. Porém lamento a primeira, pois sempre gostei de puxar pela cabeça e que dela saísse alguma coisa. Estou confiante que, a seu tempo, encontrarei o equilíbrio almejado.
Hoje dei um revigorante passeio em família, pela margem esquerda do Douro, do Freixo a Gramido – célebre pela convenção com o mesmo nome, que em 1847 teve lugar na Casa Branca (há exactamente 170 anos) e ditou o fim da chamada insurreição da Patuleia. Esse edifício ainda hoje existe e está, felizmente, bem conservado e é utilizado em benefício da comunidade, através de exposições e outras actividades culturais e lúdicas.
Como não pretendo fazer uma palestra de história, voltemos ao passeio: levei o Mindelo – não algum dos Bravos que ajudaram D. Pedro IV contra o seu irmão absolutista (onde honrosamente consta o meu tataravô paterno), mas o meu cão, cujo nome é toponímico, pois foi lá que ele nasceu. Estando esterilizado, tem tendência a engordar e o exercício é-lhe essencial e, também, da parte dele, bem-vindo: faz jogging, corrida e natação (de que é exímio praticante), além de exercitar a voz, desenvolver a sua capacidade olfactiva e prevenir problemas urinários.
Apanhou-se sol, passeou-se, fez-se também uma necessária desoxidação das dobradiças, para fugir à tenebrosa ensofalite, essa perigosa enfermidade, essa sereia que nos tenta encantar com as suas promessas e falsas premissas de um descanso revigorante. Foi um pequeno oásis no deserto stressante do trabalho diário e rotineiro.
Só lamento que esses pequenos momentos de lucidez existencial nos passem despercebidos no dia-a-dia, pois se tirássemos, nem que fosse meia hora todos os dias para esses relaxantes “bocadillos”, seríamos porventura mais felizes e mais saudáveis. Infelizmente, o que sucede é que, após o trabalho, a mente, endrominada pela ensofalite, grita-nos que estamos demasiado cansados para o fazer (o que na maior parte das vezes é informação infladamente tendenciosa).
É fácil falar, o que digo agora aqui, estou a negá-lo amanhã porque também sou constantemente atacado e seduzido pela tal sereia e deixo-me levar pelo seu apelativo canto. Somos uma sucessão de asserções e contradições, mas não queremos admiti-lo, vivemos sempre no meio de um combate entre a verdade e a mentira, onde a maior parte das conquistas são pírricas.
31. jul, 2017
Post 51
24/07, 2ª feira, 3h30
A semana passada surgiram duas polémicas nas bocas do nosso pequeno mundo, à beira-mar plantado. Uma dizia respeito às declarações do Dr Gentil Marques sobre os homossexuais e sobre o Ronaldo; a outra reportava-se ao autarca de Loures, André Vinhas, a respeito dos ciganos.
Quanto ao Dr Gentil Marques, a observação sobre o Cristiano Ronaldo e das barrigas de aluguer para ter filhos, faz um certo sentido. Esta questão de ter filhos sem assumir um relacionamento, soa-me um pouco a narcisismo: “olhai, estas crianças são meus filhos, só meus e de mais ninguém. A mãe não existe ou é irrelevante, para não ofuscar o brilho da minha paternidade”. É um misto disso e de “angelinajolymania”. Bem vistas as coisas, talvez se tivesse excedido ao falar da mãe do jogador (ser culpa dela, por não ter sabido educá-lo), embora, se calhar, não seja assim tão inverdade.
No tocante aos homossexuais, eu não seria tão radical ao chamar à sua condição anomalia, embora assim o considere. Todo o desvio de uma tendência normal da existência é uma anomalia.
Actualmente é politicamente correcto (mais que isso: é-nos inculcado) que os homossexuais têm que ser defendidos e encorajados. Contra isso, contra a discriminação, nada. No entanto, porque é que ser homossexual não é uma anomalia e ser pedófilo ou ter relações com cadáveres ou animais, é? Já sei que os “formatados” vão-se logo irritar e dizer que uma coisa não tem nada a ver com a outra, etc., etc. É sempre assim! Desde que o mundo é mundo e enquanto o for, os crentes irão sempre tentar descredibilizar e achincalhar os não-crentes.
Ser coxo ou ser cego também são anomalias, os coxos e os cegos sabem disso, mas não é por isso que se vão sentir anormais, do mesmo modo que a anomalia da minha falta de cabelo o não fará.
Sim, sentir-se-ão anormais, discriminados, se alguém se lembrar de começar a implicar com essa categorização vaga. Todos nós somos anormais em qualquer coisa, o que não faz de nós seres anormais.
Segundo caso: o autarca e os ciganos.
André Ventura tem todo o direito – direi mesmo, obrigação, de denunciar situações que já se arrastam há muitos anos e um pouco por todo o país e que já foram referidos em 2009 por outro político da região e que nem sequer era do mesmo partido.
Todo o mundo sabe, e quem não sabe é porque não contacta com (principalmente) as camadas mais baixas da sociedade, que há grupos étnicos para quem a submissão às normas da sociedade em que vivem é coisa difícil, sejam eles árabes, ciganos, negros ou outros. Não estou a dizer nenhuma mentira ou a ser tendencioso ou racista. Basta olhar para as minorias portuguesas por esse mundo fora (e são, maioritariamente, caucasianos), onde elas tentam continuamente rodear ou infringir a lei e impor os seus costumes. Sim, noutros países também somos uma minoria e temos que, a bem ou a mal, acatar as normas do local de acolhimento.
Isto não é racismo ou discriminação, é fazer respeitar a lei e, ao fazê-lo, sermos respeitados. Porém, à semelhança do tema anterior, somos influenciados pela lavagem (ou esterilização) cerebral dos valores primários da Revolução Francesa, onde somos todos citoyens. E caímos todos na esparrela do igualitarismo, até chegar o dia em que deparamos com o facto incontornável de que não somos tão iguais quanto isso.
Sejamos politicamente incorrectos e não deixemos que nos lavem demasiado o cérebro. Acredito na igualdade quando há respeito mútuo; quando não há, deixamos de ser iguais. A sociedade, para ser homogénea, tem de limar as suas arestas, internas e externas, arredondar as suas superfícies como os seixos da praia, guardando, contudo, e tal como estes, as suas diferenças, a sua individualidade, pois que os seixos são todos redondos, mas de diferentes cores e tamanhos.
19. jul, 2017
Post 50
23h45, 18/07,3ª feira
Voltei às minhas práticas desportivas, àquelas que nunca deveria ter abandonado há cerca de 2 anos: percorri todo o parque da cidade, pela periferia, e ainda fui até ao paredão de Matosinhos, numa distância que julgo ultrapassar os 4 km. Custou um pouco mas é necessário e cada vez custará menos.
Por que será que, como diz o ditado, nada se faz sem esforço? Não seria bom fazer tudo sem custar nada? Mas, se o fizéssemos, isso retiraria o prazer do achievement, seria tudo sensaborão, aborrecido, nada apeteceria fazer. Daí o esforço físico, económico, espiritual, daí o “prémio”, o prazer da obra feita, a satisfação de se ter conseguido algo, e que é tanto maior quanto maior o trabalho necessário para o obter.
Felizmente, temos a memória curta: acabamos por esquecer ou “diluir” o desagradável e, no extremo oposto, são necessários novos feitos para repor o nível da satisfação “diluída”, como se de uma droga se tratasse e da qual precisaremos sempre uma nova dose. Mas é uma droga boa, activa as endorfinas sem efeitos secundários adversos. Tal como as outras (as más), ao fim de algum tempo não podemos, felizmente, passar sem elas.
O tema memória é recorrente; ainda há dias falei das memórias da infância e juventude. Afinal, vida e memória (con)fundem-se, uma não existe sem a outra e cada uma é feita da pluralidade da outra: a vida é feita de muitas memórias e a memória é (pode ser) feita de muitas vidas.
A primeira justifica-se por si; quanto à segunda, para que o conceito que exponho possa fazer sentido, basta dizer que, por exemplo, a memória de um povo, ou mesmo de uma família, é feita de muitas vidas.
Quem não tem memória, vegeta, ou nem isso, visto que um vegetal tem vida e evolui e adapta-se – por isso, tem alguma espécie de reminiscência. Quem não tem memória não esteve, não está e não estará, não vive. Trata-se apenas um corpo que existe mas não é, pois que ser pressupõe reconhecimento e este, lembrança, logo, memória.
12. jul, 2017
Post 49
12/07, 4ª feira, 1h35
Amanhã farei 60 anos. Parece que foi há dias (e foi: 21000 dias, mais coisa, menos coisa) que precisava que me desapertassem os calções e me sentassem no bacio, por falta de capacidade mental para o fazer. Quem sabe se, daqui a uns indefiníveis anos, me voltarão a fazer o mesmo… não sejamos pessimistas: viverei até aos 90 anos e totalmente autónomo (querias!).
Pois é, 60 anos que não acredito nem me sinto ter, mas que – sejamos realistas – tenho medo de ter, porque, a partir daqui, começo a lobrigar a minha “solução final”, a uma distância incerta, lá, ao fundo da ravina por onde deslizo sem hipótese de poder travar. Contudo, e apesar do inexorável negro futuro que todos temos que enfrentar, não desespero, não entro em pânico; aproveito para olhar à minha volta e apreciar a paisagem, guardar na memória que perderei, os bons momentos da vida. E, para meu consolo, essa memória perdida permanecerá, de algum modo, nas memórias das minhas filhas, fará parte das suas memórias e das dos seus procedentes. Enquanto ela durar, eu existo.
60 anos! 60 anos de recordações que já foram actos e omissões, doenças, alegrias, tristezas, sucessos e erros, decisões, arrependimentos, momentos felizes. Agora não passam de um filme guardado numa caixa, que vemos de vez em quando e que só para nós fazem todo o sentido. Neste filme existem também muitos segredos não partilhados com ninguém, segredos que só nós conhecemos, segredos que não revelamos por modéstia, por irrelevância, por medo ou por vergonha. Esses, não os partilhamos nas nossas memórias, morrem connosco.
12. jul, 2017
Post 48
11/07,3ª feira, 5h43
O dia (a minha noite) está a despontar. Por detrás dos prédios à minha direita vislumbro com nitidez um céu verde-claro com pequenos toques de rosa e pontilhado (direi antes, traçado) por esparsas nuvens, quase inexistentes. Prenuncio um dia quente e agradável.
Quando comecei a escrever, tinha em mente algo….. já me lembro! Lembro-me que em setembro fará 5 anos que iniciei a minha espera pelo Paraíso. Evidentemente, não no sentido literal, espiritual. Esse, essa espera, gostaria que fosse como a de Brecht: por Godot, ou seja, nunca ou, pelo menos, perdida no futuro do futuro. Nada invalida que não mude de ideias um dia. Afinal, nós, os humanos, somos seres que se deixam levar pelos ventos da inconstância.
Estou a falar da espera pelo Paraíso, também este com letra grande, mas apenas por se tratar de um nome próprio, aquele Paraíso de onde eu distribuía comida pelos famintos, não com qualquer intuito altruísta mas comercial. Daí para cá, muita água correu por debaixo das 5 pontes da cidade e de todas as outras pontes do mundo. Esse tempo-acção, para mim, acabou, já não posso deslocar-me de motociclo e o descanso diário é, para mim, essencial. Neste preciso momento, cabeceei de sono, já não aguento tanto. Fará também 5 anos que comecei a escrever estas crónicas, o princípio do “devezemquandário” que, de vez em quando, preencho com as coisas que me saem da cabeça, além da caspa (piolhos, não tenho).
14. jun, 2017
Post 47
23h48,13/06, 3ª feira
Está calor, abafado, desagradável, húmido, doentio; nada apetece fazer, nem mesmo o pasmar indolente dos desocupados.
Estanco, imóvel e sonolento, na quietude deste prenúncio de verão. Sei o que me espera: a tortura calorenta e pegajosa de um estio não totalmente desejado. Os meus genes e outros intervenientes físicos assim o determinaram, tenho a impressão de que nasci no clima errado, talvez a cegonha tenha confundido as moradas.
O que é a vida? Resume-se aos nossos 5 sentidos, às nossas sensações, às nossas emoções? Estaremos aquém da percepção do seu verdadeiro significado, aquém do que nos é apenas cognoscível?
Não creio numa existência mecanicista, não creio que façamos apenas parte de uma máquina concebida para trabalhar sem fim determinado e que se perpetua, criando as suas próprias peças sobressalentes. Nada disso faz sentido.
A evolução não existe por existir, só para tornar mais ou menos funcionais os seres vivos, de modo que, daqui a 100 milhões de anos, eles continuem uma evolução que, 100 milhões de anos depois, continuará e continuará e continuará. Então vivemos porque o nosso fim último é evoluir só pelo simples acto de evolução? Que objectivo vazio e estúpido!
Não podemos ser formigas que põem ovos, para gerarem formigas para porem ovos, tem que haver algo mais que escapa à nossa compreensão, algo cósmico (na falta de palavra mais significativa) que faça algum sentido.
O grande objectivo da filosofia e a grande frustração do homem pensante é essa resposta que, de tão grande, imensa, não se nos consegue revelar por não caber no nosso limitadíssimo entendimento.
7. jun, 2017
Post 46
3h47, 4ª feira 06/06
Um salto à adolescência, pois que a infância deixa as saudades da irresponsabilidade: é uma “máquina de mexer” com excesso de pilhas, um carrinho tele(des)comandado que bate em tudo o que encontra à sua frente.
Mas a adolescência terá sido melhor, mais responsável? Não me parece. A adolescência é uma “máquina dos 5 sentidos” que quer explorar todo o seu potencial, sem atender às consequências. Enquanto a 1ª é cega porque não tem visão, a 2ª é cega porque não quer ver.
Primeira asneira após a fuga das saias parentais: fumar. Fumar porque se pode e porque é fixe e porque sugere maturidade(!). Mesmo que saiba horrivelmente, mesmo que cause náuseas, mesmo que cause vómitos (como a primeira vez que fumei 2 cigarros seguidos). Dá estilo, dá status, enche o ego de importância.
Após isso, porque não uma outra erva? Dá mais estilo, dá mais status, enche ainda mais o ego. Além disso, é proibido – pela sociedade e pelos pais. Mas proibido não é exactamente o que um teenager tem a obrigação de fazer? Senão, és um tono, um merdas, um betinho efeminado (agora ser efeminado também dá importância, não no meu tempo).
Dão pica as coisas proibidas. A transgressão aumenta a testosterona, a adrenalina! A arte de dissimular (por vezes, dando mais nas vistas), o medo de se ser apanhado mas, simultaneamente, a certeza de que não se é, ocupam a imaginação em esquemas fantasistas, dignos de um McGyver ou um 007, por vezes com maus resultados.
