Scribo ergo sum

No dia 1 de junho de 2016 iniciei este blog, que não é verdadeiramente um blog, mas sim uma espécie de diário espaçado no tempo, irregular, como uma espécie de contos curtos, reflexões sobre pequenas experiências físicas, mas principalmente mentais – mesmo espirituais, algumas. Como não tinha (nem tenho) a preocupação de fazer dele um diário, no verdadeiro sentido do termo, optei por escrever ao sabor das circunstâncias, tais como inspiração ou falta dela, tempo livre, estresse, paz, irritação, melancolia, rememoração &/ou outras.
Decidi então adicionar as minhas observações e experiências, que iniciei em 2012 (“Postes do passado”), como uma espécie de prefácio, quiçá ingénuo, imperfeito e incipiente, mas que foram o verdadeiro motor de arranque desta pequena aventura literária (?).
Ao criar esta página veio-me à cabeça o título Devezemquandário, que eu pensava ser original, mas que, só dois ou três anos depois, me apercebi ser uma espécie de plágio de outras páginas já existentes. Só não é um plágio porque é um termo curiosamente muito usado em casos semelhantes e, que eu tenha conhecimento, carece de direitos de autor. Mantive-o, portanto, pois é o vocábulo que mais se identifica com semelhante tipo de irregularidade criativa (lembrei-me agora de o modificar para Arritmias, mas soa um bocado a hipocondria).
Guardei, contudo, o prefácio original numa nova página a que dei o nome de Anacronismos (uma espécie de gaveta para fósseis), pois, como é facilmente constatável, disso se trata. O prefácio original está quase totalmente desfasado da realidade actual e, portanto, já não faria sentido mantê-lo.

Forsan et haec olim meminisse iuvabit
Talvez algum dia nos seja agradável recordar estas coisas. Vergílio (Eneida 1, 203)
  •  23-12-2022 19:56
10/12/2024

310 – O CÉU DOS PARDAIS OU A FELICIDADE DA CÔR DE BURRO QUANDO FOGE
16H04, 10/12 – 3ªfeira

De novo escrevo, numa tentativa de não deixar morrer o meu projecto de escrita, o meu mais pessoal legado ao futuro, aos dias em que já cá não estarei, seja por morte ou por incapacidade intelectual.

Estou sozinho em casa com as minhas duas gatas e o meu cão. Estou só e aborrecido, estou só e com vontade de nada fazer, e é exactamente isto que me esgota.

O que é feito desses planos – velhos de dezenas de anos – para aproveitar um tempo que nunca tive, numa casa a que posso chamar finalmente minha, num ambiente livre da toxicidade de influências familiares e outras? Que é feito dessa idade do ouro pela qual tanto ansiava? Só se for pelo ouro visual que o espectáculo dos pores-do-sol no oceano me proporcionam e pelos quais me sinto transportado para um passado nostálgico que nunca aconteceu.

Será tudo o que me resta? O meu almejo dos dias tranquilos, despreocupados, em paz com a minha existência resumir-se-á a isto?

Lá diz o ditado: “ninguém está bem com a vida que tem”, queremos sempre uma felicidade platónica, uma felicidade que procuramos encontrar no fim do arco-íris, mas para lá caminhamos sempre sem sucesso pois desvanece-se numa poalha irónica de humidade e vazio. Um mito!

Esse estado edénico, beatífico, mítico e ilusório, esse céu, esse paraíso, o valhalla dos nórdicos, sempre (não) existiu, embora nunca o consigamos atingir, mas é, contudo, o nosso motor, o nosso alento, o que nos faz prosseguir mesmo quando o que queremos é - provocado pelos revezes da existência – desistir, enterrar o El Dorado para sempre e matar o sonho.

Tenho 67 anos e continuo a perseguir o arco-íris…


10/11/2024

309 - SOU VELHO OU APENAS E NATURALMENTE UM EGO REMODELADO?
18H29, 10/11, domingo

Fundo musical: Bolero, de Maurice Ravel. Cenário: quarto de cama, na cama; tema: ser velho.
Sou o produtor, argumentista, realizador deste “filme” e, embora não ache muita piada ao argumento, agora que me estou a pôr na pele do protagonista, cito Sou – como dizia Fernando Pessoa – o melhor actor de mim próprio.

É engraçado e intrigante aperceber-me de que os meus trejeitos, as minhas atitudes, as reacções perante mim próprio e os outros assemelham-se aparatosamente aos trejeitos, atitudes e reacções que vi no meu pai, na minha tia, na minha avó e milhentos outros “velhos” com quem me cruzei no decurso das minhas quase sete décadas de representação teatral neste meu muito particular palco do meu mundo. E reparo que represento cada vez melhor!

Profissionalizei-me tão bem que agora é difícil - impossível  mesmo– abandonar o personagem que encarnei e voltar ao meu Ego de há 30 ou 40 ou 50 anos.

Ser velho é como ser mentiroso, cada vez mais acreditamos que o que estamos a representar é a mais pura realidade. E o mais espantoso é que é mesmo! A senescência droga-nos até à morte, não há cura.
Será que na verdade me importo, me incomoda ser velho? Acho que nem por isso; vamo-nos habituando à modorra, àquela espécie de paz calma, de resignação contemplativa.

Agradecemos à idade a sabedoria, a experiência, a satisfação de poder aconselhar a quem no-lo pede, felizes por sermos úteis.
E esperamos…



19/10/2024 

308 - DE QUÃO DIFÍCIL É SER LIVRE E SABER GERIR A LIBERDADE
23h23, 19/10, Sábado

Primeiro estranha-se, depois entranha-se – o Fernando Pessoa ainda em embrião publicitou assim a nova bebida Made in America  em 1929: a Coca Cola, inventada pelo químico e farmacêutico John Pemberton, nos finais do século XIX. O slogan apenas ficou célebre no imaginário português, pois Salazar proibiu a comercialização dessa bebida, no que foi grandemente influenciado pelo Dr Ricardo Jorge, então inspector-geral da saúde, que afirmou que esta continha cocaína e, como tal, não podia ser comercializada, a bem da saúde pública.

Ora, Salazar era avesso a influências estrangeiras e o “orgulhosamente sós” serviu de pretexto para proibir a bebida por razões profilácticas, assim como para evitar ingerências e influências económicas por parte do imperialismo americano. Ao mesmo tempo protegia a produção nacional de vinho, usando para isso um slogan que, encapotado de defensor dos interesses do povo, apenas o prejudicou a longo prazo: “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”.

Não digo com isto que o anúncio tenha tido esse intuito – absolvo disso o primeiro-ministro– mas teve, efectivamente, um péssimo impacto na vida dos portugueses que era suposto proteger.

Mas o que eu quero escrever não é acerca de Fernando Pessoa, nem da Coca Cola, Ricardo Jorge ou Salazar; o meu objectivo limita-se a, simplesmente, escrever sobre a” pegada azurárica“ que o meu novo percurso de vida e nova morada têm tido e a resistência  que ela enfrenta após 47 anos de outro percurso de vida e de outra residência.

Perece ser fácil e gratificante, mas não é assim tão linear pois por detrás dessa nova experiência, dessa nova aventura, subjaz um hábito, fruto de uma vivência de quatro décadas, que é impossível de apagar.

Devo-me considerar feliz? Aliviado? Realizado? Relaxado e livre? Sim.
Mas não. Tal como um animal que foi libertado de uma longa vida de cativeiro, também eu sinto dificuldade em estar livre, em sentir-me livre. Troquei um stress por outro, de tão “acomodado” que me sentia com a minha prisão sem grades.

A adaptação será muito lenta, a avaliar pelos quatro meses que já se passaram. Quanto tempo mais?



24/09/2024

307 – UMA VISÃO IDEALIZADA DO MEU NEO-REALISMO BUCÓLICO-ROMÂNTICO
17h39, 24/09, terça-feira

Parece que o verão "começou a acabar"; a temperatura máxima baixou para os 20ºC e a chuva já se mostrou esta manhã. Inicia-se mais um equinócio – já começou há 2 dias!

Como estarei geralmente em casa, a ler ou ver televisão, ou eventualmente a estudar ou fazer exercício (estas duas últimas porque ainda acredito no Menino Jesus), será um período beatífico e simultaneamente uma prova de resistência do apartamento às intempéries que julgo seja um factor de peso na avaliação final da resistência de portas, janelas e paredes aos avanços do frio, da chuva e do vento. Penso que não ficarei desiludido.

Da janela da minha sala contemplo com prazer uma fileira de pinheiros emoldurada pelos caixilhos da janela e tendo mar como pano de fundo. Na mesma orla avisto o parque de campismo que não destoa de todo deste frame que da minha posição de sentado à mesa de jantar e de trabalho vislumbro. O meu cão (Mindelo) dorme no ninho, perto dos meus pés, duas gatinhas de cerca de três meses que resgatei de uma morte certa e breve, brincam pela sala toda como crianças que são; apenas se distinguem dos jovens humanos pelas brincadeiras de gato e pelas lutas amigáveis mas frequentemente brutas que caracterizam as crias felinas.
Não fora a modernidade dos móveis, o barulho abafado dos carros que passam perto do prédio e a consciência que obviamente tenho do espaço e do momento temporal, diria que me encontrava nalgum recanto bucólico, misto de romântico e medievo, onde o tempo corre mais vagaroso e a serenidade convida à meditação e à paz. É o Carpe diem  quam minimum credula postero , das Odes, de Horacio. 



10/09/2024
 
306 – OS NOVOS BONS VELHOS TEMPOS OU O HIPOTÉTICO RETORNO DO ÉDEN LITERÁRIO
04/09, 4ª feira, 05h24


A poeira da grande mudança (literalmente) da minha vida está a assentar (e a ser aspirada) e vou tentar pela enésima vez recomeçar e recuperar o tempo perdido (parece que estou a citar Proust, mas não) e o jeito deveras enferrujado da escrita.
Àparte algumas pequenas saudades da cidade do Porto e dos 47 anos que por lá vivi, sinto-me bem aqui, mais calmo, mais ligado a mim próprio, mais senhor do meu destino.
Os quarenta e dois em que nessa cidade habitei, já casado, foram uma espécie de tempo emprestado numa morada, também ela emprestada, onde nunca me senti muito feliz. Agora a realidade é outra, vivo em algo que é meu e só essa sensação, embora tardia, vai fazendo evaporar lentamente as brumas dum passado medíocre.
Mas adiante, não vou recomeçar uma autopiedade como até muito recentemente extravasava nas minhas crónicas.
Vivo agora num terceiro andar virado a poente, ao mar, que vejo com clareza pela janela da ampla sala do apartamento, a qual emula (se não ultrapassa endorfínicamente) a sala da casa de Esmoriz, onde passei toda a minha infância e adolescência. A última era imponente, esta é, digamos, prazerosa. Além desta tenho também um óptimo panorama, embora mais limitado, da varanda do meu quarto, virado a noroeste.
Agora os meus planos são simples: passear o meu cão Mindelo - assim chamado porque nasceu nesta zona e veio para a nossa companhia pelas mãos da minha filha Sofia e do meu genro João, que o resgataram de uma ninhada de uma cadela de rua – passear-me, fazer praia quando possível, pois estou apenas a cinco minutos do mar, ir até a cidade de vez em quando e maioritariamente a pé, ir até Mindelo visitar a minha neta, os pais e os meus compadre e comadre - pessoas prestáveis, simpáticas  e honestas que merecem a nossa amizade e respeito, e dedicar o resto da minha vida aos livros que possuo, esses seres inanimados mas cheio de vida interior, de riqueza de conteúdo e de sabedoria.
Sempre foi, após passado o período de jovem adulto, o meu plano para futuro. Por muito tempo que esse desejo tenha estado adormecido, fosse por falta de oportunidade, por desencanto com a própria vida, por já não acreditar num futuro melhor ou mesmo por preguiça, da qual faço uma envergonhada mea culpa, esse momento chegou.
Tive, com alguma pena, de doar cerca de dois mil livros, por já não caberem no espaço disponível, apesar da estante com seis metros que mandei instalar em toda uma parede da sala e de uma outra com cerca de três que tenho também no hall. Acabei por aceitar a perda, pois a grande maioria eram livros de menor importância ou que estavam totalmente desatualizados.
No entanto, continuo a comprar obras, embora em muito menor escala, pois posso afirmar que sou um bibliófilo compulsivo. Aliás, a esse respeito, cito abaixo um dos meus autores preferidos, e que infelizmente morreu no ano em que estive ausente em Paris. Como se trata de um texto de origem brasileira, fiz pequenas alterações para o tornar semântica e morfologicamente mais compreensível:


Umberto Eco, dono de 50.000 livros, tinha isto a dizer sobre bibliotecas domésticas:


É tolice pensar que temos de ler todos os livros que compramos, assim como é tolice criticar aqueles que compram mais livros do que alguma vez conseguirão ler. Será como dizer que devemos usar todos os talheres ou óculos ou chaves de fenda ou brocas que comprámos, antes de comprar novos.


Há coisas na vida que precisamos ter sempre em abundância, mesmo que usemos apenas uma pequena porção.


Se, por exemplo, considerarmos os livros como medicina, entendemos que é bom ter muitos em casa em vez de alguns: quando nos queremos sentir melhor, então vamos ao 'armário dos remédios' e escolhemos um livro. Não um aleatório, mas o livro certo para aquele momento. É por isso que devemos ter sempre uma escolha nutricional!


Os que compram apenas um livro, lêem apenas esse e depois livram-se dele. Eles simplesmente aplicam a mentalidade do consumidor aos livros, isto é, consideram-nos um produto de consumo, um bem. Quem ama livros sabe que um livro é tudo menos uma mercadoria.







27/07/2024

305 – TRICK OR TREAT?
22h22, sábado, 27/05

O post anterior serviu apenas para mostrar que eu estava ainda alive and kicking e não era já um mero cadáver físico ou literário (bem, a confirmação da primeira premissa validava automaticamente a segunda).
Quase um mês depois do referido anúncio, volto a escrever algo. A postagem anterior esteve quase um mês perdida no meu computador – razão por que tem, como esta, a data de hoje.

Não quero com isto dizer que vou agora, hoje, escrever muito. O meu intuito neste momento é dar uma prova de vida aos meus leitores e garantir que não sou um ghost writer, apenas passei por umas “férias” prolongadas e estou apto a reiniciar as crónicas que há muito tinham perdido o ritmo e o duplo objectivo de informar e distrair - por um lado – e de auto-análise – pelo outro.
Este reinício será mais uma vã promessa ou uma intenção séria e credível? Não percam os próximos posts!


27/07/2024

304   - A SHORT AND…CUT!
Pindelo, Árvore (ou será Azurara?), 30/06, 22h17

Reta final para uma mudança que esperava que fosse mais dolorosa. Cheguei a uma idade em que as mudanças já não são tão difíceis assim, pois as emoções deixam-se cada vez mais gerir pela racionalidade. Seja como for, já atingi o ponto de não retorno.
A biblioteca está perante mim, um dos meus anelos realizou-se.


28/05/2024

303 – A DIFÍCIL ARTE DA AUTO-SATISFAÇÃO OU “HOW TO CEASE THE DAY BEFORE  THE MEETING WITH THE CREATOR”
27/05, 22h37, 2ª feira

É muito, muito estranho – surpreendente até, pela sua evidência – tomarmos consciência de que já vivemos, na melhor das hipóteses, uma percentagem gritantemente significativa da nossa existência. Fazendo um cálculo generoso e que ultrapassa a actual esperança média de vida, poderei afirmar que já “gastei” cerca de 70% da minha carga vital.

Essa constatação preocupa-me – como é lógico – mas não me incomoda muito, não a sinto como uma ameaça, mas como uma inevitabilidade com que todos terão de lidar e não adianta renegá-la, pois ela tem hora marcada connosco para esse importante compromisso mútuo.

Não vou desenvolver mais este complicado tema, chega de existencialismo. Sei que é a minha especialidade, mas já ventilei demasiadamente o assunto e vou passá-lo à frente.

Não tenho postado nada porque ando muito ocupado com a mudança de casa e ainda mais baralhado com a recém-adquirida reforma. São duas situações que agitam muito as águas e a turbulência que provocam turva o surgimento natural da há muito esperada tranquilidade.
O meu sonho, neste momento, é sentar-me junto à minha biblioteca e ler, alheado do mundo, com um pé na realidade, outro na ficção e os olhos postos na gigantesca sopa de letras onde poderei mergulhar atá à saciedade. Para já, estou a criar na minha nova casa condições de habitabilidade, assim como de mutualismo facultativo com as obras que carinhosamente acolho.

Até breve (espero)



21/04/2024

302 – QUANDO CHOCALHAMOS O CÉREBRO OU AS CONSEQUÊNCIAS DAS DESROTINAS
21/04, 23h54, domingo

Quase um mês de injustificada ausência (não sou, no entanto, obrigado a defender-me perante ninguém) das lides das letras rebeldes que se recusam a agrupar voluntáriamente em palavras, frases, orações de sentido consentido e coerente.

Justificação, tenho; vou mudar de casa, e isso tem-me mantido ocupado, baralhado, dividido em múltiplas opções e escolhas, em infindáveis faltas de tempo – que não existem, eu é que as sinto como reais, mas não passam de má gestão temporal que, por mais que me esforce, não sou ainda capaz de controlar.

Isso, junto à circunstância de me encontrar muito recentemente reformado, originou na minha consciência um tsunami de reacções e contrarreacções, difícil de gerir. Necessito de tempo (ou estarei a procrastinar?), assentar ideias, definir rumos, mudar conceitos e situações pré-concebidas, falsas idealizações, mitos, fábulas, inexistentes muros, que sei eu?

Trabalho de gigantes! Alterar o rumo dos pensamentos, criar novos horizontes, definir novas linhas de procedimento, aceitar um fim de vida como um novo começo, como uma nova etapa da evolução, é tarefa difícil e de conclusão incerta!

Carpe diem quam minimum credula postero – escreveu o grande poeta romano Quintus Horatius Flaccus (65 a.C. – 8 d.C.), o que traduzido livremente, intenta dizer: Aproveita cada dia e não confies no amanhã.
Um dia de cada vez, direi eu; amanhã será outro “um dia de cada vez”, nunca descrendo (embora cautelosamente) que esse dia nascerá também para nós.


22/03/2024

301 – ONDE SE FALA DA MORTE, DO MEDO, DO DESINTERESSE, DA VIDA, DA COMPARAÇÃO, DA VAIDADE, DA RESIGNAÇÃO E DO DESTINO
22/03, 6ª, 00h39

Mais um post a cheirar a narcisismo, que é aquilo em que parece que me estou a transformar.
Não que seja como Narciso, que passava o seu tempo a admirar-se num espelho de água, acabando por morrer de fome e de sede; longe disso, não sou um self lover!

É certo que, tanto homens como mulheres miram-se, olham-se ao espelho, comparam-se com os outros ou outras, tentando manter um nível – se não mais interessante do que os dos seus comparativos, pelo menos emulando-os.

Não, não sou narcisista! Sou apenas um ser que entrou numa idade desassossegada, em conflito consigo próprio e com o seu papel na sociedade e na vida, tentando emoldurar-se sem conseguir ainda (ou talvez nunca) conhecer o seu tamanho nem a sua moldura.

Não é fácil ser-se idoso, assim como não e fácil ser-se criança, adolescente ou adulto. No entanto há – na primeira condição – uma consciência mais apurada, não apenas do facto em si, mas também do desfecho inevitável que se aproxima, do sniper escondido em cada segundo que passa e com a consciência de que, cada vez mais, partilhamos a nossa cama, a nossa mesa, o nosso trabalho e o nosso lazer com esse interruptor da existência.

Mas, bem ou mal, felizes ou infelizes, vamos vivendo nesta estranha e imposta coabitação que tentamos ou fingimos ignorar, por medo ou indiferença.


22/02/2024

300 - A NOÇÃO CONSCIENTE DE QUE O INCONSCIENTE VAI ACABAR POR CEDER AOS DESEJOS DO SUBCONSCIENTE OU DE COMO MOLDAMOS A EXISTÊNCIA AOS NOSSOS ANELOS LEGÍTIMOS
17h32, 5ª feira, 22/02


Estou em casa a tentar digerir o meu “tempo em excesso”. Não tenho conseguido fazê-lo eficazmente porque o expectável espaço cronológico e físico livre está a existir em demasia (não é um português muito correcto mas julgo que me estarei a fazer entender) e ainda não consegui compartimentá-lo fora dos moldes a que me habituei durante dezenas de anos de formatação, com a presença desse malfado mas necessário vício do trabalho – pois quem não trabalha não come.

Utilizei acima o verbo compartimentar, mas tenho forçosamente de referir-me a ele apenas no sentido de ordenação necessária para a consecução eficaz do tal vício e da vida a ele agarrada. Agora não fará muito sentido utilizá-lo da mesma forma, pois em vez de uma divisão amovível procuro enfiá-lo (ao tempo livre) numa roulotte ou autocaravana virtual, metafórica; isto é, não posso nem devo continuar a imobilizá-lo como se fosse algo rígido, mas sim como o devo fazer, que é deslocá-lo e deslocar-me no espaço e no tempo e deixar de ser o seu escravo para me assumir como seu amo.

Julgava que essa ordenação era fácil, mas não é; a maior fatia cronológica perde-se ingloriamente a tentar - ou fazer coisas que acabam incompletas ou nem sequer se começam porque a procrastinação vence, ou então a cair noutro vício a que os americanos costumam chamar couch potato (mas que foi imortalizada pela expressão italiana dolce fare niente). Em resumo: tropeça-se ora numa ora na outra, constantemente.

É necessário ter uma mente alerta e uma vontade idem para que nos sobreponhamos a estas “tentações do Demo” e para que tenhamos sucesso no equilíbrio almejado. Até lá, vai-se experienciando um novo awakening, um novo despertar, na forma de amadurecimento de uma renovada consciência e aprendizagem.

A vida é a mesma, mas é diferente; sendo ainda nós, passamos a ser outros, não perdendo, contudo, a identidade nem, por consequência, a individualidade. Digamos que é um upgrade.


29/01/2024

299 - DE COMO AS PÁLPEBRAS E OS LIVROS (NÃO) SÃO IMPORTANTES NO PROCESSO EVOLUTIVO
2ª feira, 29/01, 13h28

Há dias estava numa rua longe do bulÍcio da cidade,  perto dum ambiente campestre, o que propicia reflexões mais profundas, menos contaminadas pelas distracções com que o mundo moderno vai matando o sonho e a criatividade. Sentia-se aquele orvalho fino, etéreo, uma fusão de nevoeiro e da sua ausência e a que os britânicos chamam mist e que sugere as charnecas do norte da Inglaterra e da Escócia, palco de romances policiais ao estilo de Sherlock Holmes, esses explêndidos e criativos relatos ficcionais, produtos da mente fértil do consagrado Sir Arthur Conan Doyle.

É o que a minha memória de infância traz a lume (embora estejamos a falar de humidade). Romances policiais eram muito comuns em minha casa, pois o meu pai era consumidor regular dessa literatura que em nada fica a dever a outros géneros literários e que durante muito tempo também foi o meu hobby. Porém, e por feliz culpa do meu pai, os meus hábitos de leitura modificaram-se a partir de 1971 - ano em que ele me ofereceu um livro que comprara e com cujo género não sentia afinidade: a ficção científica.

Esse venerável livro, embora não esteja (porque só eu compreenderia o porquê, pois faz parte integrante do meu desenvolvimento pessoal), deveria estar numa moldura e protegido como um tesouro valioso, pois constituiu, há 53 anos, a pedra de toque de todo o meu percurso cultural e académico; é a ele que devo as minhas opções, os meus gostos sobre arte e literatura, as facetas da minha curiosidade menos convencionais e horizontes mais largos de entendimento. Chama-se Perdidos na Estratosfera, é o Nº 1 da extinta Colecção Argonauta de Ficção Científica e foi publicado em 1953 pelo escritor, físico e cientista A. M. Low (Archibald Montgomery Low, 1888-1956), um visionário, um homem que, como outros (Robert Anson Heinlein, Stanislaw Herman Lem, etc), previu futuros possíveis que, muitas vezes, tornaram-se realidades ou campos de investigação frutíferos.

Foi o meu, verdadeiramente MEU, primeiro livro, o primogénito de muitos que fui comprando ao sabor das parcas possibilidades que tinha, chegando mesmo a adquirir, em complemento, obras de uma colecção mais recente: Nébula. Hoje, de ambas as colecções, e mesmo de outras obras soltas, possuo algumas centenas. A minha evolução intelectual, assim como as dificuldades em comprá-los - pois a minha situação económica passou por períodos muito negativos -, ditaram o término da sua aquisição, mas já tinham cumprido o seu objectivo e prossegui para outros temas, para novas aprendizagens e novos desafios.

Sei que, dos 5017 títulos que possuo, não deverei ler nem 10% até ao fim dos meus dias (e noites - sejamos literais), o que se transforma numa espécie de desgosto por antecipação. Como consolo resta-me a lembrança de que, após o irrecusável decesso, não só não terei a mínima recordação da perda como, mesmo que a tivesse, nada significaria, terá sido apenas uma etapa do meu percurso evolutivo, tão irrelevante como todos os piscares de olhos que contínuamente executamos.
Relevo no entanto que essas acções desapercebidas contribuiram tanto para o bom funcionamento dos globos oculares como a literatura o fez para o aprimoramento do intelecto.

Bem, construí uma memória e um raciocínio assentes na recordação de uma bruma. Nada é impossível, basta (......)


12/01/2024

298 – REFORMADOS OU CONFORMADOS? HÁ QUE ESCOLHER.
11/01/24, 5ª feira, 19h37

Após longo interregno reescrevo (como “reescrever” sugere apagar tudo e começar de novo, noto que o sentido correcto que pretendo dar é o de retomar uma actividade – neste caso, a escrita). Parece que a reforma retira-nos uma certa liberdade de acção, uma perda do tempo de lazer em vez de permitir-nos aumentar a nossa disponibilidade para usufruto de um estado por que tanto ansiávamos.

Estou reformado há 42 dias e já parece que estou a fazer umas férias demasiado prolongadas. Lembro-me de que quando trabalhava, há 25 anos, num restaurante que fechava todo o mês de agosto, nunca fazia férias fora de casa mais de 20 dias, pois parecia que elas nunca mais acabavam, e necessitava de agarrar-me novamente à rotina.

Dizia-se antigamente que “tudo o que é demais, é moléstia”. É verdade. Mas a moléstia é curável, se soubermos como lidar com ela. Há que criar estratégias para fazer face a um estado potencialmente mais desgastante do que o trabalho, eventualmente criador de episódios depressivos perigosos. Não é assim tão difícil rodear o problema, embora seja custoso depurar as hipóteses de solução, pois algumas podem ser mais danosas do que imaginamos.

Temos de elaborar um esquema de resposta ao hipoteticamente imensurável tempo livre que agora possuímos. Não que ele seja muito longo mas porque, pela lógica da vida, ele seja meramente presumível e temporalmente incerto. As estratégias passam por hobbies, um part-time, uma continuação dos estudos, um voluntariado, enfim, qualquer coisa que nos faça sentirmo-nos úteis – a nós próprios e eventualmente aos outros.

A inércia é inútil e extremamente desgastante – mais desgastante do que o próprio trabalho, mesmo que este seja duro. Faz muito tempo, nem sequer pensava ainda na “retraite”, fazia-me confusão e pena quando via os reformados, os velhotes, a passar o seu tempo, ora no tasco, com interacções de tasco que não levam a lado nenhum senão a conversa de chacha, por vezes a confrontos e/ou perdas de amizades, ou então a jogar cartas ruidosamente, como mestres da arte dos baralhos. Esses, os dos tascos, apenas alimentam as suas frustrações e apressam a sua morte, pois nada tendo a que se agarrar, nada de útil ou instrutivo ou filantropo, só aguardam ou agilizam o seu passamento, as suas doenças, as suas existentes ou eminentes depressões.

Embora esteja um pouco perdido neste “feliz recomeço”, não tardará muito que esteja a encarrilar numa nova rotina que espero seja envolvente e satisfatória. A ver vamos.


03/01/2024

297 - NOVO ANO, VELHOS PROBLEMAS (MAS COM UPDATE)
31/12, domingo, 14h31

Terminou um ano para esquecer – como aliás têm sido (atrevo-me a arriscar) os últimos dez ou quinze anos. O que há de novo? Apenas a esperança de melhores dias (para já, ponto sem parágrafo).

Vamos esperar que o ano de 2024 seja melhor do que os anteriores, que deixaram mesmo muito a desejar, não apenas para mim, para todo o mundo, porém não vejo jeitos. 2023 ofereceu-nos duas guerras sanguinárias, aquecimento global preocupante e outras maravilhosas prendas do mesmo género que terão garantidamente reflexos graves no futuro de todo o planeta e da Humanidade (afinal fiz um parágrafo, mas que, embora se refira grosso modo ao mesmo assunto, assume um contexto diferente).

Le roi est mort, vive le roi!


12/12/2023

296 – TRABALHEI PARA TODOS; AGORA ATUREM-ME
23h57, 29/11, 4ª

Chuva fraca mas persistente. Temperatura amena

Hoje é o meu último dia como cidadão trabalhador por conta de outrém. Amanhã (daqui a minutos) será o meu último dia como dependente de uma entidade empregadora (porque estou de folga). No 1º de dezembro acordarei como dependente do Estado, como pensionista.

Terminou, estou por minha conta. Depende agora de mim próprio permanecer minimamente activo.
Que farei? Quais as estratégias a tomar para evitar cair num declínio acelerado?
Nunca fui pessoa de fazer planos a longo prazo; sempre geri a minha vida de acordo com o que ia surgindo, de acordo com os problemas com que deparava, sempre fui uma espécie de gestor de situações à medida em que elas surgiam – o que nem sempre é a melhor opção, pois tende a – pela urgência – fazer com que se tomem decisões eventualmente precipitadas.
Mesmo assim fui vivendo, fui-me desenrascando. Mal ou bem estou aqui, agora, vivo e remediado. A vida não foi assim tão má, permitiu-me ir escapando de males maiores (embora tenha havido sempre um preço a pagar).

Agora, mais experiente, mais ponderado, mais sábio(!), tentarei levar uma vida mais sóbria, mais controlada, mais calma. Conseguirei? Estou para ver, enquanto for vivo e a minha mente estiver sã.

Ao escrever estas linhas hoje nota-se (até eu noto) apreensão, preocupação com a regência de uma nova etapa de vida, o que é normal para quem nunca teve uma vida desafogada nem isenta de preocupações de carácter social e familiar.
Como vulgarmente se diz: não há de ser nada – não sobreviverei à reforma mas tentarei gozá-la ao máximo, sem grandes preocupações. À guisa de consolação, tanto reforma como jubilação têm origem latina e significam, respectivamente, "restabelecer, mudar, alterar", e "sensação intensa de contentamento".
Portanto, entro num estado de mudança e contentamento. Espero que os latinos tivessem razão.

Post Scriptum (não vá o diabo tecê-las e confundirem a abreviatura P. S. como sendo Partido Socialista):
 Devido porventura ao "choque" sofrido pela mudança radical de modo de vida, só agora me lembrei de publicar este post, com um atraso de 13 dias.

21/11/2023

295 – HÁ EM NÓS UMA CRIANÇA LATENTE (NÃO CONFUNDIR COM LACTENTE) QUE IGNORAMOS
4ª, 15/11, 03h02

Gosto de recordar a infância, a adolescência com o carinho e a compreensão com que merecem ser entendidas. Deleito-me com a ignorância infantil e a ingenuidade e inconsciência próprias da puberdade e que agora me fazem sentir paternalista, não no sentido de soberbo, superior, mas no de tolerante e condescendente. E tudo isto porque passei por lá e assim posso-me rir das parvoíces, aflições, raciocínios e aparentes lógicas que pautavam as decisões e comportamentos, tal como hoje o faço com as da minha neta. Fazem parte da aprendizagem e devem ser encaradas como tal.

Infelizmente muitos adultos reagem como se não o tivessem feito, como se já tivessem nascido adultos ou tivessem atravessado essa fase sem os comportamentos “parvos” que agora classificam como má educação. É evidente que, como diziam os meus ancestrais, “o que e demais é moléstia” ou “nem oito nem oitenta”, há que controlar comportamentos com a devida noção dos limites entre educação e falta dela, o que por sua vez é discutível, pois não somos todos iguais e fomos criados de maneiras diferentes. Aí terá de imperar o bom-senso (o que também é passível de juízos variados).