Mas quê?? Não é para se aprender, é para tentar de novo!! Jovem que é jovem, tem de ser dono e senhor de uma responsabilidade a raiar a idiotia. Senão é um totó!!
Esta é a visão generalizada do adulto em relação à criança grande. Mas não foi ele também um jovem idiota? (ah, pois, já não se lembra). Nunca fez asneiras? Foi um santo, querem ver? Corrigir e “dar cabo da cabeça” quando é preciso, é a função de um adulto responsável, mas consciente de que já foi igual (ou pior). Em vez de passar-se agora por coisas que já fez, deve tentar entendê-las como parte de um processo de amadurecimento e preveni-las, e aconselhar, e castigar com justeza, não com a indignação de uma alma pura.
Tanta parvoíce, irreverência, falta de atenção, de sentido crítico, de senso comum! Os jovens são (fomos) assim. Sobrevivemos melhores e mais fortes, mais equilibrados.
Não vale a pena lamentar e criticar, é um processo natural por que todos passam, uma “estupidez” necessária, um ritual de iniciação. Alguns ficam pelo caminho, como as crias demasiado ousadas que caem abaixo do ninho, acasos infelizes. Mas coarctar tudo isso seria colocarmo-nos numa estufa, numa prisão, com sérias consequências ao nível dessa mesma responsabilidade que tanto queremos preservar, deformando-a, destruindo a auto-estima, criando autênticos deficientes.
6. jun, 2017
Post 45
01h53, 3ª feira, 06/06/17
Memórias, memórias! A semana passada iniciei um ciclo de memórias de infância que teimam, felizmente, em permanecer no meu “disco duro”.
Falasse a alguém em disco duro nessa época e logo a imaginação reportar-se-ia a um pedaço circular de vinil, 45 ou 78 rpm, negro, com riscos concêntricos e que, colocado num aparelho reprodutor (de som) emitia música ou algum outro ruído. Falasse-se em computador e talvez, por associação de ideias, a mente tivesse pensamentos perversos ou seria, no mínimo, uma palavra a evitar por conter um registo fónico associado, por similaridade, a acções menos dignas, a referências socialmente condenáveis ou desaconselháveis.
Pois dizia eu que as recordações de infância são algo que perdura geralmente durante toda a vida, embora por vezes tenhamos que fazer um esforço para recuperá-las das profundezas da memória. Mas, à medida que vão surgindo à superfície, trazem consigo outras, enterradas também, encostadas a um canto, aguardando uma ressurreição salvadora.
Há coisas que surgem vívidas, saídas de um passado oriundo do início da nossa existência, flashes que aparecem como fotografias ou curtíssimas metragens, sem razão aparente, focando na generalidade situações banalíssimas, tão banais que admiramos que a nossa memória as tenha gravado. É como se tivéssemos uma máquina fotográfica ou de filmar que, de repente, disparasse sozinha e desligasse em seguida. Muitas das vezes estão repletas de pormenores e, às vezes, sentimo-las como se vistas de fora, como por um alter ego. São fotos onde, embora tiradas por nós, aparecemos na fotografia.
Sempre fui rijo de pernas, isso devo-o ao meu pai. Com 5 anos já fazia caminhadas, junto com os meus irmãos mais velhos, de cerca de 11 km. Obviamente, íamos parando de vez em quando, o meu pai não era nenhum sádico. Imagino que terá sido gradualmente que ele nos incutiu esse hábito; o que é certo é que, antes dos 7 anos, já eu o fazia “na boa”. Sei com certeza que seria antes dos 7 porque, a partir de 1964, se a memória não me atraiçoa, os meus irmãos foram viver com a minha mãe. E também sei com segurança a distância, pois eram 11 os quilómetros de Esmoriz, onde vivíamos, até Ovar. Ou então até Espinho, que eram 6 ou 7.
É evidente que, a maioria das vezes, voltávamos para casa de camioneta ou de comboio, embora também o fizéssemos a pé, tudo dependia do grau de cansaço.
Falando de Espinho, lembro-me que íamos muitas vezes (já depois de os meus irmãos terem abalado) a uma espécie de armazém-mercearia (o sr João) na – salvo erro – Rua 14, entre a 21 e a 23, onde o meu pai passava horas esquecidas a conversar (ele era um grande conversador), para meu desespero. Recordo-me também que ele nunca baixava a guarda na vigilância sobre mim, era um atento controlador das minhas acções, nada lhe escapava: um dia, num dos meus actos de “desvio”, próprios de qualquer criança (quem nunca o fez, que atire a primeira pedra), surripiei, com a mestria inata de que só uma criança é capaz, uma amêndoa descascada. Relembro que, na época, os frutos secos, o arroz, o feijão, as leguminosas em geral e muitas outras coisas, eram apresentadas ao público, nos estabelecimentos, em grandes sacas de serapilheira, com as bordas dobradas para fora, para maior comodidade.
Pois bem, o meu pai estava atento, apesar da amena cavaqueira em que se encontrava imerso. Aliás, como disse, ele estava sempre atento aos meus actos, aos meus gestos, a tudo. Se eu saía do seu campo de visão, ele mudava discretamente de posição para controlar-me ou, se tal não era possível, chamava-me para a sua beira. Não o critico, por essas e por outras devo-lhe muito do que a minha personalidade tem de positivo.
Voltando ao assunto, ele, imediatamente e antes que eu pudesse fazer desaparecer o corpo do delito, chamou-me e deu-me uma descompostura pública.
Em criança, eu era muito envergonhado; senti-me tão mal que… nem sei como me senti, só sei que das vezes seguintes que lá fui com ele, fugia da presença das pessoas que testemunharam o “crime”, sentia no íntimo como se eles ainda me apontassem um dedo acusador.
Era assim o meu pai e, bons ou maus métodos, devo-lhe muito do que sou hoje. Todos os pais têm defeitos, alguns grandes. Eu não serei excepção.
Havia ainda na Rua 19 (em Espinho, todas as ruas eram identificadas por números – as paralelas ao mar por pares, as transversais, por ímpares) uma outra grande mercearia; esta, porém, porém, já era avant-garde, fugia ao tradicional. Chamava-se Celeiro e acabou por se transformar num dos primeiros supermercados que conheci, um pioneiro, a par com a Casa Villares, na Rua Formosa, em frente ao Bolhão, no Porto, e que já está encerrada há talvez 20 anos.
Fazíamos aí as compras para o mês inteiro, as quais eram geralmente transportadas para casa de táxi. Embora vivêssemos com algumas dificuldades, esse meio de transporte não era assim tão caro. Outros tempos!
1. jun, 2017
Post 44
2h27, 30 de Maio, 3ª feira a 1 de Junho, 5ª feira, 4H15
Recordo os meus tempos de criança, recordo a vida como era há mais de 50 anos. Pelo menos, o pequeno mundo em que vivi, limitado pela tenra idade e pela trela parental burguesa, carregada de conceitos e preconceitos, sabedorias e ignorâncias, mitos e verdades.
Recordo o ambiente de uma vilazita quase sem história: o Alves Dias da taberna-mercearia-drogaria, junto à gasolineira da BP, com a sua bata cor de galão com manguitos até aos cotovelos; aí vendia-se, a peso, o feijão, o grão, o açúcar, a farinha e o milho para as galinhas, retirados de baús-armários de madeira; em cima do balcão de mármore branco-rosado um dispositivo para cortar bacalhau seco – do qual não sei o nome - e ao lado, montados no balcão, 2 bombas de extracção.
Trabalhavam com um êmbolo, puxado por uma manivela e que se deslocava por uma espécie de eixo helicoidal. Lado a lado, ainda compatíveis em irmandade, o azeite e o petróleo, o verde e o salmão. Lado a lado também, vendiam-se os bagaços, os copos de vinho e iscas de fígado ou o bacalhau e o arroz, o açúcar e as batatas.
Lembro-me dos cartuxos de papel grosso riscado, cujo fundo era colado, ou com cola grossa, espessa, ou com cimento(!), para pesarem mais. Lembro-me do chão de cimento, coberto com serradura, e do indispensável escarrador, esse objecto em esmalte cinzento-claro ou branco, presente também nas barbearias e até nas farmácias. A higiene acima de tudo!
Em frente era o Aleixo – drogaria-papelaria-electricista-livreiro, também ele bata cor de café com leite e mangas de alpaca, que vendia gás de garrafa (claro) e entregava-o numa furgoneta Austin verde-garrafa – daquelas que já só se vêm nos filmes antigos – cujo motorista era o sr Manuel. O carteiro também marcava presença diária, mesmo aos domingos; só me lembro que, dos dois, um chamava-se Cruz.
Lembro-me que se fumava em toda a parte: nos comboios, nas camionetas, nas mercearias, drogarias, farmácias e talhos. Só não se fumava nas peixarias porque não existiam, eram as peixeiras que vendiam o peixe às portas.
Os comboios tinham tabela mas não chegavam a horas: chegavam quando chegavam, por vezes com 1 hora ou mais de atraso. Havia prioridades sobre os comboios para o povo: passavam sempre à frente o “Foguete” (o “Pendular” da época) os comboios de mercadorias[!] e o “Correio”, com as suas carruagens bordeaux típicas. Ninguém reclamava, limitavam-se a aceitar resignadamente um dado assumido.
Em dias de feira em Espinho, era ver a III classe a abarrotar de gente, cestos com galinhas e hortaliça, numa carruagem que mais parecia um “wagon” do Faroeste americano: um contentor de madeira com bancos e overbooking heterogéneo, perfumado com Chanel de sovaco e capoeira.
O que não faltava era respeito e educação: mesmo os mais rascas dos rascas, mesmo a gente do povo mais básica, mais rural e analfabeta, era educada; não se ouviam asneiras na presença de desconhecidos e o respeito pelos outros estava sempre em alta, embora a higiene e as maneiras rudes – no sentido de pouco refinadas – não marcassem muita presença.
Recordo com nostalgia as locomotivas a carvão, altivas, possantes, barulhentas, fumegantes, mágicas. Vê-las passar, estar perto delas, era um deleite para os sentidos; o barulho, o fumo, os silvos, conferiam-lhes uma aura de deuses do Olimpo.
Televisão: caixotes de madeira com écran reduzido, imagens a preto e branco (de medíocre ou péssima qualidade, para os padrões de hoje), programação de curta duração, que, salvo erro, começava ao fim da tarde e terminava cerca da meia noite. Quanto aos programas difundidos, embora visados pela censura, eram variados e focados no país, com uma vertente cultural, a seu modo, elevada: peças de teatro às 4as feiras, filmes portugueses e estrangeiros ao domingo, (in)formação rural também ao domingo, pelo engenheiro agrónomo Sousa Veloso, concursos que privilegiavam a cultura geral, programas de literatura e poesia, e também touradas, missa e informação estatal.
Vivia-se num país sem muitas pressas, um locos amoenus morno, uma Arcádia sem altos nem baixos, onde as pessoas, mal ou bem, se limitavam a viver no seu cantinho, metidas consigo próprias, sem ambições. Um limbo.
Ida ao Porto: uma aventura sensorial, o supra-sumo das experiências. Esperada com excitação e impaciência, era viagem imperdível e inesquecível, o penetrar num mundo onírico, aparentado com a ficção científica. De comboio ou camioneta (eram dos Carvalhos ou de Lamas e eram vermelhas), num maravilhoso e inexcedível desconforto e sobrelotação, era um espraiar de olhos sobre paisagens nunca vistas (mesmo que já observadas várias vezes), uma visita à grandiosa cidade, émula da Metropolis de Fritz Lang. Não havia auto-estrada, só a ponte Luis I para aceder à urbe. Fila deleitosamente interminável que permitiria, no dias de hoje, fazer uma curta-metragem durante a dita travessia. E… boquiabertismo!
No comboio, na ponte Dª Maria I, a 20km à hora (velocidade máxima permitida), o êxtase era o mesmo, apenas com a diferença de que, se nos debruçássemos na janela, podíamos vislumbrar o rio Douro, directamente por baixo, através das traves da via-férrea.
O rádio era presença constante: música portuguesa a 99,9%, folhetins, informação nacional e alguma internacional “peneirada”, folhetins e missa, tudo a condizer com a pacata vida.
Nesse tempo dava-se valor ao tempo, que nunca era escasso. Os raros brinquedos eram mimados, apreciados, exploradas todas as suas potencialidades, mesmo as improváveis. Havia tempo para brincar, para estudar, para estar em família e, muito importante, para pensar.
Não quero dizer que antes é que era bom, que sou saudosista no sentido de querer voltar ao passado. Não. Cada tempo tem o seu tempo, o seu prazo de validade. Atualmente não é melhor nem pior do que há 50 anos, é o que é, o que deve ser, de acordo com a evolução da sociedade e das mentalidades e devemos aceitá-lo como tal.
Que se conteste o estado em que está, é natural; é necessário fazê-lo para que haja desenvolvimento e para tentar melhorar a justeza da vida, tal como foi contestado há 50 anos, ou 100 ou 1000 anos.
Porém, o “nosso” tempo, a época de cada um, é insubstituível, as memórias de vida são pessoais, intransmissíveis, únicas e, não raro, carregadas de nostalgia, mesmo que, em parte, esse passado tenha sido desagradável. As recordações acompanham-nos para sempre e são o nosso fiel da balança, o juiz do nosso presente.
21. mai, 2017
Post 43
11h42, sábado, 20/05/17
Back in business! Após um interregno de algumas semanas, volto a escrever. Não que tenha muito tempo – neste momento estou (pre)ocupado com uma mini-tese de mestrado – mas porque tenho de voltar a escrever, para não perder a prática e para “arrumar as prateleiras”, desabafar à minha maneira, descomprimir. Entretanto, montes de ideias perderam-se, deitadas ao gato, atiradas fora sem hipóteses de serem preservadas. Outras cresceram, amadureceram e secaram pelas mesmas razões, pensamentos perdidos, desperdiçados, deitados pela pia abaixo, sem remissão.
O que escrevo hoje não será o mesmo de que se o tivesse escrito há 1 ou 2 semanas, 1 ou 2 dias, 1 ou 2 horas. O pensamento é como o mar: a água é a mesma, as ondas são sempre diferentes.
Quando se caminha para sénior (um eufemismo para velho – assim dói menos), o relógio do tempo acelera extraordinariamente. Noto isso por, entre outras coisas, o descanso semanal: parece que se encavalitam uns nos outros, parece que ainda ontem estive e hoje já estou, é bom e aterrorizante. Se, por um lado, são dias aguardados com impaciência, dias de descanso, onde podemos fazer tudo o que nos der na gana, ou pôr em ordem assuntos pendentes ou compulsórios, não espartilhados por uma farda ou relacionamentos profissionais, pelo outro lado, começamos a sentir mais o “peso dos anos”, temos mais tempo para observar as nossas limitações ditadas pelo natural desgaste físico, temos mais tempo para olhar o futuro, mais tempo para meditar no “fim do prazo de validade”, cada vez menos tempo para pensar, agir, viver.