Ainda mantenho vivas recordações difusas da minha infância que fazem jus ao raciocínio que exponho acima. Um deles prende-se com uma aquisição que o meu pai fez para mim de um sobretudo:

No início dos anos 60 do século XX, no milénio passado, numa das frequentes visitas ao nosso local de nascimento (Oliveira de Azeméis), o meu pai decide mandar-me fazer, num alfaiate conhecido, um sobretudo, certamente devido à aproximação de mais um inverno e atendendo a que eu estava em fase de crescimento mais acelerado, pois devia ter não mais de 4 anos. Recordo-me perfeitamente desse agasalho, da sua textura, do seu corte e da sua côr. Curiosamente, não me recordo das provas que, evidentemente, foram necessárias para a sua feitura (estamos a falar duma época em que ainda não existia pronto-a-vestir). O que eu recordo é o momento em que, já pronto, fui compelido a usá-lo, pois ficou-me gravado para sempre: sem nada que o justificasse, fiz uma tremenda birra porque não queria vesti-lo e sair com ele para a rua.

Conhecendo o meu pai como ainda o não conhecia, fui e fui mesmo. Actualmente, a sua atitude seria alvo dos comentários negativos de psicólogos, defensores dos direitos das crianças, educadores, etc., etc. Quanto a mim, não acho totalmente errada a sua atitude.
Talvez por me ter vindo a “contaminar” através dos tempos pelas novas maneiras de ver, tenha modificado um pouco a minha perspectiva sobre o ocorrido, mas no cômputo geral mantenho a minha opinião, os tais “nem oito nem oitenta”. Não podemos pura e simplesmente ceder sempre aos desejos e imperativos desses jovens seres que trouxemos ao mundo; não podemos derreter-nos sem mais nem menos com as lágrimas derramadas – verdadeiras ou muitas vezes fingidas - ou rendermo-nos aos “nãos” habitualmente pronunciados só porque sim. Repare-se que digo “nem sempre”, temos de ter um mínimo de senso-comum para nos permitirmos ceder de vez em quando, não podemos agir como tiranos inflexíveis. O equilíbrio transporta consigo a harmonia e o respeito mútuo.

Ser criança ou jovem, o seu comportamento com os adultos e as maneiras de reagir de parte a parte têm gastado muito papel e muita tinta desde pelo menos o século XIX, altura em que os primeiros deixaram de ser encarados como inúteis, inexistentes ou meros criadores de despesa e aborrecimentos e começaram a ser vistos como aprendizes de adulto e merecedores de cuidados e protecção, pois desejados ou não, não são responsáveis pela sua vinda ao mundo nem são descartáveis.


14/11/2023

294 – DA EVOLUÇÃO DA MEDICINA OU DE COMO ESTAMOS VIVOS E SAUDÁVEIS (?) À CUSTA DAS TORTURAS DO PASSADO
06h13. 12/11, domingo

Enquanto dava uma ronda aqui pelas redondezas, apanhei-me a pensar na minha infância, marcada por múltiplas e frequentes maleitas, assim como no meu pai e tia (numa primeira fase, também a minha avó, até que a idade já não lhe permitisse fazê-lo) como curadores.

Embora ainda nem se sonhasse com um sistema nacional de saúde, nunca tive razão de queixa do modo como era efectuado o contacto paciente-médico ou paciente-enfermeiro: dirigíamo-nos a casa de um deles, conforme o caso e éramos atendidos. Talvez não imediatamente, talvez com um pequeno compasso de espera por se encontrarem lá outros necessitados de atenção médica mas, se a minha memória não me atraiçoa, o atendimento era geralmente rápido. Convém não esquecer que nessa época as visitas aos médicos ou enfermeiros eram ainda bastante limitadas, pois as pessoas fiavam-se muito ainda nos remédios caseiros e no “deixa andar até ser demasiado tarde”. Digamos também que as pessoas não eram tão piegas como agora, que vão ao médico ou às urgências por ninharias.

Em casos em que o doente não se podia deslocar ou não convinha que o fizesse, os profissionais de saúde deslocavam-se ao domicílio com todos os apetrechos necessários para mitigar os males ou, em casos mais graves, dar indicações para que os doentes se dirigissem a um hospital ou um laboratório para análises.

Ainda tenho na minha memória um rol de medicamentos comummente usados lá em casa, tais como Saridon para as dores de cabeça – que a minha avó consumia muito - , um xarope para a tosse que infelizmente não consigo lembrar, mas que a minha recordação gustativa ainda mantém (esse xarope era para adultos, mas eu, de vez em quando, escorripichava em segredo quantidades não detectáveis) , uma poção emética preparada ao momento na farmácia e perecível em muito curto espaço de tempo, que se chamava Poção de Rivière – dois líquidos que se juntavam em partes iguais em cerca de uma colher de sopa e que me acalmavam as terríveis crises de vómitos que eu experienciava com muita ansiedade e aflição física, pois o vómito surgia em jacto pela boca e pelo nariz, chegando mesmo a ferir a garganta. Não era raro, era até comum e mesmo espectável terminar as crises cuspindo sangue.

Como afirmei acima, nessa época, doença que se prezasse teria de passar por mim, embora com particular incidência as das vias respiratórias e as crises de fígado, podendo ainda citar os furúnculos e a má circulação nas orelhas. Sim, é verdade, tinha má circulação nesses pavilhões auditivos, o que me causava grande incómodo; as orelhas estavam sempre inchadas, com feridas purulentas e grande sensibilidade. Bastava tocar-lhes com alguma intensidade para que ficassem muito quentes e vermelhas, como se tivesse recebido um forte puxão. O medicamento usado era o Venoruton P4, uma pomada que aliviava e cicatrizava os tecidos, embora ainda não fosse totalmente eficaz.

Ora, continuando com a lista de medicamentos que retive na memória, embora os seus nomes sejam por vezes difíceis de recordar, não podia faltar o Linimento de Sloan e o Azul de Mitilene, que se usavam, respectivamente, para esfregar no peito (um antepassado do Vick Vaporub, que mais tarde também usei) e para pincelar as inflamações da garganta. Um e outro eram penosamente recebidos; o primeiro porque deixava a pele a arder, quanto mais não fosse pelo vigor com que era aplicado, como se fosse um exfoliador, massagem essa que só terminava quando a essência estivesse absorvida e até que a pele secasse totalmente por acção da mão aplicadora, e o segundo, não apenas pelo seu sabor amargo mas também pelos arrancos que provocava, pois a minha tia ou o meu pai eram muito meticulosos em pintar a garganta toda para prevenir o avanço da típica vermelhidão indicadora de inflamações. Calcula-se a aflição provocada quando o lápis (era mesmo um lápis), transformado numa espécie de cotonete por efeito de uma quantidade q.b. de algodão em rama amarrado na ponta e embebido no líquido, era aplicado na úvula e nas amígdalas, causando numerosas ameaças de vómito, até que todo o fundo da garganta estivesse totalmente coberto de um tom de azul forte.

Outro medicamento que não primava pela agradabilidade era os supositórios de glicerina, de marca também esquecida, que serviam para baixar a febre e eram utilizados sem parcimónia. Vinham embalados numa caixa de plástico verde com corrediça, que posteriormente tinham a função de guardar agulhas de costura, ou botões ou carrinhos de linhas. E já que estamos a falar do orifício excretor, não posso deixar de mencionar o que se usava para a obstipação: o Chá de Hamburgo – a infusão mais horrível que jamais bebi e que me chegava a levar horas a beber, tal era a minha justificada aversão, mas que os meus superiores etários não deixavam desperdiçar. A política da época era: “só sais da mesa quando acabares”.

Outros havia que tinham uma função profiláctica, como o Calcium D-Redoxon ou as pastilhas mastigáveis de Levedura, de que tanto eu como os meus irmãos gostávamos e que geralmente comíamos com a sopa, retirando dessa original mistura um certo prazer. O meu pai, em termos de suplementos alimentares, tinha sempre muito cuidado connosco. Talvez actualmente isso seja considerado um erro, mas na época era recomendado pela comunidade médica e ele fazia questão de que tomássemos, para prevenir eventuais deficiências vitamínicas ou outras. (comigo parece que não funcionava, pois estava sempre doente).

Uma outra recordação associada aos cuidados médicos desses pouco saudosos tempos (embora, com o distanciamento, me provoquem uma certa nostalgia) era a utilização maciça de uma panóplia bastante alargada de antibióticos, muitos deles ministrados por intermédio de injecções. E era aí, nessas ocasiões, que eu acreditava que as torturas do inferno existiam mesmo.

Nesse tempo, há sessenta anos, o equipamento para aplicar injecções não era descartável; a ampola e as agulhas de aplicação do medicamento eram guardadas numa caixa metálica que servia também para as desinfectar por imersão em álcool. As agulhas nem eram maleáveis nem finas, o que proporcionava momentos de dor memoráveis, principalmente para mim, que tinha e tenho ainda veias muito pouco salientes, quase invisíveis. Numa das ocasiões em que necessitei desse tormento, fui espetado sete vezes e ainda hoje me recordo.
Como consequência, até ao fim da minha vintena de anos tinha um medo quase irracional dessas agulhas, que me fazia estremecer de pavor. Felizmente, com o tempo e o racionalismo próprios da maturidade, esse medo desapareceu e hoje encaro uma injecção com perfeito à-vontade.

Finalmente a cereja no topo do bolo do meu adeus às idades mais jovens, ao início do estado adulto: uma pleurisia, tinha eu 17 anos; ao respirar, parecia que tinha um aquário no pulmão esquerdo. Tive “sorte” porque não tive de usar drenos no pulmão para retirar o líquido, foi tudo à custa de doses cerradas dos meus amigos antibióticos e das minhas adoradas agulhas. Apanhei quatro meses de cama e reclusão domiciliária, pois estava proibido de apanhar sol.

E, repentinamente, inesperadamente, deixei de adoecer; nem uma constipação apanhava durante anos a fio.
Hoje é o que se sabe (pelo menos eu sei), especializei-me em AIT’s e AVC’s e tenho ficado por aí, sempre na esperança de um dia morrer cheio de saúde.

Será uma abordagem romanticista, simplesmente uma recordação melancólica de todo este desfiar de memórias de enfermidades do passado? Talvez.
Ajuda-me a recordar maus períodos que também foram bons, experiências dolorosas mas que lembram tempos resilientes, onde a força de viver estava no auge da sua pujança, onde não se pensava na morte porque ela não existia.

Hoje é um pouco diferente: acreditamos na morte mas temos a esperança de viver mais alguns anos porque estamos viciados na vida e não pretendemos tão cedo fazer uma desintoxicação.

Carpe diem quam minimum credula postero [Quintus Horatius Flaccus - vulgo Horácio (65 a.C. - 8 a.C.)]
(Aproveita o dia e acredita o mínimo possível no amanhã)



06/11/2023

293 – A ESPERANÇA DO PASSADO, O DESENCANTO DO PRESENTE E O VAI - NÃO VAI DO FUTURO
02h05, domingo, 05/11

Dá para perguntar (a quem?) o que está a acontecer com o planeta e seus habitantes; uma sociedade supostamente em evolução, onde o Saber tem atingido horizontes até agora inimagináveis, onde o conhecimento tecnológico e biológico avança a passos de gigante, parece que a memória colectiva sofre de Alzheimer, a avaliar pela quantidade de asneiras contumazes, assim como o entendimento entre os povos estar cada vez mais cego e paraplégico.

Os esforços de união e cooperação têm descambado em tentativas de controlo imperialista encapotadas ou esforços de auto-determinação, muitas vezes sem nenhuma razão social ou histórica minimamente justificável. Quanto a estes últimos, alguns até são compreensíveis ou mesmo justos, devido à discriminação e exploração dos países governantes. No tocante aos imperialismos, não passam de esforços para reviver glórias e conquistas territoriais passadas, anacrónicas e incompatíveis com o pensamento humanista e universalista que, infelizmente, também está em decadência.

O século XX foi marcado por esforços de coesão e cooperação entre povos e raças, mas que, nas suas últimas décadas, foram perdendo cada vez mais a sua essência , construtora de uma sociedade mais justa e equilibrada, por força de nacionalismos, imperialismos e tentativas de hegemonia religiosa que, apesar de maioritariamente retrógadas e intolerantes, têm dado os seus frutos, reduzindo civilizações inteiras (grosso modo) a um novo feudalismo, onde os direitos humanos e o bem-estar social é coarctado ou destruído por fanatismos, extremismos, xenofobias, misoginias e outras inúmeras exclusões.

Após esse século em que os imperialismos abusivos de todos os quadrantes da sociedade, a discriminação de género e de raça, herdados das sociedades de antanho, foram perdendo lenta mas vitoriosamente terreno, fazendo acreditar que finalmente caminhávamos para um planeta uno e tolerante, surge, nas suas últimas décadas e no início de um novo milénio, uma inversão civilizacional gritante, onde todas as esperanças são arrancadas pela base e o retrocesso evolucional é por demais evidente.

Que sucedeu? Por que estamos a voltar à Idade Média ou nem isso, retornando a uma Terra de milhentas tribos, incontáveis pequenos reinos rivais, seitas e religiões em guerras consentidas e incentivadas, para maior glória de Deus e maior prosperidade clerical, ferozes repressões de autodeterminação e livre-pensamento, cidadãos (que nem cidadãos parecem ser) sem direitos, retrogadando a genocídios, exclusões raciais e sexuais, etc.

Estamos a caminhar para o abismo? Vem aí o Apocalipse? Será o fim da Humanidade, entendida tanto como um conjunto de seres biológicos sencientes e, simultaneamente, como conceito filosófico?
É a barbárie que nos espera? Outra Idade da Pedra? O retorno às sociedades primitivas no seu mais puro e duro conceito?

Nós, individualmente, vamo-nos conseguindo aguentar e vamos criando os nossos pequenos Édens, as nossas pequenas vilas amuralhadas, a custo defendidas e dentro das quais sobrevivemos, embora sitiados pelas ameaças globais. Mas, tal como no passado, estamos sujeitos a cercos e assaltos, aos quais é cada vez mais difícil resistir. Temos evoluído, malgrado as investidas. Talvez estejamos apenas no fim da curva descendente de um ciclo, talvez voltemos a subir uma – mais uma – linha ascendente de entendimento e prosperidade, estou confiante, embora ainda não se consiga calcular a que custo.

Após milénios de guerras, conquistas e extermínios, estamos ainda aqui e estamos vivos, sobrevivemos a muitos Caos e estou certo de que este será apenas mais um.



30/10/2023

292 – TENETE OGNI SPERANZA VOI QUE ENTRATE (NELLA RIFORMA)
29/10, 03h32, domingo

Estou no meu local de trabalho, chateado como um perú. Há muitos factores que contribuem para esta disposição atribuída ao Maleagris - o galiforme de que acabei de falar.

Aliás, embora use esta expressão (como ainda muita gente o faz), não sei porque o perú estará eventualmente chateado nem como se pode tirar a ilação de que o bicho apresenta esse estado de humor; já tentei informar-me da expressão mas todas as explicações foram inconclusivas. Não interessa, mantenho a afirmação: estou chateado como um perú.

Em primeiro lugar porque é noite, chove imenso de vez em quando e isso estressa-me muito pois conheço as fragilidades da casa onde habito, que já passa a centena e meia de anos, com poucas obras pelo meio. Uma delas é a forte probabilidade de as caleiras, pela sua exiguidade e idade vetusta, em conseguirem abarcar e encaminhar eficientemente qualquer fluxo repentino e abundante de precipitação pluviométrica, transbordando assim, trágicamente, para o interior da habitação.

Outro dos factores que contribuem para a minha comparação com a ave referida e o seu estado de espírito (embora tenha sido inconclusiva ao longo dos tempos a discussão, tanto pela ciência como pela teologia, sobre se estes animais têm alma) é a demora na resposta da Segurança Social ao meu pedido de reforma que, supostamente, devia ter o seu início em dezembro próximo.

Posso enumerar ainda uma terceira e múltipla fonte de tensão, intimamente relacionada com a última que referi: a consequente diminuição de rendimentos, aliada a um brusco corte na rotina normal de quem trabalha, de quem tem algo com que se preocupar na vida; tal inércia terá de ser combatida para obstar a um défice ocupacional que poderá ter graves consequências, tanto na mobilidade em geral como no desempenho psíquico a que me tenho habituado durante todos estes anos.

Esses bichos malfazejos do ócio e da improdutividade são muitas vezes responsáveis pela diminuição da qualidade de vida e consequente redução da durabilidade eficiente do corpo e da mente. Essa enorme (esperemos) licença sabática permanente é a pior coisa que se pode ter quando não se faz nada ou nada se tenta fazer. Estes bichos perigosos costumam minar os reformados incautos, iludidos pelas suas falinhas mansas e pelas suas facilidades imensas, levando-os a regredir e definhar imperceptívelmente; quando dão conta (se derem) o estrago está feito, o vírus está instalado e a derradeira parte das suas vidas está irremediavelmente desperdiçada.



17/10/2023

291 - AS FÉRIAS RUMINANTES, O ACERTAR DE AGULHAS E O (QUASE) REGRESSO AO "BOULOT"
21h24, 3ª feira, 17/10

Sinto-me ovelha. Ou vaca. Estou há três semanas de férias e ainda não tive um tempo de qualidade só para mim. Agora que finalmente parei um pouco, sinto que ando a pastar sem realmente idealizar algo útil ou apelativo para fazer, sem encontrar um objectivo que permita preencher satisfatoriamente este buraco crono-espacial a que chamam tempo livre.
A única benesse que o lazer me trouxe foi ter-me proporcionado pôr em ordem os assuntos procrastinados pela inércia, pela preguiça própria de quem – como afirmo acima – não teve a capacidade de marcar objectivos.

De momento não vou escrever mais, apenas elaborei este pequeno texto para mostrar que não desisti, que estou vivo para continuar o meu projecto. Retomarei quando me for possível, quando finalmente vencer o marasmo que se apoderou de mim mas que, lentamente, estou a expulsar do meu percurso.



13/09/2023

290 – DA TRANSITORIEDADE DA VIDA E DOS TANATÓRIOS DA ALMA
11/09, 2ªfeira, 05h25

Ora cá venho eu “marcar o ponto” – uma expressão que soará estranha às novas gerações e mesmo às gerações de 80 do século passado. A grande maioria desconhece que essa expressão significa marcar presença ou fazer qualquer actividade mais ou menos habitual, seja ir ao café ter com os amigos, fazer algum exercício físico ou simplesmente dar um passeio rotineiro, e tem origem no uso das máquinas anteriores aos aparelhos electrónicos de leitura das impressões digitais ou de leitura da íris.
Essas máquinas (não assim tão) antigas eram primitivamente cartões que, inseridos num obliterador e perfurados por ele, eram posteriormente “lidos” e davam a informação de um empregado, controlando a sua hora de entrada e de saída; eram geralmente utilizados em empresas com um grande ou, no mínimo, justificável número de funcionários para tal tecnologia; mais tarde evoluíram para um cartão impresso onde eram carimbadas essas informações (data, hora, minutos). É daí que surge as expressões “picar o ponto” ou “marcar o ponto”. Um dia tornar-se-ão uma entrada de enciclopédia ou de dicionário a dizer: antiga expressão utilizada para..... etc. Mais uns anos e figurará como nome de origem desconhecida ou incerta, à medida que a memória se vá diluindo no tempo.

Portanto, estou a marcar o ponto, a fazer o registo de mais uma prova – não já de emprego, mas de actividade lúdica e, concomitantemente, de vida e de boa, má, medíocre ou péssima literatura. Não está nas minhas intenções de futuro defunto fazer entradas psicografadas, que deixarei para Allan Kardec ou Chico Xavier. Mas, quem sabe? Não posso excluir a hipótese, por mais remota que seja.
Não sou verdadeiramente fã do espiritismo ou das teorias da reencarnação, mas observo-as com algum interesse. Aliás, acho a segunda mais lógica e credível do que a primeira, embora uma pressuponha a outra; no espiritismo encontro algumas incongruências que não vou expor aqui pois seria fastidioso enumerá-las e justificá-las convenientemente. Fiquemo-nos pela superficialidade.

Agora que terminei o primeiro ano de latim, encontro-me numa situação de impasse, de insatisfação existencial, porque o estudo programado e auto-imposto parou temporáriamente, pois não me sinto capaz de começar o segundo ano sem previamente consolidar o que aprendi e aprender o que deixei negligenciado ou inconcluso por diversos factores relacionados com o meu tempo disponível. Farei um ano sabático e reiniciarei o estudo no próximo ano, assim espero. Entretanto, retomarei um “vício” velho de décadas e há décadas abandonado: a leitura.

Tenho milhares de livros para ler, alguns dos quais – recebidos por herança – nem tocarei, por não fazerem parte dos meus interesses de leitura. Mesmo retirando esses, muitos sobrarão para ler com interesse e/ou curiosidade e nunca terei o tempo para os ler a todos em vida, por mais anos que dure. É evidente que não os lerei “em morte”, embora tenha toda a eternidade à minha frente, mas acho que, nessa altura, terei outras prioridades – se, eventualmente, existirem sequer prioridades.

É em momentos como este que surgem as grandes dúvidas existenciais: a morte será o fim? Ou o princípio? Existirei ou ficarei simples e totalmente inexistente? Haverá consciência após a morte ou o vazio? Lutei então toda a vida para quê? Para, pela reprodução, criar novos seres cujo futuro será igual ao meu, ou seja, uma aniquilação sem sentido? De que valerá então estar aqui? De que valerá então recriar-me nos meus descendentes para que eles se recriem e para que os seus descendentes também o façam ad eternum? Para alcançarem o vazio? Para lutarem por uma causa oca? É isso a existência terrena? Não faz sentido!
Todas as felicidades e infelicidades, todos os sacrifícios e alegrias têm de ter um significado, um objectivo, sem o qual o universo será, não uma utopia, uma esperança, mas uma distopia – e essa sim, um castigo eterno em vida, já que a morte nem sequer constituirá uma bem-vinda “reciclagem” mas um tenebroso tanatório que vise extinguir os derradeiros vestígios da consciência e da memória.


05/09/2023

289 – A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA NA SOBREVIVÊNCIA INDIVIDUAL OU QUEM SOU E QUEM FUI
03/09, domingo, 06h02

Avô e reformado! Soa estranho quando nos apercebermos desta banalíssima realidade! Só nos damos conta dela quando se entranha como uma mancha de sangue. Lógicamente, não no sentido negativo, mas não deixa de ser uma mancha de sangue, do nosso sangue e que é indelével e porque queremos e adoramos que o seja.
Para bom entendedor, estou-me a referir apenas ao primeiro adjectivo com que iniciei esta crónica; o segundo adjectivo poderá eventualmente ser também bom, mas é igualmente um ferrete que nos acompanhará para o resto, para a porção mais curta da vida, uma lembrança da transitoriedade da dita, da sua desvitalização como se de um dente cariado se tratasse.

C’est la vie, como dizem os franceses, assim como o dirão os autóctones de Benin, Burkina Faso, República do Congo, Costa do Marfim, Córsega, Gabão, Mali, Senegal, Togo, Mónaco e Nigéria, ou ainda, optativamente ou, melhor dizendo, países ou regiões cujo francês coexiste com outras línguas (co-oficial), tais como Bélgica, Burundi, Camarões, Canadá, República Centro-Africana, Comores, Djibouti, Guiné equatorial, Haïti, Louisiana (EUA), Madagáscar, Ilhas Maurícias, Ruanda, Ilhas Seichelles, Suíça, Chade, Vanuatu, ou ainda países que tendo estado no passado sob influência francesa, ainda o falam parcialmente, como Argélia, Marrocos, Mauritânia, Líbano, Tunísia, Cambodja, Laos, Vietname, República Dominica e Haïti. Enfim, cerca de 156 000 000 de pessoas. (Consegui escrever mais linhas sobre a expressão francesa do que sobre o assunto inicial).

Voltemos à “avôzeidade” e à relação que temos com estes nossos filhos em 2º grau.
Ser avô ou avó é reviver o passado, é dar o mimo e a paciência que, a mais das vezes, não conferimos totalmente aos nossos descendentes diretos, quando eles tinham a mesma idade. Não que não gostássemos deles mas porque gostávamos deles. Agora, os netos podem usufruir dessa reserva de amor paciente, pois a gestão do desenvolvimento dos novos seres está entregue aos pais e temos assim mais tempo para lha oferecer.
O nascimento de uma neta ou um neto proporciona-nos a alegria e o alívio de não sermos os últimos a, atavísticamente, fazer perdurar para a posteridade o nosso intelecto; de, a seu modo, não sermos esquecidos a curto prazo.

Lembro o filme de animação Coco, de 2017, onde um menino consegue entrar no reino dos mortos (no México, o Dia dos Mortos é uma festividade muito importante) e assiste à “morte” de um morto. Foi-lhe então explicado que os defuntos também morrem quando desaparecem da memória dos vivos, quando deixar de haver alguém que ainda se lembre deles.

O instinto de propagação da espécie (igual à de todos os outros seres animados, incluindo os insectos e mesmo os seres microscópicos) tem deste modo uma nova nuance, fruto da natureza humana: a necessidade de sobreviver à morte através da memória dos vivos, seja pela escrita, por obras, por fotografias... You name it!
O ser humano, já que não pode nem poderá ser eterno, procura processos de imortalização através da arte, da política, da moral, mas muito particularmente da família. Ser recordado é estar vivo no pensamento dos vindouros o mais tempo possível, e isso depende exclusivamente de nós.


23/08/2023

288 - NÓS E OS OUTROS OU AS DIFERENTES TESSITURAS DE UM TODO
01h50, domingo, 20/08

Este verão tem sido intenso mas meteórico.
Sei que não é assim, sei que o tempo cronológico, as condições meteorológicas, as oportunidades de descanso e lazer a eles associadas e, portanto, com eles directamente relacionados, assim como a própria vida em si, não são lineares, não se manifestam de igual modo para todos.
A própria faixa etária transmuta essas percepções, esses acontecimentos ou sensações de forma totalmente diferente. Eu sei porque passei por lá, a minha intuição do tempo, do espaço e de como os interpreto agora ou interpretei na juventude, alteraram-se radicalmente.
Nem para melhor, nem para pior – para “diferente”. O Tempo é uma construção da mente individual – não é universal, portanto.

É, pois, sob a minha óptica particular que avalio a intensidade e meteoricidade do verão actual (dele e das restantes estações). Sou eu quem sente frio ou calor, energia ou modorra, excelência ou mediocridade das estações do ano; outros serão o oposto de mim, como uma imagem invertida no reflexo de um espelho. É normalíssimo, no entanto admiramo-nos por ver alguém com frio enquanto nos derretemos, alguém que amaldiçoa o vento que nos refresca ou, inversamente, recusamo-nos a acreditar que alguém tenha calor quando gelamos ou que suporte a desagradabilidade de um vento que odiamos.
No fundo, sabemos que cada um de nós tem razão: uns gostam de doce, outros de salgado, nós de picante, outros de neutro.

Antigamente dir-se-ia: Deus que é Deus não agrada a todos; hoje dizemos de uma forma mais laica: gostos não se discutem. Apenas temos a mania de que não os compreendemos mas, no fundo, não é assim; o nosso amor-próprio ressente-se, ferido, e resiste a "rebaixar-se" a quem pensa diferentemente. Devemos, contudo, fazer um esforço e aceitar a diversidade de sensações e opiniões que, na diferença, fazem o Todo que é a humanidade.

10/08/2023

287 – DA EXPLICAÇÃO DO INEXPLICÁVEL E DA FATUIDADE DOS MISTÉRIOS INSONDÁVEIS
00h53, 5ª feira, 10/08

A vida prega-nos partidas que consideramos injustas. Imaginemos alguém das nossas relações, alguém próximo que conhecemos desde a infância e cujo intelecto está sendo progressiva mas inexoravelmente apagado pela degenerescência e morte desses pequeninos chips de armazenamento de informação denominados neurónios. É como se o conceito de Tabula Rasa estivesse tristemente invertido.

Aqueles que acreditam em dogmas, em verdades “desconhecidas mas inquestionáveis”, chamam-lhe a vontade de Deus, a lei da vida, o karma ou qualquer outra coisa parecida que explica isto tudo sem explicar nada, apoiado apenas na Fé. É mais fácil afirmar que são coisas que desconhecemos mas transcendem-nos e não devem ser escalpelizadas ou discutidas porque são assim, verdades insofismáveis. Doutro modo somos pecadores, falhos de fé, negamos um deus ou entidade que até nos pode castigar pela nossa descrença e desrespeito, como se fossem deidades pagãs que controlam a seu bel-prazer a humanidade como peças num jogo de xadrez.

Como dizem os americanos: Bull shit! Não existe nem é racionalmente concebível qualquer espécie de sobrenaturalidade. Admiti-lo seria negar o Universo, aceitar uma dimensão para além do natural (um multiverso sobrenatural, portanto), o que, nesta equação não faria qualquer sentido, pois se existe, tem de forçosamente ser natural. Não me refiro aqui à teoria dos multiversos ou universos paralelos que, a existirem, serão situações pertencentes ao mundo da realidade, da palpabilidade.

A escuridão é apenas falta de luz; se a escuridão existe é porque é um fenómeno natural, não caberá na cabeça de ninguém afirmar a sua sobrenaturalidade e sim a sua existência palpável, de um ponto de vista racional.

Admito que o intelecto humano ainda não consegue atingir tudo, mas chegará um dia em que o dogma deixará de o ser e a ignorância e crendice serão finalmente erradicadas.
Posso citar como exemplo algo que atemorizou incontáveis gerações, desde há talvez milhares de anos: o fogo fátuo, esse fenómeno sobrenatural de antanho que hoje é aceite como perfeitamente natural e racionalmente explicado e desmitificado.

E mais não digo!


30/07/2023

286 - O FUTURO É COMO O PRESENTE E O PASSADO, SÓ QUE MAIS TARDE
2h25, 26/02, 4ª feira

Cada dia que passa vai-me aproximando paulatinamente daquela data impacientemente esperada (e receada também) do fim da carreira remunerativa. Recordo-me com vaguidade de algumas datas aleatórias, onde questionei o meu futuro, o que ele me reservava de acordo com a lei das probabilidades, os meus desejos secretos de ser isto ou aquilo, de almejar esta ou aquela idade num nebuloso porvir, de vestir-me diferentemente, como forma de vaidoso (embora tímido) destaque, de querer usar óculos ou uma bengala de castão de prata decorado com motivos de Arte Nova... Enfim, todas as fantasias e pequenas vaidades de animal jovem e inexperiente que quer fazer-se notar, de ser diferente, de fazer diferença.

À medida que a idade foi avançando, avançou também a consciência de quão vãs, parvas e estapafúrdias eram estas expectativas, estes caprichos pueris: agora uso óculos por necessidade, uso roupas normalíssimas e práticas, sem petulância ou vaidade; daqui a mais alguns anos usarei uma bengala – não por exibicionismo mas porque precisarei dela.

Os pretensiosos desejos de uma mente jovem, inconstante, inexperiente e pouco reflexiva foram-se, escoaram-se perante uma realidade mais crua, verídica e inesperada, mas que tem, ao longo da existência, sido progressivamente assimilada com a calma e ponderada resignação de um corpo que envelhece, a par com um intelecto mais sábio, sensato e realista.
Todos sonhamos quimeras, todos acreditamos que seremos macróbios de longa duração. No fundo, sabemos que tudo isso é falso, simplesmente recusamo-nos a aceitar uma realidade que o nega, porque somos jovens e eternos.

E porque as coisas más só sucedem aos outros...



14/07/2023

285 – ANIVERSÁRIOS E CÃES VIVOS: A MELHOR FÓRMULA
14/07, sexta, 12h21

Fiz ontem 66 anos, mais uma barreira ultrapassada.

Não sei se devo ficar contente, melancólico, preocupado, feliz, receoso, triste ou esperançado. Nunca sei se atinjo e ultrapasso a próxima barreira, e essa incerteza faz-me passar por esta perene sucessão de sentimentos, que não são realmente antagónicos mas fazem parte de um grupo coeso, lógico, cujas fronteiras se esbatem como as cores de um espectro óptico.