Há pessoas que se dizem em paz com a existência e com o seu destino óbvio. São pessoas que afirmam que viveram uma boa vida, cheia de tudo o que uma vida tem (incluindo os maus momentos que, no futuro de cada um, podem ainda ser, a seu modo, felizes recordações).
Eu ainda não estou em paz comigo e com a existência. A minha vida tem lacunas profundas que nunca poderei preencher, por mais tempo que viva. Ainda não me sinto preparado para o Grande Dia (que, paradoxalmente, é o mais curto) mas sei que ele virá disfarçado de dia normal e, quando der conta, não haverá outra aurora ou pôr-do-sol para contemplar. Quando nascemos, começamos imediatamente a adiar o inevitável.
Estarei alguma vez preparado? Tenho que admitir que talvez. Já aceito coisas que há anos seriam para mim inconcebíveis, inaceitáveis. Porque não mais outra, só mais outra? Prometo que será a última.
O tempo está calmo, ameno. Prenúncio de Verão, de calor. Este tempo já não era sem tempo, basta de frio e chuva. Para isso, o nosso íntimo é-nos suficiente.
17. abr, 2017
Post 42
02h09, 2ª feira, 17/04
De volta ao meu lugar-comum, a fazer coisas que são um lugar-comum, numa vida que é um lugar-comum. Enfim, uma comunidade total.
O silêncio, hoje, como que me incomoda, esse som mudo que é, ao fim e ao cabo, um zunido surdo imperceptível ou quase, do qual apenas nos apercebemos se fizermos um exame mental atento. É como um ruído de fundo, uma estática.
Deve ser simplesmente horrível ser realmente surdo, a sensação de vazio auditivo deve causar uma solidão incomensurável, apenas imagino.
Já o ser cego, experienciei parcialmente e não foi agradável, é um negrume total, ou antes, nem isso, é uma ausência aflitiva de qualquer sugestão de imagem e que não pode ser recriada artificialmente.
Quando tapamos os olhos, há sempre sombras, sensações de movimento, como que ondulações invisíveis mas liminarmente percepcionadas. Na cegueira não, há uma ausência total de seja o que for, como se fotónicamente não existíssemos, nada existisse.
Comigo isso sucedeu em 2007, em consequência de um acidente isquémico transitório, que obturou os vasos sanguíneos do nervo óptico de um dos olhos, já não me recordo qual.
Ausência total de luz, de cor, de qualquer sugestão de movimento, de qualquer tipo de percepção: sem palavras.
Agora só me falta falar do olfacto, do gosto e do tacto, isto para não mencionar o sexto sentido, que na verdade ninguém verdadeiramente sabe se tem ou se existe, mas que presumo estar ligado a uma qualquer inexplorada apetência para detectar alterações do campo magnético, possivelmente através de alguma zona inexplorada do cérebro e por processos igualmente desconhecidos que para nós, simples mortais cognitivamente subdesenvolvidos, apenas poderão ser abordados num campo subjectivo e hipotético, meramente teórico, que alguns apelidarão de efabulação, devaneios oníricos ou utopia.
Bem, não vou falar dos outros sentidos, não estou para aí virado, talvez noutro dia.
Falta-me uma certa paz de espírito, que anda arredia, como há tempos disse (por outras palavras), falta-me aquela pachorra beatífica, o inverso da urgência paniquenta com que me tenho deparado mas que esforço-me por controlar. É às vezes como se fosse hoje o meu último dia e quisesse fazer tudo o que não farei, uma espécie de stress que, em termos psiquiátricos, terá certamente um nome mais altissonante, críptico, gráfica e conceptualmente apenas compreensível para a douta classe indirectamente referida. E por aqui me fico.
11. abr, 2017
Post 41 (editado)
Madrugada de 10/04/17
À minha frente espraia-se um fragmento da periferia da cidade, pontilhada por pirilampos brancos e amarelos, outros mais coloridos e diversificados , insectos luminescentes que se alimentam de carvão e ar e água e que adormecem ao raiar da aurora. Espalhados pelos passeios, contemplam indolentemente e com indiferença os seus semelhantes que passam esporadicamente, à boleia de um qualquer meio de locomoção, ou então vêm passar um ou outro raros humanos gratos e confortados pela sombra da sua luz.
Evidentemente, falo da iluminação pública, dos anúncios comerciais e dos veículos, não vá alguém pensar que pirei de vez e exteriorizo monólogos incoerentes. Digamos antes que relato o que vejo à luz de um certo simbolismo e uma pitada de surrealismo.
Por vezes sinto que uso um corpo estranho que não reconheço como fazendo parte de mim, assemelhando-se a um veículo emprestado. Outras vezes percepciono-me como irreal, como uma personagem que de alguma forma criei para esta peça de teatro que represento com todo o resto do mundo e seus cenários. É como se fosse outro eu que não eu, fazendo seu o corpo que habito mas não me pertence.
06h44, 4a feira, 29/03
É quase dia, o céu passou de negro a anil, não chove nem vai chover hoje. É pena ter que dormir e estragar a contemplação do esplendor de um nascer do sol primaveril. A minha vida é feita de crepúsculos.
O silencio adormece e dá lugar ao despertar da vida, ao barulho da vida. Quando à noite estou em silêncio e solidão, evito fazer barulho, como se com ele temesse acordar os meus demónios.
A noite é -me estática e familiar, criadora, calma, repousante. É nela que eu escrevo e estudo, a minha musa. Só lamento a paisagem e os sonos trocados mas não há bela sem senão, há sempre um preço a pagar.
Pela janela vejo uma infinidade de pombas e gaivotas, recortes móveis contra um céu farfalhado de rosa e chumbo, como se fossem cinzas esvoaçantes de um grande incêndio. Nunca tinha reparado nessas migrações matinais, decerto repetidas desde tempos imemoriais. Não me admiro muito, por vezes apercebo -me pela primeira vez de coisas, ninharias que me passaram centenas, milhares de vezes pelos olhos mas que nunca vi. Há evidências gritantes que nunca vimos nem veremos porque os nossos olhos abertos estão tapados.
23. mar, 2017
Post 40
20h46, 22/03,4ª feira
Dei-me ao trabalho de calcular quantos dias vivi desde a data do meu nascimento (mera premissa convencional) até hoje: 21 802 (já com 15 dias adicionais, referentes aos anos bissextos).
De acordo com a psiquiatria, esta atitude de procura de exactidão denota traços de comportamento obsessivo-compulsivo. É possível, por vezes tenho uma certa.... não direi necessidade mas curiosidade... bem, terei mesmo que dizer obsessão de responder a esta ou aquela questão que me proponha (e agora vem aquela parte em que me desculpo perante mim próprio e a sociedade): Mas quem é que não tem ou teve este tipo de comportamento durante ou nalgum momento da sua vida?
Calculo que esta atitude tenha a ver com o questionamento, a necessidade de encontrar um sentido à vida, uma resposta última que julgamos será tanto mais satisfeita quanto mais respostas obtivermos das parcelas que a compõem, por mais ínfimas e (a nosso ver) mais insignificantes que elas sejam. Gostaria de saber um pouco mais sobre psicologia, sociologia e psiquiatria para aduzir ou abduzir esta correlação que, suponho, terá significado ao nível do grau de satisfação/insatisfação do homem confrontado consigo mesmo e com a força anímica que ele questiona.
Ou seja, serei um obsessivo-compulsivo (e por esse motivo) sujeito a uma visão questionante e negativista da existência ou, inversamente, levará a obsessão-compulsão à dúvida sobre o sentido da vida? Serão as dúvidas existenciais obsessivo-compulsivas?
Isto conduz-me a outra pergunta: acreditando na continuidade extra-corporal (em que acredito), será que a demanda do significado da existência do espírito e do Universo continuará aí, no pós-vida, a fazer sentido? Esta conjectura é impossível de determinar antes da chamada viagem de não-retorno. Como tal, de momento, não estou muito interessado em saber.
16. mar, 2017
Post 39
00h42, 5ª feira, 16/03
Noite calma, desanuviada, quente para a época, apetece passear. Como estou confinado ao “meu” prédio, desgasto as solas dos sapatos e o desejo de espaços abertos, na periferia do mesmo. Nos intervalos leio, estudo. Ou vice-versa: passeio-me nos intervalos do estudo.
Tenho pena, remorso, dos projectos protelados, procrastinados, da minha vida. Bem, dos não-utópicos. Luto sempre com o sentimento de que é tarde demais para recomeçar, que deveria tê-lo feito há 20 ou 30 anos. Mas não é nunca tarde. Se assim fosse, para quê estudar, para que estaria, passo a passo, disciplina a disciplina, a tirar um mestrado?
Não é tarde enquanto fizer sentido, enquanto permitir (re)viver para além das nossas mesquinhices, do nosso statu quo, afastar-nos da deletéria cultura do sofá, aquela onde definhamos a vida e engordamos o corpo e o cérebro. Apesar de toda a carga pessimista (não derrotista) que caracteriza as minhas memórias e crónicas, não vou deixar-me assoberbar pela cultura do desperdício intelectual (nem físico) e transformar-me num monge contemplativo da ordem da Santa Televisão ou prestar culto no altar dos jogos da Santa Sueca dos reformados e ociosos da zona. Não! Isso seria suicídio do corpo e eutanásia do espírito.
Bolas, lá estou eu com hipocondria de pensamento e autocomiseração. Apercebo-me que o que maioritáriamente escrevo é sobre mim próprio, um centralismo egótico a raiar uma muito suave patologia. É certo que, afinal, falo sobre o que mais (des)conheço...
Este estado de espírito tem um pouco a ver com o volte-face da minha vida de há um ano a esta parte, um certo fatalismo associado a uma já existente propensão para encarar a existência como algo um pouco pointless. No entanto, já vejo sinais de recuperação, o período de luto está a passar e, se ainda não vislumbro luz no fundo do túnel, vou-me apercebendo de uma certa penumbra.
14. mar, 2017
Post 38
00h58, 3ª feira, 14/03
De volta à minha tabula rasa gráfica, aquela onde (e aqui recordo o magnífico Escriba Sentado, do Museu do Louvre) gravo as minhas memórias e considerações do momento, sempre móveis, sempre em transformação.
O pensamento é como uma criança: irrequieto, volúvel, em constante correria; a sua relação com o corpo que habita é de imutabilidade, pois enquanto este envelhece, aquele mantém a sua irrequietude (a não ser que algum gravetozito, seja do foro neurológico ou psiquiátrico, tenha travado a engrenagem).
Estive a pensar naquilo que nos mantém vivos: a memória. Sem memória não há ou existiu vida, é ela que nos faz ter 3, 20, 30, 50 ou 100 anos. Sem ela não temos idade porque esta é feita das recordações da nossa existência.
Quando olhamos para uma árvore genealógica e vemos Fulano(a) de Tal casado(a) com N, isso significa que o cônjuge é Nada, Ninguém, Neutro, Nulo, determina que quem foi já não é, diluiu-se na não-existência, deixou de pertencer à nossa memória ou à de quem quer que seja. É por isso que guardamos cartas, documentos, fotografias, retratos, túmulos. São eles que nos fazem existir, são eles que transportam alguém para um presente que ainda não aconteceu e que só acontecerá se esse alguém aí tiver representação, se criar memórias nas memórias de outras pessoas, como se em caixinhas chinesas ou Matrioskas.
Ser significa ter memórias e, paralelamente, ser memórias. Somos um objecto, uma pedra, se não tivermos memórias, nada somos se ninguém tiver memória de nós, mesmo que parcial ou residual: ser alguém que fez parte disto ou daquilo algures num passado mais remoto ou menos remoto – uma batalha, uma fundação, um acto pioneiro, um documento. Transmite-nos mais, faz mais sentido um túmulo identificado do que os estimados 6 milhões de esqueletos existentes nas catacumbas de Paris, pois do primeiro criam-se memórias espaciais, temporais, conceptuais, memórias de pertença a esta ou aquela região, a este ou aquele país. São vagas, remotas, impessoais, mas existem e fazem com que esse ser que jaz, tenha existido. Em contrapartida, cada um dos ossos, cada um dos esqueletos presentes nas catacumbas ou ainda qualquer Naenderthal, Cromagnon, Sapien, Erectus ou outros, são curiosidades ou peças de museu sem nenhum peso, sem nenhuma recordação, nada nos dizem a não ser como “objectos” de um passado histórico.
Lembro-me de ter anotado há meses esta reflexão: quando morremos, somos hipócritamente tudo de bom e/ou maldosamente tudo de mau. Somos uma memória transmitida para as gerações vindouras (evidentemente conotada com a simpatia ou antipatia por parte dos nossos analistas) e que nos faz ser alguém enquanto perdurarmos como memória, seja ela qual for, e até nos diluirmos na não-existência. Só aí retornamos ao pó primordial, que diluirá para sempre o nosso ser, a nossa individualidade, pela ausência da lembrança.
14. mar, 2017
Post 37
00h45, 12/03, domingo
As minhas folgas de 5ª e 6ª feira foram desperdiçadas em inutilidades úteis, uma forma de perder tempo recuperando energias e, simultâneamente, perder energias por stressar com o tempo malbaratado. Paradoxal mas verdadeiro. O ganho, a existir, passa pela gestão do modo como encaramos o dito desperdício de tempo: se lamentamos o laxismo a que voluntáriamente nos sujeitámos, então mais valeria não termos folgado, pois o sentimento de culpa dá-nos cabo da saúde, tanto mental como física e deixa-nos uma sensação de vazio e desperdício.
Se, pelo contrário, preferimos e aceitamos o dolce fare niente como algo que merecemos e a que temos direito, um recarregar de baterias necessário para aguentar mais uma semana de trabalho sem ou com poucas sequelas, então só teremos a lucrar: melhor disposição, melhor saúde, mais positivismo e gratificação laboral, mais sentido na vida (se tal é possível).
Nunca sei para que lado pende a balança do meu discernimento: acho que o stress e a satisfação estão sempre em luta pelo poder e isso também cria ansiedade, embora esta seja mais fácilmente sublimável.
Ponto da situação: o meu índice de felicidade – e usando a terminologia dos analistas económicos – está um pouco acima de lixo, o que é óptimo (ou pelo menos, bom).
No fundo, no fundo, penso que sou feliz em estar como estou e ser como sou. Feliz em ter esta idade e não ser mais novo nem mais velho: se fosse mais novo teria menor experiência e, consequentemente, menos sabedoria. Se fosse mais velho, teria os pés mais perto da cova e isso já diz tudo. Um dia de cada vez. Feliz em ser (ou esforçar-me por ser) justo, equilibrado, humano e não o inverso; a maldade, a má formação de carácter é, para mim, horrível.
Em suma: não sou santo mas tento sê-lo e isso é o mais importante do nosso percurso na vida terrena. A felicidade não existe em toda a sua plenitude. O que sentimos são choques efémeros de felicidade sempre que pomos os dedos na tomada, sempre que degustamos um momento agradável, e isso ajuda-nos a viver uma vida equilibrada. A felicidade omnipresente acaba por se tornar na maior das infelicidades, no supremo spleen que nos tira a vontade de viver. É como os pratos orientais: ao lado do arroz neutro, sem sabor, há outro ingrediente que produz o choque, o contraste que dá paladar ao prato da refeição, à experiência sensorial e espiritual.
6. mar, 2017
Post 36
00h42, 06/03, 2ª feira
Estou num daqueles impasses decisórios que julgo acontecerem de vez em quando a toda a gente, mesmo àqueles que dizem nunca tal lhes ter sucedido. Esses são os que, consciente ou inconscientemente, sentem-se mais equilibrados ou mais perfeitos que os outros. Não quero com isto dizer que sejam convencidos; por vezes é uma reacção natural de pessoas normalíssimas. Afinal continuamos a ter traços bem fortes da animalidade primordial que nos compele a tentar inconscientemente ser melhores que os outros, como forma de selecção natural. Apenas evoluímos em relação aos nossos “congéneres” anímicos no tocante ao refinamento desse esforço de nos sobrepormos, como forma de domínio ou superioridade.
Dizia eu então que estou hoje num impasse. É verdade, não sei que fazer, como fazer, que voltas a dar à minha vida mais imediata, àquele futuro possível e incerto que terei a curto prazo, se a roda da vida mo permitir.
Às vezes, mesmo as resoluções mais simples e básicas tornam-se complicadas, as soluções que normalmente surgem fluidas e intuitivas representam um quebra-cabeças que nos atormenta, mesmo sabendo que são pontuais e insignificantes, tempestades num copo de água. São momentos aflitivos, no mínimo desagradáveis, que nos provocam tensões mais ou menos intensas, consoante sejamos mais ou menos emotivos. Comparo-as às “aborrecentes” brancas que surgem quando nos queremos lembrar de algo que está mesmo debaixo da língua, da nossa língua cerebral, mas que teima em não surgir. Essa frustração é muitas vezes dramática, ficamos alterados pela incongruência e isso tira-nos (metafóricamente) anos de vida. Essa aterosclerose cognitiva preocupa-nos mais à medida que vamos envelhecendo, o intelecto apercebe-se da degeneração lenta e progressiva que o afecta e começa a criar-se um clima de tensão permanente, difícil (se não impossível) de eliminar.
Quem nunca teve pensamentos de temor sobre o que nos reserva o futuro, se formos vivos, se continuamos a envelhecer? Quem nunca pensou em Alzheimer e outras doenças cerebrais degenerativas? O medo de perder faculdades é pior que o medo de morrer, é um sentimento de morte em vida, um tormento que pode arrastar-se por muitos anos.
20. fev, 2017
Post 35
04h17, 2ª feira, 20/02
Iniciei uma escrita sem destino, sem propósito definido. A minha mão é um barco que voga no papel à mercê do embate das vagas do pensamento.
Vem-me à ideia a noção de que tudo é uma inutilidade que teimamos em repetir, um edifício em constante degradação e permanente re-consolidação para evitar a ruína, uma casa que mantemos mas que nunca verdadeiramente habitamos e que legamos aos vindouros para que façam o mesmo, num movimento perpétuo que relembra o suicídio dos lémures: frustrantemente incompreensível.
Eis-me portanto aqui sentado a escrever e a exercer uma função profissional que repetirei
ad nausea para poder sobreviver num ciclo também indefinido do binómio comer/defecar. Poderei acrescentar pensar/agir, mas tudo depende do primeiro; e tudo sem um objectivo definido, sem algo a que possamos realmente chamar o sentido da vida.
Comer/defecar/pensar/agir – morrer; uma minúscula peça de uma engrenagem gigantesca e complexa que se move e trabalha como um relógio sem ponteiros, sem finalidade. Mas no entanto funciona! E vai substituindo as peças desgastadas por outras que foi criando, uma máquina cuja única função visível é fabricar vida efémera para se auto-renovar, uma espécie de fonte da eterna juventude em que a máquina, imutável e imortal, tem como razão de existir a sua própria existência.
8. fev, 2017
Post 34
04h01, 08/02, 4a feira
Pergunto-me ao espelho o meu Futuro e espero-me em vão uma resposta. O meu Presente: silêncio. Pergunto-me o meu Passado e vejo-me horas, dias a fio, a contar-me vida.
Toda a vida é Passado; a morte, o momento da morte, é Futuro. Depois a morte é Passado, até que este se desgaste, desfaça-se por atrito com o Tempo, para quem nem a perenidade é perene.
Sem ser para mim, o que sou eu? Um ponto no nada que se afasta até ponto deixar de ser, até que o nada não seja nada e deixe de existir.
Hoje sou, antes de ser nada; amanhã fui, antes de ser nada; depois... nada, e no fim, se é que existe um fim quando nada há, nem isso.
Mas como é possível não ser nem sentir aquilo que sou e sinto, como posso desaparecer se não existo? O que haverá para além de mim que desconheço, que Nada será esse o do porvir?
Sofro o sofrimento da morte que é mal vinda, que essa sim, não morre enquanto houver vida, durará talvez eternamente.
8. fev, 2017
Post 33
00h23, 31/01, 3ª feira
Eis-me só. Só com os meus botões e fechos éclair. (???) Sim, eu disse mesmo fechos éclair. Afinal os ditos populares, os chavões a que estamos habituados e com os quais convivemos durante grande parte das nossas vidas têm que evoluir, senão acabarão por deixar de fazer sentido e serão pronunciados por mero hábito ou por ouvir dizer aos mais velhos. E, embora sabendo os contextos em que são usados, já não saberemos o seu significado etimológico. Ou, pura e simplesmente, desaparecerão como modismos que foram ou contextos que deixaram de ser.
Dar às de Vila Diogo, chamar o Gregório, dar com os burrinhos na água, carapau de corrida, trinca-espinhas, ir às malvas, bater a cassoleta e tantos outros, são expressões cada vez menos usadas porque perderam já o impacto da sua significação original ou foram sendo substituídas por outras expressões geracionais que, por vezes, difícilmente aceitamos porque estamos demasiado apegados às nossas próprias expressões geracionais.
A língua evolui e com ela o argot, o calão. Se assim não fosse, ao falarmos, estaríamos tão desfasados da nossa época como sucederia se estivéssemos vestidos com indumentárias da Idade Média.
Dizia eu, então: só. Envolto na minha carapaça de memórias, pensamentos, alegrias e fobias, vivências e esperanças. Afinal não estou só, tenho o meu mundo comigo, as minhas descobertas, as minhas pequenas felicidades, os meus desgostos, as minhas experiências, a minha família, os meus amigos, as minhas esperanças e desilusões. Tenho afinal um pequeno universo particular cheio de vida, que fervilha de vida e interage comigo, não estou sózinho no meu mundo. Apenas não o sei gerir, razão por que me sinto tão isolado. Aquele que controla o seu mundo é feliz.
8. fev, 2017
Post 32
01h45, 5ª feira, 19/01
Frio, 0°. Dilema: aqueço-me ou congelo-me? Faço ronda ou limito-me a ver as câmaras? Tenho que ser honesto comigo próprio, não me sinto bem sem cumprir a minha obrigação laboral, independentemente de ser bem ou mal pago, ter ou não frio, apetecer ou não e nisto sou o meu mais acutilante crítico. Não digo que não faço batota de vez em quando mas quando o faço fico sempre com um peso na consciência, sinto não ter cumprido eficaz e honestamente a minha obrigação como profissional que sempre tentei ser nos meus múltiplos empregos. Poderei eventualmente não ter sido bom executor mas pelo menos tentei sempre cumprir e mesmo superar as minhas obrigações sem esperar em troca nada mais do que a satisfação do dever bem cumprido, pelo menos formalmente. Sacrifícios no trabalho? Se forem actos voluntários, são gratificantes.
Haverá consciência sem vida ou vida sem consciência? Li há alguns anos que, por experiências feitas em laboratório, as plantas entram numa espécie de coma quando a sua integridade física é posta em causa (ler Michael Pollan e Peter Tomkins). Isto deixa-me a braços com a interrogação inicial: se não houvesse consciência não existiria tal reacção, pois não havendo qualquer espécie de sofrimento experienciável e consciente, não faria sentido o tal estado comatoso. Isto levanta questões filosóficas e existenciais muito importantes, pois é universalmente(?) aceite que as plantas e os insectos não são seres sencientes, o que os relega para uma existência regida apenas pelo mecânico instinto de sobrevivência. A ser verdade, a experiência relatada põe em causa muitos conceitos, noções, dogmas que temos inculcados nas nossas mentes. Temos que ter abertura suficiente para aceitar hipóteses, por mais improváveis que sejam e às quais não chamaremos absurdas pois absurdo era, segundo os sábios de diferentes épocas, pôr na água navios de ferro porque iriam ao fundo ou pôr a voar fôsse o que fôsse mais pesado que o ar ou circum-navegar a Terra, que todos sabiam que era plana e que o mar terminava num abismo.
Ou seja, as plantas e os insectos são eventualmente sencientes e eventualmente não sencientes, para já é tudo uma questão de crença e escolhemos a que mais gostarmos, correndo sempre o risco de tomar a decisão errada (ou não).
18. jan, 2017
Post 31
01h03, 4ª feira, 18/01
Faz mais de 30 anos que estou para ler Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio; trouxe-o hoje, comprado há dias em 2ª mão por 1 euro, mas não me apetece lê-lo hoje ou, pelo menos, agora. Talvez mais tarde, quando o spleen se instalar, altas horas da madrugada.
Ainda me lembro do Nemésio, tinha um programa na televisão assim chamado: Se bem me lembro. Aliás era assim que ele começava sempre as suas crónicas no pequeno écran, a sua imagem de marca. Essas conversas televisivas começaram em 1969 e estenderam-se até 1975, lembro-me vagamente delas. É bom sinal porque se me lembro é porque eram para mim residualmente interessantes. Digo “residualmente” porque com 12 a 15 ou 16 anos não pertencia muito às minhas prioridades de adolescente estar a ouvir fosse quem fosse a falar de memórias e outros contos, implicava uma capacidade de concentração incompatível com a de uma jovem cria. Contudo, da mesma época ou anterior, João Vilarett, o declamador, encontrava em mim um ouvinte assíduo e espectador mais atento, talvez pelo modo cativante com que lia os poemas que apresentava.
Nesse tempo ainda não metastizado pelo lucro e pelas audiências (que são a mesma coisa), via-se cultura na caixa que mudou o mundo: boas reportagens (com temas que não ofendessem o Regime ou a Igreja, bem entendido), peças de teatro todas as semanas, concursos inteligentes e não popularuchos, entrevistas a poetas e escritores. Claro que nem tudo eram rosas: política – só a do Estado, religião – só a católica, opinião – só a do Regime. No entanto e paradoxalmente, embora vivendo nessa ignorância política e social, a programação era mais culta do que nos dias de hoje, onde a diversão se sobrepõe quase completamente aos programas de desenvolvimento mental e espiritual.
Se calhar existirão hoje mais programas culturais do que nesse tempo mas são meras gotas de água de um oceano que nos afoga em inutilidades. Eles estão lá mas diluem-se, o esforço de rastreio é tão grande que perdemos a vontade de os procurar e acabamos por ver um filme (também os há bons) ou uma qualquer outra distração improdutiva. É a moderna versão do pão e circo romanos, os objectivos e efeitos são exactamente os mesmos.
Hoje em dia a informação que conta no meio de tanta “informação” é como um canto de pássaro no centro de uma grande cidade: está lá mas não se ouve, têm que se filtrar milhentos ruídos para o ouvir, muitas vezes sem sucesso.
Faz muito frio lá fora, já não me lembrava de um frio assim, os últimos anos até foram amenos. O pior ainda é o vento moderado que sopra e uiva através das frinchas do prédio. Aqui não me incomoda mas na rua é imensamente desagradável.
Hoje sinto-me bem, sinto-me em paz. Ajudado pelo Spotify, o tempo rola calmo e silencioso, nem se dá conta da sua passagem. No entanto em mim, cá bem no fundo, sinto (sempre senti) uma urgência indefinida, uma impaciência por algo que não sei o que é e que estraga toda a minha desejada serenidade interior. É um medo, uma insegurança, um desnecessário pânico controlado, um esperar de algo que tarda a vir e que agita a superfície do calmo lago que deveria ser o meu espírito.Todos temos as nossas fobias, os nossos terrores de algo apenas adivinhado e irreal, os monstros e bruxas más dos nossos edénicos contos de fadas pessoais, talvez resquícios modificados e irreconhecíveis dos perigos dos nossos mais longínquos ancestrais, temores esvaídos no tempo e dos quais ainda conservamos os mitos e que legaremos às gerações vindouras.
28. dez, 2016
Post 30
01h43, 3ª feira, 21/12
Está à porta o meu último Natal quinquagenário. Se sobreviver a este e a mais um ano e se tiver sorte, durante dez anos celebrarei natais sexagenários, até ao início de um novo ciclo. Como diz o velho ditado, é a lei da vida!
Após uma gripe de caixão à cova que felizmente não se concretizou (nem o caixão nem a cova), eis-me de novo a escrever as minhas crónicas-memórias, experiências um pouco insípidas de uma existência não muito rica em acontecimentos relevantes.
Volto à velha questão existencialista: o que estou aqui a fazer?
Tenho sorte de não ser um génio. A esses, o peso da demanda é muito maior, sentem mais intensamente essa frustração íntima. Curiosamente, são eles quem mais contribui para o sentido da vida e os que menos se satisfazem com os resultados.
Acho que todos aspiramos à imortalidade, mesmo os que não acreditam nela. Não no sentido físico mas espiritual, como um estado de plenitude, de existência, não no sentido de acção mas no de essência, no ser e não no agir. Feliz ou infelizmente só o poderemos saber após rodarmos o trinco da última porta que nos separa dessa incógnita, só aí saberemos se vamos acordar ou se tudo não passou de um gigantesco embuste. Entretanto, carpe diem.
27. nov, 2016
Post 29
00h19, domingo, 27/11
Quase Natal de novo, para mim é a 59ª vez. Quantos mais?
Gostaria que o Pai Natal, o Menino Jesus ou o S. Nicolau (ou todos eles) se lembrassem de mim este ano, mas de uma maneira mais generosa (leia-se monetária). Claro que jogo no totoloto, às vezes no Euromilhões, eventualmente uma raspadinha: é a minha cartinha ao Pai Natal (e aos outros) com os meus desejos. Se me sair alguma coisa sem ser dinheiro do bolso, finjo que foi a sorte que que pendeu para o meu lado quando, no fundo, sei que foi o Menino Jesus (ou um dos outros). Sim, porque eu, como é costume dizer-se, ainda acredito no Pai Natal. A ver vamos este ano.