Mais do que a degenescência física, para a qual me tenho vindo a habituar de ano para ano (como todos os seres humanos), temo outro espectro: o da degradação da cognoscência, a perda da capacidade de emitir e utilizar o pensamento lógico e cair no domínio da demência. Não se trata de pessimismo mas de prevenção, de não tentar tapar o sol com uma peneira.

Agora que já pintei o meu aniversário (e seguintes, se os houver) com as cores o mais escuro possível, cambiemos o curso dos pensamentos e encaremos o porvir, não como uma entrada nas trevas de um túnel, mas como a saída de um túnel em direcção à luz porque, afinal, a nossa vida, a vida da Humanidade, rege-se por metáforas positivas, alegorias primaveris e... peneiras para tapar o sol.

Se eu queria voltar à juventude, à inconsciência do animal jovem? Não! Prefiro o meu estado actual, o do desfiar do novelo do qual nunca encontraremos a ponta, por mais que vivamos e aprendamos e de, como dizia José Gomes Ferreira, estarmos permanentemente “espantados de existir”.

Enquanto há vida, há esperança – é uma máxima muito utilizada, mesmo por quem seja ateu ou agnóstico, embora extraída da Bíblia, do Eclesiastes 9.4: Quem está entre os vivos tem esperança; até um cachorro vivo é melhor do que um leão morto!

Pois é, prefiro ser um cão vivo.


02/07/2023

284 - BATEM LEVE, LEVEMENTE, COMO QUEM CHAMA POR MIM; FUI VER,  ERA UM FUTURO JÁ PASSADO
29/06, 5ªfeira, 05h40

Já se passou muito tempo desde a última crónica, mas continuo cansado. Acho que faz parte do processo de envelhecimento, embora, convenhamos, o meu último AVC tenha tido um papel de muito especial relevância. O que vale é o oblívio piedoso que a memória nos vai dando à medida que vamos caminhando para o futuro, e faz-nos ter vagas reminiscências de quando éramos mais novos e saudáveis. É isso e a capacidade de encaixe que todos, uns mais do que outros, temos em nos adaptarmos a novas situações, novas idades, novas limitações, com resignação e cara (nem sempre) alegre.

Por falar em futuro, que futuro temos, que é que ele nos reserva? Nós, os mais velhos, temos sempre a ilusão de que viveremos pelo menos ainda mais vinte anos e que quando lá chegarmos nos esperam ainda outros vinte e vamos derrotar Matusalém. Começamos a acreditar que somos como os gatos, que têm nove vidas. E depois, de um momento para o outro... Puff! Já fomos, sempre insatisfeitos, sempre revoltados com aquilo que deixámos por fazer e que, se tivéssemos sabido, teríamos acabado. No meu tempo, diríamos ironicamente: “Grupo”!

Não chegámos ao futuro, àquele futuro idealizado que se encontra sempre a anos-luz de distância, mas deixámos a nossa descendência, para que ela também tente chegar lá, ao porvir que se encontra na outra ponta do arco-íris e essa transmiti-la-á à sua própria descendência para dar continuidade ao mito. É isso o futuro, é passar o testemunho aos vindouros, carregado das nossas memórias, das dos nossos pais e avós, dos nossos filhos e netos também.
O futuro são eles, afinal, como nós também o fomos. E, enquanto acreditarmos, ele estará lá sempre, na linha do horizonte.



15/06/2023

283 - DE COMO, DIZENDO QUALQUER COISA, NÃO SE DIZ COISA COM COISA
12/06/23, 01h17, 2ª feira

Cansado, extremamente cansado. É agora recorrente a falta de sono durante os períodos em que o devia fazer. Pelo contrário, o período supostamente de vigília fica gravemente comprometido.
E não só! A memória recente anda de rastos, a capacidade de obter um raciocínio límpido anda de rastos, só falta eu andar fisicamente de rastos, mas pouco falta. Os ciclos circadianos atraiçoam-me com toda a razão. Há três semanas que não estudo, que mal pego em gramáticas e nos textos. Faz mais tempo que nada assimilo, que pouco consigo reter.

Estavas linda Inês, posta em sossego,
Dos teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.


Porque reproduzi este octástico? O que me impeliu a citar Camões? Porque é Inês de Castro para aqui chamada? A que se deve este despropósito? Boa pergunta.

Bem, não nos vem à memória de vez em quando uma canção, uma letra qualquer, que trauteamos sem cessar, por vezes até à irritação de não conseguirmos “descolar” dela? Como sucede com canções, pode suceder com outra coisa qualquer, neste caso um poema.
Gracejando um pouco (pois não sei que volta a dar a este texto), cheguei à conclusão de que, no século XIV, as senhoras já faziam tatuagens, basta atentar à última linha do poema.

E pronto, foi mais uma curta crónica semi-autobiográfica, a pender, como de costume, para o narcisismo e a auto-piedade, com (não podia faltar) um imperceptível toque de negatividade existencialista.

Tirem-me deste filme!



29/05/2023

282 – DE COMO TRANSFORMAR UM MERO 'ABC' NUM ABECEDÁRIO COMPLETO
02h05, domingo, 28/05

Estive tentado a falar novamente de mim próprio no preciso momento em que peguei na caneta para escrever, mas hesitei e resolvi prosseguir com qualquer coisa que não se assemelhasse a mais um manifesto narcisista. Não me posso permitir fixar-me no meu umbigo (que, por sinal, é uma espécie de buraco sem nenhum interesse) quando há tanto para expor num espaço de escrita como este, seja horrível ou maravilhoso, sensaborão ou engraçado ou simplesmente interessante.

O único problema passa por transportar todos esses eventos – reais ou fictícios - para o exterior, fazê-los sair do seu (meu) casulo mental e manifestarem-se com a força que necessitam de ter para legitimarem o tempo e o espaço despendidos para o fazer, para o materializar.

Uma crónica não pode ser simplesmente algo aleatório e lacónico que nos venha à cabeça. Não chega dizermos:” estava a chover e eu abriguei-me”. Isso não é nada, apenas perda de tempo. Poderei, em vez disso, escrever: “Saí de casa e fui à Baixa; não contava que o tempo me pregasse uma partida, pois quando saí o sol brilhava no céu, acompanhado por algumas poucas e inocentes nuvens. Então, sem mais nem menos e num muito curto espaço de tempo, começou a chover. Não me havia apercebido de que esses inocentes flocos de humidade se unissem num conluio, quase em segredo, para surpreender os incautos que, como eu, usavam despreocupadamente a sua roupa primaveril, indefesos perante uma descarga hídrica tão inesperada e desconcertantemente forte.

Admitindo subconscientemente a minha falta de precaução, corri a abrigar-me no primeiro estabelecimento que encontrei. Lá dentro, teria de disfarçar as minhas verdadeiras o óbvias intenções, que eram apenas abrigar-me, pois não é muito ético (eu, pelo menos, não acho) entrar numa loja e dizer que só me estava a abrigar da chuva. Sei que é uma hipocrisia, o dono ou empregado sabe do embuste, mas tentamos ser mutuamente diplomáticos, que é uma hipocrisia mais formal. Assim, dou um giro em volta, assumindo o papel de possível comprador, mesmo que tenha entrado numa frutaria e fique a admirar couves, laranjas e batatas, as quais não tenho absolutamente nenhuma necessidade ou ideia de adquirir.

Mas desta vez foi algo diverso: a lojinha onde me abriguei surpreendeu-me agradavelmente. Era um pequeno espaço, cheio de caixinhas de música, miniaturas de veículos antigos em lata, brinquedos do mesmo material ou de madeira, relógios de parede, de cuco, de caixa, assim como uma miríade de outros pequenos e surpreendentes objectos que me recriavam uma longínqua e quase esquecida romântica, saudosa e melancólica infância. Por momentos senti-me como Alice do outro lado do espelho.
Ao olhar inquiridor do funcionário respondi com o sacramental ‘entrei só para dar uma vista de olhos’ e, efectivamente, comecei a percorrer as prateleiras, apesar de o fazer agora com um pouco mais do que a curiosidade inicial.

Entretanto parara de chover e, embora a minha curiosidade não estivesse totalmente satisfeita, e atrasado como estava com os meus compromissos, dei por terminada a minha inicialmente forçada visita, não sem antes ter pegado uma dessas pequeninas caixinhas de música cuja melodia me fazia recordar os sons da minha infância, e levei-a, mais por prazer do que por desculpa.
Com o pequeno embrulho no bolso, retomei o meu percurso, ciente de que, ocasionalmente, em momentos de nostalgia, daria corda ao cilindro e envolver-me-ia na rememoração de algumas das mais ternas recordações da infância”.

Ora bem, assim já faz mais sentido escrever; transformo sete secas palavras em algo muito mais interessante, mais rico em conteúdo e que diz, sumariamente, o mesmo. A única coisa que mudou foi a descrição, o modo como se apresenta o evento, seja ele real, ficcional ou ficcionado. Deste modo e consoante a capacidade literária do autor, algo tão simples como o que foi enunciado inicialmente pode-se transformar numa experiência estética agradável cuja recepção poderá, evidentemente, variar consoante o leitor e os seus parâmetros de leitura.



21/05/2023

281 - O QUE HÁ DE COMUM ENTRE O HOMEM E A CABRA? OS LIVROS.  ...SÓ QUE A CABRA COME-OS.
01h19, 21/05, domingo

Vamos falar de livros. Como já referi, sou o fiel depositário da biblioteca do meu pai (por impossibilidade de os outros o fazerem) e da livraria da minha tia – para não usar o termo anterior de novo. Purismos de linguagem...

A todos eles adi os meus, cujo volume em breve ultrapassará o das duas colecções juntas, se é que já não o fez, pois no momento em que escrevo já atingi a bonita soma de 4930 títulos. Não é uma biblioteca de primeiras edições ou de livros raros - exceptuando alguns escassos casos - , é uma livraria feita maioritariamente de livros usados; o que nas obras me interessa são elas em si mesmas e os autores que as escreveram, o estado é secundário. Evidentemente , não adquiro obras todas esfareladas, com as folhas mutiladas ou a cair; mas o meu interesse vai para aquilo de que os livros são feitos, além do papel - o conteúdo.

Um bom livro não tem de ter capas bonitas e brilhantes, não pode ser um objecto de culto ou de redoma, não necessita de ser caro ou novo. Basta ser útil, basta que aprendamos nele algo que desconheçamos ou nos faça falta. Por isso não compro um livro qualquer, compro algo de que possa fruir conhecimento ou boa literatura. No entanto, ao comprar um livro, sinto medo e pena: medo porque, provavelmente, no meio de tantos, não conseguirei ter tempo para o ler; atingirei assim o meu outro sentimento, o da pena de não o ter lido.

Ler uma grande biblioteca, além de gratificante, traz consigo o vazio da frustração. É quase impossível conseguirmos ler todas as obras que possuímos, sejam elas herdadas ou adquiridas por nós.

Já me ouviram referir (metaforicamente) o desgosto que tenho por, devido às dificuldades, prioridades e outras conjunturas da vida, ter cumprido uma trintena de anos sabática, onde o investimento cultural foi, embora sempre existente, mínimo. Pois bem, nem mesmo que esse acumulado de anos tivesse sido utilizado para promover o meu autoconhecimento e o conhecimento do Mundo, ter-me-ia sido possível acompanhar as obras que possuo em paralelo, ou seja, tivesse podido lê-las todas.

Quando, um dia, exalar o último bafo e, com ele, a vida, espero poder dizer como José Luis Borges:
Sempre imaginei que o Paraíso seria uma espécie de biblioteca.



03/05/2023

280 - OS MÚLTIPLOS INFERNOS E PARAÍSOS DOS FALSOS UNIVERSAIS
00h54, 4ª feira, 03/05

Deus existe? (aqui corro o risco de ser condenado por ateus e alguns agnósticos – e por crentes de uma qualquer religião também). Ou fui eu, o Homem (aqui corro o risco de ser condenado pelos actuais politicamente correctos defensores da igualdade de género, pelo uso machista de um falso universal), quem o inventou? (aqui corro o risco de ser acusado de ateísmo por qualquer crente de qualquer religião).

Para todos aqueles a quem possa “ofender”, refiro que sou um livre-pensador, liberto de qualquer fanatismo, crença ou seja o que for que coarcte o modo como reflito e me exprimo. Ao utilizar a minha capacidade dedutiva, não a restrinjo a quaisquer formatações preconcebidas.

Aliás, num post de há alguns anos referi que me deixo levar pela corrente, ou seja, digo o que penso no momento, possa ser certo ou errado. Mais tarde poderei defender exactamente o oposto, não porque seja volúvel mas porque é o fluir das minhas reflexões naquele instante que me permite elaborar uma tese ou a sua antítese, ou ambas. Posso ser hoje um detrator e amanhã o advogado do diabo.

É evidente que existe uma base racional e, por isso, tento não escrever disparates mas algo minimamente lógico, segundo a minha lógica, claro. Os leitores são livres de a aceitar ou não. No entanto, não tenhais medo de que isso possa abalar as vossas crenças; se tal vier a suceder, significa que vos fiz pensar para além dos limites auto-impostos, e isso é positivo. Chama-se ter uma mente aberta.

Mas voltando ao tema: Deus, no sentido que as religiões lhe dão, existe? E filosoficamente, existe? Ou será um processo que o “falso universal” engendrou para exculpar tudo aquilo que o prejudicava e tecer loas aos bons eventos da sua existência? As crianças também criam amigos imaginários a quem dão carinho ou castigam, consoante as circunstâncias e os humores. Isso significa que elas têm um deus próprio? Não é isso o rudimento de um culto, uma porta aberta para mais tarde adorar algo?

Já fui crente e agora já não sou; não renego nem aceito deus, apenas cogito para tentar perceber o Universo, independentemente de qualquer explicação transcendental.
Sou (fui) católico. Sei que estou, no momento de ser lido, a ser excomungado por alguns que têm a certeza de que vou direitinho para o inferno por ter desdenhado Aquele em quem acreditam. E se eu fosse muçulmano ou hindu? Iria para o inferno na mesma pois por mais boas acções que tivesse feito neste mundo, continuaria a ser um ateu, um infiel, um seguidor de falsas religiões.
E o que pensarão os hindus e muçulmanos de mim? Certamente o mesmo que os católicos.
Sou um apóstata, um renegado, alguém a quem será negado o Paraíso, seja ele qual for.
E se eu quisesse voltar a acreditar num deus “convencional”, qual iria adoptar? Pelo que expuz acima, estarei sempre condenado às profundezas do Inferno de um qualquer culto - de vários, até. E se adoptar um, terei escolhido o verdadeiro? Todos os cultos se arrogam (é o termo) da autenticidade e exclusividade do seu.

Na dúvida, prefiro manter o meu agnosticismo, que aceita todas as possibilidades até prova em contrário, na certeza de que arderei em múltiplos infernos, tantos quantos aqueles que pertencem às religiões que rejeitei e a outras que nem sequer conheço.

E se no dia do meu passamento for ter a um Hades de que nunca sonhei sequer que existisse e quiser reclamar, haverá certamente um demónio à porta para esclarecimentos; ele limitar-se-á a erguer o dedo e apontar para uma tabuleta emprestada pelo Ministério da Justiça que diz:

Nenhum cidadão (leia-se pecador) pode alegar desconhecimento da Lei.


24/04/2023

279 – QUANDO A ANAMNÉSIA FAZ ‘BACKUP’, AS PAUSAS PAUSAM
05h57, domingo, 23/04

Quase todas as vezes que escrevo, faço antes uma pausa; não para ganhar inspiração, porque essa vem quando quer, não é nenhum comboio ou autocarro com uma tabela de horários ou um local de paragem em particular. Ela surge do nada, nos momentos mais inconcebíveis, mais paradoxais; podemos estar numa sanita a cumprir a nossa obrigação ecológica de criar adubo natural, num chuveiro, a purificar as nossas superfícies externas ou numa cozinha a preparar a nossa dose regular de toxinas e nutrientes. Ou, muito simplesmente, podemos nada fazer e levar com ela na cabeça como se o destino ou lá o que é no-la atirasse, como uma telha velha que se desprende de um beiral arruinado no exacto momento em que passamos debaixo, o que, dependendo da consecução ou da metáfora do acto, pode redundar no nosso momento epifânico ou no nosso episódio hospitalar ou tanatológico. Ou pode nunca acontecer.
É o que sucede com aqueles que adorariam pintar quadros, nem que fossem sofríveis, mas só têm jeito para caiar paredes e, e....

Nós não escolhemos o que queríamos ser, escolhemos o que nos é permitido ser sem cair no ridículo. A vida não é feita de quereres mas de poderes, o que não invalida que tentemos; aí, tentando, poderemos adquirir a certeza se perseguimos algo exequível ou nos temos estado a iludir com uma quimera. Se conseguirmos, então era um poder disfarçado de querer.

Não nos iludamos com os impossíveis, pois eles são possíveis em potência, mas talvez numa escala que não nos satisfaz, e por isso, por despeito, perdemos a fé, não nos lembrando que eles foram, afinal, conseguidos: um Pinscher e um São Bernardo são diferentes escalas de uma mesma espécie.

Mas, no início, estava a falar de pausas. Quando iniciamos uma conversa ou uma exposição escrita, tendemos a divagar sobre outros temas colaterais ou que até nada tenham a ver com aquilo que estávamos a focar. É a coisa mais natural deste mundo, o nosso pensamento ultrapassa-nos constantemente e então tentamos agarrá-lo mal ele passa. Deste modo, esforçamo-nos para não nos esquecermos de dizer algo que nos próximos segundos desaparecerá, “varrer-se-nos-á” daquela memória instantânea mas muito residual que possuímos fugazmente enquanto decorrem os actos de escrita ou de fala. Este hiato comunicativo, mas útil (uma vez que pode permite fixar ideias relevantes), é passível de surgir – e surge - durante qualquer outra actividade que estejamos a executar.

Não considero tal situação como um défice de atenção ou ser “cabeça no ar”; faz parte de um processo mental bastante complexo que poderá causar mais benefícios do que prejuízos, pois permite-nos executar várias linhas de pensamento em simultâneo. A única dificuldade neste processo é, como acima referi, a fugacidade dessa memória do momento, aliada a um fraco aprofundamento do tema principal tratado, o que transmite, no caso de uma interacção oral, a ideia de que não estamos a prestar atenção ao interlocutor, podendo criar assim uma situação embaraçosa mas, a seu modo muito peculiar, verdadeira, pois na realidade a nossa atenção está dividida, fraccionada. Tentamos, evidentemente, fazer um esforço para prestar atenção, mas a mente estará sempre a “olhar para o lado”. Não é falta de consideração, é apenas uma característica da nossa estrutura mental de que não temos verdadeiramente culpa.

Mas falava eu de pausas... Pois...


14/04/2023

278 – A QUE PONTO CRIAMOS, A QUE PONTO PLAGIAMOS? SOMOS, CONTUDO, FRAUDES CRIATIVAS.
10h35, sexta-feira, 14/04

Toda a escrita é palimpséstica, construída sobre os testemunhos, textos e poesias, teses e descobertas de outros que o fizeram antes de nós, por vezes com milhares de anos de intervalo.

Somos Camões copiando Vergílio, num eterno círculo vicioso de não apenas prosas e poemas mas paráfrases de todo o espólio cógnito grafado desde o surgimento do Homo Scriptor.
Somos, nós próprios, de um modo muito peculiar, palimpsestos dos nossos ancestrais pois copiamos através do ADN as personalidades, características físicas, caracteres, virtudes, defeitos e manias desses Vergilios de antanho.

Por isso, tudo o que concebemos, toda a criação literária “original” que escrevemos, não passa de um produto copiado, fruto das nossas leituras, do nosso estudo, daquilo que vemos e ouvimos. A nossa “originalidade” é apenas uma cópia da cópia, da cópia, da cópia de uma ideia que talvez ela própria não se possa considerar original. Mas, como “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”, esse cisco, esse ténue registo, esse rasgo de singularidade, é muito nosso e único pois provém da nossa capacidade de transformar algo já existente em qualquer coisa, não necessariamente nova mas renovada sómente pela aposição de um minúsculo ponto. Isso sim, é singularidade, uma inovação residual que pode e deve mudar o mundo, nem que seja daqui a centenas ou milhares de anos.

Essa pequena, ínfima partícula que adicionamos de motu próprio ao pré-existente palimpsesto constitui o electrão acrescentado ao núcleo do átomo primordial e que gera um novo elemento. Isso é inovar, isso é originalidade, isso é progresso. A partir daí o nosso contributo, esse grãozinho de areia inventado só por nós passa, ele também, a ser palimpséstico.


10/04/2023

277 - A MATERNIDADE/PATERNIDADE E A "AVÓZEIDADE" :  O PASSADO E O PRESENTE (E O FUTURO)
06H01, 09/04, DOMINGO

Ontem passei o dia com a minha única neta; é gratificante lembrar os tempos em que nós, os avós, éramos pai e mãe e tínhamos o prazer de criar e conviver com as nossas filhas, de estar, de viver no que é agora o seu lugar, a sua vez. Ela reflecte a educação que demos à mãe e à tia mas espelha também as enormes mudanças que o cuidado e ensino de uma criança tiveram nestas últimas quatro décadas.

A maior parte das alterações prende-se com, não apenas os métodos de aprendizagem mas também com os cuidados de saúde e a promoção de uma vida mais equilibrada e natural, uma alimentação mais correcta, uma educação mais “evoluída”, menos repressiva.
Demos às nossas filhas todos os cuidados que podíamos e sabíamos, toda a educação que achávamos mais progressiva em relação aos métodos com que fomos educados e que considerávamos obsoletos e castrantes; agora somos nós os obsoletos e castradores.

Não digo isto como uma crítica à nossa filha-mãe, não! Considero que faz muito bem em inovar, desde que seja dentro dos princípios de boa alimentação e boa educação (um conceito flutuante, todavia), assim como dos cuidados de saúde a que não tivemos acesso, fosse por insuficiência económica, por ignorância nossa ou dos próprios profissionais de saúde e do sistema em si. Todo o ser humano (???) quer o melhor para os seus filhos e deve lutar por isso.

Como avós, temos uma paciência e uma tolerância que não tivemos com as nossas filhas. Porém, se eu falar em nome individual, como avô, essas características esvaem-se um pouco, talvez até porque as minhas limitações de saúde e a minha própria vivência não o permitem. Ademais, as mulheres, as mães e mesmo aquelas que nunca o foram, têm uma visão diferente perante a relação com as crianças: o instinto maternal está-lhes sempre presente e a interacção é muito maior, muito mais carinhosa e cuidadosa.
Salvaguarde-se, para os/as puristas e feministas, assim como para aqueles que são “machos” e têm a pretensão de que ser homem é só gerar e o resto - os carinhos, os cuidados, etc – é para elas, é trabalho das mulheres, que quando falo em instinto maternal, refiro-me a um sentimento básico de todo o ser humano e de todo o animal - porque animais somos, por mais que o neguemos. Os homens também o têm, é certo, mas manifesta-se diferentemente, pois embora amem inequivocamente os seus descendentes, as suas exteriorizações de cuidado e afecto são mais “distantes”.

Infelizmente não me posso alongar mais pois estou a tocar num assunto cada vez mais explosivo, mais passível de más interpretações sobre o papel de género. Agora tenho de, muito antidemocraticamente, aferrolhar dentro de mim próprio as minhas opiniões pois vivemos num mundo do (por vezes falso) politicamente correcto e corro o risco de ser crucificado por não pensar como devia. Pois é, as verdades de hoje podem ser o anátema de amanhã – e isto aplica-se a todas as épocas, no passado e no futuro.
Há um velho ditado (portanto, não presta) que diz: não julgues para não seres julgado.


04/04/2023

276 - O SONHO COMANDA A VIDA...  E QUEM COMANDA O SONHO?
01h23, 2ª feira, 03/04

Dormir é pensar? Ou, reformulando, pensamos enquanto dormimos? E os sonhos, o que são? Pensamentos? Ou um filme que o nosso inconsciente nos mostra e que é tão incontrolável e incontornável como o instinto animal ou o comportamento supostamente não senciente dos insectos? Neste último caso classifico-o assim (incontrolável e incontornável), partindo do princípio de que o “filme” não é o nosso consciente, a nossa razão, que o escolhe; é-nos (provavelmente) imposto pelo Id .

Quando sonho, não tenho nenhum controlo sobre o tema, ele simplesmente surge; pode estar relacionado com um acontecimento recente ou antigo, ou ser algo supostamente aleatório, nada relacionado com a minha vivência, ou pelo menos assim poderá parecer, embora Sigmund Freud e outros investigadores dos recônditos da mente digam que são mensagens transformadas, metaforizadas pelo subconsciente e que têm algo a ver connosco directamente, seja um problema de saúde, uma preocupação, uma anomalia ou um aviso sobre a nossa sanidade ou insanidade mental, etc.
São, evidentemente, tudo teorias que, por mais que se afirme estarem provadas, não passarão de teorias. Einstein também formulou uma teoria da relatividade que foi dada como correcta durante décadas mas que está actualmente a ser contestada.

Quanto ao controlo ou falta dele por nossa parte em relação aos sonhos recordo que, e baseando-me em observações empíricas, nós por vezes resistimos a deixar-nos levar pelo “enredo” e dizemos (pensamos): “Basta, vou acordar”, evocando assim um acto consciente, pese embora o estado em que nos encontramos. E despertamos porque assim o queremos. O mesmo sucede com os pesadelos, mas aí será mais uma recção involuntária, pois encontramo-nos num estado de grande ansiedade e o nosso “automático” dispara o botão de pânico do instinto de sobrevivência, do inconsciente.

Porém, tudo isto não responde à pergunta anteriormente formulada: sonhar é pensamento ou estamos pura e simplesmente a assistir a um filme, embora por vezes o possamos desligar? Para o fazer é necessário um pensamento que desenvolva uma acção - e aí, ver o filme será também pensar -, o que o torna assim um acto consciente?
Volto a referir Sócrates (o filósofo, não o ex-primeiro ministro), usando uma frase que lhe é atribuída: Ipse se nihil scire id inum sciat, traduzida geralmente como “eu só sei que nada sei”.



23/03/2023

275 - A INCERTA CERTEZA DE UMA EXISTÊNCIA INEXISTENTE OU TALVEZ TUDO NÃO PASSE DE UMA REALIDADE SONHADA OU DE UM SONHO (IR)REAL
11h31, 4ªfeira, 22/03

Estranho escrever durante o dia! Há movimento, carros, pessoas, cães, aves que voam, estabelecimentos abertos, a funcionar, com pessoas a atenderem e a serem atendidas, um borborinho inconfundível de vida acordada!

Espero a minha filha que foi a uma consulta e aproveito para escrever, mas escrever com uma sensação que me está arredia há anos: é dia e escrevo, que saudades!
Não sei o que vou declarar aqui, apenas comecei porque queria sentir de novo essa impressão tão agradável de fazer parte de um mundo de que me estava a esquecer. Há nove anos que sinto que, ao escrever estas crónicas, apenas faço uma espécie de comunicações de além-túmulo, único locatário do meu amplo jazigo pétreo, por onde alguns visitantes que não pertencem a este meu submundo passam raramente.

Gosto de, de vez em quando, fazer estas considerações POE(ticas), numa clara – para alguns, velada – referência a um dos meus contistas e poetas preferidos: o Edgar Alan, claro! Adoro fazer referências charadísticas, calembours e afins; gosto de brincar com as palavras, com as frases de duplo sentido, com referências obscuras, num processo de escrita que me dá um certo prazer e que, ao mesmo tempo, me desenferruja o espírito, a capacidade criadora, o humor.

Do que escrevo, nada levarei desta vida, como nada se leva de qualquer vida; nem mesmo a grata recordação do que se fez de bem, do que se criou, do que se viu, ou ouviu, ou sentiu. Talvez seja pelo melhor, há muito mais coisas de que não queremos recordar porque são tristes, infelizes, desagradáveis, negativas, oportunidades perdidas, palavras que não se deveriam ter dito, acções erróneas, remorsos, dor. Tantas palavras que expressam incomensuráveis, inenarráveis sofrimentos e arrependimentos. Quando nos “apagamos” deste mundo físico, limpamos também todo o bem e todo o mal, apenas ficam as consequências para os transitórios sobreviventes.

O Estige existe, mas é para os vivos: esses continuam a viver os seus infernos, purgatórios ou céus particulares, enquanto por cá estiverem.  Para os que fazem a passagem (e serão todos, mais cedo ou mais tarde) apenas existe o Letes – o rio do esquecimento. Mergulhados nele, os nossos espíritos ou que nome se deseje chamar (há quem lhe chame nada, inexistência) são limpos de qualquer referência, qualquer vestígio de memória terrena e renascem (ou não) acompanhados de uma tabula rasa, de um registo por preencher. E tudo começa de novo.
Entretanto, a longo prazo, o Letes extingue também a memória de nós nos vivos, e então passaremos realmente a ser um arquivo apagado, uma existência que não existiu ou de que não há memória; passaremos a ser o que há poucas crónicas atrás apodei de ossos sem dono ou mero pó que nos rodeia.

Mantenho a esperança de que um dia, num futuro inimaginavelmente longínquo (se a palavra futuro ainda tiver significado), possamos consultar a nossa evolução enquanto partículas separadas do Todo; seguir o nosso percurso de aprendizagem, a nossa longa marcha (não tem nada a ver com Mao Zedong) para onde ou o que quer que sejamos ou onde nos encontremos (se isso ainda fizer algum sentido, se tudo fizer algum sentido, se sequer existir um sentido – ou um tudo).


12/03/2023

274 -A MIMESIS, A ANAMNESIS, O ORBE E A APRENDIZAGEM DA ARTE (MISTURE TUDO E LEVE AO FORNO)
01h01, domingo, 12/03

Estou, literáriamente, muito enferrujado; desde que, por necessidade, abandonei o dia, desde que comecei a escrever (e trabalhar) exclusivamente à noite, noto um decréscimo acentuado na qualidade e na razão estética com que escrevo.

Será, não apenas a excessiva quietude da noite (todavia, propícia para o estudo), onde nada acontece, onde as horas se sucedem quase imperceptívelmente, mas também - como consequência directa – a ausência de tema físico vivenciado no presente, e não em diferido (ao vivo e a cores, digamos), o que, por vezes, faz toda a diferença.

Há pintores que produzem obras, reais ou ficcionais, utilizando apenas a memória ou a imaginação criativa: outros necessitam de um modelo, uma paisagem, um tema visível.
Sinto que estou no segundo grupo, embora também possa abordar temas apenas com o auxílio do meu pensamento. No entanto, toda a riqueza de um evento vivido, todo o bulício de um lugar e da hora do dia em que se produz, trazem vida à Vida, à Natureza, à própria mimesis aristotélica (a arte como cópia do Mundo), o que faz uma enorme diferença.
Esse movimento caótico mas ordenado, esse diário estado de vigília do Universo, propicia um entrecruzar de côres, de vivências, de sensações e sentimentos que estimulam a capacidade criativa.

Falo com uma certa cautela, pois posso erradamente fazer passar uma imagem de mim como um narcisista pretensioso, que se arroga a categoria de sensitivo, de artista, de escritor; não, nada disso.
Aspiro apenas a ser um dia um neófito, e para esse fim devo encarnar o desejo de o ser, nada mais. Doutro modo, sairia derrotado antes de sequer tentar. Quem quer ser algo, seja o que for, tem de “vestir” o papel. E pode não passar disso, mas se não o vestir, não acreditará na possibilidade, e não acreditando, vale mais desistir. Não é a minha intenção.


08/03/2023

273 – ENTRE BATARA KALA, HADES, WHIRO, HELA OU AHRIMAN, VENHA O DIABO E ESCOLHA...
08/03, 4ª feira, 23h33

Ontem os Manes não me protegeram. É certo que este não é o meu lar e os Manes são os deuses que protegem as casas e quem lá habita, segundo a mitologia romana.
E digo que não me protegeram porque apanhei uma constipação devido às correntes de ar gélidas que Eolo me enviou pelas frinchas da porta e directamente focadas nas minhas costas.
Se calhar foi porque Eolo é um deus grego e não queria nada com os seus congéneres romanos, não havia cooperação interdivina e talvez andassem em contenda uns com os outros por pura birra., pois cada facção deve-se achar mais divina do que a do outro lado da fronteira celeste. Cá para mim, acho que Eolo fez de propósitos para chatear os romanos e eu, simples mortal sem valor ou voto na matéria, servi de instrumento desse braço de ferro pueril, indigno de deuses que se prezam.
Nos conceitos cultuais dos nossos antepassados, eramos meros títeres nas mãos desses argumentistas sobrenaturais que nos usavam para seu gáudio e para chatear os adversários, meras formigas que eles pisavam a seu bel-prazer.
Tratava-se de uma visão teológica do Mundo bastante redutora: a humanidade e, em suma, tudo o que existia na terra e nos céus, era beneficiado ou destruído de acordo com os humores desses personagens criados pelo homem, à sua imagem e semelhança, e não ao contrário. Tudo o que se passava no céu e no inferno, além de ser uma explicação transcendente dos fenómenos naturais, era também um reflexo do modo de ser e de pensar dos homens da antiguidade, ainda não muito dados a sentimentos de justiça ou piedade para com os seus semelhantes.
Evoluímos muito desde essa época, mas alguns deuses mantiveram-se iguais ou, se calhar, os deuses evoluíram muito desde essa época mas os homens mantiveram-se iguais. Acho que a segunda hipótese fica a ganhar por larga percentagem.
Se me é permitido comentar outras divindades de outras culturas, acho que a hinduísta Kali e o xintoísta Hachiman estão em alta: a primeira é a deusa da destruição e o segundo é o deus da guerra; estamos bem entregues.


06/03/2023

272 - LET(ES) ME REMEMBER, PLEASE!
05h51, domingo, 05/03

A grande maioria das vezes começo a escrever usando a primeira frase ou ideia que me surge na mente. Embora geralmente escreva sobre os corpos inanes de ideias ou sugestões que foram surgindo do nada e para ele voltaram quase de imediato, impedindo-me quase sempre de as salvar, costumo safar-me airosamente dessas imersões literárias repentistas.

Na verdade, a circunstância ou evento mais frustrante e recorrente do quotidiano de quem escreve é o aparecimento desses voláteis fantasmas dos pensamentos mais sublimes, das sugestões mais notáveis, dessas ideias perfeitas ou suficientemente aprazíveis mas que se nos escapam por entre os dedos da memória como areia por um crivo. São ténues e irruptivos afloramentos que os nossos estados mentais mais profundos captam no limiar da senciência e que surgem naquela diáfana semi-consciência que antecede ou procede os períodos de sono.

Infelizmente é um timing imperfeito, pois não permite muito facilmente captar com a necessária eficácia a visão do novelo com que pretendemos tecer a nossa rede de raciocínio e o desenvolvimento subsequente do corpo da nossa narrativa.

Como disse Júlio César – Alea jacta est, mas os dados lançados por vezes caem nas águas do Letes e perdem-se para sempre.



02/03/2023

271 – A ARTE COMO OBJECTO NARCISISTA E FILANTROPO: UMA VISÃO PESSOAL E INTRANSMISSÍVEL
01/03/23, 4ª feira, 23h45

Pego na esferográfica e tento mais uma vez – das inúmeras que tenho diligenciado fazer - projectar os meus estados de alma, os meus anseios, as minhas frustrações, o modo como vejo ou julgo ver o Mundo. Nem sempre é fácil, os sentimentos entrecruzam-se com outras ideias que nada têm a ver, as emoções tintam raciocínios, os pensamentos entrechocam-se, enovelam-se aleatoriamente, caóticamente, de tal modo que uma ideia, um projecto de escrita original, emaranham-se em inutilidades, futilidades, quais alhos com bugalhos, numa miscelânea para a qual muitas vezes só existe uma solução: lixo.

Se eu, mero escrevinhador de pensamentos aleatórios, me vejo assim aflito, que dirão os verdadeiros escritores, aqueles que desenriçam os novelos da originalidade de forma mais ou menos contínua? Eu escrevo por escrever, outros escrevem para escrever, essa é a grande diferença e também a grande dificuldade. Um profissional das letras é como um operário especializado: não pode falhar, sob risco de comprometer o produto final e deitar a perder todo o processo de criação.

Duas das mais importantes premissas para se ser um bom escritor é gostar do que se faz e ter prazer em aplicar a experiência e o conhecimento que vai adquirindo ao longo da vida e do estudo para criar obras agradáveis aos outros, mas das quais ele próprio retira prazer, do mesmo modo que um pintor ou escultor tiram prazer da sua produção; caso contrário, não pintariam, não esculpiriam, não escreveriam.

Ser artista é, não apenas ter o gozo de dar aos outros matéria deleitosa, mas também o de a usufruir, ser um pouco narcisista e orgulhar-se dela. De outro modo, passamos da criação útil e aprazível para a produção como mera fonte de subsistência, impessoal, por vezes fonte de sofrimento ou reflexo deste, e não é esse o verdadeiro objectivo da arte, de qualquer arte.


28/02/2023

270 - ESPERAR PELA REFORMA NÃO É ESPERAR POR GODOT (SE TUDO CORRER BEM)
23h55, 2ª feira, 27/02

Continuo a esperar impacientemente pela reforma que tarda. Não que a almeje económicamente, não; na verdade serei muito prejudicado pelo processo - como aliás todos aqueles que, como eu, não conseguem fazer face às despesas trabalhando como trabalho ou, por outras palavras, pelo ordenado minguado que recebo.

Apenas desejo a jubilação (um modo mais “fino” de dizer e que está também relacionado com júbilo, alegria) para que possa, em teoria, usufruir de um descanso merecido – principalmente atendendo à minha situação de saúde – e para poder coordenar o meu tempo à medida das minhas necessidades e dos meus hobbies. Não quero, como já disse um dia, ser um potato coach ou um sócio assíduo do clube de bisca do tasco, é contra todos os meus princípios e, além disso, não quero regredir, estupidificar.

 Considero que essa vida de taberna que observo infelizmente todos os dias e o potato coaching que me acena com frequência e convida “amigávelmente” para uma inacção deletéria, são apenas meios de potenciar Alzheimers voluntários.

Não digo com isto que vou ser extremista e deitar fora o sofá ou enchê-lo de picos para não ceder à tentação; é evidente que o dito é esporadicamente bom para relaxar ou para os momentos de – sejamos realistas – doloroso cansaço que se avizinha à medida que a idade vai avançando.

Tasco, não. Definitivamente. Esse é tóxico. Desaprendemos e o ambiente é dos piores com que podemos deparar: reside aí a frustração, o desânimo, o ócio estéril, a inutilidade, os baixos sentimentos e emoções, a conversa concomitantemente desbragada, porca mesmo, e o retrato vivo dos suicidas a longo termo.

Talvez me expresse assim porque, culturalmente, tenho a sorte de encontrar-me num patamar superior. Digo isto sem falsas modéstias ou vaidade encoberta; digo-o com o alívio e até orgulho de me ter sido possível ser como sou.

Lamento que nem todos tenham tido as oportunidades que eu tive de fortalecer essa parte da personalidade, e disso tenho muita pena. Cada um é como é e cada um faz as suas escolhas.

O que eu quero é, se lá chegar e se Deus me der vida e saúde, como se usa dizer, dedicar o que me resta da existência a cuidar da dita e alargar o intelecto, contando para isso, entre outras coisa, com a minha biblioteca.

Ressalvo, como já mencionei em posts anteriores, que sou agnóstico com uma pontinha de ateu, e a frase que apliquei no parágrafo anterior não reflecte a minha posição perante uma divindade que questiono.

Que o Caos é controlado, é; e isso exige forças que estão para além do nosso conhecimento ou da nossa compreensão. No entanto, não estou a aludir a divindades ou extraterrestres. Nesses, acredite quem quiser, mas não serão eventualmente eles quem tem equilibrado o Mundo, embora não exclua a possibilidade da sua existência, pois não sou homocêntrico e muito menos heliocêntrico, acredito na imensa diversidade do Universo.


27/02/2023

269 – A (IN)FINITIZAÇÃO E/OU (DES)UNIVERSALIZAÇÃO DO ESPAÇO-TEMPO
26/02, 23h39, domingo

O que é o Universo, o que é o Infinito?
Existem (ou existe)?

Universo, como o nome indica, é algo que só tem uma face, sem reverso, una.
E o Infinito? Se quisermos "chamar os bois pelos nomes", como se costuma dizer num registo menos erudito, mais popular, o infinito é algo que não tem um fim nem teve, supostamente, princípio, embora infinito nos reporte a uma coisa ou algo que não acaba, sem fazer referência -explícita ou implícita – ao seu início.
Aqui a alusão ao Big Bang (em que não acredito) é notória, embora as nomenclaturas anteriores, referentes à inexistência de um começo sejam muito mais antigas do que esta teoria, que é relativamente recente. Em contrapartida, o Infinito é representado por um símbolo em forma de 8 deitado, também chamado Lemniscata, do latim Lemniscos que, por sua vez, foi buscá-la ao grego Lemniskos (fita ou, num inglês mais focado, mais explícito – ribbon).
No entanto, esta fita tem duas faces, o que contraria o conceito de Infinito e aponta para um Bi-infinito, ou mesmo um Pluri-Infinito.
Surge agora a ligação evidente mas que pode passar despercebida, com o Universo; embora em geral se cole a ideia de universo a algo palpável, mais ou menos físico, e Infinito a uma definição mais temporal, mais “esparramada” no tempo do que nos espaço, eles, afinal são a mesma coisa, pois um não é concebível sem a sua contraparte: não existindo espaço não pode haver tempo, porque um sem o outro careceriam de pontos de referência e tornar-se-iam uma não-realidade. Do mesmo modo que algo existe porque há um fenómeno (chamemos-lhe assim) cronológico que o faz aparecer em determinado tempo, também este fenómeno existe porque há algo palpável que surge numa determinada simultaneidade.: sem objecto, não existe tempo, sem tempo não há objecto.
Esta teoria mexe simultaneamente com os dois conceitos de Universo Infinito, pois admite a existência de mais do que um verso, um lado, o que aponta, ou para vários espaços infinitos ou mesmo para vários espaços finitos, o que subverte todo o conceito vulgarmente aceite.
É evidente que tudo isto não passa de conjecturas sem base palpável, é apenas fruto imaturo do meu raciocínio. Poderá assim padecer de falhas, de inconsistências, ou ser mesmo pueril (do latim puer – criança).
Mas o que são teorias senão ideias imaturas que um dia podem amadurecer e iniciar novas realidades ou hipóteses de realidade?


28/02/2023

00h25, 5ª feira, 23/02/23
268 – HÁ EPÍLOGOS QUE SÃO APENAS UM CURTO RESUMO DOS PRÓLOGOS 

Como definir 65 anos de vida e na vida?
(Considerando que o Mundo é o Mundo e um país não representa necessariamente o Orbe, cinjo-me à análise pessoal deste pequeno recanto da Terra).

Em termos paisagísticos, urbanísticos, de desenvolvimento sócio-técnico-científico e outros factores de evolução, tenho boas e más opiniões como, afinal, todos nós em tudo na vida.

Há seis décadas e meia, a sociedade, nos termos acima entendidos, tinha um desenvolvimento lento, de certo modo harmonioso embora retrógado, uma espécie de locus amoenus parado no tempo, onde a vida fluía lentamente, como um pequeno córrego, sem pressas, sem aparentar objectivos a curto ou mesmo médio prazo. Cada novidade, fosse uma construção, uma qualquer alteração urbanística, um avanço tecnológico, cada passo tímido pelo bem-estar do povo, era visto quase como um misto de admiração e temor, incrédulo e respeitoso.

A civilização marcava passo, como se se recusasse avançar, como se desejasse preservar o mito arcádico em que vivíamos, parados que estávamos na Renascença e no Romantismo, por vezes roçando mesmo a Alta Idade Média. Em suma: pobres e atrasados, mas felizes (pelo menos em teoria). Não existíamos para o Mundo e este muito menos para nós. Cegueira quase total.

Dez anos depois já os espantos se sucedem; a Arcádia agita-se, revolve-se, transforma-se. Os pastores deparam-se com novas e espantosas realidades e inicia-se o êxodo da pastorícia, para melhores, mais lucrativas e agitadas actividades, onde novos horizontes apelam à descoberta e sacodem a quietude dos povos. O locus começa a ser cada vez menos amoenus, as bocas abrem-se em rictus redondos, em “OO” de admiração: guerra fria, a conquista do suprassumo da quietude contemplativa – a Lua – devassada, violentada; as revoluções sociais, sexuais, tecnológicas, a resistência crescente aos senhores feudais da guerra. É o fim do mundo, o Apocalipse!

Mais uma década:
O Caos ameaça subverter as utopias e anarquias emergentes, a luta entre estas e os Velhos do Restelo é dura, renhida. E, no entanto, avança-se. Em tudo. Com dificuldade, com timidez. Com medo. Os ditos Velhos vão morrendo (mas não de todo).
Há uma estabilidade falsa, um vislumbre de Paraíso que, no entanto, não passa disso – uma ilusão.

Anos 90:
Acentua-se uma curva descendente que trás maus augúrios; o poder de compra desce suavemente, imperceptível, quase como se se mantivesse. Mas desce, e o Paraíso passa a Limbo e deste a Purgatório. Há novas mexidas por todo o Mundo, promessas de avanço, de progresso, de melhores dias: a ilusão continua e nós – o Povo – ainda acreditamos.

Virar do Século:
Nós – o Povo – já não acreditamos muito; se existisse uma Golden Sachs para a qualidade de vida, estaríamos classificados como Lixo - . E é assim como nos sentimos.

Anos 10 do Novo Milénio, aquele que vai trazer um mundo novo, mais igualitário, mais próspero, mais feliz:
Já não somos Lixo, passamos a Lixeira. Das grandes.

Anos 20 do já não tão Novo Milénio.
Há um arremedo de melhorias. - Havia, antes da guerra. Agora não há nada, apenas mais do mesmo.


17/02/2023

267 - COMORBILIDADES E RESIGNAÇÕES A CONTRAGOSTO
15/02, 4ª feira, 06h25

Estou com uma (algo indeterminado) “de caixão à cova”, como os meus ancestrais costumavam dizer. Algo que está-se a passar de mão em mão, ou antes, de corpo em corpo, uma cadeia de infecções pulmonares, intestinais, e sabe-se lá que mais, só para rimar.
Prostração, cabeça pesada, olhos de pálpebras a pesar quilos, nariz que parece mais um esgoto entupido, cansaço grande e injustificado, sono qb, ou antes, sono mais do que qb e mais um rol de sintomas que nem descrevo, pois estes, por si sós, serão suficientes.
Se disser que antigamente não era nada disto, estarei a cair no erro de muitos, para os quais o antigamente não tinha tantas doenças nem tantos problemas como os de agora? (Esquecendo, evidentemente, todas aquelas doenças que existiam e que foram erradicadas, não sem antes terem feito muitos estragos na vida desses homens, mulheres e crianças de antanho).
No meio de tantas novas ameaças ao bem-estar dos povos, mesmo assim pergunto-me se antigamente era melhor. Não sei dizer.
Fui uma criança cheia de problemas de saúde ate aos 12/14 anos e que foram melhorando e desaparecendo nessa idade, com a excepção da “cereja no topo do bolo”, aos 17 anos, que foi uma pleurisia húmida (porque também as há secas) que me deixou devastado, confinado e acamado por 4 longos meses a fio e deixou cicatrizes internas na base do pulmão esquerdo. Mas isso, felizmente, são águas passadas que a juventude fez desaparecer sem aparentes sequelas.
Atualmente começo a queixar-me dos problemas inerentes à idade (não digo velhice para não ficar chocado) e a alguns que foram surgindo antes do tempo ou nem sequer deveriam ter surgido, como os AVC, os AIT e a aterosclerose e que transportaram consigo todo um rol de maravilhosas possibilidades de me estragarem ainda mais a saúde.
Queixo-me? Sim e não. Por um lado, é lógico que me queixo, pois não sou assim tão masoquista; por outro lado não me posso queixar, pois são o resultado de más condutas de saúde, da genética e de razões que a razão desconhece. Tenho sempre presente que há quem esteja pior do que eu, seja por culpa ou sem culpa, há quem nem sequer tenha gozado minimamente a vida, seja por deficiência física ou mental, acidente, pela malfadada genética (aquela parte da herança que ninguém quer), ou porque, simplesmente, não viveu o suficiente para o fazer. Agora que estou a estudar latim e a vida e cultura romanas, digamos que, como Séneca, sou um estóico (embora o Estoicismo tenha sido criado por Zenão de Citio, em Atenas, no século III a. C.).


09/02/2023

266 – A REFORMA:  VERSÃO LIGHT DE UMA FUGAZ FELICIDADE
5ª FEIRA, 09/09, 03H12

Nada tenho escrito porque, não só tenho o problema da transferência do site ainda por resolver, mas também porque tenho andado extremamente cansado; não durmo bem e os neurónios ressentem-se disso.

É estranho ver-me como um pré-reformado. Quando iniciei estes “escritos”, há quase 11 anos, faltava-me exactamente isso: quase onze anos para a reforma, mais mês menos mês. E, num estalar de dedos, estou à porta do fim da vida activa.

Bem, não será tanto assim, não quero acabar os meus dias sem fazer mais nada. Quero – isso sim – acabar as minhas noites, que me prejudicam enormemente, gerando perda de qualidade de vida, perigo para a saúde e para a própria existência, atendendo ao meu historial clínico. Estou mortinho (lagarto, lagarto, lagarto, knock on wood, etc.) por ter uma vida normal – se normal se pode chamar uma vida em fim de vida, preencher os meus tempos alargadamente livres com as coisas que gosto de fazer, com o que sempre quis fazer (já com limitações, claro), enfim, tentar usufruir o melhor possível da minha ineludível recta final.

Quero ser o que posso ser, o que quero ser, o que a sociedade não me deixou ser, o que o trabalho me coarctou, quero ser livre de fazer o que me der na real gana, quero ser excêntrico, quero ter todo o tempo que Chronos me der antes de ter forçosamente de atravessar o Estige na barca de Caronte, a troco de duas moedas (agora deve ser mais caro, a não ser que obtenha uma promoção ou saldos, mas não me parece). E – muito importante – quero que valha o esforço, não quero morrer na praia, como sói dizer-se.

Nem tudo serão rosas: a degeneração física, os “dói-me aqui, dói-me ali”, o espectro da degeneração mental, o medo de perder os entes queridos, a dor de os deixar, são revezes da vida que, infelizmente, nem a aposentadoria pode anular. Mas a vida é feita de alegrias e sofrimentos – também o é comprar uma casa, fazer uma tatuagem ou ter um filho, mas nem por isso desistimos de o fazer, sabemos o preço que vamos ter de pagar.

Termino por hoje, após todas estas maravilhosas reflexões de existencialismo negativista, que dão um novo alento à existência e fazem ter gosto em sofrer por estar vivo; são a imagem de marca com que costumo cunhar de quando em vez estas crónicas.


30/01/2023

265 - O VELHO
02h57, 2ª feira, 30/01/23

- Velho, para onde vais?
- Procuro a morte, já que a vida corre célere e escapa-se-me por entre os dedos.

- Porque procuras a morte?
- Que faço aqui? Gasto e enfermo, dependo dos ditames da nébula cada vez mais cerrada do meu espírito, onde os pensamentos já não fluem mas arrastam-se penosamente, tropeçando uns nos outros sem já saber para onde ir, ou o que fazer e o que fazer. Que me resta?

- Porque não agarras a vida com mais tenacidade?
- Porque os meus dedos já não têm forças para a suster, e porque sou repudiado pelos meus pares, que fogem de mim para não me encararem e lembrarem-se do seu próprio futuro. E tudo é já demasiado veloz, tudo é complicado demais para o meu entendimento.

- Tens razão, velho; vai em paz, segue o teu destino.



29/01/2023

264 – O MUNDO ENCANTADO DA INFÂNCIA, ONDE HÁ RÃS, PRINCESAS, DRAGÕES...
01h35, 5ª feira, 26/01/23

Retomo tímidamente as minhas crónicas, visto só agora ter condições (relativas) para tal.
Actualmente, não tenho tido muito tempo para escrever; tudo por louvável culpa minha, visto que me matriculei numa disciplina de latim e nos primeiros tempos não será fácil encontrar momentos livres para escrever com a assiduidade que desejaria pois que, embora o latim seja a base da nossa língua, a sua relativa complexidade ainda dá muito que fazer. Além do mais, ainda estou com um processo de migração do meu site, que se revelou mais complicado do que seria expectável.

A propósito, e visto eu gostar de meter de vez em quando uns pózinhos de latim nas minhas postagens (que se desculpe a aliteração), o que não é só de agora, aproveito para fazer aqui uma distinção:
Expectável aparece na nossa língua proveniente do latim expectabilis, e significa ‘provável’, ‘esperado’.
Espectável vem do latim spectabilis e significa ‘digno de se ver’, ‘notável’, e transporta-nos imediatamente para a noção de spectaculum – espectáculo.
Julgo que assim quaisquer dúvidas que possam ter surgido quanto à aplicação do termo que usei, fiquem dissipadas.

Deixando-me de etimologias, tomei hoje como assunto desta crónica a rememoração da infância e da sua aura mágica, onírica, desse mundo de faz de conta que nos transporta para universos alternativos e maravilhosos que são a porta (e, simultaneamente, o tapume) entre a realidade física em que nós, jovens estreantes – ou talvez não - no universo material, nos movemos, e o universo dos sonhos, do éden perdido, do útero materno como Iocus amoenus, do mundo idealizado com base na nossa própria experiência anteparto, em confronto com uma também mirífica (porque nova, inexplorada) paleta multicor e multiforme de “Apocalipse” (leia-se: revelação).

É um choque/maravilhamento que deixa sequelas e nostalgias que nos acompanharão no decurso de toda a existência física. Talvez por isso muitos de nós, à medida que vamos envelhecendo, tendemos a esperar a ‘passagem’ com serenidade e às vezes até com uma espécie de impaciência; é o retorno ao Paraíso, ao local idílico de onde provimos.
Não sei se é assim, mas tenho a certeza absoluta de que não falharei esse cotejo.

Voltando ao mote, recordo a minha infância, época remota onde criava mundos e histórias, parcialmente baseado e influenciado pelos filmes e desenhos animados a que assistia (entre outros: Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela Adormecida, Peter Pan), pois nasci no mesmo ano em que a televisão fez a sua primeira emissão pública em Portugal e em que o meu pai, simultâneamente, adquiriu uma dessas inovadoras ‘caixinhas de imagens’ que, lembro-me bem, era uma Telefunken (a preto e branco, claro).

Outras referências igualmente importantes são os livros de histórias aos quadradinhos (Mickey, Pato Donald, Tio Patinhas, Pluto, Pateta), que preenchiam e formatavam o meu imaginário, criando cenários, histórias, actores e tesouros. Não posso esquecer, evidentemente, variados livros de aventuras como os de Henry Dalton e Philip Gray, Julio Verne, Emilio Salgari, Sir Walter Scott, Alexandre Dumas, Daniel Defoe, Ponson du Terrail e muitos outros.

No entanto, estas obras, mais evoluídas, já pertencem ao início da minha adolescência, claro (não é minha intenção armar-me em super-dotado), e tiveram assim pouca ou nenhuma influência na ‘magia’, embora tivessem influenciado e muito, os meus sonhos posteriores.
E porque não recordar a miríade de alternativas desse outro mundo que eram as bijuterias que a minha tia possuía e que iam desde as missangas multicores aos colares de pedras de vidro facetado que refractavam a luz, aos de contas pretas, às pérolas falsas e tantos outros tesouros inestimáveis? As jóias, as verdadeiras, essas não eram para o menino mexer, que isso não se empresta às crianças.

Tudo perdido. Quase sem me dar conta fui-me afastando sem sequer olhar para trás desse universo que apaga o seu rasto, muito à semelhança do Peter Pan (Robin Williams) do filme de 1992 - Hook, realizado por Steven Spielberg.

Olho agora com nostalgia esses tempos longínquos que se vão esfumando nas brumas do passado, mas entendo que, como tudo na nossa existência, é apenas uma fase, uma passagem para um nível superior de consciência da própria vida.
Quanto ao resto – o retorno ao Paraíso – é apenas uma teoria, válida como qualquer outra.


10, jan, 2023
263 –UM TEMPO A DOIS TEMPOS (como os motociclos)

05h33, 3ª feira, 10/01/2023
Já se passaram 10 dias sobre o falecimento do Ano Velho? É incrível como Chronos é impiedoso!

A propósito desse mito sobre o Tempo, encontrei um site que contém, num texto que transcrevo abaixo, explicação assaz interessante sobre Chronos e outro deus que também é do tempo, mas não do cronológico: Kairós.

Faço-o com a devida reverência aos criadores, não me esquecendo de referir o site onde se encontra, pois não quero ser acusado de plágio ou de apropriação de direitos de autor.
No entanto, está conotado como inseguro, havendo sempre algum risco ao aceder-lhe e não quero ter pesos de consciência se alguém tiver problemas ao consultá-lo; quem o fizer, será por sua conta e risco: http://www.ciclosararas.com.br/textos/ler.php?id=12


Chronos e Kairós, mitos sobre o tempo

Autor: Alexandre Rampin
Psicólogo Clínico

Neste texto, Alexandre apresenta elementos de dois mitos gregos para convidar-nos a refletir sobre o tempo. O Tempo Chronos, cronológico, que não perdoa e nos devora. O Tempo Kairós que diz respeito ao tempo contemplativo, ao momento oportuno. Dentro de nossa sensação de "o tempo voa", "não dá tempo..." um aviso importante: o dia continua com 24 horas... o tempo passa por nós na mesma cadência! Seríamos nós quem passamos por ele aceleradamente? Aprecie o mito e continue refletindo sobre isto!

Boa Leitura!
Daniela Favaro

DOIS TEMPOS: CHRONOS E KAIRÓS
Cada civilização teve sua própria experiência com o tempo. Os gregos, por exemplo, nos transmitiram essa experiência por meio do mito de Chronos (ou Cronos) e Kairós, deuses do tempo. O mito é uma história que, longe de ser fantasiosa, pretende explicar o mundo e o homem por meio de imagens simbólicas que escondem uma realidade profunda. Por isso, antes de ser inteligido, o mito precisa ser sentido. Para compreendê-lo é necessário transcender as aparências e buscar a verdade que nele se esconde. A história de Chronos e Kairós, narrada antes da Era Cristã, é capaz de elucidar sobre como nos relacionamos com o tempo na atualidade.

Chronos é o deus do tempo quantificado, que se pode medir. É o tempo corrente, rotineiro, ordenado pelo relógio, onde um minuto é igual ao outro, onde às horas sucedem-se os dias e a estes os meses e os anos. Representado como um velho tirano e cheio de crueldade, Chronos controlava o tempo desde o nascimento até a morte. Ele ditava aos mortais o que deveria ser realizado. Do nome desse deus se deriva a palavra cronômetro que designa o instrumento para se medir o tempo. Portanto, quando falamos de Chronos estamos fazendo menção ao tempo cronológico, do calendário.

No mito, Chronos emasculou o próprio pai com a intenção de se apoderar do mundo. Mais tarde, como Senhor do Tempo, ele devora seus próprios filhos para continuar soberano. Tal imagem nos sugere que o tempo cronológico passa sem que possamos detê-lo e que ele aniquila tudo o que produz. Nada dura para sempre no mundo, nada se pode conservar e a única permanência é a impermanência. Assim, tudo o que é conquistado no tempo Chronos não tem valor eterno.

Na contemporaneidade facilmente percebemos o quanto Chronos amedronta e impera, implacável. Muitos são escravizados por esse deus e acabam devorados. Vivem sob o julgo das datas, dos prazos, da idade que avança impiedosamente, experimentando ascensões e declínios. Tentam dominar Chronos, mas acabam dominados por ele. Mais "mecanizados" buscam cumprir ritmos e metas para além da condição humana e invariavelmente se infelicitam.

Mas ao lado de Chronos está Kairós, o deus da oportunidade, do momento adequado, oportuno. Retratado como um jovem calvo com apenas um cacho de cabelos na testa, ele tinha uma agilidade sem igual, possuindo asas nos ombros e calcanhares. Kairós corria rapidamente e só era possível detê-lo agarrando-o pelos cabelos, encarando-o de frente. Porém, depois que ele passava, era impossível trazê-lo de volta. Devido à sua agilidade podia não ser percebido pelo observador desatento. Isso quer dizer que quando Kairós surge diante de cada um de nós como a ocasião adequada de fazer o que é certo na hora certa, devemos agarrar e trabalhar essa oportunidade - pois caso ela nos escape - não voltará. Dessa forma, precisamos nos tornar atentos observadores das oportunidades cotidianas.

Kairós é o tempo que não pertence a Chronos, portanto, não pode ser cronometrado. Ele simplesmente acontece, sem previsibilidade ou hora marcada. São aqueles momentos que se tornam eternos em nossa vida, mesmo que tenham sido breves. Um tempo interno e essencial que deixa uma impressão forte e única, para sempre, e que sustenta nossos passos na estrada existencial. Em Kairós somos humanos, vivemos e não apenas sobrevivemos!

Os gregos tinham convicção de que com Kairós podiam enfrentar Chronos. Ao vivermos em Kairós as oportunidades em nossa vida aumentam, pois não nos deixamos tiranizar por Chronos: temos a consciência do momento presente, sem os fardos do passado ou a antecipação do futuro, quando podemos ver a oportunidade e agarrá-la, nos posicionando por meio da melhor ação possível no momento. E, de acordo com Anselm Grün, "a maior oportunidade é a vida mesma, pela qual passamos quando tão somente planejamos e pensamos, em vez de vivermos".

O tempo Kairós nos convida ao despojamento da exagerada e doentia cronologicidade para vivermos com mais leveza e autenticidade. É fato que não podemos nos desvincular completamente de Chronos, afinal, o tempo cronológico organiza a vida, mas devemos buscar um equilíbrio entre Chronos e Kairós, conforme destaca Grün: "Ambos os deuses, Chronos e Kairós, no relacionamento correto, pertencem a uma vida plena. Sem planejamento e sem regulamentações temporais não pode surgir nenhuma cultura. A convivência na vida profissional, bem como social e religiosa, está ligada ao tempo mensurável, matemático. Este deveria estar numa sadia relação de tensão com a vida no instante, com o experimentar, o usufruir, o reconhecer oportunidades e ocasiões".

Absolutamente nada acontece no passado ou no futuro. Tudo se dá no presente, no agora, nesse fugaz instante. Cada momento é pleno de vida, trazendo a possibilidade de compreensão, crescimento e amadurecimento. Experimentamos Kairós quando estamos em harmonia conosco mesmos, sem o peso exagerado de Chronos, na medida certa, cadenciando com a vida como ela é.


08, jan, 2023

262 - A impossível possibilidade de protelar o improtelável
21h42, Hospital da Prelada, 02/01/2023

Após uma pequena operação que, embora expondo assim a minha privacidade, não exponho privacidade nenhuma que interesse seja a quem for, visto não ser nenhuma “celebridade” – o que acho que é um epíteto estúpido e mesmo incómodo, que só alimenta leitores da “Maria” e quejandos que não têm mais nada que fazer senão falar da vida dos outros – encontro-me em banho-maria de pós-operatório até amanhã.

Pois bem, estando eu agora “posto em sossego, da idade colhendo amargo fruto”, como poderia ter dito Camões se fosse vivo e me conhecesse, ou em “Leito do Desassossego”, se a mesma circunstância se passasse com Pessoa, e tendo já esgotado a capacidade de me entediar mais, escrevo.

Sobre o quê? Sobre nada e sobre tudo, como de costume, sobre o que me vem à cabeça, esperando que ela me forneça um argumento lógico (ou nem por isso) para começar o que já comecei: escrever.

Surgiu-me o tema “testamento e procrastinação” porque estou num hospital, e quando estou num hospital lembro-me sempre – embora tardiamente - de que um dia, algures numa circunstância similar, poder-me-ão vir buscar, não num táxi ou Uber mas noutro meio de transporte que eventualmente só se usa uma única vez e que será a última oportunidade que terei para fazer uma viagem.