Friinho, gripinha, chuvinha, tudo o que é preciso para um Natal tradicional. E temos tido todas, graças a Deus ou ao seu capataz S. Pedro (quanto à gripe: haverá algum santo padroeiro?).
Chegou a hora de fingirmos que somos solidários com os pobrezinhos e outros esquecidos da fortuna, pormos a máscara mais pia que encontrarmos no baú e começarmos a ser bonzinhos com todos, mesmo com aqueles de quem nos vamos esquecer no dia 26, de modo a lavarmos a nossa consciência e aumentar a auto-estima, mostrando mais ou menos ostensivamente o bonzinho que somos e iludir as vistinhas dos outros e as nossas próprias, pois que nisto de enganar somos tão bons que até a nós próprios iludimos. Veja-se o caso de alguns mafiosos (que os há em todo o lado) que vivem à custa da extorsão, do assassínio, do roubo e do tráfico e que lavam a consciência fazendo obras de beneficiência, ajudando os pobres, indo devotadamente à missa, emocionando-se com a desgraça alheia, deitando poeira para os seus próprios olhos.
Já chega de falar de desgraças, aleluia porque é Natal!
23. nov, 2016
Post 28
11h38, 22/11, 3ª feira
Agora o tempo é escasso. Como este ano decidi continuar o meu mestrado em Estudos Comparatistas e Relações interculturais, já não consigo escrever com a regularidade que tinha anteriormente. Embora seja só uma disciplina (Literatura de Viagens), exige-me um esforço que agora é multiplicado pela idade e pelas limitações. Contudo não desisto, aprendo, gosto do que aprendo e oleio a mente. É óptimo aprender coisas insuspeitadas, escondidas “às claras” em textos que nunca lemos, em livros que já lemos com os olhos do corpo mas que só agora compreendemos com os olhos da alma.
Continuo a chorar os 30 anos de incultura consentida (citando a mim próprio) que nunca recuperarei. Nada sei mais do que nada saberia se os não tivesse malbaratado tão inglóriamente, pois como Sócrates (o filósofo, não o político) continuo a saber que nada sei.
Não vale a pena chorar sobre leite derramado porque está impróprio para consumo; há-que obter mais leite e bebê-lo com sabedoria, sede e prazer.
Planos para o futuro: acordar amanhã. À medida que envelhecemos, os nossos planos a longo prazo vão encurtando e chega o dia em que we don’t take for granted o dia seguinte; aliás, nunca o deveríamos ter feito no decurso de toda a nossa passagem terrena. A vida é um bom senhorio mas expulsa-nos a qualquer momento, sem avisar, por razões que a (nossa) razão desconhece.
Claro que estes pensamentos apenas tomam forma no nosso íntimo mais íntimo, exteriormente mantemos (é imprescindível) a nossa teimosa crença de que somos imortais ou quase e que para o ano estamos aqui de novo a fazer planos para o futuro. Afinal é isso que nos mantém vivos: os nossos planos para o futuro. A partir do momento em que não o fazemos, estamos mais que preparados para morrer, para desistir.
14. nov, 2016
Post 27
03h07, 02/11, 4ª feira
Os dias passam por mim e já não me apercebo, será que estou a ficar velho? Se calhar é apenas porque durmo de dia...
Malgré tout, tenho tido dias bastante felizes, quase perfeitos, mas por vezes penso que vivo num paraíso descoordenado, onde os bons acontecimentos são processados incorrectamente, como uma alzheimeridade da percepção. Fico sem saber se é cansaço, malformação da personalidade ou mesmo um desequilíbrio físico ou químico ou ambos, do córtex cerebral.
Contudo resisto bem a essa semi-frustração, ao espicaçar contínuo desses pensamentos críticos cuja principal função é tentar fazer baixar a guarda da nossa firewall mental e instalar a dúvida e os sentimentos de fracasso, responsáveis afinal por todos os males do mundo.
Mens sana in corpore sano
Essa simbiose corpo-mente é essencial, imprescindível.
17. out, 2016
Post 26
3h32, domingo, 15/10
Poder-se-á ser um ghostwriter de si próprio ao escrever o que dita o inconsciente em contradição com tudo o que a personalidade visível, externa, demonstra? Para ser mais explícito, pode alguém que encara aberta e sinceramente a vida pelo seu lado positivo focar-se e escrever sobre o seu próprio lado negro, incarnar como actor, autor e experienciador a carga física e emocional soturna que se acoita nas caves e sub-caves da mente?
A meu ver, sim. Quando vou trabalhar visto uma farda e quando vou para a praia envergo um calção de banho; nestas ou noutras situações semelhantes ou dessemelhantes encarno o meu papel, torno-me actor, invisto-me da minha responsabilidade como autor e assumo as consequências como experienciador.
Fernando Pessoa “vestia-se” também com os seus heterónimos, assumia diferentes modos, diferentes emoções. Também ele era, afinal, um ghostwriter que assumia e vivenciava a sua pluralidade, não deixando de ser ele próprio pois quem o conhecia caracterizava-o por si e não pelos seus alter egos.
Tudo isto a propósito (temo repisar o assunto) da minha propensão, da minha preferência por uma visão gótica da vida, por um romanticismo estereotípico cheio de tuberculosos agonizantes, ruinas sem tempo e dramas insolúveis e onde a razão última da existência é infrutíferamente vivissecada até à sua mais ínfima partícula.
Esse sou eu na sua contraparte oculta, aquela que, tal como espíritos manifestando-se numa tábua Ouija, emerge no que escrevo, assomando fugazmente, acorrentada, no umbral da sua cela esconsa, perdida nas masmorras lúgubres da mente mais profunda, do inconsciente.
6. out, 2016
Post 25
00h44, 5 de Outubro, 4ª feira
Peguei na primeira esferográfica que encontrei, uma azul, para escrever o rascunho desta crónica que, após editada, foi bytificada e virtualizada no computador. Não gosto porém de escrever a azul, parece que escrevo algo diferente do que escreveria se o fizesse a preto, como se a cor modificasse a mensagem que tento transmitir.
Na verdade é diferente: o que escrevo, sendo o mesmo, não é o mesmo, como se a escrita tivesse género e, ao escrever na cor “errada”, estivesse a travesti-la. Não se trata de homofobia ou misoginia – que isso na escrita nem faz sentido aplicar – mas é como se, por qualquer obscura e ignorada razão ou obscuro e ignorado preconceito, a côr azul não se coadunasse com a escrita, a minha escrita. Até que o preto e o azul são cores conotadas com o mesmo género, não obstante neste caso o meu conceito de género seja algo para além de uma dicotomia e se aproxime mais de uma multiplicidade de abordagens onde as noções de masculino e feminino esbatem-se e desdobram-se em outros géneros indefinidos e indefiníveis.
Embora manifestamente dessemelhante, a abstracção mais próxima desta sensação de diferença seria a de escrever a alguém a vermelho. Tal poderia eventualmente ser entendido como uma desconsideração ou mesmo um insulto. Isto, claro, segundo os padrões culturais do período civilizacional com que me identifico.
28. set, 2016
Post 24
28/09, 4ª, cerca das 04h00
Sempre que tomo conhecimento que algum dos “antiguinhos” do meu espaço cronológico vai servir de meio de subsistência aos milhentos e vorazes habitantes das profundezas da terra ou adicionar mais alguns voláteis elementos cancerígenos na atmosfera, perpassa pelo meu subconsciente um desagradável arrepio virtual enquanto o meu consciente lamenta a perda dessa figura de referência (boa ou má) do pequeno universo do qual sou o centro.
Quem conviveu toda a sua vida com figuras míticas, ídolos da juventude (e não só), artistas de cinema, políticos de referência, escritores e outros que deixaram o seu cunho na história, alguém que iluminou ou de algum modo marcou o percurso paralelo de imensos coexistentes temporais anónimos e os vai vendo apagar-se como luzinhas que fundem e não são substituídas por serem únicas e irrepetíveis, começa a sentir-se percorrer um caminho cada vez menos iluminado, cada vez mais escuro e, paralelamente, a tomar consciência de que também é uma dessas luzinhas e que também um dia vai-se apagar. Daí o arrepio, que por ser virtual não se sente físicamente mas no espírito e que agita-nos, incomoda-nos, faz-nos sentir vulneráveis e perecíveis, descartáveis, envolve-nos num fatalismo negro, num medo irracional de caírmos nalgum nada absoluto ou pior: num qualquer desconhecido cenário dantesco, quiçá amplificado por crenças assumidas ou residuais, adormecidas nas profundezas do Id.
A mente tende a considerar imortais todos os pontos de referência que vão surgindo no decorrer da sua vigência e espanta-se, choca-se sempre que um deles deixa de existir e, tal como um gato a que mudaram a mobília, fica temporáriamente desnorteada, confusa, como se o seu mundo pessoal tivesse acabado. Sentimos então o tal frisson desagradável, como se um pouco de nós se tivesse esvaído na não-existência.
28. set, 2016
Post 23
26/09,2ª, durante a madrugada
Quando, às portas da morte, olharmos retrospectivamente a nossa existência terrena, teremos muito provávelmente uma sensação de desapontamento e de mágoa e faremos pender sobre nós próprios uma crítica tão negativa que, se tivéssemos ainda a possibilidade de escolha entre a vida e a morte, certamente escolheríamos a segunda hipótese, tal a vergonha de termos malbaratado tantas oportunidades únicas que se nos proporcionaram “de caras “ao longo da nossa efémera visita por estas terras da Terra, seja por estupidez, por inapetência, ou – em grande percentagem– procrastinação.
Não falo apenas por todos os actos corriqueiros que deixámos espalhados e incompletos no nosso caminho: o parafuso que ficou por apertar, o interruptor partido que amanhã (sempre amanhã) vamos substituir, a chapa solta que nos incomoda quando há vento, o filme interessante que estreou e que queremos ver sem falta há 12 anos, o degrau que range, a mancha no tecto, a visita de cortesia, o jantar com velhos (entretanto já falecidos) amigos. Não foi só isso, não. Foi a nossa própria vida, a nossa alma que protelámos. Onde estão todos aqueles grandes feitos, todos os actos notáveis que nos propusemos fazer no decurso da nossa existência? Projectos inacabados ou nem sequer esboçados que agora, no umbral do eterno, tudo faríamos para concretizar, mesmo vendendo a alma ao diabo, como o Fausto de Goethe.
Tarde demais, deixaremos este mundo por completar, ele também o produto dos sonhos inacabados de todos os procrastinantes que nos precederam.
Que tristeza, que desperdício! Tanto que poderíamos e deveríamos ter feito! Mas deixemos por agora estes pensamentos, reservemo-los para o dia da nossa morte.
24. set, 2016
Post 22
11h20,3ª, 20/09
Faz já muito tempo que não pratico “fisiografia” com alguns singelos apontamentos candidatáveis a uma análise histórico-sociológica em algures no futuro. Não sei até que ponto os documentos escritos no éter electrónico poderão ser recuperados em tempos vindouros, perdidos que estejam num porvir distante. Existirá porventura um registo akáshico electrónico onde permaneçam eternamente todos aqueles testemunhos desaparecidos, enviados um dia para a reciclagem ou extraviados por descuido ou engano? Permanecerão eles num éter ainda desconhecido, numa dimensão ainda por descobrir e explorar, num aterro megabytico, terabytico de pastas, ficheiros, programas, comandos, widgets e apps, um novel tesouro de pesquisa e conhecimento, uma oculta Biblioteca de Alexandria virtual?
A nova escrita, o novo repositório intelectual (e não só) é constituído por bytes, não existe físicamente, o que representa potencialmente maior perigo de destruição de algo até hoje irrecuperável. Esse é o grande risco de uma sociedade rendida à comunicação electrónica, a hipótese sempre provável da perda de conhecimento, do extravio de informação e da consequente estupidificação massiva (embora processo lento) por colapso dos seus emissores/receptores.
A acreditar na existência das míticas civilizações da Antiguidade, como a Terra de Mu ou a Atlântida, estas poderão ter desaparecido rápidamente e sem deixar vestígios devido à perda acelerada do conhecimento “bytico”, porventura provocado por algum cataclismo natural ou mesmo bélico. Vendo-se impedidos de transmitir geracionalmente o conhecimento até então adquirido, por falta de meios, compelidos a recorrer à memória e aos antigos métodos de comunicação escrita, esse saber terá retrogradado e foi em consequência desaparecendo aceleradamente.
Bom, é uma hipótese tão válida como qualquer outra.
14. set, 2016
Post 21
2h57, 4ª feira, 14/9
12 e 13 – dois dias que mudaram o meu mundo. Embora me aperceba todos os dias que, devido à minha condição física, a minha relação com a velhice não será pacífica, o dia 11 foi determinante para a aceitação plena dos acontecimentos do dia seguinte; comecemos pela 2ª feira:
Caí. Não um tombo normal e fortuito, como tantos damos na vida mas uma consequência directa da minha relativa incapacidade muscular do lado inferior direito. Apenas por descer o degrau de um autocarro, estatelei-me no solo, sem hipóteses de o evitar. Esse tombo revelou-me o meu futuro, a curto e a longo prazo. Não que me preocupe sobremaneira o futuro imediato, será mais contusão, menos equimose; o que verdadeiramente me preocupa é o outro futuro, aquele que a idade fragiliza e que está tão perigosamente próximo.
3ª feira vendi a minha scooter, desliguei-me definitivamente de toda e qualquer esperança de reatar aquela saborosa sensação de liberdade que um “duas rodas” dá. Não só, vou vender também o meu velhinho “secador”. A iluminação, a revelação nua e crua que recebi no dia anterior fez-me pôr o coração definitivamente ao largo dessa réstia de esperança na utilização de algo que não seja um carro.
Dei, pois, um passo importante na minha evolução e aprendizagem: take nothing for granted and move on. A vida não acaba aqui, ainda há muito para dar e receber.
Ah, já me esquecia, ontem ainda recebi uma boa notícia: a minha candidatura a mais uma disciplina de mestrado foi aceite e após 4 anos de interregno volto à escolinha. O meu futuro é um projecto sem prazo.
14. set, 2016
Post 20
2h52, 8/9, 5ª feira
De volta à minha amada/odiada noite, após quase 3 meses a fazer pelos outros o que os outros não fazem por mim este ano: as férias. Não faz mal, já tive 2 meses de férias este ano que, embora não remuneradas, tinham todas as despesas pagas, incluindo ginásio e banho personalizados.