Começa aqui a segunda parte do mote (a procrastinação) a fazer sentido.
Se simplesmente nos lembrarmos de, gastando um pouco do nosso tempo, e após uma evidente reflexão consciente sobre o destino que queremos dar aos nossos poucos ou muitos haveres e sobre as observações ou conselhos que gostaríamos de legar aos que nos sobreviverão e nos são queridos, evitaríamos, não apenas os habituais e morosos procedimentos legais mas, outrossim, mal-entendidos, palavras por dizer, evitar que os que ficam andem às aranhas por não conhecer da nossa vida nem do nosso legado a metade. Tudo isso passa por informações, códigos e passwords de coisas talvez importantes ou não e que eles então terão o livre arbítrio de aproveitar ou apagar.

Para mim é triste deixar para os outros um mundo incompleto onde a informação de mim se esfumará mais rapidamente se houver desconhecimento dos comos, quês e porquês.

E os meus livros? quem os vai respeitar, ou desprezar como coisas volumosas e inúteis? E tudo o resto que será acarinhado, ou desbaratado, quiçá sem conhecimento consciente da sua utilidade ou valor?

Ninguém conhece o lugar que todas essas coisas tiveram no nosso coração, nem porquê. Felizmente, depois da morte não podemos morrer de desgosto, nem pedir que preservem a nossa memória palpável, física. Isso está nas mãos dos que ficam.

Escondendo a triste realidade está o tapume da fantasia, alguém disse. Assim é connosco: fingimos ser eternos, sabendo que mais dia menos dia deixaremos o nosso actual estado de existência, sem data fixa nem pré-aviso; é essa a nossa fantasia.
É como fugirmos, é como termos medo, não nos preocuparmos com o nosso futuro que, afinal, influencia o futuro dos outros. É excesso de auto-confiança, também.

Infelizmente também, o que escrevemos agora estará amanhã esquecido e o protelamento irá, quase de certeza, produzir-se. Tão certo como eu não ter existido em 1956 (nasci em 1957, mas no fim do ano anterior eu já existia como embrião).


15, dezembro, 2022
261 - De como a escuridão é, por vezes, a Luz

15/12/2022, 5ª feira, 05h29
É estranho pensar que tanto eu como os membros da minha geração, a família, os irmãos as esposas, os cunhados, os amigos e milhões de outros seres humanos para nós totalmente desconhecidos e até insuspeitados, nos vamos lenta e quase imperceptívelmente embrenhando numa penumbra, prenúncio de uma escuridão eminente mas de chegada imprevisível, a qual dita o fim da nossa estadia no actual plano físico, ou seja, o fim da vida, seja ele natural ou não, pouco importa. Oposto ao que sucede quando nascemos - pois não viemos de uma penumbra – em que surgimos de uma escuridão para uma luz radiante, esta situação, este percurso indistinto, afigura-se-nos como um retorno às origens da Vida, que não conseguimos definir se será o Caos Original ou o Apocalipse (este no seu verdadeiro significado: Revelação), onde este negrume aparente se nos poderá apresentar como uma nova e, quem sabe, talvez a verdadeira luz.
Nós, os humanos, somos um pouco como os gatos: à medida que a luz escasseia, as pupilas dilatam-se e deixam-nos adaptar ao ocaso. E, ao fazê-lo, deixamos de o temer tanto. Os velhos - pelo que conheço, grande parte deles - não temem a morte porque a sua visão espiritual se vai progressivamente ampliando, mesmo qua a visão física possa diminuir ou mesmo desaparecer. Neste contexto, nós nascemos cegos e vamos adquirindo pouco a pouco a visão, desligando-nos gradualmente da materialidade e começando a ver essa transição natural por outro prisma, aceitando-a mais, quiçá prevendo um futuro que, afinal, nos é familiar desde o início dos tempos.
Os ciclos do nascimento e da morte sempre nos acompanharam e eram, primordialmente, acolhidos com naturalidade. Foram as religiões – pelo menos, algumas – que ditaram o medo da morte, ao infligir castigos, penas eternas, suplícios impossíveis a quem não seguisse as regras ditadas por cada um dos deuses de cada uma desses cultos. Embora a intenção tivesse sido boa, pois inculcava uma certa moralidade ou, se preferirmos, determinadas normas de conduta numa humanidade muito ligada aos instintos animais básicos, talvez tenha feito mais mal do que bem ao tecer elegias à vida e glorificado tanto a morte, adoptando-a como, simultaneamente, fulcro, objectivo e assombração de toda a existência.


05,dez,2022
260 - Lembra-te ó homem que és pó

05/12/2022, 2ª feira, 05h04
Quando os lobos uivam, disfarçados de vento, e as aves raspam as suas asas na tempestade, os humanos recolhem aos seus lares para se protegerem das investidas furiosas e terríficas da Natureza , quais Naendertais ou Cromagnons assustados que se apressuravam a recolher aos seus abrigos ou cavernas, tementes de acontecimentos que, muito mais tarde, milhares de anos mais tarde, se apodariam de apocalípticos, e que eles não compreendiam e começavam a associar a entidades sobrenaturais, como deuses ou demónios.
Após o rescaldo do meteorológico acontecimento, quando a calmaria de pospõe à borrasca, o espírito, descarregado da lesiva estática que sobrecarrega a mente e influencia os humores, perde-se em contemplações bucólicas, pastoris, calmas e meditativas. Aí, contemplando os longínquos montes que o circundam (estou a falar de zonas minimamente montanhosas), tenta imaginar como, durante centenas de milhares de anos, desde que o ser pensante que nós (às vezes) somos, povoa a Terra, estes homens ou hominídeos ainda a habitam também, desfeitos em pó e húmus, como prova (im)palpável do sucesso da Lei de Lavoisier. Vidas terminadas por guerras, lutas passionais ou de sobrevivência, consequências da lei do mais forte herdada da animalidade que ainda possuímos, por lutas com animais, acidentes, doenças ou velhice.
De quantos restos estamos rodeados, quantos serão ainda remotos adubos dos vegetais que comemos? Milhões, incontáveis milhões! Não haverá grande margem de erro, pois o espaço temporal e territorial é suficientemente alargado para que muitas dessas formigas humanas de antanho tenham perecido aqui, neste espaço enorme que abarcamos com os nossos olhos, também eles, como nós, futuro adubo residual da fruta de alguém.
Não estou a tentar ser tétrico, gótico ou com a intenção de enojar ou aterrorizar ninguém, não; limito-me a constatar uma realidade ou, no mínimo, uma hipótese muito plausível e que nos leva para outras interessantes conclusões: nada somos, apenas adubo para os vindouros. De nós não restará nem a recordação do nome. E se um dia, nesse porvir longínquo, alguém nos encontrar, seremos apenas vagos ossos sem nome, sem história, sem família, sem pátria; só ossos. Mesmo que tenhamos sido muito importantes, o tempo apagará tudo.
Será que aquela pequena lasca de osso que está no museu tal pertenceu ao ser que inventou a roda? Não sabemos. Mas também já não tem interesse, está sem contexto e sem nome, é só uma lasca de osso. Assim nós também o seremos um dia.
A história é feita de vaidades humanas, de ossos sem nome. Ou de nomes sem ossos; ou de ambos.
Ponhamo-nos no lugar desses nomes ou desses ossos, ou de ambos; de que vale isso para nós? Não nos podemos nomear ou apontar para os nossos ossos e dizer: Este fui eu!

Vão orgulho e vã glória!


30. nov, 2022
259 - Por vezes, as árvores velhas dão melhores frutos

05h31, 30/11/22, 4ª feira
Surgiu-me há dias – saído do nada, como sempre - em momento de divagação livre de preocupações, num jackkerouaquismo sem destino nem origem e produto ou consequência de um estado de pré-sono (direi mesmo de pré-subconsciência), uma ideia, ou conceito, ou teoria, sobre o que se passa na mente de um ancião recém-nascido como eu. Afinal, já pertenço a essa apelidada de faixa da sociedade que é ainda um misto de homem feito, homem maduro e idoso em formação.
Falo, evidentemente, da classificação etária ocidental que, como qualquer outra, não passa de uma convenção e faz-nos acreditar de corpo e alma que estamos a ficar tramados. E essa noção de vetustez entranha-se-nos e esgota-nos mais intensamente do que a própria realidade, convencendo-nos de que o prazo de validade está a chegar ao limite e já nada vale a pena porque todos os nossos eventuais projectos ficarão inevitavelmente inacabados.
No entanto, já tivemos projectos anteriormente e terminámo-los – convencidos de que teríamos muito tempo para o fazer. Mas... E se tivéssemos perecido por uma qualquer doença, ou tivéssemos ficado esmagados num acidente, num terramoto, ou nos tivesse caído um meteorito em cima que nem a alma se nos aproveitasse (claro que seria uma hipótese remotíssima, mas indubitavelmente possível), ou afogados no mar ou numa inundação, ou até electrocutados? Esses projectos que tivemos e conseguimos concluír nunca se teriam concretizado, apesar da tal certeza de que teríamos pela frente uma vida de que, afinal, não chegámos a usufruir.
Portanto, não vale a pena ter medo de obras inacabadas, de pretextos para dar uma reforma antecipada a um corpo e uma mente que ainda poderão ter muito para dar. Quando o corpo já não consegue, por desgaste, cumprir com as suas funcionalidades normais, o intelecto tem mais condições para brilhar, pois as energias são reencaminhadas e não perdidas. Isto se, evidentemente, estivermos dispostos a não desistir tão facilmente logo ao primeiro revés.


23. nov, 2022
258 - Sou Master; qual é o meu mester? Porteiro.

23/11/2023, 04h01, 4ª feira
Concluí ontem a minha prova de atribuição de grau! Sou oficialmente mestre!
Foram 6 anos de esforço, de sacrifício e de noites sem dormir (bem, eu trabalho de noite).
Mas passemos adiante, pois não quero que a minha vaidade natural de humano corrompa a enorme humildade que possuo nem o secretismo com que castamente guardo as minhas conquistas (digo eu hipocritamente, a rebentar de orgulho por todos os cantos).
Na verdade, na verdade verdadeira, fico satisfeito, como é lógico, mas não faço disto, nem grande alarde nem, pelo contrário, segredo. Fiz o que fiz, estou contente, mas passo adiante. Como habitual, salvei uma cópia do texto na página de consulta aberta “Tributos Culturais”.


2. nov, 2022
257 - A perenal incerteza de um futuro finito

03h55, 4ª feira, 02/11
Não sou gerontólogo nem geriartra, mas estou preocupado com a minha “gerontolice”, um neologismo que acabei de inventar e que significa, mais ou menos, o estado de pré-pós-vida onde a prevenção, os cuidados paliativos (diria paleolíticos) e a qualidade de moribundice são uma necessidade premente de cada ser humano. Fiz-me entender?
Numa etapa avançada da nossa existência em que vemos os nossos coabitantes terrenos circundantes a caírem como tordos a cada dia que passa, torna-se um pouco e cada vez mais deprimente pensarmos que alguém, provavelmente, estará a pensar o mesmo e a fazer despique connosco para ver quem consegue ver primeiro o outro com os pés (e o resto do corpo) na cova ou hipergrelhado. Não que depois nos incomodemos com isso, mas agora torna-se uma sensação desagradável, da qual tentamos inelutavelmente fugir.
Não vale de nada; vamos todos para LÁ, seja onde esse lá for.
E até pode ser muito bom e se soubéssemos até nos esforçaríamos por ir mais cedo, mas os apegos à terra e às pessoas, à família, fazem-nos recuar, espernear, fazer birra e lutar com quantas forças temos para nos mantermos aqui eternamente. Será o Nada de alguns filósofos, será o Paraíso (ou a Danação) dos teólogos, ou nada disso, ou um pouco disso tudo, ou algo de que nem sequer suspeitamos ou de que não estamos preparados para suspeitar?
Digo socraticamente que só sei que nada sei, e essa é a minha única certeza. E por isto tudo e apesar disto tudo, continuo a preocupar-me. Não que seja algo obsessivo, coisa que esteja permanentemente no meu pensamento; penso nela com aquela preocupação indefinidamente longínqua de quem não sabe o que vai suceder no minuto seguinte e vive como quem tem de viver com a consciência dessa fugaz perenidade.


12. out, 2022
256 - A veia secou ou será só um trombo?

4ª feira, 12/10, 04h11
Após mais um pequeno período de hibernação na escrita, volto à carga com um breve texto, numa ainda vã tentativa de elaborar algo com um mínimo de valor lisível, mas infelizmente apenas consigo espremer umas tímidas gotas do conteúdo mirrado da minha veia literária, se é que ela existe. Necessito de me alimentar com mais leituras, de beber nas fontes do Saber e tentar, tentar, tentar sem descanso nem esmorecimento.
Pobre de mim, suspeito que vivo numa utopia improvável (para não dizer impossível, porque não há impossíveis), num sonho mirífico de que não quero acordar...
Pronto, já extravasei um pouco de escrevinhação pretensiosamente poética ou nem isso, e estou pronto para voltar à carga.
Mas de que carga estou a falar? Ao que é que me pretendo referir? Não faço a mínima ideia!
Há dias (neste caso, noites) em que inicio um texto com a intenção de desenvolver um qualquer raciocínio lógico, algo interessante que vá surgindo ao correr da pena e de cuja legibilidade e coerência me possa orgulhar ou, pelo menos, não me envergonhar. E depois.... Nada. É frustrante!
Tenho saudades daqueles relatos incipientes, daqueles poemas, daquelas histórias ingénuas que eu costumava escrever há alguns anos. Que sucedeu, por que não as consigo escrever agora? Será aterosclerose literária? (ou degenerescência mental?)


2. out, 2022
 255 -To be or not to be (a writer) that is the question

03h58, d0mingo,02/10/22
Eis-me de volta após um intervalo excessivamente longo, contra o que é meu costume. Tive um mês um pouco atarefado e do qual não vou falar, para não passar a vida a falar sempre do mesmo tema: eu. Portanto, e para mudar de tema, foi falar de mim.
Como não iria suportar estar parado durante um ano inteiro sem nada fazer, e embora ainda não tenha defendido a minha dissertação de metrado, matriculei-me num curso de línguas bianual: latim, a iniciar no fim deste mês, já com o ciclo de estudos anterior concluído.
Não é inocente esta referência ao latim, visto que é através de um livro de cultura romana que estou a ler e que faz parte da bibliografia da disciplina, que retorno ao mote do ser ou não ser escritor. Encontrei uma frase nesta obra que vem mesmo a calhar, diz tudo aquilo que eu tenho medo de adivinhar, ou antes, que no fundo já sei, mas finjo ignorar. Trata-se do extrato de uma obra de Cícero (106 – 43 a.C.) – Tusculanas 1.3.5-6; é uma reflexão sobre o pouco interesse dos romanos no estudo e difusão da filosofia (à época). Embora pareça desfasado do meu propósito expositivo, a última parte desta citação explica o porquê da minha escolha.
Sem mais delongas, aqui vai:

  A filosofia esteve abandonada até ao nosso tempo, sem ter qualquer brilho nas letras latinas; somos nós que temos de a iluminar e despertar, a fim de que, se alguma utilidade tivemos para os nossos concidadãos quando estávamos ao serviço, a tenhamos também, se possível, na inactividade. E tanto mais devemos esforçar-nos nesse sentido, quanto é certo que consta haver já muitos livros latinos escritos impensadamente por pessoas sem dúvida excelentes, mas não suficientemente cultas. Pode muito bem acontecer que alguém pense bem, mas não seja capaz de exprimir com correcção aquilo que pensa; mas isto de uma pessoa pôr por escrito as suas reflexões, quando não sabe dar-lhes ordem nem brilho, nem aliciar o leitor com um certo encanto, é de quem abusa desmedidamente do vagar que tem e das letras.

(CÍCERO, citado por (Maria Helena da Rocha Pereira in Estudos de História da Cultura Clássica/ II Volume – Cultura Romana, 2002. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian).

Pois aqui está o grande Cícero a atirar mais uma acha para a fogueira que arde sob os meus pés! Virei a ser algum dia um escritor ou não passarei de um sucedâneo de fraca qualidade? Receio ter a capacidade de dar uma resposta sincera, mas o meu amor-próprio proíbe-mo. No entanto, estou plenamente convencido de que se estão a criar as condições para que, daqui a mais duas ou três reencarnações, me torne num dos mais importantes escritores dessa época vindoura. Esperemos para ver (mas podemos esperar sentados porque não viveremos o suficiente para o testemunhar).


10. set, 2022
 254 - To be or not to be (dead or alive) that is the question

Sábado, 10/09, 15h17
 Segunda-feira volto ao trabalho, talvez pela penúltima reentré laboral após o período normal de férias a que tenho direito, pois conto reformar-me no fim do próximo ano. É claro que, como toda a gente, falo nas próximas férias e no próximo ano como uma premonição, como se tivesse a certeza de que estarei vivo, ou pelo menos mentalmente são e consciente, nesse período de um futuro próximo que não consigo antever. Mas os humanos são assim, fazem sempre planos para um porvir incerto, acabando sempre por deixar algo por fazer, como se a sua eternidade particular lhes permitisse terminar tudo aquilo que começaram.
Entretanto, resta-me aguardar pelo meu próprio testemunho, se ainda estiver vivo, ou pelo testemunho dos outros, se eu já tiver feito a passagem. Mas, no último caso, já não me interessará absolutamente nada. Tudo é efémero e o passado só faz sentido aos vivos, e nem sempre.
Num futuro obscuro, teremos partido para a derradeira viagem (será?) e o que vivemos e fizemos pouco perdurará na memória dos que ficam, e quando eles também desaparecerem, cada vez ficará menos de nós. A não ser que façamos parte da História, o que não é o meu caso, e mesmo que isso suceda, a História também não é eterna e também pode ser apagada. Ao fim de alguns evos, uma rocha transforma-se em pó ou em átomos, e nada resta de relevante.
Parece que voltei ao meu velho existencialismo, à minha tendência para ver o mundo pelo Dark Side, mas não é tanto assim; afinal sou apenas realista, e esses não são muito bem vistos porque veem a vida como ela deve ser vista: sem filtros, sem mentiras, sem cosmética. Só vemos rosas pelo nosso caminho e fingimos não nos apercebermos dos espinhos que calcamos sob os nossos pés nus.
Mas chega por hoje; vou retornar ao emprego e não quero entrar com estas visões tão... realistas. Vou fingir que nada se passa e que a vida é um sonho cor-de-rosa.
(P.S.: isto devem ser efeitos provocados pela morte da rainha).


28. ago, 2022
 253 - To be or not to be (able to read), that is the question.

15h05, domingo, 28/08/22
Eu, como escritor que finjo ser, assumo-me como escritor que não sou.
Esta frase que escrevi acima é o resumo daquilo que penso de mim e das minhas pretensões de escrita; mantenho a esperança na crença de que uma mentira muitas vezes reiterada acabe por tornar-se verdade. No entanto, escrevo porque gosto de escrever, porque gosto de ler o que escrevo e porque quero melhorar a minha performance como aprendiz de feiticeiro das palavras. Portanto, somo aos meus assumidos defeitos o de narcisista textual.
É verdade. Gosto de ler e reler os meus textos, fruir deles o que considero bom e deplorar aquilo que vejo ou julgo ver de fraca qualidade. Mas não mudo uma linha dos escritos pretéritos; acho uma traição a quem me lê e a mim próprio, uma intervenção plástica àquilo que é como é, que nasceu assim e assim deve permanecer, para o bem e para o mal. Nenhum escritor publica um livro e corrige-o depois; o máximo que pode ou deve fazer é, na próxima edição, acrescentar umas notas, retratar-se ou explicar o sentido do texto visado. E ficar por aí.
Estive hoje na Feira do Livro do Porto. Inevitavelmente, comprei alguns — aqueles que lerei quando tiver tempo, nos dias de descanso, na praia, quando me reformar. Há muitos anos (desde sempre) que preparo uma vida pós-laboral que talvez nunca tenha oportunidade de viver, que talvez já não tenha paciência para viver. É por demais evidente que sei que nunca terei capacidade mental, temporal e física de ler tudo aquilo que compro, todo o livro que desejo ler; sei também que é uma reação inconsciente à frustração sofrida por mais de três décadas de falta de autoinvestimento cultural, não importa a rezão.
Sou um profeta de mim próprio, um Oráculo de Delfos particular que já lamenta a dispersão da sua pequena Biblioteca de Alexandria após a dissolução do corpo que o alberga. Hélas!


21. ago, 2022
 252 - Há sempre um bocadinho de imortalidade efémera em cada um de nós

03h21, domingo, 21/08/2022
Hoje é um dia especial para mim. Aliás, para mim e para a minha “cônjuja” (feminino de cônjuge, que não existe) pois fazemos 40 anos de casamento e, simultaneamente, 45 anos, seis meses e catorze dias de assunção de namoro; tudo isto, uma gota de água no oceano da vida.
Já fomos novos, cheios de energia, vitalidade e sonhos. Agora somos quase velhos, cansados, e com o corpo e a alma cheios das nódoas negras da existência.
Viver é assim, nós é que não sabíamos, nenhum jovem o sabe mas, com o tempo, os sonhos vão-se esvanecendo, enquanto a realidade amolece-nos e cansa-nos o corpo e, inversamente, endurece-nos o espírito. Mas, de facto, a vida não é assim tão má e dá-nos algumas alegrias. É evidente que temos também muitos dissabores; no entanto, as belas rosas, sem os espinhos, perderiam o interesse e a beleza por serem demasiado fáceis de colher.
Um dia, infelizmente, esta união será quebrada, desfeita; no entanto, teremos de continuar por tempo incerto, tendo agora por companheiras a mágoa e a incompletude, para as quais não estamos nunca preparados; fica-nos contudo a nostalgia dos bons momentos e o conforto daqueles que demos ao Mundo e a quem demos o Mundo. E um dia também partiremos e deixaremos mágoas, dando seguimento a um ciclo de evos no passado e, certamente, perdurabilidade no futuro.
Cá bem no fundo, – não o sabemos –, mas temos o secreto prazer da propagação da espécie.
Que venham mais quarenta!


17. ago, 2022
 251 - Os deuses e as supostas leis que os homens dizem que eles ditaram

17/08/22, 04h48, 4ª feira
Quando iniciei este autodenominado pseudoblog, no último terço de 2012, estava a ler As Negras Costas do Tempo, de Javier Marías. Passaram 10 anos e já não me lembro da história, mas lembro-me do nome e do acto de leitura, e isso confunde-me. A maioria das vezes a minha memória atraiçoa-me; mas, no entanto, recordo o que li há tanto tempo. Que estranho!
 Agora estou a ler Grimus – um livro de Salman Rushdie. Curiosamente, comecei a lê-lo uns escassos dias antes da tentativa de assassinato do autor, e curiosamente também, poucos dias após eu ter escrito um comentário sobre as religiões e os fanatismos.
Esta tentativa é a prova de que tal tipo de fé cega e irracional nada traz de bom; o perpetrante tem 27 anos e a fatwa foi decretada 6 anos antes do seu nascimento, há 33 anos. Eis um homem que nunca leu Os Versículos Satânicos porque lhe é proibido e, no entanto, ajuizou(?) que devia ter feito o que fez porque lhe foi transmitido por um dirigente do seu credo – Khomeini – aliás, já falecido.
Dogma, verdade incontestável, lei que é transmitida por “eleitos” que representam a vontade de Deus na Terra.
Deus não fala ao ouvido dos seus representantes (eleitos pelos homens), ainda por cima para mandar matar seja quem for; Deus não necessita de instrumentos para fazer “justiça”, pois é, supostamente, omnipotente. Deus perdoa.
De outro modo, se perdoamos a alguém que nos tenha agravado, estamos a arrogar-nos superiores à divindade e, pala mesma ordem de ideias, devemos ser castigados. Assim, quando somos benevolentes, estamos a infringir o código de conduta da divindade, que é, pelos vistos, a vingança, o olho-por-olho, a intolerância e a guerra.
Que noção é esta de um deus? Não me parece muito justo premiar assassinos, seja a que pretexto for.
Infelizmente, há muitos letrados de corpo que continuam analfabetos de espírito.


9. ago, 2022
 250 - Deus e a morte ou a premissa de Nietzsche

05h19, 3ª feira, 08/08/22
Ontem morreu a poetisa e escritora Ana Luísa Amaral. De cancro. Conheci-a através da Faculdade, chegou a estar online numa aula de literatura em tempos de pandemia.
Qualquer pessoa que conheçamos, dá-nos pena vê-la partir; é mais uma referência de vida apagada, mas não necessariamente esquecida. Nós também seremos referência para alguns, poucos, mas seremos. Não significa necessariamente que seja por boas razões, mas lembrar-nos-ão após o nosso passamento durante um período variável; depende por quem e depende porquê.
Não somos menos importantes do que qualquer outra pessoa que desaparece; seremos recordados pelo exemplo ou pela falta dele, que legámos ao mundo ou, simplesmente, porque não fomos reconhecidos ou porque optámos pelo anonimato, não seremos mencionados. Sabe bem a glória, a notoriedade, mas de nada nos serve após a morte, pois não estamos cá para colher os louros (ou os insultos, depende dos casos, como já disse). Ou, numa frase atribuída a Harry B. King, “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. Seja como for, gostamos que nos escovem o Ego.
E que mal tem isso? Não será por aí que iremos para o Inferno (hipótese para crentes), apenas melhoramos um pouco a nossa autoestima, está-nos no sangue. Até as crianças, mal começam a ter um mínimo de entendimento, ficam todas vaidosas por serem congratuladas por algo que tenham feito bem.
Infelizmente ou felizmente, é tudo transitório; nem as pedras mais duras resistem ao passar do tempo, mesmo elas se transformarão em pó algures num futuro talvez distante.
Que é feito dos temerários guerreiros de antanho? Que é feito desses para quem a morte era muito inferior à honra e à valentia? Que é feito desses que não temiam o esqueleto com a gadanha, antes o esperavam como recompensa dos seus feitos gloriosos? Hoje somos uns coitadinhos que temem tanto a morte que, por vezes, se suicidam por não poderem suportar a ideia da sua vinda.
Aqui, estou tentado a atribuir as culpas às crenças religiosas, especialmente as cristãs, pois incutiram, desde há dois milénios, o medo da morte, do que nos espera no além, do Inferno. Outras religiões como, por exemplo, a muçulmana, a hindu, os budistas, encaram o passamento com naturalidade, como uma forma de desenvolvimento do espírito, como prémio ou com um tranquilo fatalismo de quem sabe que, mais tarde ou mais cedo, temos de ir, de partir para outra vida, largarmos tudo aquilo a que nós apegámos demasiado, ficarmos livres das grilhetas da carne.
Cabe agora fazer uma ressalva: não sou anticristão ou anti qualquer outra religião; todas têm os seus pontos bons e os seus pontos maus, entre os quais figura a crença fanática de que são a única religião verdadeira. Esse é o pomo da discórdia que estraga as relações entre os povos, esse é o espinho cravado na carne da Humanidade e causador de incontáveis milhões de mortos através dos tempos, em guerras fratricidas, para impor pela destruição de pessoas e bens a aceitação incondicional de um Deus Verdadeiro.
Como?! Todo o deus fabricado que faz a guerra não pode ser um verdadeiro Deus, ou não destruiria cruelmente as suas criações! Os proclamados “infiéis” e “pagãos” só existem na cabeça de quem os criou, e de certeza que não foi na de Deus.
Não vale a pena mais argumentos, pois quem é fanático não os aceitará nunca, fechará os olhos e tapará os ouvidos a quaisquer raciocínios, por mais incontestáveis que sejam.
Sou apenas agnóstico, como já tive oportunidade de escrever no passado; acredito na existência de algo, uma Inteligência, um Grande Arquiteto – como alguns lhe chamam, que ordena e coordena tudo o que se passa no Universo, mas nada impõe, nada exige (no fundo, podemos chamá-Lo de Deus). Cabe aos seres humanos, individualmente, mas cada vez mais como comunidade, agirem para o bem comum, até que, cada um a seu ritmo, se integre finalmente no Uno.
Deus não necessita de polícias, de soldados, de torcionários, de influenciadores; todos esses foram criados pela humanidade a suposto mando d’Ele, e para benefício de alguns.
Nota: as referências à divindade foram todas escritas em letra grande, numa demonstração de respeito para quem crê, e para quem crê no Bem, seja em que religião for; os outros não merecem o meu respeito.


4. ago, 2022
 249 - Será que sou perfeito e não sabia?

04/08/2022, 04h22,5ª feira
Ainda bem que não fui rico. Quero dizer, ainda bem que não nasci num berço de ouro e não cresci rodeado de tudo o necessário, obtido sem esforço. Nasci, sim, numa família economicamente decadente, o que me deu a noção do que era ter-se sido rico. Nunca disso beneficiei, embora nunca me tivesse faltado o essencial; digamos que era um remediado remediado, por vezes quase a cair na escala imediatamente inferior.
Agora, quem me dera ser rico, ou, pelo menos, um rico remediado. Estou quase na idade da reforma e não vislumbro muitas perspetivas de um futuro confortável. Mas, com a ajuda de Deus (sou agnóstico), as coisas compor-se-ão.
Desviei-me do assunto: a razão do meu tema é o ter-se nascido rico e o que isso influi nos juízos que fazemos dos outros, na nossa capacidade de nos desenrascarmos, nas nossas possibilidades de podermos obter uma boa educação, um bom curso, um bom emprego. Como nunca passámos por necessidades – verdadeiras necessidades – a nossa visão do Mundo e dos Outros adultera-se, estreita-se, fica-se mais empedernido em relação àqueles que estão abaixo de nós na escala de poderio económico. Não necessitamos de lutar: os nossos pais já o fizeram por nós e a vida é um mar de rosas - até ao primeiro grande tombo. A partir dai, há duas opções: ou abrimos os olhos e começamos a usar o que temos, mas está embotado, ou seja, a inteligência, a capacidade de pensar; ou não abrimos os olhos e continuamos até ao próximo grande tombo, que vai ser ainda mais doloroso que o primeiro, e as possibilidades de recuperação se vão tornando cada vez mais baixas.
É o que reparo na juventude abastada de hoje (e mesmo nos pais): vivem como se o amanhã fosse um produto garantido e não existisse nada com que nos pudéssemos nem devêssemos preocupar. Posso citar exemplos (às dezenas):
Todas as semanas guardo no armário objetos de uso pessoal que rarissimamente são reclamados. Desde brinquedos a toucas de banho, óculos de natação, bolas de couro, roupas, toalhas de banho, colunas de som portáteis fatos de banho, etc. Perdeu-se? Não faz mal, amanhã ou depois compra-se outro, nem vale a pena perguntar na portaria se alguém achou. Dá muito trabalho. Ou é irresponsabilidade. Ou muito dinheiro, se calhar, a mais. É a cultura do esbanjamento.
Desde sempre fui habituado a responsabilizar-me pelos meus pertences e a ter a noção de que as coisas não caem do céu: Perdeste? Paciência, não levas outro, abre os olhos. Estragaste? Não estragasses. Chama-se a isto juízo e economia, responsabilidade. Não vejo muito disso agora; vejo desperdício, despreocupação inconsciente, falta de preparação educativa.
O que será deles se um dia a vida lhes correr mal? Vão roubar, suicidam-se? Há quem o faça por menos.
Felizmente não nasci rico, mas continuo a acalentar a esperança de o vir a ser. Que a deusa Fortuna me ouça...