As folhas das árvores parecem envolver-se ora em acesas discussões ora em calmos diálogos, em consonância com os ditames do vento, seu instigador. De vez em quando uma delas desprende-se da matriz e em súbitos impulsos ou elaborados arabescos afasta-se como se se entediasse pela companhia e resolvesse partir à aventura. Uma a uma, por vezes com relutância, todas o farão nos próximos meses até que não reste nenhuma. Emigrantes, não voltarão jamais. Na primavera, uma nova geração de filhas da terra recomeçará o ciclo eterno.
Tu, folha, que brotaste tenro, minúsculo e verde rebento
E com tua sombra abrigaste a tanto viandante sedento
Mãe serás sem o ser de outras como tu geradas
Que mães serão de outras que o porvir abriga, que por ele são planeadas.
À terra de que nasceste vais retornar diferente, metamorfoseada.
Estarás ocre ou vermelha, castanha, lilás ou pintalgada,
Rasgada, engelhada, informe e desfeita ou ainda intacta e bela,
talvez te tornes multicor, talvez fiques rendilhada, negra ou amarela.
E voltarás ao solo agreste e fértil e poeirento e prenhe de ti
E um dia, numa radiosa primavera, renascerás num bosque ou jardim algures por aí.(Um pequeno, modesto e naïf poema que tive que escrever e do qual peço perdão pela fraca qualidade).
6. set, 2016
Post 19
13h56, sábado, 20/08
Esta manhã, enquanto dava um giro pelos passeios circundantes do meu local de trabalho e após ter feito in extremis um desvio centimétrico à sola do meu sapato para evitar pisar uma das milhentas formigas residentes nos jardins, veio-me à ideia a interessante e polémica relação entre a moral e as opções de resposta a esse condicionalismo ético. Tudo por causa dessa formiga, porque não me sinto confortável em lesar um ser vivo que não me fez mal nenhum e do qual posso simplesmente desviar-me; não acho justificável dizer a título de desculpa: “ah, mas estes bichos são horríveis, entram-te em casa e invadem tudo, dão-te cabo da comida ou enchem-te o açucareiro e tens que deitar tudo fora”. Também o filho do meu vizinho pode pegar no açucareiro e deixá-lo cair ao chão, partindo tudo e tenho 2 prejuízos. Não é por isso que vou calcá-lo.
No entanto, esta minha “moralidade” tem 2 faces: se vir em casa uma aranha, uma centopeia, algumas formigas ou uma barata, no mínimo tento envenená-las com insecticida (não gosto de as calcar, enoja-me). É evidente que não farei isso ao filho do vizinho (às vezes talvez apetecesse).
Poderei concluir que a noção de territorialidade é um agente modificador da interpretação moral, que temos 2 pesos e 2 medidas nas nossas relações com o mundo?
Numa escala mais global, num cenário de guerra, será esse o motu que transforma seres pacíficos em máquinas de matar, que legitima o extermínio de formas de vida como se fossem insectos invasores? É talvez a nossa matriz a comandar, a sobrevivência da espécie que se sobrepõe a tudo e a todos, que esquece moral, civilização, democracia, crenças, respeito mútuo, é o atávico espírito da matilha.
18. ago, 2016
Post 18
18h00, 15/08, 2ª feira, feriado
Eis-me de novo a garatujar com pigmento negro um troço plano de celulose processada e, atendendo às circunstâncias, descartável ou pertencente à categoria dos consumíveis para, após efectuada a necessária edição, transcrever o conteúdo em bytes por intermédio do meu processador pessoal (!!!!!). Tudo isto para dizer que estou mais uma vez a rascunhar um texto para, após revisão, guardar no computador. Porque será que há nos seres humanos, nuns mais noutros menos, a tendência para complicar coisas simples? Por que temos de florear, embelezar os textos criando por vezes, é certo, autênticos jardins das delícias literários, retorcidos rabos de porco, gavinhas de videira complicadas e caprichosas?
Lá estou eu a utilizar símbolos e metáforas nestas explicações e considerações!
Será apenas um ego que tenta sobrevalorizar-se perante os olhares críticos ou apreciativos dos outros? Será uma tendência inata nos seres humanos que os leva a apreciar em termos estéticos, artísticos, a beleza de um texto “trabalhado”, tal como aprecia a beleza de um pequeno detrito, uma pequena partícula – em si insignificante e inidentificável – que, pelo labor de uma ostra, transforma-se numa formosa pérola? Será que, tal como a ostra, temos necessidade de transformar os nossos actos insignificantes em pérolas, uma espécie de demanda pela perfeição num esforço artístico que é ao mesmo tempo uma procura platónica pelo nosso eu interno, pela nossa matriz no que tem de mais puro e verdadeiro, a procura incessante de uma realidade apenas conceptualmente acessível?
Como disse em crónicas anteriores, o meu objectivo não é evidenciar-me perante os outros através de proposições altissonantes ou pseudo-cultas; de facto, gosto de usar as palavras, elaborar puzzles, charadas verbais que me dão tanto gozo como certamente terão dado a moldagem do barro e feitura dos tão célebres bonecos à Rosa Ramalho ou ao Bordallo Pinheiro, são o meu barro, são os meus bonecos. Trabalhando-os deleito-me com o resultado, quiçá imperfeito ou naïf mas que me dá total satisfação tal como darão a uma criança os montículos de areia que constrói à beira-mar: para nós serão formas um pouco amorfas, para eles maravilhosos castelos idealizados.
Aproveitando a minha metade possível do feriado – visto que estou a trabalhar desde as 17 h – fui a Arouca com a família para procurar a praia de Canelas, de que muito ouvi falar, e conhecer os quase ex-terraços do Paiva, parcialmente destruídos pelos fogos devastadores que têm atormentado aqueles lugares outrora aprazíveis. Gostei, dentro do possível e devido às circunstâncias, de ambos: a praia é pequena mas razoávelmente bem apetrechada, água pouco fria e límpida, nadadores-salvadores, casas de banho públicas, bar, estacionamento, margens bem areadas, resguardada do vento; quanto aos passadiços, que vi de cima e a média distância, parecem-me agradáveis de percorrer (claro, numa perspectiva desportista e lúdica) embora constituam um escadório com um desnível abrupto que constitui afinal o “encanto da coisa” e dá-lhe uma perspectiva paisagística bastante apelativa.
Quanto a (quase) todo o resto – paisagem negra, vulcânica – lembra o vulcão dos Capelinhos após a erupção de 1959 ou certas paisagens da ilha de Lanzarote. Embora horrível não deixa de ser surpreendente, quase belo, mostra a Natureza geológica na sua face mais crua, como uma Terra pré-vida orgânica numa imagem de há milhões de anos, não fossem as cicatrizes extensas gravadas na sua superfície pelos caminhos de serventia. Traz à memória recordações perdidas, quase inexistentes, meras e quase desvanecidas penumbras gravadas nos arquétipos dos arquétipos dos arquétipos da Humanidade.
A vida é teimosa e em breve, a médio prazo e apesar da incúria dos homens, retomará os seus direitos adquiridos e encobrirá as tragédias do passado.
4. ago, 2016
Post 17
23h27, 04/08, 4ª feira
Relembrando novamente os tempos de infância, repasso as escassas recordações que a minha imatura memória da época abrangia, aliada às lacunas memoriais que a minha idade actual permite.
Por vezes lembro-me do meu cão quando olho para a minha infância: tal como ele, que tudo leva à boca, tudo mastiga e engole, também eu mastigava e engolia papel, cola de madeira, até cola de contacto ou UHU, que era ácida mas agradável. O xarope da tosse que roubava ao meu pai também sabia bem, tinha uma doce acidez. Por sua vez, o remédio para o coração, pastoso e branco como iogurte, da minha avó tinha uma consistência cremosa muito agradável e um sabor que não retive nas papilas. As ervas também não me escapavam, os caules do trevo eram bastante adstringentes e aprendi empíricamente que eram laxantes. Soube há anos que eram tóxicos mas também o eram as colas que mastiguei e, contudo, sobrevivi.
Com a mentira ingénua própria dos meus 5/6 anos tentei convencer a minha tia que o grande buraco que tinha ao nível da barriga na minha camisola de lã em malha de várias cores tinha sido feito pelo puxador da porta que se posicionava ao nível da minha cabeça(!). Na realidade, o buraco tinha sido o resultado de eu ter dado corda ao mecanismo desprotegido de um grande relógio que os meus irmãos tinham trazido para casa e em que eu adorava ver as rodas dentadas a girar em sincronia e a diferentes velocidades. Como é lógico, as rodas engataram na minha camisola e o resto é fácil de prever. Tão intensa é a concentração nestas idades que tudo o que nos rodeia deixa pura e simplesmente de existir.
Ainda hoje estou por perceber porque é que a minha tia não acreditou na minha “lógica” explicação...
Sensivelmente com a mesma idade, mais ano menos ano, tentei trepar a uma pereira (de pera rocha) que existia no quintal, em frente à porta da cozinha, tal como via os meus irmãos mais velhos fazer. Nesse dia concluí que a minha vocação nunca seria o alpinismo: caí, ou melhor, escorreguei esfarrapada e dolorosamente pelo tronco abaixo (nada liso, por sinal), tendo como consequência umas finas cicatrizes que, embora quase imperceptíveis, ainda conservo como recordação. Vejo o meu pai junto a mim, após ter posto mercurocromo nas feridas e vejo os meus irmãos um pouco atrás. Cuspo um vestígio de sangue e ouço o meu pai dizer para tranquilizar-me: “Isso não é nada, foi um bocadinho de mercurocromo que entrou”. Remédio santo, a aterradora hipótese de um escarro de sangue é por mim imediatamente posta de parte por esta explicação tão mais que lógica!
Lembro-me de estar sempre doente e do sacrifício que é para uma criança estar constantemente confinado a uma cama, lembro-me do desconforto, da dor física e dos tratamentos invasivos da época, principalmente das omnipresentes, torturantes e dolorosas injecções, o meu quase pão-nosso-de-cada-dia. Lembro-me das infecções pulmonares, das crises de fígado, dos vómitos violentos que me feriam a garganta e saíam-me pelo nariz, das disenterias, dos furúnculos. E, contudo, vivia num limbo de magia, de novidade, de infeliz felicidade, como qualquer criança que nada mais conhece senão a sua própria existência.
Lembro a minha avó e a sua rigidez mesclada de meiguice, lembro um amor paternal dissimulado que um dia descobri num beijo, quando fingia que estava a dormir e que me marcou para sempre, lembro uma tia que foi minha mãe e de quem (suas palavras) fui o filho que nunca teve.
(Quase) tudo se esvai para lá do horizonte mas fica sempre a recordação saudosa e morna, como cálida e aconchegante é a lembrança do sol após o seu ocaso.
4. ago, 2016
Post 16
23h45, terça, 02/08
Em consequência de um artigo que li há dias num jornal ou numa revista, vieram-me à memória recordações longínquas da minha infância e adolescência precoce sobre algumas histórias, lendas contadas pelos meus ancestrais de há duas gerações (melhor dizendo, a minha ancestral, a minha avó, o único membro da família que conheci dentro da categoria de antepassado). Eram histórias fantásticas, de cariz geralmente religioso ou relacionado, que relatavam episódios e seres demoníacos, histórias mais ou menos de arrepiar, contadas geralmente na 3ª pessoa e ligadas, ou a familiares ou a pessoas a eles chegadas. Verdades, mitos? Histórias transformadas (in)voluntáriamente pelo(a) narrador(a) ou, como se diz, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto?
São histórias sem memória, sem registo escrito, transmitidas oralmente, transformando o que um dia poderá ter tido um fundo de verdade numa fábula, uma ficção, um conto fantástico ou de terror. Ainda me lembro de algumas, ouvidas ainda na idade da inocência:
Um meu antepassado (trisavô, tataravô? Já não me lembro), atravessando de noite e sózinho um carreiro, uma vereda - pois estradas quase ainda não existiam - deparou com um caixão atravessado numa zona onde não era possível contorná-lo. Mantendo o sangue-frio (acredito, os homens de antigamente eram de outra cepa), pensa com os seus botões (o fecho éclair ainda não se usava): “Se volto para trás, dizem que é mau, tenho que avançar”. Se bem o pensou, melhor o fez e, passando o cajado – ferramenta essencial em época de lobos e salteadores – por cima do caixão, toma lanço e salta para o outro lado, dizendo ao mesmo tempo a título de salvaguarda: “Deus te salve e a mim me guarde”, tendo como resposta uma voz surgida de algures, que disse: “Vai, que vais bem guiado”.
Outra:
O “Sr Camilo da Fábrica”, amigo da família e membro da burguesia industrial naqueles idos do 1° e 2° quartéis do século XIX, era uma pessoa excelente, muito amiga dos pobres, a quem ajudava sempre que podia. Só tinha um defeito aos olhos da comunidade, era ateu. Um dia, após sair de uma qualquer reunião de amigos ou de trabalho e notando que estava a trovejar fortemente, fez um comentário jocoso: “A vizinhança lá de cima anda outra vez na arrumação das cadeiras”. Palavras não eram ditas quando um raio lhe caiu aos pés, arrancando-lhe a sola de uma bota. Bastante impressionado pelo sucedido, retira-se para casa, sendo perseguido pelos raios, que não paravam de lhe cair aos pés. Esteve muitas semanas em casa a recuperar de tal experiência e, sempre que lhe era aflorado o assunto, dizia: “Muitas graças a Deus e poucas com Deus”. Foi um cristão fervoroso o resto dos seus dias.
Outra, passada com uma nossa avó de 3ª ou 4ª geração, uma verdadeira pérola de humor satânico:
Estando ela a preparar-se para tomar um banho numa selha ou por qualquer outro método utilizado na época, reparou que no mesmo compartimento encontrava-se um bode. Embora estranhando como o animal teria entrado, continua os preparativos. Não esqueçamos que nas zonas rurais como Oliveira de Azeméis era há quase 200 anos, a presença de animais de criação ou outros dentro de casa não era motivo de espanto. Isso ainda sucede hoje em dia em algumas pequenas e mais primitivas aldeias deste país.
Voltando à história, estava ela já semi-despida e pronta a refrescar-se quando o bode se lhe dirige zombeteiramente, dizendo: “Tiroliro-liro-lu, vi-te aquilo mais o cu”; apercebendo-se estar em presença do próprio Demo, lança imediatamente uma invocação, um conjuro, uma qualquer ladaínha protectora, o que tem como consequência a pronta desaparição da entidade maléfica, envolta numa nuvem de fumo.
Uma última, esta provávelmente mais credível, visto que os conceitos de honra, mesmo entre ladrões, eram para ser estritamente respeitados:
Tendo um nosso, quase de certeza, trisavô tido que deslocar-se ao Porto ou talvez a Coimbra – viagens muito morosas e particularmente perigosas nesse tempo – encontrou numa estalagem do caminho um grupo cuja aparência deixava suspeitar a sua condição de salteadores, quem sabe se um deles não seria até aquele que foi companheiro de prisão de Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação do Porto aquando da sua detenção por adultério? Falo evidentemente do famoso Zé do Telhado.
Temendo pela sua segurança no seguimento da viagem, o nosso trisavô trata de cair nas boas graças do grupo, pagando-lhes uma rodada, o que é muito bem recebido. À despedida, o chefe dos salteadores entrega-lhe um anel como agradecimento, dizendo-lhe que, se porventura for incomodado no caminho, basta apresentar esse anel, que será deixado em paz. Parece que mais tarde isso se lhe revelou bastante útil.
Estas são algumas das “histórias de família” que ouvi e me lembro. Haverá outras que já se perderam nas brumas da minha memória, é pena.
Como surgiram estas narrativas? Terão algumas tido qualquer espécie de existência remota verosímil ou não passarão de invenções, de fábulas utilizadas para entreter e assustar aquelas crianças de outrora que foram os nossos antepassados há muito desaparecidos? Serão cópias, colagens de outros contos ouvidos um dia a alguém ou invenções de mentes férteis, geralmente femininas, dessa nossa sociedade victoriana, prolífica em tais tradições orais? Não sei, só sei que alimentaram a minha imaginação infantil durante muitos anos, como uma espécie de conto de fadas familiar, algo que me inseria, me identificava com o meu mundo genético.
Apercebo-me agora que tudo isto, estas tradições orais são marcadores identitários muito fortes que ajudam a realçar, a fazer sobressair um grupo familiar em relação a outros grupos congéneres e era muito utilizado pelas pequenas ou médias famílias burguesas, fossem elas rurais, comerciais ou industriais, como forma de realçar valores, geralmente religiosos, ou marcar a diferença, a exclusividade, as características únicas do grupo.
Esta é uma teoria como milhentas outras mas não tenho problema em expô-la como verosímil e perfeitamente possível.
28. jul, 2016
Post 15
Poder-se-á dizer que uma água bacteriológicamente pura é inimpotável (duas negativas redundam numa positiva), ou seja, que lhe é inimputável qualquer contaminação?
Apesar da construção gramatical errónea e tautológica, este jogo de palavras não deixa de ser engraçado. Gosto de brincar com as palavras, desconstruí-las, reconstruí-las, iludir ou modificar o seu significado um pouco ao estilo de Marcel Duchamp na obra icónica pela qual é mais conhecido – o mictório. Nela baseia o seu conceito de que tudo pode ser uma obra de arte desde que descontextualizada da sua missão funcional. Embora eu não esteja em absoluto em acordo com ele e também tendo em atenção que as palavras e os conceitos por elas expressos enquanto palavras não são obras de arte mas instrumentos de trabalho e lazer, gosto de subverter ou moldar as ditas aos meus propósitos, transformá-las, kitá-las, mascará-las para servirem os meus intentos expressivos.
Mas não é uma língua uma reinvenção, uma colagem, uma moldagem das palavras para que possam acompanhar a evolução natural da sociedade criando formas que se possam adaptar aos novos conceitos que vão surgindo sem ter necessáriamente que criar palavras de raiz mas utilizando as pré-existentes, modificando-as, se necessário? Afinal é algo que os chineses usam há séculos. Cada caracter é formado por outros caracteres cuja junção lhe confere um novo significado.
Uma palavra só pode pertencer ao universo linguístico em que se insere quando há um número significativo de usuários que justifique a sua inclusão na norma. No entanto há casos particulares (pessoais, familiares ou grupais) que admitem o uso de palavras modificadas ou inexistentes no dito universo linguístico sem que se possam considerar erros grosseiros ou atropelos à língua. Cito o uso familiar das palavras pronunciadas por crianças, que nada têm a ver com o conceito a que se referem (ex.: dindim em vez de leitinho) ou o caso de um comentador desportivo da TSF Jorge Perestrelo, falecido em 2005, que tornou-se célebre nos relatos futebolísticos com a frase ripa na rapaqueca que expressava, salvo erro, a conclusão positiva de uma jogada ou então expressões populares como secador a uma scooter de baixa cilindrada ou as palavras descontextualizadas ou inventadas utilizadas pela maioria das pessoas no seu pequeno mundo linguístico individual. Uma língua é muito mais que a fonética, a semântica, a gramática e a sintaxe, muito mais que os compêndios, os dicionários e as enciclopédias. Uma língua é como um ser vivo, não é mecânica, inventa, renova, transforma, move-se e sendo sempre igual não cessa de ser diferente a cada momento que passa.
Hoje e data e a respectiva informação meteorológica vêm no fim: 27/07, 3h53, 4ª feira, está nevoeiro e um pouco fresco.
22. jul, 2016
Post 14
23h35, 21/07, 6ª feira
Abafado, com uma ligeira aragem que traz consigo uma falsa promessa de frescura. Detesto, sempre detestei este tempo quente/húmido que nos cola desagradávelmente à roupa e provoca um desconforto contínuo. É o preço a pagar por ser do Norte.
Somos um país tão pequenino e temos tantos micro-climas, seja por influência atlântica, continental, mediterrânica ou outras. Eu é que nasci no micro-clima errado.
Fico simultâneamente impressionado e desgostoso quando comparo o meu nível de vida actual com o que possuía há 15 anos, no início do século. Nesse tempo o dinheiro era escasso mas mesmo assim conseguia-se ter uma qualidade de vida relativa. Era necessária uma mobília ou uma máquina de lavar? Comprava-se. A pronto. Férias? Éramos 4 e gozávamo-las durante 3 semanas ou 1 mês (outros tempos), por vezes fora do país. Claro que o dinheiro tinha de ser muito bem gerido, mas dava. Carro? Cheguei a ter 2 em simultâneo, um para cada membro do casal. Tínhamos uma vida sem muitos contratempos, sem ter de prestar muitas “contas à vida”.
Hoje ganho o mesmo que ganhava em 2001 (e era mal pago), o que representa pouco mais que a sobrevivência. Por este andar estou, estamos a caminhar para ter de estender a mão à caridade pública quando nos reformarmos e recebermos a quantia ridículamente simbólica que a Segurança Social atribui a todos aqueles que durante dezenas de anos andaram a engordar o Estado com os seus impostos, ou antes, a alguns dos seus indignos representantes cuja gestão dos dinheiros públicos lhes passou pelos bolsos ou diluiu-se pela sua mais completa incompetência. Esses estão bem, é o nosso dinheiro que sustenta as suas generosas reformas e as suas bem providas contas bancárias.
Nunca fui de esquerda porque não acredito nela. Não posso acreditar em dirigentes partidários que estão tão bem na vida como aqueles a quem criticam as mordomias. Não que tenha inveja dos ricos (que a vida que têm lhes faça bom proveito) mas porque estes dirigentes são aqueles cujo modelo de vida e comportamento seria de seguir mas que afinal apenas passam a vida a alternar entre a utopia e a demagogia (que íntimamente não subscrevem), as quais sempre foram o pão que mitigou as misérias do povo, um alimento que não engorda mas consola, uma espécie de dieta para papalvos.
A tão badalada pobreza miserável dos últimos 2 séculos será assim tão pior que a actual pobreza “assistida” com que deparamos hoje? Nalguns casos morria-se de fome (hoje também) mas se calhar as probabilidades de sobrevivência seriam superiores às actuais: não se pagava água ou electricidade, IMI, havia menos impostos e outras despesas criadas pela vida moderna, praticava-se uma agricultura, pastorícia, caça e pesca de subsistência. Não estou a ser redutor e a afirmar que antigamente é que era bom ser pobre. Apenas digo que estas situações poderiam ser alvo de um estudo comparativo que avaliasse até que ponto a (falta de) qualidade de vida entre os séculos XIX e XX e a actualidade coincidem ou dissemelham-se. Se calhar ficaríamos surpresos. Claro que esse estudo não serviria para nada senão para estatísticas ou teses académicas, os pobres continuariam miserávelmente pobres. Serviria talvez ainda – quem sabe? – para desconstruir ou mesmo destruir alguns mitos e/ou cavalos-de-batalha sócio-políticos.
Sou livre-pensador, por isso não me condenem se os meus desabafos não são “políticamente correctos”. Exponho as minhas ideias que, certas ou erradas, acredito irão contribuir para, no gigantesco oceano das dúvidas humanas, criar as ondas que pouco a pouco erodem os milhentos escolhos existenciais e evolutivos que o povoam, transformando-os lenta e progressivamente em serenas e aprazíveis praias.
Post 13
13/07, 4ª feira, 13H40
Dia d’annos (ao estilo dos meados do séc. XIX) a trabalhar para ser diferente ou, melhor dizendo, para fazer no aniversário o que faz a maioria dos portugueses, exceptuando aqueles que, por idade, desemprego ou doença ou cujo estatuto tal lhes permite e que podem, feliz ou infelizmente, comemorá-lo livres de obrigações laborais.
Não interessa muito, o tempo de dar importância a estes ínfimos pormenores da existência terrena esvai-se a pouco e pouco à medida que o tempo passa. Chega-se a uma altura em que as datas, as comemorações deixam de ocupar espaço útil para dar lugar a novas prioridades trazidas pela sabedoria e experiência da idade (ou pela parvoíce da idade, depende dos casos).
Eu estou para já no meio termo, ainda encaro os aniversários como algo agradável de comemorar, porém cada vez mais dispensável. Esta transição começa a fazer-me meditar sobre se estou a celebrar mais um ano de vida ou a lamentar menos um ano de existência.
12. jul, 2016
Post 12
08h33, 10/07, domingo
Um novo domingo, uma nova sequência na quase estaticidade do percurso (também ele quase circular, vicioso), um suceder ininterrupto de dias da semana e meses em tudo iguais aos dias da semana e meses do nosso recente e longínquo passado. Ruminamos, ruminámos e ruminaremos nos pastos sempre iguais da nossa existência terrena, até que a morte nos separe. É o nosso casamento vacuum com a vida e a natureza.
Não pauto muito por comentários políticamente correctos nas minhas análises e observações, mas também não quero. Prefiro ser eu próprio, comentar com as minhas palavras e não com colagens dos conceitos dos outros, de eufemismos ou chavões. Esta sim, é a minha realidade e não uma realidade genéticamente modificada para parecer literáriamente melhor e saber ao que não sabe. Isso não é a minha literatura, é um sucedâneo. Abaixo as “Monsanto” do pensamento!
Corres lesto e ledo por calçadas e vielas estreitas
No teu passo firme e duro calcorreias o deserto.
Pois quê? Nada temes, de nenhum mal suspeitas.
Porém um dia acordas e o que julgavas perene e certo
Esvai-se no passado que, embora ido, já viveste
O qual estará sempre para ti presente e perto.
Choras, como se o pranto trouxesse o que perdeste
Como se as lágrimas te curassem as maleitas
Não o faças! Os corpos partem, morrem, a tudo te sujeitas
As almas, essas, não morrem, são perfeitas.Os sonhos, os sonhos perdidos! Perseguimo-los toda a nossa vida e por vezes nem um concretizamos.
Perseguir sonhos é o motor da vida mas é também uma constante frustração: não vivemos sem eles, causam-nos muito frequentemente dor, a dor da impossibilidade, da não compleção, do vazio. Mas, como diz Rómulo de Carvalho (António Gedeão): “O sonho comanda a vida e sempre que o homem sonha, o mundo pula e avança”.
Dormi esta noite como se estivesse drogado mas continuo com sono como no rescaldo de uma bebedeira.
7. jul, 2016
Post 11
Domingo, 3 de Junho, 9h05
O dia promete “tosta”, a avaliar pelo que até agora apresentou.
Já me pus a imaginar que um dia, daqui a muitos anos, o que escrevo poderá servir de referência meteorológica, atendendo à quantidade de vezes que descrevo o estado do tempo. Se tivesse vivido há 160 anos ou mais, estes “boletins meteorológicos” seriam preciosos, uma vez que não existiam à época registos do estado do tempo. Os primeiros registos em continuidade no país apenas começam a ser efectuados em 1853, circunstância que acabou por dar origem à criação do Serviço Meteorológico Nacional em 1946 – quase 100 anos depois. Mas não vou perder mais tempo com o tempo, embora hoje tenha muito tempo para isso.
13h12, está mesmo “tosta”! O que mais me irrita neste dia soalheiro é estar aqui dentro e não ter ideias, não ter argumentos para ocupar o meu desperdiçado tempo em criatividade útil ou, pelo menos, mínimamente produtiva. Esse é um pesadelo recorrente e que faz-me pensar na triste existência daqueles velhotes que ficam a jogar cartas com outros velhotes nos tascos e jardins das cidades, vilas, aldeias e lugarejos espalhados um pouco por toda a parte deste nosso país envelhecido porque não têm mais nada que fazer no resto das suas vidas e acabam por morrer tão pouco ou menos inteligentes do que quando nasceram, porque os seus objectivos já não existem e agora nada passa de um passar o tempo à espera da Grande Ceifeira.
Continuo como é já costume com pensamentos não necessáriamente alegres ou positivos nas minhas análises do universo circundante. É de certo modo curioso porque, para lá da escrita, no mundo concreto, na realidade do dia-a-dia, não sou assim tão negativo, até encaro a vida, se não pelo seu lado melhor, pelo menos por perspectivas mais “bright”. É como se manifestasse na escrita uma segunda personalidade, uma espécie de dark side ou alter ego do qual só tenho conhecimento e assumo como indissociável de mim quando escrevo. Será o meu subconsciente a manifestar-se? Será essa a minha verdadeira personalidade, a qual tento esconder aos olhos do mundo? Não estou muito interessado em saber, prefiro que, a existir essa tal personalidade oculta, ela seja relegada para segundo plano e continue a aflorar apenas em momentos de expressão literária, sem nunca se tornar dominante; caso contrário, estarei perdido.
Absit!
2. jul, 2016
Post 10
00h39, 2 de Junho, 6ª feira
Dia de reflexão. Não sei porquê, acho que todos os dias são ou devem ser de reflexão, seja sobre o que fôr. O que nos falha na nossa vida, na nossa sociedade, é mesmo isso, a capacidade e a lembrança de parar para pensar um pouco em nós, no que nos rodeia, nos outros, no que não nos rodeia, no que nos afecta ou não, directa ou indirectamente. Sim, mesmo o que não nos afecta deve ser lembrado e reflectido, faz parte do nosso mundo, do nosso universo e cedo ou tarde vem-nos bater à porta, ocasionalmente pelas piores razões. Mas isso, embora devesse ser tomado em consideração, passa-nos geralmente ao lado; nesta nossa aldeia global o isolamento, o ensimesmamento aumenta numa escala inversamente proporcional ao aumento populacional que gradualmente nos envolve. É como se nos retraíssemos, nos acanhássemos à medida que as nossas oportunidades de socialização atingem valores cada vez menos abarcáveis. Nessa altura fechamo-nos, protegemos ferozmente a nossa individualidade, a nossa privacidade com um pânico irracional, reservando-nos apenas para os nossos raros eleitos, muitos deles não merecedores de tal distinção. Mas como só vemos os ciscos nos olhos dos outros, podemos não ver os calhaus que tapam os nossos.