13. jul, 2022
 248 - O meu aniversário cisgénero

01h08, QUARTA-FEIRA, 13 DE JULHO DE 2022
Escrevi a data por extenso e em letra grande porque hoje é o meu aniversário, faço 65 anos. Não que fique particularmente contente por isso porque estou mais velho, menos saudável, menos “elástico” e, por consequência, menos capaz de fazer tudo o que a juventude me fornecia e que eu, como qualquer outro, estraguei em grande percentagem.
Mas, por outro lado, sinto-me contente por ter sobrevivido tanto e em tão “bom estado”; infelizmente, há muitos que não se podem vangloriar disso, ou porque estão mortos, ou porque estão física ou mentalmente diminuídos. Não lhe gabo a sorte.
No fundo, afinal, sinto-me feliz por estar aqui, apesar de todos os revezes da vida: tenho uma óptima família, uma vida económica minimamente remediada, a concretização de alguns sonhos; que posso mais desejar? Vida ideal, não é, como não é para ninguém, pois não há bela sem senão. As belas sem senão não passam de um mito – mas também quem as quer assim? A perfeição demasiada aborrece, tudo o que é recebido sem esforço ou defeito acaba por entediar.
 Salvaguardo agora, para @s puristas das classificações de género (ou agénero, ou whatever) que apenas estou a usar uma frase feita (a das belas), o que não reflecte a minha maneira de pensar. E se reflectisse? Certa ou errada, seria a minha maneira de pensar, talvez condicionada ou não por uma educação de género. Mas há quem tenha a pretenção de que a vida deve ser vista segundo uma óptica actual e/ou pessoal, nem sequer a tentando compreender à luz dos meus (e de muitos outros) tempos pretéritos. Daí surge o insulto e novas formas de preconceito. Para esses, convém que não esqueçais que o futuro também vos julgará e criticará.
P.S.: só faço anos às 03h30.


19. jun, 2022
 247 - Por vezes é preciso tomar banhos de sol nos miolos

20h35, sábado, 18 de junho, 2022
De novo frustradíssimo por causa de uma ideia que me escapou durante aquele tal período de “vigília adormecida”! Como de nada vale chorar sobre leite derramado, pois só salga e agua o leite, estragando-o, portanto. E quem é suficientemente parvo para fazer isso? Com que intuito? E com que estado de espírito — frustração, raiva, desgosto saudade, pena? A que ponto isso melhora o nosso Astral? Nada de nada, só estraga um bem essencial que faz falta a muita gente.
 Aborreço-me a olhar para o écran de vigilância que tenho perante mim: oito entradas de zonas habitacionais, dois de garagens, e mais seis que, por não estarem nem nunca terem estado activados, parecem o filme Branca de Neve (apresentado em 2000, pelo cineasta (?) João César Monteiro, falecido em 2003) e onde a acção se resume quase totalmente a um écran negro, com algumas palavras e murmúrios incompreensíveis à mistura, e que custou ao erário público 750 000€, dinheiro usado para estragar película e fazer também falta a muita gente. Ainda me recordo que, questionado sobre o que achava que pensaria o povo português sobre esta “aberração” fílmica, o realizador comentou delicadamente: “Eu quero que o povo português se f.....!” Mas, na minha opinião, isto foi arte... Arte de estragar dinheiro.
 Deixemo-nos de falar sobre coisas parvas e concentremo-nos em falar sobre outras coisas, se calhar, igualmente parvas, e inauguremos o resto do texto com a icónica frase dos Monty Python – And now, something completely diferent, - enquanto apresentavam algo completely the same.
De que vou falar? De autopiedade, de aborrecimento, de frustração, de tristeza, de raiva, de desencanto? É que, neste momento, de nada mais me apetece falar. Sinto-me indolentemente negativo, desmotivado. Razões, haverá muitas, mas não vou apontar nenhuma, nem sequer sei qual delas é a causa. Apenas me apetece escrever algo, a queixar-me de nada. Não estou propriamente depressivo, estou um grau acima na escala da negatividade, é só isso. E isso passa, hoje ou amanhã já não é nada e o sol volta a brilhar dentro da minha cabeça.
Sabem que mais? Sinto-me apenas muito cansado...


8. jun, 2022
 246 - Será que, a Pandora, lhe "saltou a tampa"?

03h02, 4ª feira, 08/06/22
No dia 26 pp, o Inominável bateu-me à porta; embora eu seja agnóstico, graças a Deus que foi apenas agora que tal sucedeu, porque no início da pandemia a virulência era mais violenta (perdoe-se a paronomásia). Já passou e sem grandes sintomas ou incómodos, salvo um pouco de febre, tosse, espirros e nariz entupido. Tal qual uma gripe.
Embora a ameaça paire ainda, nota-se um quase regresso a uma normalidade cautelosa, tacteante, como que a medo. É normal, a humanidade viu os casos mal-parados durante 2 anos e meio, sensivelmente. Agora a novidade é a guerra Rússia-Ucrânia e todos os olhares se voltaram para este conflito às portas da Europa e quase esqueceram tudo o resto.
Parece uma repetição da História: durante a Primeira Guerra Mundial, os olhares estavam virados para o desenrolar da guerra, as mentes estavam fixadas nos avanços e recuos bélicos das partes envolvidas; a Gripe Espanhola ( iniciada nos Estados Unidos), que matou muito mais do que a guerra (gripe - entre 50 a 100 milhões; Guerra – cerca de 20 milhões), estava em segundo plano, talvez devido às prioridades de uma sociedade ainda habituada às pestes que dizimaram milhões desde a Idade Média até aos primeiros alvores do século XX. A morte por doença era muito comum, a guerra em tão grande escala, era uma novidade e, por isso, assumiu tão grande importância e ocupava as bocas do Mundo.
Dá a impressão de que, desde o século passado, a Ciência abriu demasiado a tampa da caixa de Pandora, numa ânsia compreensível de desenvolvimento e conhecimento, mas sem tomar os cuidados devidos. A ciência está com pressa, demasiada pressa, e atropela todas as precauções; as ciências exatas estão-se a transformar em ciências incautas, e isso tem um preço a pagar. Esse preço somos nós, os seres humanos e, indissociavelmente, a Natureza. Ou vice-versa, pouco importa. Quanto mais tempo sobreviverá a vida na Terra? Que será necessário para inverter a tendência?


23. mai, 2022
 245 - Ideias e Blattodeas

06h39, domingo, 22/05/22
Cada vez identifico-me mais com a ideia de que, para escrever, é necessário silêncio, recolhimento, solidão.
Ontem dei dezenas de voltas na cama, a tentar dormir, e o único que consegui foi fazê-lo durante duas horas: entretanto, nesse estado semi-catatónico, o pensamento vagava, livre, despreocupado, longe da carga habitual de tráfego de ideias que é normal qualquer um ter durante o período de vigília e que se assemelha a uma autoestrada em hora de ponta: cada pensamento entalado entre incontáveis outros onde, pára-arranca aqui, buzinão acolá, não há fluidez, apenas uma catadupa de ideias que se atropelam umas às outras na ânsia de se sobreporem, de se fazerem ouvir ou, simplesmente, vazias de conteúdo, e que aparecem apenas para “meter nojo”.
Pois ontem a minha mente teve todo o tempo do mundo para pensar, criar e desenvolver raciocínios minimamente válidos, alguns bem merecedores de serem melhor explorados. Só que, nessas alturas de “vigília adormecida”, não podemos abandonar os pensamentos; eles são animaizinhos ariscos e assustadiços que fogem ao mais pequeno movimento. Assim, deixas-te sonhar, deixas desenvolver a ideia, na esperança de que, quando finalmente te moveres, ela não fique nublada ou desapareça, e tenhas tempo de a assentar num papel.
 Puro engano! Ao mais pequeno movimento, ao mais pequeno esforço de sair desse semi-torpor, eles fogem como baratas (Blattos, em latim) quando se acende a luz, e ficamos sem nada, apenas frustrados, porque sabemos que aquela ideia tinha pernas para andar, para desenvolver. Infelizmente, apercebemo-nos que, quando voltamos ao estado de vigília, afinal as ideias têm pernas mas é para fugir, e ficamos apenas com uma enorme sensação de perda.
 Still, we keep on trying...


10. mai, 2022
 244 - O auto-auto de fé

06h04, 2ªfeira, 9 de maio
Acabou a Queima das Fitas! Música e álcool, queima dos ouvidos e do fígado. Iniciação de grandes dramas românticos, consolidação de ódios e amizades para a vida, pré-instalação das mazelas físicas que nos irão atormentar para sempre e mudarão substancialmente o nosso mundo pessoal, embora ainda não o saibamos.
Tempo de loucuras, de irreverências e de irreverências parvas; para alguns, será tempo de aprendizagem do mundo. Hora de curar as ressacas e seguir em frente.


19. abr, 2022
 243 - Quem nunca tiver mentido que atire a primeira pedra

19/04/2022, 3ª feira, 05h24
Li algures, num artigo relacionado com o desempenho das crianças e com o que elas vão aprendendo ao longo do seu desenvolvimento, tais como a noção do perigo, a sinceridade, a mentira, etc, que elas só começam a mentir a partir dos 3 anos.
Antes de desenvolver este tema, acho interessante constatar o que acho que já toda a gente constatou: falamos das crianças como se fossem uma raça à parte ou, inconscientemente, como se fossem cachorrinhos ou gatinhos, não nos lembrando de que já fomos crianças, já fomos um desses seres que, numa conversa normal de adultos, são encarados como algo alienígena, formas de vida desconhecidas, das quais temos muito que aprender e com quem temos de saber lidar. Por outro lado, são vistas como uma espécie de desmioladitos e ficamos muito admirados, cheios de Oh’s e de Ah’s, como se pertencêssemos a uma civilização atrasada, quando as crianças fazem algo fora do que esperamos delas. É um espanto! Estamos a olhar para um génio!
Por favor! Ninguém nasceu adulto e sábio! Para quê tanta admiração parola? Será que nós, no nosso tempo de infância, éramos assim tão mais estúpidos, tão mais desmioladitos do que eles? Sei que é uma reação natural, comum a toda a gente, mas é uma reação um pouco parva. Devíamo-nos limitar a observar e avaliar o desenvolvimento como uma coisa perfeitamente natural e não alvo daquela admiração um bocado aparvalhada que costumamos demonstrar. Já fomos crianças e, como elas, aprendemos, não há de que espantar, ponto final.
Mas dizia eu que as crianças começam a menti a partir dos 3 anos; deve ser por isso que muita gente, quando eles são pequeninos, lhes chama anjinhos. A partir dessa idade geralmente mudam de nome, começam a ser chamados de diabretes.
O que eu gostaria de saber — e o artigo não explicava — era se elas começam a mentir por influência dos adultos, mesmo que esta seja inconsciente, ou se desenvolvem essa capacidade naturalmente, por força da ameaça de castigos, quando elas se portam mal, ou como forma de obterem miminhos e recompensas. Ainda me lembro, embora vagamente, da minha primeira infância e tenho recordação de ter mentido para evitar admoestações ou uma surra bem dada no rabo; quanto a qualquer situação de favorecimento ou mimos, nada me recordo.
Na minha opinião, a mentira é como aquela maldade que as crianças têm em infligir sevícias a tudo o que é vivo e a que deitam a mão e não morde. Eu lembro-me que já fui assim, torturei muitos insetos, mas fi-lo com uma maldade inocente, ou seja, amoral, sem consciência de que estava a proceder de uma maneira errada e cruel. A mentira é um processo que aprendemos naturalmente porque iremos precisar dela durante toda a vida, para o bem ou para o mal. As mentiras não são necessariamente más; fazemo-lo também por piedade, por amor, por amizade, por brincadeira inocente, ou mesmo para travar mentiras malévolas de outros ou para nos protegermos ou a alguém.
No fundo, somos todos uma camada de mentirosos.


6. abr, 2022
 242 - Alma minha gentil que te partiste...

3h48, 4ª feira, 6 de abril de 2022
Hoje acordei com uma dúvida existencial. Quer dizer, não acordei hoje com ela, já existe há muito tempo e faz parte de mim; portanto, é quase como dizer que acordo comigo próprio, com as minhas incertezas, as minhas perguntas sem resposta, os meus medos e esperanças.
Acredito desde há muito tempo na reencarnação. Não de uma maneira dogmática pois acho que ninguém pode ser dogmático no tocante à existência da chamada alma e para onde ela vai, se existir. O que hoje é, para qualquer um de nós, um dogma, pode amanhã transformar-se numa dúvida, e vice-versa. Só existe dogma para quem aceita algo incondicionalmente, o que, na minha opinião – que vale o que vale – , depende apenas de cada um, das suas crenças, da sua fé em algo, da sua educação.
A vida é feita de incertezas; as crenças são feitas do que nos foi ensinado desde crianças e daquilo que vamos aceitando ou repudiando ao longo da vida, racional ou não. Não podemos obrigar ninguém a aceitar aquilo em que cremos ou a repudiar o que não cremos. A ordem que preside ao Universo é, por nós, chamada de Deus, pelos muçulmanos, de Alá, pelos judeus, de Jeová e qualquer um destes crentes exige que aceitemos a sua divindade como a única verdadeira e sigamos dogmaticamente os preceitos que constam nos chamados livros sagrados. Ninguém pode arrogar-se um verdadeiro crente só porque acredita em algo e porque os livros são inquestionáveis.
Todas as grandes religiões falam de tolerância, está nesses livros. Mas todos fazem vista grossa às páginas onde isso figura. Enquanto lermos apenas o que nos interessa, este mundo continuará a ser um lugar de ódio e rejeição.
Mas voltando à dúvida existencial: como disse acima, acredito que existimos para além do corpo, para além do veículo, mas questiono algumas situações pouco esclarecidas porque não posso aceitar o inexplicado como se fosse simplesmente e dogmaticamente inexplicável.
Comecemos por algumas existências terrenas como, por exemplo, crianças que nascem com malformações terríveis ou doenças incuráveis, e letais a curto prazo; se, como dizem as doutrinas que aceitam a reencarnação, vimos a este mundo pagar coisas que fizemos em vidas anteriores – o carma ou Karma – ou evoluir de acordo com as nossas boas obras, pergunto: de que vale para aprendizagem ou “pagamento de dívidas” sofrer e morrer numa idade em que um ser humano nem sequer tem discernimento para saber que existe? A que ponto é justo o carma penalizar alguém que foi criado num ambiente desfavorável, onde só aprendeu o mal sem sequer disso ter consciência? Tornou-se num ladrão ou assassino porque quis?
E porque é que os nossos deuses, sejam eles quais forem, como já o disse acima, sendo omnipotentes, omniscientes e omnipresentes, criaram seres imperfeitos?
 Há alguns anos, nestas páginas, pus a mesma questão: será que o Rex Mundi é sadomasoquista e cria seres deficientes só para que eles evoluam e voltem a ser unos com Ele? Para quê fazer-nos sofrer se Ele é bom e só quer o Bem? Para quê fazer-Se sofrer se somos parte Dele? Não entendo a lógica. É como se nós nos dessemos ao trabalho de construir algo avariado só para termos o prazer(?) de o consertar.
Pode ser que um dia eu compreenda, mas não vejo jeito.


28. mar, 2022
 241 - Tratem bem (metafóricamente) as metáforas

05h06, 28/03, 2ª feira
Hoje estou muito cansado, cheio de sono, nem sei o que vou escrever. Serei hoje um Jack Kerouak a debitar impressões sobre o papel, sem qualquer objectivo definido, sem nenhum plano para tratar de seja do que for.
Enquanto escrevo, mordo uma barra de chocolate negro para me dar inspiração, mas parece que a única coisa que ele me dá são calorias a mais. Não faz mal, vou continuar a roer a barra por simples, egótico, guloso prazer, porque adoro chocolate. Bem, não “adoro” — gosto muito, é um facto, mas nada de transcendental.
Estou a ver passar a noite à minha frente.... Ora, ora, nem a estou a ver passar nem ela está à minha frente, nada disto passa de metáforas: a noite não passa por mim porque é, digamos, algo imóvel, uma simples ausência de luz solar, devidamente explicada pela astronomia; para nós é um frame de escuridão pontilhado por candeeiros de rua. Quanto “à minha frente”, a noite rodeia todo o meu universo local e não está apenas perante mim.
É interessante pensarmos no mundo de metáforas que proferimos e escrevemos constantemente; não é possível ter uma conversação normal ou qualquer outra forma de comunicação sem as aplicarmos. O simples facto de desenharmos algo é uma metáfora visual, pois vemos o que não estamos a ver, por mais realista que o desenho seja, é apenas a nossa imaginação a funcionar.
Uma foto, um desenho, uma nota de música, uma paisagem ou um retrato estampado, pintado, serigrafado, um quadro modernista, surrealista, pontilhista, rafaelita, pré-rafaelita, cubista ou abstracto, são representações metafóricas de algo, embora às vezes não as compreendamos. Metáforas são representações da realidade (ou não) que algo, alguém, ou mesmo nós, enviamos ao nosso cérebro para descodificar – o que depende da cultura de cada um, da sua inteligência, das suas vivências, da sua educação e dos seus sentidos.
E termino por aqui.


15. mar, 2022
 240 - O desacordo ortográfico e os Novos do Restelo

01h03, 3ª feira, 15/03/2022
É uma constatação! Estou a perder o hábito – longo de 60 anos – de utilizar a antiga grafia! Não sei se chore de raiva ou suspire de alívio porque, por um lado, e analisando friamente alguns pontos da polémica que se instalou com o novo acordo ortográfico, no início dos anos 90 do século passado, existe alguma lógica nalguns (não todos) pontos do referido convénio.
Não sou linguista, não vou enumerar os prós e os contras aqui, mas julgo que, para além de alguma racionalidade na elaboração do dito, houve também alguma incoerência por excesso de zelo linguístico, e algumas alterações acabaram por se transformar em autênticos disparates.
Este novo acordo ortográfico assemelha-se a um medicamento que não tenha sido devidamente testado; podem surgir efeitos secundários inconvenientemente olvidados ou minimizados durante a análise e que prejudicam, não só a credibilidade de quem o fez, como geram confusões e dúvidas perfeitamente evitáveis.
Além do mais, um acordo por decreto!!! Desde quando é que a política se mete na linguística? É um disparate! E um acordo com os PALOP? Nem sequer existiu! Os brasileiros continuam a falar e a escrever como sempre o fizeram, os angolanos idem, etc., etc., etc. Dá a impressão de que o acordo é para que ado(p)temos as formas linguísticas dos outros países de expressão portuguesa, e ponto final! A língua-mãe é que se subjuga aos países de expressão lusa, que têm a sua própria cultura, maneira de falar e escrever e que estavam muito bem nos seus cantinhos até que uns iluminados decidiram que o que era melhor para eles era mudar tudo. E afinal, só nós é que mudámos??? Para um suposto melhor entendimento entre os PALOP?
 Os ingleses, os americanos, os australianos e outros países da Commonwealth ou não, mas que falam inglês, cada um fá-lo à sua maneira e todos se compreendem sem inteligentes a mudar a língua: gasoline ou petrol, subway ou underground, lift ou elevator, que interessa?
Nós temos regionalismos. Vamos também pegar por aí, para que todos em Portugal se entendam? Acho que é melhor, é mesmo por aí que deveríamos ter começado: vasculho no Norte é uma vassoura, enquanto no Sul é uma pessoa que passa o tempo na coscuvilhice; esbotenado no Porto é um objeto com um bordo partido, enquanto na Guarda chama-se esbocelado, etc., etc., etc.
Já não há nada a fazer, é irreversível. Porém, para as pessoas da minha geração, e mesmo da seguinte, pelo menos, fará uma certa confusão. Acepção agora é acessão. Parece que estamos a referir-nos a uma sessão. Um exemplo entre muitos.
Não me considero um Velho do Restelo, sempre pronto a criticar tudo e todos, mas, como toda a gente, habituei-me a um mundo que será sempre o “meu mundo”, por mais que eu mude e me adapte ao que vai surgindo. Acho que todos somos assim, um dia começamos a cristalizar, lentamente, gradualmente, nesse “nosso mundo” vivido no passado. No entanto, vamos aceitando, vamos mudando um pouco. Guardaremos sempre, mesmo assim, um lugarzinho secreto para o nosso pequeno universo pessoal.


28. fev, 2022
 239 - É o bicho, é o bicho...

3h34, 2ª feira, 28 de fevereiro
Primeiro que tudo, as minhas constantes e reiteradas queixinhas de que estou muito cansado, que não tenho tempo para escrever, de que tenho um trabalho para apresentar, de que, de que, de que…
Geralmente, esse desfiar do rol dos dói-dóis parece surtir o seu efeito: acalmado o ego, após a exposição pormenorizada das maleitas, numa expressão da mais pura autocomiseração, sentimo-nos mais prontos para escrever coisas mais impessoais porque fingimos acreditar que quem nos lê terá muita peninha de nós e seremos, por alguns instantes, o fulcro das atenções e da piedade alheia, o que é óptimo para o nosso tão depauperado ego.
Pronto, já me confessei, não sou católico praticante, mas já me confessei e estou limpinho para começar de novo a pecar. De que falava eu?... Ah! As minhas maleitas.
Ora bolas!, agora que falei nelas, já não dá “pica” fazer o estendal, estraguei tudo! Vou ter de engolir em seco e falar de qualquer outra coisa. Mas de quê, que eu adoro falar de mim próprio? Lá se foi todo o interesse!
Cá em cima espicaço laboriosamente o meu cérebro, como um lavrador espicaça (coitados) os bois para que eles trabalhem. E nada! Nada me vem à cabeça que mereça um mínimo da minha atenção. Estou num impasse.
Se ao menos tivesse piolhos, ou mesmo pulgas ou percevejos, ou até chatos, sempre poderia tecer considerações sobre como raio os apanhei, desconfio que foi aquele fulano que mos pegou no comboio ou aquela fulana que se coçava muito na fila da padaria, isto é inadmissível nos tempos de hoje, há uma tremenda falta de higiene que não se compreende em pleno século XXI, sabe-se lá como será lá em casa, todos a coçarem-se, que nojo, e se aquilo cai na comida, se calhar até os cães ou os gatos – se os tiverem – estão contaminados, mas pode ser que até nem tenham culpa, se calhar nem se aperceberam, foi o miúdo ou miúda quem apanhou aquilo na escola, de outras crianças, mas voltamos ao mesmo, há sempre alguém que não tem higiene e passou a bicharada para o filho ou filha (que esses bichos não nascem na escola, de algum lado hão de vir) que, por sua vez, passou para os primeiros miúdo ou miúda, ou cão ou gato (se os tiverem) e que por lamentável descuido recebemos de herança! Vai-se lá saber, mas agora o problema é nosso, nós é que temos de nos livrar deles.
Continuo a puxar pela cabeça e nem um piolho se digna aparecer, o que é bom, seria uma vergonha se alguém visse, poderia pensar exactamente o que eu pensei e disse no parágrafo anterior e, para quem visse, seria eu o porco descuidado e piolhoso de quem é preciso afastarmo-nos.
P.S.: Eu não ando de comboio.


6. fev, 2022
 238 - Afinal, apenas fingimos que não sabemos...

01h59, domingo, 06/02/22
Apressadamente, escrevo algumas palavras para evitar que este hábito, velho de quase 10 anos, soçobre por falta de alimento. É por vezes difícil manter uma regularidade de escrita que não ultrapasse valores de ausência demasiado extensos, mas a vida nem sempre se processa como queremos, mas como podemos.
Digo “apressadamente”, não porque esteja a fazer um sacrifício, um frete, para escrever, não; digo-o porque sinto que, ao centrar o meu pensamento neste processo de criação, estou a roubar tempo para outro processo de criação muito mais exigente, que é a elaboração do meu último trabalho académico, da dissertação com que culminarei os meus estudos, pelo menos por agora. O tempo é curto e a ansiedade aumenta.
No entanto, acarinho este espaço, pois que, além de me permitir ensaiar uma escrita experimental, isenta de pretensiosismos ou esforços de reconhecimento, deixa-me também satisfeito porque sei que, algures, alguém me lê; e esse alguém é anónimo, não me dá feedback e, portanto, não me alimenta o ego.
Quero dizer, alimentar, alimenta sempre um bocadinho… mas, sem “likes” ou comentários, tudo se passa como se eu apenas escrevesse para guardar os manuscritos (os wordescritos) nessa gaveta virtual, secreta, que imaginamos existir no nosso computador. São desabafos que escrevemos, fingindo que ninguém lê e, embora tomando uma certa contenção com aquilo que escrevemos porque sabemos que serão lidos, simulamos escrever para o oblívio, por simples desabafo, como seria um suspiro solitário ou atirar qualquer coisa ao chão, nos casos mais extremos.
Escrever é como falar sozinho, gesticular para ninguém, um solilóquio mudo, um pensamento insuspeitado. Escrever é agir sem acção (embora escrever seja, a seu modo, agir).
E pronto, escrevi por tudo o que disse e por outras coisas que não disse e guardo para mim. Sei que vou ser lido, mas finjo não perceber, finjo que guardo a chave da gaveta onde fechei estas palavras, mas que na verdade deixei aberta, para que leiam aquilo que pouco ciosamente escondo.


26. jan, 2022
 237 - Gladiadores, feras, mártires e palhaços - Chegou o Circus Maximus!

26/01/2022, 4ª feira, 01h09
Chegou o espectáculo! À boa moda romana, temos de novo pão e circo! Neste último, o componente popularucho indispensável dos beijinhos às peixeiras, feirantes e povo da rua, acompanhado eventualmente por uns brindes. Já não são frigoríficos ou viagens pelo Douro, mas são porta-chaves (que até dão muito jeito) ou autocolantes magnéticos para pôr no frigorífico, que até enfeitam aquelas portas brancas tão nuas e sensaboronas. Piadas e insultos velados ou não, tão ao gosto dos que partilham a mesma cor política e que, como estamos tão perto do Carnaval, ninguém leva a mal. Até os oponentes acham graça e recrudescem em ditos soezes, calúnias, distorções, numa espécie de cantar ao desafio. Cantar, bailar e fazer outras figuras tristes até caem muito bem e angariam votos.
E os discursos? Não podem faltar, para encher os ouvidos de quem quer e gosta de ouvir e tapá-los para eventuais evidências de outros candidatos. Quem o feio ama…
 E promessas? Palavras, leva-as o vento. Quando se chega a vias de facto, a culpa das promessas não cumpridas deve-se a milhentas coisas que nada têm a ver com a nossa responsabilidade, sejam elas o estado caótico em que os outros deixaram o país, a má gestão ou o desvio de dinheiros públicos, a conjuntura, a pandemia, you name it! Como no circo romano, tem de haver condenados que possam ser atirados às feras, para gáudio da multidão e para se poder sacudir a água do capote.
No rescaldo desta encenação, vemos muita terra queimada e uns fulanos com uns rebentos nas mãos a dizer que os vão plantar, porque os outros estavam velhos e não prestavam (mesmo que estivessem a dar bons e abundantes frutos), mas estes sim, eram diferentes, cresciam muito depressa e com mais e melhor sabor. Geralmente, a maioria destes rebentos, ou não vingam, ou são raquíticos, ou são mesmo de plástico, para tapar os olhos.
E nas próximas eleições torna-se a montar a mesma tenda, o mesmo circo, apenas com alguns artistas novos (ou não), executando as mesmas performances e trazendo novos rebentos iguais aos anteriores. O Circo Romano é o mais antigo espectáculo do mundo pois, como dizia o artista: “disto é o que o meu povo gosta”!
E, no fim, não temos escolha, votamos sempre num palhaço...


11. jan, 2022
 236 - Por uma desinformação esclarecida e inconsciente...

20h38, 2ª feira, 10/01/22
Aquele a que recuso nomear (talvez por razões estéticas, sei lá…) tem feito mais algumas, esperemos que temporárias e estruturalmente incólumes, vítimas, neste prédio e arredores.
Dois colegas de trabalho, um deles daqui, ficaram confinados por infecção – como agora sói dizer-se -, o que nos obrigou a um reforço pessoal do período de laboração, para colmatar essas ausências. Por isso estou aqui e agora.
Será cisma e não postura estética a minha recusa em chamar os bois pelos nomes? Penso que apenas fiquei farto do lembrete estigmatizante com que, desde o fim do ano de 2019 até à actualidade, o convencionado nome da patologia soa aos ouvidos de todos (até dos surdos, metaforicamente, por linguagem gestual) como se estivéssemos no epicentro de um ensurdecedor (mais uma vez a metáfora) carrilhão de Mafra mediático que nos soa, não já nos tímpanos, mas no interior do cérebro, e que, por demasiado presente, abafa tudo em seu redor. Distorção e imperceptibilidade podem, com toda a probabilidade, ser as consequências.
Por isso, num mundo excessiva e muito erradamente mediatizado como o actual, as palavras têm tendência a circular nas nossas cabeças como um vento turbilhonante que entra por um ouvido e sai pelo outro (outra metáfora), nada deixando senão resíduos, sujidade e incompletude. Só ficam pégadas e destroços de ínfima qualidade – o material de eleição para populismos, fanatismos e teorias da conspiração; uma camada de verniz retórico barato faz o resto.
Não se pense, contudo, que esta (des)informação é apenas para consumo das massas. Não é. Há muito cidadão que, de plena boa-fé, se julga consciente e informado, mas que se deixa enganar pela aparência de plausibilidade, de lógica, de verdade. Todos somos, mesmo que não o aceitemos, manipulados, de uma maneira ou de outra. Como dizia a minha avó: Todo o burro come palha; o que basta é saber-lha dar.


3. jan, 2022
 235 - Poema d'uma rosa só

Oh, rosa de rubra cor,
De pétalas ao solo arremessada!
Uma mão te colheu, e de mão mudaste.
Rosa dispersa; rosa, do desígnio aniquilada,
Quiseras ser recebida como um tesouro sem preço, pobre flor!
Mas a que te recebeu ainda não estava preparada…
E assim, rosa vermelha, aos quatro ventos te espalhaste,
Sem saber da tua missão o desenlace.
Descansa rúbida flor, não fracassaste!
Despedaçada, cumpriste o teu destino,
E descansas nas memórias que juntaste...


Santofrei


 (234) Ups.... Saltei um número...


30. dez, 2021
 233 - O (in)desejado descanso do guerreiro

30/12/2021. 5ª feira, 02h24
Estou a ouvir música clássica como forma de acalmar esta ansiedade de que me estou, progressivamente, a aperceber. Afinal, nem tudo são rosas na inatividade, no suposto repouso de quem se queixa do trabalho, da falta de tempo, da opressão dos horários compulsivos, da ausência de convívio familiar; o que me conduz inevitavelmente ao falso alívio de uma reforma que se aproxima com uma rapidez simultaneamente galopante e morosa. Desejada? Sim; temida? Sim.
O descanso do guerreiro não é, afinal, assim tão pacífico. É uma aflição, um quebra-cabeças, um desafio permanente à nossa sanidade mental, para não falar do nosso bem-estar físico. É certo que este último, se não nos deixarmos vencer pela preguiça, se não o protelarmos a pretexto de que temos outras coisas, mais importantes ou não, a fazer (grande “tanga”!), é sempre exequível, a não ser, claro, que tenhamos já problemas de saúde incapacitantes (que, por vezes, são também mera desculpa).
Quanto ao físico estamos conversados. E a “caixinha dos fusíveis”? grande problema!
A mente, mais do que nunca, tem que estar ocupada, ainda mais ocupada do que antes. Direi mesmo que tem de começar a ficar “realmente” ocupada com algo que puxe por ela, que a faça raciocinar, mexer as engrenagens, pensar, no real sentido do termo. Enquanto trabalhamos — a não ser que tenhamos um trabalho mais intelectual do que físico (e mesmo assim!) —, a mente está apenas minimamente ocupada e mono-centrada num fim muito específico: conheço pessoas que, apesar de terem actividades de foro intelectual, como engenheiros, gestores, médicos, professores, etc., reagem a tarefas comezinhas como se de atrasados mentais se tratassem! Há alturas em o simples senso comum não funciona!
Nunca ninguém ouviu referir-se a alguém (chefe, conhecido, amigo, whoever), comentando que el@ é um(a) idiota, que nem sabem como está no cargo que ocupa, se calhar foi por cunha, etc? Esse é um dos grandes problemas da sociedade: forma(ta)r pessoas, não lhes proporcionar na sua vida e na sua formação asas para voar, não os dotar da capacidade de alargar, não múltiplos horizontes, mas horizontes múltiplos, para que possam responder minimamente aos desafios inesperados do mundo em que vivem.
Para se ser Cidadão do Mundo há que, para isso, estar habilitado.


30. dez, 2021
 232 - Oh, vã cobiça da eternidade...

01h48, 3ª feira, 28/12/2021
Passei o que se pode considerar um Natal em família, no mais estrito sentido da expressão. O confinamento sanitário compulsivo a que fomos sujeitos limitou-nos a quatro seres vivos: um casal, uma filha e um cão, que também é gente – neste caso, não no sentido estrito da expressão. Foi um pouco parado, mas não de todo desagradável; bebeu-se e comeu-se comedidamente, passe a expressão, estudei, viram-se uns filmes e, num abrir e fechar de olhos, já se passaram três dias. Por vezes a transitoriedade dos acontecimentos é impressionante…
Sábado vou trabalhar como se nada fosse, como se nada tivesse acontecido, apenas continuação da rotina.


23. dez, 2021
 231 - To die or how to die, that is the question

21h35, 23/12/2021, 5ª feira
Estou sentado a olhar para o papel (mais concretamente, para o ecrã do computador – o novo papel) a pensar o que escrever. Cheguei à conclusão de que, afinal, a minha veia poética ainda não se extinguiu. No entanto, não pretendo forçar uma poetice barata e pedante. Vou deixar as musas descansarem por uns dias até poder, com o seu auxílio, regurgitar novamente algum sofrível arremedo de poesia ou um seu sucedâneo.
Estou em confinamento porque mantive contato com alguém que, por sua vez, também esteve em contato com o “inominável”. Economicamente mau, porque vou receber menos, mas culturalmente bom, porque vou poder estudar um pouco mais para minha dissertação de mestrado que é, neste momento, a minha mais preocupante preocupação (excluindo, é claro, o fator saúde – o suprassumo do desassossego).
Curiosamente, não estou muito preocupado com o desenrolar dos acontecimentos que passam no exterior do meu pequeno mundo, o qual isolo quando fecho a porta da rua; não que não me importe. Importo. Mas vejo tudo sob um prisma diferente; imagino-me simultaneamente no dealbar do século passado e na actualidade: todo o pânico dos idos de 1918 e da sua mortífera pandemia (estimam 50 a 100 milhões de mortos) versus a mais recente aquisição patológica dos nossos dias. Haverá comparação? Sim e não.
Por um lado, as condições e noções de higiene de há 100 anos que, segundo os actuais e muito justos padrões, deixavam tudo a desejar. Contudo, a reduzida velocidade da informação, o desconhecimento da extensão da doença e a própria iliteracia generalizada, aliadas ao espectro terrível de uma guerra tão devastadora como a humanidade nunca presenciara, e que era compreensivelmente mais badalada nos meios de comunicação, ditaram a sua, se não minimização, pelo menos um relegar para segundo plano. Por essas razões nunca se conseguiu contabilizar eficazmente o número de vítimas e o terror foi substancialmente diminuído.
Pelo outro lado, nos nossos dias, pese embora a “pouca” relevância da mortalidade em termos globais (até ao dia 9, cerca de 5.278.777) , preocupa o facto de que, apesar das ótimas normas profilácticas, do extremo cuidado no tratamento e dos avanços extraordinários da medicina – quase milagrosa, em alguns casos – o que deveria ser mais um simples e descomplicado vírus se tenha tornado uma dor de cabeça para a humanidade e um balde de água fria para uma ciência que se começava a arrogar um carácter messiânico e omnipotente.
 No entanto, como já acima afirmei, não entro em preocupações paranóicas. Preocupo-me um pouco, é certo, mas não entro em “filmes”. Não sendo fatalista, acredito que, como todos temos de morrer um dia, não interessa muito o modus operandi daquela que nos espera pacientemente. Apenas detestaria sofrer, e penso que esse é o maior receio de todos os seres vivos, consciente ou inconscientemente (Bem, há masoquistas…).


22. dez, 2021
 230 - A verdade das metáforas

01h51, 4ª feira, 22/18/21
Desde quando deixei de “poetar”? será que algo (a idade, a enganosa falta de tempo, a frustração de uma vida vazia ou que imagino vazia) matou em mim a poesia, o sonho?
Vivo agora uma urgência de coisa nenhuma, protelo o inevitável sob pretextos vazios de significado e de razão. Sinto-me uma formiga sem objectivo, vagueado apressadamente de um lado para o outro, num “lufa-lufa” constante, frenético e improdutivo. Ao contrário destes laboriosos insectos, guiados por um objectivo bem definido, sinto-me frustrado porque me sinto à deriva, porque nem sequer sei o porquê da minha existência e da minha inútil(izada) corrida.
E o sonho? E a poesia? Estarão mortos ou apenas adormecidos?

  Estou em coma.
 De olhos fechados ouço murmúrios, ténues, distantes,
 como se o meu Eu quisesse comunicar comigo.
 Porquê os lábios cerrados, as pálpebras fechadas?
 Para que estão ali mudos e inertes, se os possuo e funcionam?
 Tento gritar, falar o que calo
 Acarear um mundo que me contempla e desafia.
 Mas não… olhos e boca continuam hirtos, como se proibidos de expressão.
 Ah, se eu pudesse!... Mas não consigo.
 Ou não quero, ou não tenho coragem?
 Talvez não seja coma, mas cobardia…



16. dez, 2021
 229 - Os Natais, as crianças e os distribuidores de presentes

05h05, 5ª feira, 15/12/21
É Natal, é Natal…
Já pouco me diz o Natal; inicialmente, na minha meninice mais menina, o evento era (na minha família) conotado com o Menino Jesus, era ele quem trazia as prendas para o sapatinho, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Nada de ver os presentes antes da chegada da manhã! Nem sequer era permitido vê-los, porque eles só apareciam quando fossemos para a cama e adormecêssemos. Afinal, a magia de um mito infantil deixa de ser mágica quando surge a dúvida ou quando, inadvertidamente, desvelamos a verdade.
Na minha ideia de criança, o tal Menino Jesus era um pouco ditatorial: Este ano levas isto; para o ano, se te portares bem, pode ser que tenhas uma prenda melhor. E essa prenda, geralmente, não era muito melhor, dependia dos câmbios do Céu…
 Uma vez recebi – grande desilusão! -, além de um brinquedo do qual não tenho de todo memória, duas peças de flanela (uma verde e outra castanha) para fazer uns pares de calças. Nesse ano lá estava outra vez o Paraíso a fazer contas à vida. Então, um dia, lembro-me perfeitamente, o véu da fantasia quebrou-se: o Chavalo deu-me uma bola de borracha com um selo impresso que dizia Made in Germany. Adeus para sempre, mirífica fábula.
 Mais tarde, muito mais tarde, já noutros contextos familiares, o Menino envelheceu muito rápidamente à custa da Coca-Cola, e transformou-se no Pai Natal. Agora, com o distanciamento temporal e o senso comum que a idade nos vai dando, concluo que qualquer um destes personagens natalícios não faz sentido nenhum. São apenas contos, histórias mal contadas, sem pés nem cabeça.
O primeiro – um menino, com um discernimento extraordinário para tão tenra idade e que se põe a dar presentes a crianças mais velhas, porque “sabe” que se portaram bem. Parece, como alguns políticos que davam viagens e frigorificos, que está a angariar acólitos para uma nova religião.
O segundo – um velhinho bonacheirão, feito de borracha para que possa entrar pelas chaminés (agora com os exaustores não sei como é) e meter presentes em meias. Coisa difícil quando as prendas de bom comportamento são bicicletas, violas ou computadores. Usa processos anacrónicos de se deslocar – trenós e renas – e tem um exército de anões ou gnomos ou elfos, ou lá o que é, para fabricar essas coisas que se compram nas lojas.
Compreendo que estas invenções fantasiosas têm a sua génese em tempos muito remotos, e têm a sua razão de ser; são fábulas didáticas e moralistas, usadas, não apenas para premiar o desenvolvimento harmónico das crianças – alertando-as para as consequências da sua irrequietude comportamental – mas também para alimentar o seu mundo de faz-de-conta, para as fazer felizes. São, no fundo, contos de fadas para entreter essas pequenas mentes em desenvolvimento. Eu, como (quase) todos nós, também pertenci a essa multidão de avezinhas inocentes, e foi bom enquanto durou.


5. dez, 2021
 228 - O porvir está por vir

05/12/2021, domingo, 04h39
Fez no passado dia 1 a pequena soma de 381 anos que recuperámos a nossa independência. A perda temporária da nacionalidade foi apenas um acidente de sucessão dinástica; Filipe II de Espanha (Iº de Portugal) era, por direito de linhagem (genealógico, portanto), o candidato mais indicado para se tornar rei de Portugal. Que os portugueses não gostaram, isso é outra coisa. Eu também não gostaria.
Mas como não estamos aqui para falar no direito sucessório dos reis, passemos para o tema que tenho tratado: as idades do ser humano. É agora a vez do quinzénio que abrange dos 65 aos 80, e que será o último de que falarei. Tudo o que for além disso dilui-se na bruma da conjetura.
Após repassar a vida sob os olhos da consciência (dos 50 aos 65 anos), é chegada a hora do disfrute calmo da velhice ou do desespero melancólico e resignado da sala de espera do passamento. Por mim, espero que seja o primeiro. Embora possua por natureza uma postura um tanto ou quanto pessimista, fatalista e inconformada, tenho, como todos, a esperança de um retiro calmo e pouco problemático. Assim seja.
Acho que já disse tudo sobre aquilo que ainda não experienciei; os dados de que disponho, por análise daqueles que estão, mais do que eu, avançados na idade, são para lá de inconclusivos, porque é muito difícil alguém se pôr a abrir o seu íntimo ao primeiro que passa. Tenho, portanto, de aguardar a minha vez, se o destino mo permitir.


24. nov, 2021
 227 - Somos os Legos do Cosmos

23h49, 3ª feira, 23/11/2021
Após o anúncio de mais uma vida no Mundo, volto à carga com as tendências de pensamento e comportamento médias dos seres humanos ditos normais, desta vez na faixa etária dos 50 aos 65 anos (um novo salto de 15 anos).
Pois bem, estou no limite; tenho 64 anos e um rol de problemas de saúde que se enquadra perfeitamente na média geral. Quanto a problemas de foro não clínico, direi que cada caso é um caso, pois todos somos diferentes e com vivências diversificadas e, portanto, de mensuração extremamente subjectiva.
É neste período da vida que tentamos — direi que, por vezes, desesperadamente — compensar todo o desperdício do potencial inato, e daquele que fomos desenvolvendo ao longo do nosso percurso terráqueo, seja por termos tido uma vida complicada em termos laborais ou pessoais, seja porque fomos arruinando aos poucos essas capacidades com decisões e atitudes inapropriadas. Por outras palavras, e desculpando o vernáculo, porque fizemos merda.
Em simultâneo, vamos sentindo cada vez mais insidiosamente a presença desinteressada e observante daquela figura negra, estereotipada, munida de uma gadanha. No entanto, o espectro que mais tememos é o da impotência (não, não é essa), da dependência dos outros para (sobre)viver, a pior das quais é a da degradação mental, a demência em qualquer das suas formas incapacitantes.
É cloro que as visões acima descritas são um tanto ou quanto dantescas, negativas, embora hipoteticamente prováveis. Mas nós não vivemos apenas no temor das adversidades; temos a satisfação atávica da continuação da espécie e que em nós, humanos, toma a forma de um relacionamento mais que instintivo e marcadamente emocional: a família. Existe alegria em ver os nossos descendentes progredirem, criarem a sua própria (que também é nossa) família, serem saudáveis e felizes. Embora muitos animais já possuam essa forma de organização social, a da nossa espécie é muito mais complexa a todos os níveis.
Sentimos um prazer filantrópico de gerar vida e um prazer ególatra de sermos simultaneamente uma das incomensuráveis, mas fundamentais, peças da criação e da continuidade do Universo, tal como o conhecemos.


16. nov, 2021
 226 - A felicidade dos avós ou de como um nascimento nos envelhece

02h24, 3ª feira, 16/11/2021
Por alturas do último post nascia a minha primeira neta. E talvez última, pois pelo andar da carruagem, como soía dizer-se, não vejo jeitos de aumento de capital humano pelas minhas bandas para as próximas décadas, ou seja, provavelmente nunca mais, exemplo único, evento irrepetível. Posso, contudo, estar enganado, como já me enganei desta vez.
 Estou satisfeitíssimo, como é de calcular, mas não me vou estender mais sobre a minha vida pessoal. Aproveito o mote para tecer algumas reflexões sobre nós, avós humanos, e a recepção que tais eventos podem provocar na percepção da nossa existência. Até agora víamo-nos como pais – posição há dezenas de anos assimilada e assumida; agora adquirimos o estatuto de pais dos pais, o que, atendendo à idade “avançada” que temos, faz-nos reflectir mais aprofundadamente sobre o nosso mundo pessoal, a nossa paternidade, a nossa velhice, ou seja, a nossa novíssima condição de avós e respectivas implicações morais, familiares, éticas e temporais. Abre-se uma nova etapa etária (perdoe-se a paronomásia) e apercebemo-nos de que os nossos conceitos de tempo e idade se vão, com este evento feliz, infelizmente reduzindo. Mas cést la vie – uma frase feita que ouvimos milhentas vezes na nossa vida e que vai, progressivamente, fazendo cada vez mais sentido.
Aproveito para informar de que em breve irei migrar para o site www.santofrei.com. Portanto, se já não estiver aqui, estou lá (Uma verdade La paliciana).


8. nov, 2021
 225 - Os dias em que começamos a imaginar contagens regressivas

08/11/21, 2ª feira, 04h53
Está na altura de, para não ser massudo, avançar, não de novo 7 anos, como fiz até agora — pois que era importante compartimentar mais curta e esmiuçadamente as idades da aprendizagem —, mas 15 anos, uma vez que a generalidade do que temos de conhecer para viver e saber viver já está consolidada e agora já avançámos para outro nível: o da análise da nossa existência. E agora é que elas doem, agora começamos a, gradualmente, ter a percepção da nossa negligência, das nossas asneiras, perdas de oportunidade, desatenções e afins. Olhamo-nos ao espelho da consciência e constatamos que, apesar das atitudes ponderadas que certamente tivemos em profusão, também tivemos inúmeros e escusados episódios de desperdício que, se não nos arruinaram a vida, contribuíram pelo menos para uma quebra significativa da sua qualidade global.
Em simultâneo, e intrinsecamente combinado com a constatação anterior, damo-nos conta de que o nosso prazo de validade se começa a escoar com demasiada rapidez e já não nos é provavelmente possível recuperar o tempo ingloriamente perdido. Aquela ilusória luz que vislumbrávamos ao fundo do túnel começa a esfumar-se (e não só porque os nossos olhos já não veem tão bem) e a desaparecer porque, simplesmente, é apenas uma convenção e não uma realidade palpável.
E começamos a adivinhar o futuro…


28. out, 2021
 224 - O porvir contém incertas e incontestáveis certezas

10H00, 5ª feira, 28/10/21
Dos 28 aos 35 anos é o meu tema de hoje. É a época da assertividade e das escolhas de vida; é nesta idade que os gostos se vão consolidando, se fixam os estilos e assumimos a nossa posição no mundo. Assentamos os pés no chão e criamos raízes, deixando o nomadismo das opiniões e as incertezas sobre os rumos a traçar. Evidentemente, isto não é chapa 7, mas uma generalização de acordo com as tendências em geral. Eu, por exemplo, andei, ando e andarei sempre um pouco perdido e constituo assim uma excepção à regra.
É normal que estas escolhas definitivas se alterem no decorrer do nosso périplo pelo planeta, pois podemo-nos aperceber que nada daquilo que escolhemos terá sido a opção correcta. Portanto, tudo o que eu referi acima é relativo, não há dogmas, não há escolhas para a vida, apenas uma falsa (embora agradável e necessária) sensação de segurança.
No meu caso pessoal, tudo parecia encaminhado para uma existência confortável, sem muitos problemas, sem escolhos no caminho. Os excessos de confiança fazem-nos descuidar o chão que pisamos; e aí, ou tropeçamos numa pedra ou caímos num buraco – ou ambos. Apercebi-me que não passamos de crianças grandes, imaturas, eternamente imaturas. Cremos demais, confiamos demais e resvalamos continuamente na contumácia por simples e inata cretinice e porque não nos permitimos conquistar eficazmente uma sabedoria, decorrente da experiência e da reiteração dos erros, que é suposto memorizarmos para uso futuro.


17. out, 2021
 223 - Para se ser adulto tem-se mesmo que passar pela parvoíce

05h21, domingo, 17/10/21
De novo vários problemas me impediram de escrever com a frequência que pretendia. Mas aqui estou, pois comprometi-me a escrever sobre as idades do ser humano e não quero faltar ao prometido.
Falo hoje então da faixa dos 21 aos 28 – o tempo da “curtição”. Atingida a maioridade (que antigamente era aos 21) julgamos estar aptos a fazer tudo o que nos der na real gana. Então, esforçamo-nos por destruir o mais rapidamente possível a nossa saúde, que cremos, não de ferro mas de alguma liga inconsumível, como a que foi descoberta em 2018 e que é composta por platina e ouro (e que afirmam ser 100 vezes mais resistente do que o aço).
São as comidas corrosivas, são os fumos das mais variadas substâncias, são as vigílias repetidas até dormir de pé, são as bebedeiras até à inconsciência, enfim…. Tudo tentamos para pôr à prova a nossa teoria de que somos indestrutíveis e, na verdade, por mais sado-masoquistas que tentemos ser, tudo parece corroborar a nossa teoria, — que não é uma teoria para nós, e sim uma certeza inabalável —, mas que começará a ruir no hepténio seguinte.
Por outro lado, cimentam-se os relacionamentos nos casados. Cuidado, no entanto, com a polémica crise dos sete anos, que poderá destruir uma vida a dois. Segundo esta teoria, ao fim de 5, 6 ou 7 anos de matrimónio, os casais começam a ficar “fartos” um do outro, provavelmente devido ao coarctar da liberdade individual a que tal compromisso obriga. Eu sei porque passei por isso e os casos ficaram muito mal-parados. Porém, uma generosa dose de mútua tolerância, bom senso e reflexão fazem o milagre e, geralmente, superam esta perturbação emocional.


30. set, 2021
 222 - Não é a idade dos porquês, é a idade dos porques

30/09, 5ª feira, 04h47
Retomando o périplo pelas idades e desenvolvimento físico, mental e espiritual dos seres humanos, segundo uma óptica pessoal, e reflectindo de certo modo a minha vivência, teço agora algumas considerações sobre a perigosa e problemática idade dita da estupidez e da depressão: dos 14 aos 21.
Aqui, todo o cuidado é pouco, mas ninguém tem cuidado. A não ser que tenha tido um bom acompanhamento parental e/ou a sua índole tenda a ser ponderada e comedida. Os relacionamentos afectivos começam a deixar de ser platónicos para se tornarem algo mais sério e duradouro, o que pode também tornar-se um problema pela sua tendência em esquecer a prudência e deixar-se levar pelas emoções, pelo “confronto físico” irresponsável, se bem me faço entender. Por outro lado, as flutuações de humor, que podem ser daí decorrentes ou mesmo nada tenham a ver, podem também tornar-se perigosas. É, como acima disse, a idade das depressões, a “idade Lemingue”, que é, como sabido, um animal que tem tendências suicidas em determinadas alturas do ano. No caso humano não há altura certa para esses surtos psicóticos, eles podem surgir em qualquer momento, aleatoriamente. Quem, na sua juventude, nunca teve algum assomo de impulsos de auto-destruição? Eu tive. Nesses momentos parece-nos que a vida não faz sentido, que não há futuro, que não há solução para os problemas que nos assolam, que a felicidade é impossível. E tudo é desencadeado por reacções ridículas a questões ou situações geralmente de mínima ou nenhuma importância. É o tempo da revolta, das tempestades em copos de água.
O instinto de auto-preservação leva geralmente a melhor e sobrevive-se. Infelizmente nem todos conseguem ultrapassar esses pequenos-grandes problemas e deixam de pertencer à categoria dos viventes.
Mas não é só parvoíce, negativismo e irresponsabilidade que esta idade tem; aqui cimenta-se também o amor pelo próximo (ou pelo muito próximo), a solidariedade, a amizade, o carácter, e todas as características que fazem dos humanos aquilo que eles têm de melhor. Acho que somos o único animal à face da terra que existe para fazer asneiras e emendá-las (ou morrer tentando ambas).


20. set, 2021
 221 - Mais uma volta do ciclo vicioso da vida - essa rotunda sem saída.

11h02, sábado, 18/09, 19˚, céu limpo
Duas semanas estressantes impediram-me de escrever. Cheguei à conclusão de que estar de férias pode ser mais problemático e extenuante do que estar a trabalhar. Enfim, coisas…
Retomo a minha actividade laboral hoje; tive só o azar de ser obrigado, por solidariedade, a vir de manhã, devido à doença de um colega. Mas, fora isso, tenho a esperança de que tudo volte à normalidade, se é que alguma vez ela existiu. Os hábitos são muito, muito difíceis de adquirir e manter, pelo menos para quem passou dezenas de anos com outros radicalmente diferentes.
Entretanto o verão ou, quiçá, um seu sucedâneo, está a falecer aos poucos. Em breve voltaremos ao frio e à chuva, aos dias cinzentões e aos aquecedores – uma rotina meteorológica que não mudou nem, a meu ver, mudará muito nos próximos anos, sejam quais forem as circunstâncias sanitárias que venham a ameaçar a humanidade neste “jardim da Europa, à beira-mar plantado”.
É estranho ver com olhos de luz solar, a mim, que há seis anos trabalho exclusivamente num horário toupeiral, ou seja, à noite, rodeado pela escuridão. A diferença de raciocínio e sensações é abissal: há mais clareza de pensamento, a imaginação atinge níveis muito superiores aos registados na quietude amelatonínica e selenita.
Em breve continuarei o meu périplo pelas idades do ser humano, tomando como barómetro o meu testemunho pessoal que, evidentemente, poderá não corresponder a outras experiências de outros meus semelhantes. Sendo todos basicamente iguais, somos, afinal, muito dessemelhantes.


29. ago, 2021
 220 - A consciência de grupo e a consciência do Outro

05h26, domingo, 29/08/21
7 aos 14 anos – o período da perda da inocência. Vamo-nos despindo das asas de anjinho com que nascemos, porque ser anjinho nestas idades começa a ser uma seca. Há que descobrir o mundo de uma nova forma: fazendo todas as asneiras que pudermos e, melhor ainda, que não sejam detectadas.
O fruto proibido é o mais desejado? Pois então vamos empanturrar-nos de frutos!
Felizmente – dizemos agora – a nossa ainda curta, incipiente e debutante existência, não nos dá geralmente as capacidades de um Arsène Lupin ou outro génio criminoso, de esconder os rastros denunciadores dos delitos praticados. A infracção que seja exercida é, em geral, rapidamente descoberta e a jurisprudência paterna ou materna dita o castigo que, por norma, incide sobre a perda de livre circulação ou ao confisco ou suspensão dos parcos subsídios auferidos à semana ou ao mês, podendo mesmo por vezes, em casos mais graves, chegar à punição física. Tudo, portanto, à imagem e semelhança da sociedade civil dos adultos.
Por outro lado, o sexo oposto que era até então inferido como antagónico, indigno dos nossos grupos de interesses comuns, por vezes considerado como uma cambada de idiotas desmiolad@s que não percebe nada, que não sabe nada, que não consegue participar nas nossas conversas e brincadeiras, que não encara as coisas verdadeiramente importantes que regem o nosso género, começa a aparecer-nos sob a luz de uma outra face do prisma; o que antes nos surgia em tons pouco do nosso contento, adquire agora colorações mais suaves e agradáveis, mas que todavia nos tornam destrambelhados, cegos, irreflectidos, podendo-nos mesmo fazer agir como idiotas chapados.
É o início de uma tomada de consciência de que, afinal, @s outr@s são muito mais interessantes, sob aspectos até então insuspeitados, do que até então pensávamos. São as paixões assolapadas de um amor pedoplatónico, que desaparecem tão depressa quanto surgem, ilusões que nos deixam confusos pela sua existência e perplexos pela sua fugacidade e a que aludem, com o devido enquadramento etário e emocional, os célebres versos de Camões:

 Amor é fogo que arde sem se ver.
 É ferida que dói e não se sente.
 É um contentamento descontente.
 É dor que desatina sem doer.
   


17. ago, 2021
 219 - A mentira não se aprende, nascemos com ela

02h30, 2ª feira, 16 de agosto
A infância profunda, aquela de que o intelecto se vai libertando como de um casulo, como uma crisálida. É, como já disse, a fase mais primitiva da memória e da consciência, é onde começamos a receber os pontapés formadores (ou deformadores) de toda a nossa vida futura. Isto excluindo, claro, a vida intrauterina, que é uma situação ainda envolta em incertezas.
É nesta fase que libertamos a mentira. Para nos defendermos da dor e da frustração. Para recebermos recompensas, carinho e atenção. Mentir é como o açúcar, pode ser viciante e provocar dependência e nós, humanos em aprendizado, nunca mais nos libertamos da mentira, mesmo no estado adulto.
Há um episódio pessoal do qual nunca me esqueci e que comprova o horror que temos em assumir a verdade por temermos o castigo ou a admoestação – que é também uma forma de sanção, por afectar o amor-próprio num ego indomado que tenta dominar tudo e todos para marcar o seu lugar no mundo:
Certo dia os meus irmãos mais velhos tinham trazido para casa, sabe-se lá de onde, o mecanismo nu de um relógio antigo – cheio de roldanas, molas de aço (a corda para o fazer trabalhar e a corda do alarme), ponteiros e… uma miríade de rodas dentadas que, encaixadas umas nas outras, rodavam em sincronia ou diacronia, para a frente ou para trás, mais depressa ou mais devagar, de diferentes tamanhos e feitios, desempenhando as funções que é suposto esperar de um relógio.
Não autorizado, aproveito a presença dos meus irmãos na escola e pego nele. É um pequeno e estranho tesouro para a minha imaginação, uma peça do meu aprendizado do mundo e uma forma de entretenimento, como tudo o que é novo e estranho é para uma criança de tenra idade.
 Utilizando a forma mais fácil e mais possessiva de segurar semelhante objecto, encosto-o a mim e inicio o deleitoso trabalho de ir rodando a chave que permitirá dar corda ao mecanismo, maravilhando-me com o seu tiquetaquear de fruto proibido. Tal é a concentração que o resto do universo deixa de existir, pois que nada é mais importante que aquela peça de relojoaria em fim de vida, mas que pra mim é um tesouro inigualável, cuja chave rodo, tentando abrir mais uma porta para a compreensão do que me rodeia. Nessa altura ainda não sabia que a minha Odisseia (a de todos) era e continua, e continuará a ser enquanto fizermos parte desta existência, a de abrir portas ad eternum para a percepção do que não é pereceptível, pelo menos durante o nosso estágio actual de evolução do espírito.
Eis que, repentinamente, talvez devido a alguma sensação táctil decorrente da minha exploração, apercebo-me que a minha camisola de lã tricotada pela minha tia tinha perdido um pedaço substancial de fios na zona do ventre, triturados pelas ditas rodas dentadas, transmutadas em agentes de destruição e arautos do castigo. Pânico! Que dizer? Como reconstituir a cena (leia-se: mentir) para me ilibar da tempestade que adivinho? Há que criar uma história plausível e redentora.
Quando pouco mais tarde acabo por, inevitavelmente, me sentar no banco dos réus, elaboro uma ideia luminosa e completamente credível: ao passar por uma porta, cujo puxador se encontrava sensivelmente ao nível da minha testa, o atrás referido enganchou-se inadvertidamente na minha camisola ao nível da barriga, causando tão terrível e destruidor desastre. Nada mais admissível! Não consigo recordar-me do fim do episódio, mas estou convencido que a minha tia acreditou plenamente naquilo que eu lhe disse.
É, sem dúvida, nesta idade que mais mentimos e também que mais nos mentem; no entanto, as razões dos formadores são totalmente diferentes e perfeitamente justificáveis (quase sempre). A maioria das vezes são protetoras.
Posso citar como exemplo o dia em que, copiando os meus irmãos em mais uma aventura proibida para mim, trepei a uma pereira que tínhamos no quintal. Asneira! A meio caminho perco as forças e deslizo pelo tronco de casca dura e rugosa. Como consequência, esfarrapo a barriga. Deitado no quarto, na cama, o ventre a sangrar um pouco, vejo o meu pai a aplicar mercurocromo para desinfectar. Ainda estou assustado e enjoado, vomito. Mal tingindo o refluxo, um pouco de sangue. Calculo que a visão não me terá sido muito positiva.
E aqui vem a mentira protetora: “oh, isso não é nada, deve ter sido um pouco de mercurocromo que entrou para dentro, para a barriga”. Alívio. Afinal não era sangue, estou salvo!


12. ago, 2021
 218 - Manual de sobrevivência para nascituros

11/08/21, 04h35, 4ª feira
Um dia do mês de Julho, segunda metade dos anos 50 do século XX, de madrugada.
Nasci. Não sabia que tinha nascido. Aliás nada sabia, de nada tinha consciência, era tudo apenas sensação. E instinto de sobrevivência.
Senti pela primeira vez o peso da gravidade, a agressão do frio, do calor, do som, do tacto, da luz. Mas nem sabia que sentia. Tinha vindo de um mundo líquido que me isolava, que me protegia das sensações, embora deixasse chegarem até mim sons abafados e toques suaves que eu não sabia que eram sons abafados e toques suaves. Nem sequer sabia que o meu mundo era líquido e que eu flutuava.
Quando me desliguei do invólucro protector e me cortaram a fonte de alimento, tive o primeiro vislumbre do mundo que me esperava e que não tinha escolhido: pendurado pelos pés, recebi uma palmada nas nádegas e experienciei a dor. Em vários graus e modos, foi a partir daí a minha companheira inseparável. A partir daí também, comecei a desenvolver a memória e mais tarde, muito mais tarde, a consciência. Da dor. Da vida.
Da minha estreia no mundo poderá haver muito a dizer, mas não por mim. E menos, cada vez menos pelos outros que, mais velhos que eu — pois só assim poderiam ter as recordações pretendidas — se vão diluindo nas brumas do tempo, do espaço e da anamnese dos vivos.
Pequenos vislumbres vão-me surgindo, como daguerreótipos esfumados, de uma tenra idade posterior (2 anos, 3 anos?). São flashes que assomam, casuais, a maioria das vezes sem nenhuma importância relevante, como se a mente em formação fosse disparando uma teleobjetiva, fortuitamente, para memória futura. Da idade mais importante do desenvolvimento e formação física, mental e espiritual humana, nada mais há a dizer. É como uma cortina blackout com alguns, poucos, furinhos, por onde escapa um vestígio de luz.


26. jul, 2021
 217 - De como é infernal acabar com o Inferno

2ª feira, 26/07/21, 01h43
Todos temos medo de alguma coisa. Ou de várias. Excluindo os chamados medos atávicos, que resultam de aversões defensivas impressas pelo instinto no nosso ADN e que nos têm protegido no decurso dos milhares de anos da nossa existência como espécie, a grande maioria dessas fobias, desafectos ou terrores resultam de visões estereotipadas, associadas a conceitos com que nos fomos familiarizando quase desde o berço: histórias contadas geralmente pelos avós ou pelos pais em versões góticas ou fantásticas, transmitidas de geração em geração, casos reais acontecidos geralmente num passado mais longínquo e, portanto, difíceis de confirmar mas a que foram acrescentados muitos pontos (quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto), teorias assumidas como verdades dogmáticas, quase exclusivamente de raiz religiosa, etc. A respeito desta última causa, podemos atentar aos mitos relacionados com a morte e a existência além-túmulo, com os seus inseparáveis anjos e demónios (nada a ver com Dan Brown), muito comuns à maioria das crenças.
Fazendo um pequeno aparte: a palavra “além-túmulo” é indubitavelmente de raíz culta, pois que túmulos, só os abastados os podiam erigir. A esmagadora maioria da população – o povo -tinha (e ainda tem) de se contentar com os vulgares sete palmos de terra. Como agora há uma tendência crescente para a cremação, teremos dentro de algumas décadas de mudar a nomenclatura para “além-cremação” ou o mais refinado e pretensioso “além-tanatório”.
De volta ao assunto, se juntarmos todo o acima exposto num caldo e mexermos bem, teremos como resultado uma humanidade paranóica, cheia de fobias, de medo do polícia que te vem prender, do cigano que te vai levar (felizmente em decadência), do cão que te vai morder se não fizeres ou fizeres isto ou aquilo, do demónio que te espera no post-mortem se não te portares bem cá na terra, do sr doutor que te vai dar uma pica, etc., etc., etc.
Em suma, somos uns cobardolas e uns medrosos porque a nossa própria família e o resto da sociedade, directa ou indirectamente, nos aterrorizou desde que nascemos. E o que é mais estúpido é que perpetuamos esse estado de terror permanente nos nossos filhos e netos através dos mesmos contos e das mesmas atitudes. É evidente que generalizo: muitos, felizmente, já se aperceberam do erro e evitam usá-lo ou passá-lo como herança aos vindouros. No entanto, em nós, essa formatação, essa reiteração do horror e do mal, já tem raízes demasiado fundas para extirpar por completo e temos, mal ou bem, de viver com ela.
Podemos criticar e condenar os nossos antepassados e a nossa sociedade por isso – e, por extensão, a nós próprios? Entendo que criticar construtivamente é legítimo, como forma de evitar a repetição de tais procedimentos. Condenar, acho errado: as famílias e as sociedades do passado estavam condicionadas pelas suas próprias famílias e sociedades, e assim sucessivamente. À medida que recuamos no tempo, em direcção à Idade Média, os espectros que ensombravam a humanidade vão-se tornando progressivamente mais tenebrosos, a ponto de transportar para a própria vida os dogmáticos horrores do inferno que esperavam os infelizes ou os execrados pecadores após a morte. Nós, mais afortunados, e muito graças ao anticlericalismo iluminista, apenas sofreremos essas provações após falecermos.
Podemos então condenar os nossos ancestrais? Julgo que não. Eles – tal como nós – foram o produto da sua época, das suas crenças, das suas superstições, das suas limitações. Há que adoptar uma postura filosófica e social que se adapte à época que analisamos. Falar e olhar para o passado com a mente e os olhos do presente é um erro crasso muito comum.