Dia de reflexão, dia de upgrade, de actualização interior; se não o fizermos com regularidade começamos a desfasarmo-nos do mundo, a embrutecer a alma e a esclerosar a mente.
27. jun, 2016
Post 9
10h55, domingo, 26 de Junho
Proponho-me fazer uma pequena viagem pelos meandros do raciocínio enquanto pasmo aqui no meu posto e no quarto de dia que ainda me resta cumprir do meu fado laboral.
O dia está óptimo, tem vento mas não em demasia e está quente mas não em excesso, o que permite desfrutar com agrado as benesses de um início de verão que promete melhores dias de prazer e lazer que os dos dois últimos anos. Só tem um senão: estou preso ao meu compromisso social de sobrevivência, ao meu trabalho, e não consigo portanto gozar em pleno esta pequena dádiva da Natureza. Só ao fim da tarde, quando a dita começa a arrumar as botas é que posso aparecer, como um cliente tardio que surge logo antes do fecho da loja.
Somos uns insatisfeitos crónicos que passam a vida a queixar-se que esta não deu, deixou de dar ou deu a outros que não a nós as benesses que reclamamos. Ou então queixamo-nos que ela deu, passou a dar ou deu só a nós e não aos outros os problemas e as más heranças genéticas. Somos egocêntricos e interesseiros, faz parte da nossa natureza essa insatisfação pelo que nos calhou na rifa. O pessimismo e o optimismo defrontam-se na corda bamba e vão adquirindo as suas conquistas, curtas ou longas, pírricas ou, raras vezes, definitivas. As suas armas são os argumentos (verdadeiros ou falaciosos) e as emoções, com que os nossos tropológicos anjos e demónios se digladiam pelo privilégio de segredarem os seus conselhos aos ouvidos crédulos da nossa alma. Infelizmente o nosso lado negro tem propensão para a prevalência e costumamos pagar caro por isso, às vezes com a consequência última da nossa solução de continuidade. Nesses funestos momentos convém ter em mente que por mais escura que esteja a água, os peixes sobrevivem.
15h48, mesmo dia.
Aguardo a minha rendição. Há uma certa ironia nestas palavras; geralmente rendição aplica-se a quem vai preso e não a quem fica livre. É a plasticidade das palavras e a ductilidade dos conceitos a elas associados que permitem estes jogos de significados.
So os advogados fossem também linguistas e filósofos teriam o mundo na mão por via da palavra. Deus nos livre!
A última hora (credo!) é sempre a mais longa, a mais lenta, a mais extenuante. O Tempo gruda-se aos ponteiros num esforço desesperado de não ser relegado para um passado distante e esquecido, mas não há criogenia possível. O tempo estático, congelado, só existe na mente dos poetas e dos amantes, que são também eles, à sua maneira, poetas.
A minha pequena viagem terminou, já não tenho mais tempo.
25. jun, 2016
Post 8
05h38, 2ª feira, 13/06
Não sei verdadeiramente sobre que escrever, peguei na esferográfica por hábito e por gosto. Além do mais, tenho que praticar bastante, a minha caligrafia está muito irregular, o afinamento dos movimentos da mão ainda necessita de muito exercício para voltar (?) ao que era dantes. É extremamente frustrante escrever como se não o soubesse fazer e depois tentar decifrá-lo.
Com a perna o stress é similar, a amplitude dos movimentos e as respostas sincronizadas com a velocidade necessária para uma locomoção eficiente deixam muito a desejar. O joelho e o pé são os principais responsáveis pela resposta ineficiente: o joelho não distende com rapidez e o pé está como que adormecido em determinadas situações. Na verdade essa é a melhor maneira de definir o problema, é como se o pé estivesse adormecido, mas sem os “piquinhos”.
Psicológicamente, a frustração e o stress resultantes são enormes, cada vez que me movimento faço comparações com o passado, “fervo” com o presente e receio e lamento o futuro, um futuro que sei que, por melhor que venha a revelar-se, nunca será como o passado que experienciei.
Onde para a esperança e começa a resignação? Estou como aquelas solteironas que, embora avançando na idade, mantêm uma esperança desesperada de encontrarem o seu mais-que-tudo até que por fim aceitam o seu fado.
Bem, vou esgotar o assunto por aqui, não quero passar todo o tempo a lamentar-me, a ter pena de mim próprio. Outros dias virão, mais luminosos, mais esperançosos.
12. jun, 2016
Post 7
01h17, domingo, 12 de Junho
Tive um bom fim de semana, sem maus augúrios, repousante e energizante. O bom tempo tem destas coisas, enche-nos o cérebro de drogas da felicidade, de endorfinas. Se alguns moralistas sequer suspeitassem que têm andado toda a vida a drogarem-se, matavam-se.
Como ainda estou ressacado das ditas endorfinas que injectei este fim de semana, não me apetece escrever sobre coisas tristes ou negativas (já não era sem tempo!).
Tenho estado a ler a “Trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster; já tinha entrado em contacto com este escritor pós-modernista norte-americano na faculdade e o que li (O Livro das Ilusões) deixou-me bastante insensível aos dotes literários deste autor. O que agora estou a ler é, no fundo, “mais do mesmo”, não vejo muita diversidade de tema.
Paul Auster assemelha-se a J.D. Salinger (The Catcher in the Rye) na sua procura do Inner Self, de um modo marcadamente norte-americano que, na minha leiga opinião, enquadra-se pouco no pensamento europeu. Não será própriamente o tema em si, pois a procura de si próprio faz parte das dúvidas existenciais de qualquer ser humano; o que aqui está em causa é a extrema complexidade com que o tema é vivido e apresentado, num jogo de parábolas e metáforas, de símbolos e subliminaridades extremamente difíceis de descodificar. Ao consultar esse tipo de temática não me admiro que o animal de estimação preferido dos norte-americanos seja, não o cão mas o psiquiatra.
Em minha opinião, esse complexo povo de contrastes é um pouco como os lémures e age similarmente: precipitam-se cíclicamente para o abismo à procura de algo que já não está lá mas que teimam em acreditar que existe. The Quest, the Frontier, fazem parte tão integrante da alma americana que não concebem viver sem elas, procuram sempre para além das fronteiras do senso comum e do impossível.
10. jun, 2016
Post 6
01h12, 5ª feira, 9/6
“Tudo o que é demais é moléstia”, ouvia muitas vezes dizer aos meus antepassados recentes. As suas cordas vocais já não vibram aos meus ouvidos mas as suas palavras fazem finalmente eco no meu raciocínio. Também eles receberam ecos semelhantes muitos anos após o desaparecimento dos seus e também meus antepassados, também eles compreenderam tardiamente (nunca é tarde demais) os múltiplos e avisados recados de sabedoria ancestral. Como há tempos fiz reparo, tal não é por desdém ou estupidez, é por imaturidade; seremos sempre imaturos em algum aspecto, até ao fim dos nossos dias, independentemente da idade.
Mas, voltando à citação da tal sabedoria ancestral de que também um dia faremos parte, reparo (com o temporal atraso cognitivo que referi) que quanto maior é a informação disponível sobre um determinado assunto, menor é o conhecimento que se tem sobre este. O excesso de informação provoca mais ignorância que a escassez de dados. Sabemos menos porque afogamo-nos num oceano de referências, muitas delas duvidosas, hesitando a quais nos agarrarmos.
À semelhança das crianças, deixamos de brincar e de saber brincar quando temos demasiados brinquedos, dispersando-nos no aborrecimento e na ignorância
8. jun, 2016
Post 5
00h09, 4ª feira, 8/6
Estou um pouco preocupado com a minha saúde mental pois esta poderá reflectir-se na sua homóloga fisica. Estes 4 meses pós-trauma deixaram também sequelas, não a nível neuronal mas de pensamento, uma sensação de impotência e de perda irreversível que condiciona sobremaneira a minha forma de estar e agir no mundo. Não posso negar que nos meus momentos de introspecção, nos meus solilóquios, existe um peso difícil de aligeirar, mesmo através da atitude positivista que caracteriza a minha relação com o universo circundante. Sei também que o tempo tudo cura e a aceitação da limitação física acabará cedo ou tarde por sobrepor-se aos pensamentos nebulosos que têm feito parte do meu dia-a-dia.
Laschiate ogni speranza voi ch’entrate, escreve Dante Alighieri nas portas da sua visão do inferno. Contudo, só entraremos no inferno se pagarmos o tributo a Caronte. Eu ainda não paguei.
E pronto, está feito mais um “post de iluminação pública”, ou seja, um post onde ilumino, esclareço o meu ainda subliminar e escasso público sobre a aparição e significado dos turbilhões e outros ventos que me vão perpassando pelo espírito.
8. jun, 2016
Post 4
06h12, 3ª feira, 7/6
Agora que “publiquei” as minhas mexeriquices da alma, sinto-me exposto e isso incomoda-me de algum modo. Enquanto me movia no meu quarto fechado, criando um monólogo que só em mim fazia eco, julgava-me audaz, forte, capaz de analisar e avaliar este mundo e o outro sem medos nem modéstias.
Agora criei um Big Brother espiritual, um buraco de fechadura por onde posso ser observado a qualquer momento, julgado, dissecado, como uma espécie de figura pública do meu minúsculo universo. É também e simultâneamente uma evolução e uma responsabilidade, um sair da casca tímido mas irreversível e a seu modo benéfico, que me arranca da zona de conforto onde me tenho mantido nos últimos 59 anos. Que tenho a temer? Nada neste mundo é relevante, tudo é transitório, efémero e insignificante, portanto não olho para traz, aceito as consequências e... God speed!
O sol radiante que começa a erguer-se prenuncia-me um óptimo dia de sono. Para consolo: a manter os ciclos circadianos assim invertidos, difícilmente padecerei de melanoma.
8. jun, 2016
Post 3 (editado)
02h36, domingo, 05/06
Hoje não estou feliz nem triste, não me sinto especialmente negativista para falar na morte nem optimista para falar da vida, não estou carne nem peixe, ph 5.5, sem estado de espírito delineado. Ora, estando neutro não posso emitir opiniões e não as tendo não tenho assunto sequer sobre que escrever.
Caí em contradição inadvertidamente: não só tenho assunto, visto estar a escrever sobre isso, como estou a formular uma opinião.
Estes círculos viciosos do raciocínio e da linguagem são simultâneamente interessantes e irritantes porque permitem tecer um sem-número de considerações por vezes inesperadas mas também conduzem a um impasse nas conclusões: há assunto quando se escreve sobre nenhum assunto, será o não-assunto um assunto em si mesmo ou escrevendo-se sobre algo que não existe formalmente, não há assunto? Mas se não há assunto, de que é que eu estou a falar?
Chega a altura em que afasto-me deliberadamente do “assunto” antes que comece a tergiversar pois a relativa complexidade do raciocínio propicia erros conceptuais que podem surgir sempre que a abstracção atinja valores que, por demasiado elevados, ultrapassem-me.
E pronto, consegui a geração expontânea, tirar um assunto de um não-assunto, sacar um coelho da cartola com a varinha mágica da filosofia de bolso, tentar, através de palavras não sei se falaciosas, provar o improvável. Mistificação ou realidade? Como tudo na vida, as opiniões dividir-se-ão de acordo com os raciocínios seguidos, criando verdades mentirosas e/ou mentiras verdadeiras.
2. jun, 2016
Post 2
01h16, 4ª feira, 2 de Junho
Agora que iniciei um blog sei que tenho uma responsabilidade acrescida, que é a de escrever o melhor possível. Não que seja obrigatório, não tenho ainda esse dever perante os meus hipotéticos leitores, eles só me leem se quiserem. No entanto e paradoxalmente, sinto-me na obrigação de o fazer por eles e por mim, porque sou um tanto perfeccionista e porque eles, sejam quem forem, merecem a minha preocupação simultâneamente egótica e desinteressada.
Ao escrever sirvo a 2 senhores: ao meu ego, que se alimenta das leituras que os outros fazem de mim e a esses que me leem porque de algum modo transmito-lhes algo que, por pouco que seja, os atrai à minha leitura. Todo aquele que escreve é, afinal, um filantropo egoísta.
Deparo-me também com outro grande problema: antes escrevia por gosto ou desabafo, sem o ónus da leitura por mais ninguém que não eu próprio, hoje faço-o para alguém mais, tenho a consciência que a naïveté de uma escrita até agora inocente e inimputável irá ser mais scaneada e avaliada que um barbudo num aeroporto norte-americano.
Acho que hoje perdi a inocência.
Tomo consciência do meu envelhecimento através de pequenos pormenores que, por insignificantes, passam despercebidos. Só são notados quando faço mentalmente um estudo comparativo dos últimos 10 ou 15 anos, isolando, evidentemente, a minha mais recente aquisição limitatória.
São dentes a avariar, juntas a ranger, visão a piorar, pequenos skills fisicos e mentais que vão-se perdendo e que teimamos por vezes em não reparar, numa negação da antiguidade. É a idade da perda: perdem-se os dentes, perde-se a visão, perdem-se os óculos, a memória, as chaves, a consciência das capacidades, a resistência estomacal ou muscular, os neurónios, por vezes o juízo. O problema é que, ao contrário dos óculos ou das chaves, a grande maioria não é recuperável, estamos a comprar a morte a prestações.
Mas morrer será assim tão trágico? Não passa de uma circunstância que conhecemos desde logo que adquirimos consciência, um contrato que assinamos à nascença e sabemos ter obrigatóriamente que cumprir. Donde vem o espanto?
Procrastinamos o contrato, é lógico, é justo, é expectável, mas um dia teremos que o honrar, há-que tentar estar preparado (acho que nunca estaremos). A única chatice é que o cumprimento do acordo passa muitas das vezes pela alienação do património corporal por processos nem sempre pacíficos.
1. jun, 2016
Post 1
1 de Junho, 3h13, 3ª feira
Dia igual aos outros e diferente dos demais. Cada dia é como um pensamento: irrepetível; é isso que torna a vida suportável e não suicidária, que faz com que cada dia não seja uma cópia do anterior, cada acordar não dê a sensação de que, afinal, alugámos o mesmo filme repetidas vezes.
Hoje não há lobos nem ventos uivantes, apenas a calma quietude de uma madrugada estrelada, onde um pálido luar quarto-minguante não consegue vencer a ofuscante poluição fotónica de uma cidade adormecida.
Frédéric Chopin ressurge dos mortos e toca piano no meu smartphone. Coitados, os mortos célébres não têm sossego, estão sempre a ser invocados algures numa imortalidade que não os deixa gozar o sono da morte. Bem-aventurados os pobres de espírito que têm direito ao eterno descanso.