20. jul, 2021
 216 - Umbigos, espelhos e suas semelhanças

3h00, 3ª feira, 20/07/21
Ontem estive a reler algumas das minhas crónicas mais antigas, aquelas do longínquo ano de 2012. Não deixando de me aperceber de alguma ingenuidade própria de quem não tem experiência literária, observei, no entanto, que escrevia com mais exuberância, maior diversidade e riqueza de conteúdo do que agora.
Neste momento o foco restringe-se mais a mim próprio e ao que me está contíguo, como se agora vivesse num quarto fechado, com escasso contacto com o mundo. Efectivamernte, tenho uma forte sensação de que assim é, de que estou encerrado num casulo, do qual é difícil sair. Deste modo, foco-me muito frequentemente naquilo que o meu raio de visão abrange com mais facilidade: o meu umbigo. Tenho que abrir uma janelinha no meu casulo para poder ter alguns vislumbres daquela realidade entretanto perdida, com todas as suas cores e nuances. Certo é que já tenho tentado abrir essas janelinhas para o exterior, mas tudo o que vejo é a noite — tanto a real como a metafórica. Os meus horizontes de escrita estão muito limitados, pois pouco consigo ver no negrume da paisagem.
Como se pode observar em todo o texto acima exposto, tenho razão: contam-se 18 referências ao fulano que escreve (se não mais), o que, convenhamos, é um exagero para quem não se considera egocêntrico, mas que, de facto, acaba involuntariamente por o ser.
Há que reverter essa tendência, há que universalizar, reabrir a esta escrita as portas do Mundo para que se possa reencontrar o equilíbrio algures perdido. Quando começarei esse desafio?


14. jul, 2021
 215 - 64 anos ou "de como as primaveras se vão tornando invernos"

01h48, 13 de julho, 3ª feira
64 anos! Feitos! (na verdade ainda falta 1hora e 40 minutos). Mais uma etapa vencida.
Cada ano que passa, a partir dos 60 ou mesmo antes, é agora encarado com apreensão e cautela. Nunca sabemos se permaneceremos por cá nem sob que circunstâncias. O receio começa a surgir à medida que nos vamos apercebendo de que amigos, vizinhos, ou simplesmente conhecidos, deixaram de ter a possibilidade de nos cumprimentar e nós de os ver. É também, apesar de tudo, uma sensação fugaz de alívio por eles se nos terem adiantado. Sentimos cá dentro uma alfinetada, um arrepio pelas costas do intelecto abaixo, um — como canta Isabel Silvestre no tema dos GNR — prenúncio de morte. Sabemos que os nossos “5 (derradeiros) minutos de fama” se estão a aproximar, mas desconhecemos quando, como e aonde. Mas, como costumo dizer: adiante. Não vou tecer um manto de negativismo neste dia, não me quero cobrir hoje com ele. Vamos fingir que está tudo bem e que seremos todos longevos e sofrívelmente saudáveis, pois é a única maneira que temos de fugir ao espectro do desconhecido.
Hoje está uma noite tipicamente pandémica. Ou seja, uma noite em que, apesar de ainda ser relativamente cedo, não há movimento, calma e deserta como se a cidade tivesse partido em massa para férias. Pode ser que a expressão pegue um dia destes, seria engraçado.


8. jul, 2021
 214 - Os incógnitos, as heteronímias e a anorexia literária.

11h30, 5ª feira, 08/07/21
Eis-me aqui de novo. Por “aqui” entendo este espaço de comunicação electrónica que, no meu caso particular, não é verdadeiramente comunicação, pois estou a escrever uma crónica (ou algo parecido) de periodicidade irregular, para um público desconhecido igualmente irregular e que não feedbecka. Aqui chegado, faço uma observação e uma ressalva:
 Ainda não existe, nem sei se virá alguma vez a existir, o verbo feedbeckar ou feedbecar. Por vezes os neologismos são necessários ou, no mínimo, extremamente úteis pois o seu intuito é o de evitar ter de usar mais palavras na nossa matris lingua ou lingua mater para expressar um conceito similar. É uma questão de economia linguística. A surgir, será certamente na comunidade brasileira da língua portuguesa, pois esta não tem tanto rebuço como nós em (re)criar palavras de que necessite para simplificar a comunicação.
Quanto à ressalva, na verdade existe uma espécie de retorno que, todavia, e embora sujeito à frieza dos números e das estatísticas, (o que também me cria uma certa estupefacção perante contagens tão dispares), existe. Falo do relatório semanal do site onde publico as crónicas e que me fornece valores de leitura por vezes incompreensíveis: há semanas em que tenho 400 ou 600 visualizações, outras em que não passo das 20 ou 30. Certamente haverá uma explicação, mas desconheço-a.
 Como no início referi, e embora sinta uma inegável satisfação em saber que sou lido por alguém, uma vez que o amor-próprio também se alimenta desses pequenos sucessos que melhoram a auto-imagem, criei este espaço mais para desabafar, para treinar a aptidão comunicativa, para avaliar as minhas capacidades literárias e para as tentar refinar. No fundo, escrevo para descomprimir e também para me reler e analisar, pois o distanciamento temporal permite avaliar os estados de espírito com uma certa isenção, porquanto o que foi escrito acaba por se “descolar” do tempus da escrita, e o “analista”, o crítico, deixa de ser – pelo menos em parte – aquele que escreveu, convertendo-se no psicólogo, no juiz do seu Eu do passado. Dar tempo à escrita é, assim, criar um distanciamento crítico entre o Eu presente e o Eu que já foi e que, há que salvaguardar, pode ou não ser o mesmo. É uma espécie de heteronímia temporal – muito diferente da heteronímia pessoana – pois na primeira há um continuum, uma alteração linear,enquanto na última existe uma cisão ou repartição atemporal. Numa o sujeito transforma-se, na outra o sujeito ramifica-se.
Quando termino uma crónica tenho a impressão de que deixo sempre algo no ar, de que os temas da minha intervenção permanecem incompletos, não satisfazendo completamente as expectativas que criaram. É como se interrompesse uma refeição a meio e as glândulas salivares e o estomago continuassem a sua produção enzimática na expectativa de um alimento que não é provido, deixando assim uma desconfortável sensação de vazio.
Hoje não é excepção.


5. jul, 2021
213 - Afinal, mais do mesmo "and life goes on".

04/07/2021, 2ª feira, 03h39
Parece que, finalmente, nesta guerra macrocosmo/microcosmo, estou a ganhar vantagem e a extirpar a extirpe (adoro estes jogos de palavras!) bacteriana que me tem causado dissabores nos últimos 20 dias (Pseudomonas Aeruginosa), e conto que a normalização da rotina vivencial tenha retornado desde ontem. Já não basta ter de lidar com vírus potencialmente letais, ainda tenho de me haver com bactérias chatérrimas, que não sabem fazer mais nada senão tentar colonizar o organismo. É imperativo fazer-lhes ver que o colonialismo já era, que essas atitudes chauvinistas, que esses sentimentos de superioridade rácica não fazem sentido nos nossos dias e têm de ser erradicados. Este bacilo Gram-negativo e patógeno oportunista, como é denominado, tem de ser posto no seu lugar, ou melhor, exterminado.
E agora que já destilei o meu ódio sobre este micro-organismo, passemos à frente.
Acabei de consultar as classificações da disciplina que estava a concluir, referente ao término do sofrido 1º ano de mestrado e concluí que, atendendo às circunstâncias e dificuldades com que tenho feito os meus estudos, não fiquei, no geral, muito mal classificado: 16 valores. Não é óptimo mas é bom. A partir de agora é que vai doer, tenho que fazer a tese/dissertação no próximo ano.
Por vezes pergunto-me porque é que me lancei nesta aventura académica, porque é que não me limitei a ler os milhentos livros que tenho em casa, no meu vagar, ao meu ritmo e segundo os meus interesses de leitura e conhecimento. Chego à conclusão de que tal alternativa seria mais utópica do que real, pois acabaria por me dispersar, por me enganar nos meus objectivos, por criar uma cultura falsa ao perseguir um pseudoconhecimento que se traduziria por leituras fáceis, conhecimentos light, curiosidades inúteis destinadas apenas a dar “pão e circo” ao meu intelecto.
Ao fazer o que fiz, alarguei os meus horizontes e toquei mais profundamente no desconhecido, abrindo compartimentos insuspeitados do Saber, e este não ocupa lugar, mas abre novos compartimentos, ansiosos por serem preenchidos.


25. jun, 2021
212 - To be or not to be sick - that is the question

22h43, 6ª feira, 25/06/2021
Era uma bonita 2ª feira de junho; mais concretamente, o dia 21/06/21, e a hora, exactamente 4h35, quando comecei, um pouco a contragosto, a escrever mais uma crónica para postar aqui. Comecei-a, mas interrompi alguns minutos depois: uma febre fazia-me tremer quase descontroladamente, a sensação de frio era enorme.
Acabei por desistir. Não fazia sentido esforçar-me porque o que escrevia já não fazia sentido. Parei e encorajei-me a suportar o desconforto físico até atingir a hora de saída. A partir daí não mais fui trabalhar, entrei de baixa: uma infecção urinária bem forte, dignamente representada por uma bactéria igualmente resistente, assim o ditou. Já não me recordava de ter de estar tantos dias em casa por doença desde 1983, por ter contraído trasorelho (parotidite epidémica, papeira, caxumba) – uma medida profiláctica completamente inútil, viste que o período de incubação surge 15 dias antes do aparecimento dos sintomas. Mas, para sossegar consciências ignorantes, a lei assim o dita.
E pronto, cá estou em casa, a aguardar a melhoria dos pouco simpáticos sintomas que sinto (aliteração propositada) para poder retornar ao trabalho, porque isto de estar em casa sem fazer nada — e à parte o desconforto — até sabe bem, mas o vencimento também é necessário; não se vive do ar e há compromissos a cumprir.
Estou agora reclinado na cama, como um patrício romano, e cheguei à conclusão de que esse luxo imperial seria totalmente incompatível com as exigências do mundo moderno: basta só tentar escrever num computador para ter a certeza. Aqui, o conforto romano transforma-se numa incompatibilidade física e funcional incontornável (ergonomia versus ineficiência).
Vou-me desreclinar, estender-me ao comprido e esperar por Morfeu, que sei, de certeza, que não me fará esperar como Godot.


7. jun, 2021
211 - Quem não tem inspiração, não caça com gato.

2ª feira, 7 de junho de 2021, 04h47
Na passada 5ª feira tentei escrever. Asneira! Há pouco estive a rever o que tinha escrito e cheguei à conclusão de que o cansaço é o mais eficiente assassino da inspiração e da boa escrita. O que na altura me pareceu razoável era afinal o pior dos textos que elaborei durante estes 9 anos de escrita, e apaguei-o.
Esta é a principal razão de nada ter publicado nos últimos dias e de ter andado a espaçar demasiado as crónicas. Prefiro não escrever a escrever parvoíces, ou então tentar escrever parvoíces menos parvas.
Na verdade tenho, nos últimos meses, guardado o meu tempo disponível para elaborar o último trabalho da última disciplina do primeiro ano do Mestrado. Como já expliquei, tenho estado a fazê-lo desde 2016, por disciplinas – 2 por ano, pois não tenho muito tempo, devido ao trabalho noturno que exerço. Para o ano falta apenas a tese ou dissertação.
Não sei se terei paciência ou capacidade de continuar para o doutoramento; para já, fico pelo mestrado, pois o doutoramento exige muito mais e, até à reforma, em 2024, não me é possível despender o tempo necessário. Serão, ou 3 anos sabáticos ou um “para sempre” sabático. Veremos.
O dia começa a despontar; já vislumbro uns traços de aurora a leste, em breve vai nascer o sol.
É melhor hoje parar por aqui. Nada disse que interesse a ninguém, mas hoje também não sinto que seja o melhor dia para recomeçar a escrever on a regular basis. No dia 23 entrego finalmente o meu trabalho; pode ser que, a partir daí, tenha mais tempo, disponibilidade, descanso e – o mais importante – inspiração (a grande faltosa).


23. mai, 2021
210 - Ó tempo, volta para trás (ou avança um bocadinho...)

16h08, domingo, 23/05/21
É domingo e estou acordado. É domingo e não vou trabalhar. É domingo e estou de férias, fracas férias sem programa e sem férias.
Faz já uma semana que estou em casa. Escolhi esta época para poder apresentar o meu trabalho na faculdade, para poder desenvolvê-lo (afinal tenho programa, embora não seja o mais satisfatório para este período).
Nem sei o que são férias a sério, julgo que é qualquer coisa que existiu no meu passado, mas já não me lembro bem o quê. Agora, tiro férias por reflexo condicionado, como o cão de Pavlov, que salivava ao ouvir o assobio que associava à comida. São, pois, férias palvlovianas que gozo porque ouvi um árbitro ou um polícia a controlar o trânsito e isto só prova que sou um empregado por conta de outrem; se eu fosse patrão, não reagia ao assobio porque tirava férias quando queria ou quando me fosse mais conveniente. Um patrão não tem reflexo condicionado e eu gostava de ser patrão, mas não daqueles pelintras, que estão sempre em dificuldades, sempre a abrir falências e não têm onde cair mortos, mas dos outros, daqueles que têm o assobio na mão para mandar de férias pessoas como eu.
Já fui patrão há muitos anos, tantos que quase nem me lembra, mas fui patrão pelintra e não tinha férias; só tive férias muitos anos depois, quando já era empregado por conta de outrem, mas um empregado “à patrão”, que tinha um mês inteiro de férias porque trabalhava num bom restaurante que fechava todo o mês de agosto. O que também ajudava era um ordenado que, apesar de nada por aí além, era suficiente para tirar umas férias decentes, minimamente decentes, num período em que o índice de qualidade de vida era razoável. Depois…. depois foi o descalabro, a vida a andar para trás, o custo de vida a andar para trás, empregos infelizes, que sei eu?!
Hoje estou nim e conformado; faltam dois anos e pouco para a reforma, não vale a pena fazer ondas, se não houver nenhuma calamidade, terei o suficiente para um retirement tranquilo, na companhia da minha Joaquina, que não se chama assim. Atenção: o “nim e conformado” não significa ficar a um canto e esperar o fim, ainda tenho planos para uma velhice activa e proveitosa.
Carpe diem.


17. mai, 2021
209 - Ter ou não ter ânimo: eis a questão.

04h41, 16/05/21, domingo
Tenho andado muito cansado, e nem sei porquê. Quase me forcei a escrever estas linhas para não abandonar por muito tempo o meu projecto de escrita. Na verdade, sinto-me sem vontade de fazer seja o que for.
Segundo os parâmetros de Fernando Pessoa, a minha alma deve ter mingado, pois os meus impulsos de acção quase desapareceram, são executados penosamente, e apenas o essencial, como se mais nada valesse a pena.
Temo estar num processo de des-coragem, de torpor, de inércia da anima jungiana, julgo que devido ao cansaço físico e psicológico por que tenho ultimamente passado, devido a problemas do foro pessoal que não quero nem acho que deva referir, pois são suficientemente íntimos e também irrelevantes (fora a falta de vontade) para o acto de escrever.
No entanto, como vou ter uns dias de férias a partir de amanhã, estou consciente de que esta prostração desaparecerá e voltarei a ser energético e positivo.

Penso, logo existo
Penso, logo escrevo
Penso, logo escrevo o que penso
Escrevo, logo penso, logo existo


(um bocado tautológico e incipiente, não?)
Nunca, até muito recentemente, pensei na reforma; agora é matéria sempre presente nos meus pensamentos, nos meus planos para o parco futuro que me resta. Antes, renegava estes pensamentos como impensáveis, não me revia no papel de um reformado, ocioso e velho. Era uma visão muito negativa. Agora encaro a jubilação como uma espécie de segunda oportunidade, onde “ter tempo para gozar” ocupa um lugar de topo. Não quero, abomino a cultura do sofá – da ensofalite, como em tempos a apelidei; quero e tenho de me mexer, e não só fisicamente (aliás, fisicamente, estou mais emperrado). Mas quem tem um cérebro e o exercita regularmente, não sente tanto as mazelas do corpo. Stephen Hawking é o paradigma do que aqui afirmo: na falta de um corpo funcional, a mente tomou impassivelmente a dianteira, até à morte do físico. Que nos sirva de exemplo.


25. abr, 2021
208 - Como viver uma velhice jovem

25/04/2021, domingo, 01h13
Que é feito das conversas de chacha que tínhamos quando éramos jovens? Não generalizando, eram conversinhas pueris, sobre temas pueris, opinando sobre o desconhecido, tentando olhar o mundo com uma “neutralidade” muito própria, muito pessoal. Éramos pequenos deuses que queriam recriar o cosmos à sua imagem e semelhança.
Ainda não sabíamos, mas essa existência onde o riso era fácil e a despreocupação o mote de todos os dias, cedo teria o seu fim. Aos poucos a tez liza encher-se-ia quase impercetivelmente das rugas da preocupação, da responsabilidade, do temor pelo porvir. No entanto, esse nosso mundo primevo, a nossa utopia feliz, não desaparece totalmente. Toda a idade adulta e toda a velhice são refreadas por esses resquícios, essas pequenas raízes que ficaram na terra e que obstam à desestabilização do Ser que cada um de nós é, agindo como um lubrificante que nos afasta da cristalização, da fixidez de ideias e da irredutibilidade, próprias de quem tem a sorte de envelhecer.
25 de abril, a Revolução dos Cravos faz 47 anos e o meu cão faz 6; no dia seguinte, a minha companheira junta-se-me na idade.


8. abr, 2021
207 - Éden versus Paraíso: qual a escolha, se pudéssemos?

01h51, 5ª feira, 08/04/2021
Knorr, Maggi, leite em pó Suil e Primor, farinha Amparo, brinquedos de madeira, carrinhos de lata e/ou de dar corda, sacas de plástico (protótipos de qualidade ainda deficiente embora, no geral, bastante resistentes), piões, piorras e rapas, brincava-se com aros de bicicleta sem raios, que se faziam rolar pela rua com o auxílio de um pau ou uma guia de arame, contemporâneos dos carrinhos de rolamentos, que ainda existem; avulso o azeite e também o petróleo para os vulgares e necessários candeeiros, a emular com as candeias de carboneto; avulsos também o feijão, a farinha, o arroz, o açúcar e outros; bancos de napa nos carros, autocarros e táxis (maravilhoso conforto dos assentos: gelados no inverno, escaldantes no verão, deformáveis com o uso continuado); bancos de madeira nos comboios (nada ergonómicos: espaldar recto, eram péssimos para as costas), transportes irregulares no geral, com horários pouco cumpridores ou simplesmente suprimidos sem aviso – cheguei a apanhar comboios com 5 horas de atraso: os tramway, agora chamados Regionais, davam sempre prioridade ao “Rápido” ou ao “Foguete”(de longo curso e, como o nome indica, mais velozes), ao Mercadorias e ao Comboio-Correio.
E por falar em Correios, estes serviços trabalhavam ao sábado e domingo e os carteiros entregavam correspondência nesses dias(!). Entretanto, o fornecimento de energia eléctrica tinha apagões inesperados e sem prazo, ou seja, podia demorar minutos ou dias a ser reposto, calhando a interrupção, frequente mas não exclusivamente, aos fins de semana. Óptimo para quem já possuía frigorífico.
Era este o panorama vivido durante minha infância e primeira juventude. Quem estaria hoje disposto a sujeitar-se a tamanhas restrições e irregularidades e a disfrutar de divertimentos tão imersivos e variados? Certamente ninguém, a não ser que tivesse nascido numa ilha deserta ou fosse Amish. Eu próprio já estou “corrompido” pelos avanços tecnológicos, sociais e outros que foram surgindo ao longo destes mais de 60 anos e já me seria particularmente difícil viver sem eles. É a contraface do avanço civilizacional - a criação de um Éden sintético, difícil de evitar, cada vez mais afastado dos ideais arcádicos de um paraíso adâmico conceitual e utópico.
Não há volta a dar-lhe, temos de evoluir, correcta ou erradamente, só o porvir o dirá. Resta-nos começar a ver muitos filmes de ficção científica para nos podermos preparar para as constantes novidades que certamente nos irão surgir e surpreender.
Falo em ficção científica meio a brincar, meio a sério; sou aficionado desse género literário e deparo de vez em quando com autênticos relatos proféticos, por vezes com dezenas ou até centenas de anos de avanço. Basta estar familiarizado com as obras de Julio Verne ou de Leonardo Da Vinci para perceber do que falo.


25. mar, 2021
206 - Vivências e virulências

23h50, 4ªfeira, 24/03/2021
O meu mais fiel leitor, mas que nem sempre é o meu mais acutilante crítico (eu) chamou-me à atenção sobre a última crónica que escrevi, dizendo que fui demasiado radical na avaliação dos compatriotas mais wealthy. Vendo agora a exposição com um distanciamento temporal confortável e, portanto, uma visão mais neutra, mais isenta da carga emocional do momento (menos hegeliana, portanto), tendo a aceitar que não fui totalmente justo na minha avaliação.
De facto, há muito boa gente entre os visados, e que não se enquadram neste panorama de existências mascaradas que apus a toda uma “classe”. Retracto-me assim, parcialmente, desta avaliação demasiado genérica que retratei (gosto muito de utilizar palavras homófonas e/ou homógrafas na mesma frase ou contexto).
Sendo assim, e tendo liberado a minha atormentada consciência, coloco uma pedra sobre o assunto e prossigo com as crónicas da minha postura no mundo.
Desde domingo, voltei a executar o meu profiláctico e preservacional périplo pelo Parque da Cidade. Ao retomar as minhas caminhadas e outras actividades, apercebi-me de que tenho ferrugem acumulada nas juntas e nos músculos, fruto de um ano de estagnação forçada. Felizmente, começo a notar o metafórico desaparecimento de pedaços da mesma, sob a forma de uma progressiva mobilidade e elasticidade. Penso que a reabertura dos parques e circuitos de manutenção é, globalmente, benéfica. A existência de uma interdição é passível de duas análises: por um lado, evita possíveis contactos e proximidades virtualmente potenciadores de transmissão vírica. Isto, se existir um excesso de aglomeração humana.
Pelo outro lado – e se tivermos em conta o respeito pelas regras sanitárias e de distanciamento – que temo não se vir a verificar – a sua reabertura permite uma eficiente e necessária higienização física e mental que possibilita reequilibrar eficientemente todo um processo de rotinas saudáveis que foi brusca e prejudicialmente quebrado há cerca de um ano. Penso que a segunda análise será, se não totalmente segura, pelo menos bastante mais eficaz e produtiva.
A maioria dos humanos já passou, talvez não por todas, mas pelo menos por algumas das 5 fases de Kübler Ross: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Para aqueles que sobreviveram, passo a enumerar mais uma – a cura.
O caminho está aberto; se seguirmos sempre pelos trilhos traçados, com o mínimo de desvios, em breve (tudo é relativo, o conceito de brevidade pode variar) deixaremos para trás mais uma enfermidade controlada, como o foram todas as de que os humanos padeceram no decurso da sua longa e lenta evolução. Outras virão, possivelmente ainda mais graves, mas enquanto apenas existirem num futuro provável, não nos afectam. Deixemo-las, portanto, em paz e preocupemo-nos com o presente para podermos estar mais bem preparados para o porvir e, muito importante: vivos e saudáveis.


23. mar, 2021
205 - A poupança, os pavões e outros exibicionismos

00h58, 3ª feira, 23/03/2021
Tenho notado um aumento exponencial na compra de veículos eléctricos, que começam a pulular como cogumelos nas garagens dos prédios das famílias mais favorecidas pela sorte de terem empregos mais bem pagos ou por quaisquer outros meios. Para quem, como eu, tem como garagem a berma do passeio, tal escolha é impossível. E não é apenas por não ter um sítio onde deixar a carregar durante a noite (o dia, no meu caso), mas também e principalmente devido ao custo ainda elevado do veículo em causa e, para os mais precavidos, pela visão de um futuro em que as dispendiosíssimas baterias terão de ser substituídas, acarretando um prejuízo por vezes incomportável para a maioria das bolsas (como a minha). A não ser assim, até seria uma opção interessante a considerar, atendendo à poupança que incrementa.
O nosso país está no topo da tabela dos que mais automóveis eléctricos compram, mas não penso que seja porque tenhamos um espírito inovador ou ecológico. Posso estar redondamente enganado, mas entendo esta tendência como, não apenas uma forma de projecção social – pois, pelo menos actualmente, como ainda é novidade, ter tal tecnologia poderá deixar passar a mensagem de status – mas também como forma de, a médio prazo, empossamento de dividendos poupados em energia, não por necessidade, mas para empoçamento de património por cupidez, sem nenhuma necessidade premente ou prática. Falo dos que, metaforicamente, cavam um buraco bem fundo, mas nunca suficiente, para acumular as suas exibicionais riquezas, que são tanto mais inúteis e despropositadas quanto mais inerte é o seu usufruto ou aplicação. São pavões que exibem as suas penas iridescentes para se fazerem notados.
Quem eventualmente ler estas linhas poderá pensar que tenho apenas inveja de não possuir uma situação económica similar. Não, falo (escrevo) porque estou em posição de fazer uma análise de proximidade do fenómeno. Não tenho intenção de viver uma vida falsa, plástica, mascarada, como a que pressinto à minha volta. Quero conforto, não luxo, e quero viver no meu cantinho resguardado, invisível, como sempre vivi, longe de olhares que nos avaliam pelo que parecemos e não pelo que somos.
Será que, se estivesse no lugar deles, daqueles a quem critico, faria o mesmo? Será que me sentiria ofendido, injustiçado, escandalizado por todas estas “mentiras” que são verdades? Possivelmente sim. É por isso que eu não quero pertencer a esse grupo formatado dos puros (direi antes, dos puritanos).
Quero, como toda a gente, ser bafejado pela sorte, mas não pretendo ser asfixiado pelo seu bafo.


16. mar, 2021
204 - Os pesos de consciência não criam músculo mas desgastam

00h52, 3ª feira, 16/03/2021
Veio-me à ideia o remorso, como tema. Não que eu tenha cometido algo de grave cuja rememoração me faça perder o sono. Bem, tenho insónias, mas isso deve-se ao – se assim se pode chamar – jet-lag permanente em que me encontro por ter um trabalho nocturno, nada mais.
A compunção de que falo refere-se ao arrependimento tardio e “peso na consciência” provocado por factos ocorridos no passado (todo o remorso é em diferido), dos quais, directa ou indirectamente, tenha sido ou me considere, pelo menos parcialmente, responsável. Há, com efeito, eventos tristes ou desagradáveis no passado de cada um, e pelos quais, embora inocentes, teimamos em recordar como de nossa, pelo menos parcelar, responsabilidade. Embora em nada tenhamos contribuído para um malditoso desfecho, insistimos por vezes em recordá-lo com o amargo de boca de um sentimento masoquista de auto-culpabilização.
No meu caso particular - como particulares são todos os ocorridos com cada alma vivente – recordo, por exemplo, a morte da minha tia quando, devido a uma ausência de minutos, não assisti ao seu último suspiro. Isso ficou gravado na minha memória como um abandono num momento crucial do fim de uma vida.
Ela, também, se sentiu, em momento e circunstância anterior, como que culpada pela morte da mãe (a minha avó), a que assisti, quando ao alimentá-la com um suplemento alimentar líquido, ela sufocou. Era espectável, pois ela estava num caso terminal de pneumonia, mas o sentimento de culpa instalou-se mesmo assim na minha tia, perdurando por muito tempo, até que a razão, a lógica, finalmente o diluiu.
Mais recentemente, recordo impressões vivenciadas em episódios terminais com todos os animais que adoptei e que me adoptaram como companheiro de jornada e com os quais me sinto em eterna dívida pelos momentos felizes que partilhámos, e aos quais tenho a sensação de ter falhado de algum modo nos cuidados ou por altura da sua passagem, seja por não ter estado presente no momento ou momentos em que de mim mais necessitavam, ou por não ter sabido interpretar os seus sinais, os seus pedidos de ajuda. Não posso afastar de mim essa culpa e ser mais frio no meu auto-julgamento, embora saiba que, em consciência, nada podia fazer. Sei que a Natureza tem que seguir o seu curso, mesmo contra nossa vontade, mas fica sempre um amargor e uma sensação como que de dever não cumprido, de quase traição à confiança que em nós foi por eles depositada.
Não pretendo comparar cães, gatos ou hamsters com a minha tia, pai ou avó, mas certo é que, embora em diferentes níveis, com diferentes intensidades e de acordo com conceitos que, embora diferentes, são, a seu modo, paralelos, equivalem-se.
A história (se é que a isto se pode chamar história) repete-se. Possivelmente um dia, por ocasião da minha partida e devido a uma qualquer circunstância fortuita, alguém sinta também um “peso na consciência”. Deixo um conselho: não sintam. A existência tem de seguir naturalmente o seu curso e nada podemos nem devemos fazer para a deter.
É a vida!


10. mar, 2021
203 - A Feira do Livro também era sociologia e nós não sabíamos.

23h19, 3ª feira, 09/03/2021
Há muitos anos – e quando digo muitos, quero referir dezenas – a Feira do Livro no Porto ainda se realizava nos desaparecidos jardins da Avenida dos Aliados, antes da destruição gratuita desses exemplares da arquitectura paisagística de fins de oitocentos, que privilegiava os jardins públicos, visando a sua fruição por uma sociedade marcadamente burguesa, dominante que, embora por interesse próprio, abria ao povo o que até ao século anterior eram espaços fechados, autênticos jardins proibidos, apenas acessíveis a uma elite restrita. Não posso negar que, numa lógica de utilitarismo estético, a Avenida recriada por Siza Vieira e Souto Moura, tenha o seu quê de belo dentro do seu pétreo minimalismo mas, numa sociedade que diz à boca cheia e por decreto que se devem preservar os testemunhos arquitectónicos de antanho, não acho muito ético nem honesto ter-se feito uma transformação tão radical a coberto de nomes altissonantes da arte, só para que a cidade se possa “orgulhar” de uma intervenção urbanística feita por génios da arquitectura, de reconhecimento internacional. Isso é passar por cima de princípios consensualmente estabelecidos.
Há então dois pesos e duas medidas? Não se pode demolir uma fachada porque se devem manter os traços arquitectónicos de outras épocas, mas pode-se destruir um jardim tardo-romântico que acompanhou a cidade e várias gerações dos seus habitantes? A iniciativa Porto Capital da Cultura 2001, que visava modernizar e criar novos conceitos de arte, arquitectura e urbanística, embora tenha desenvolvido algumas obras dignas de atenção e louvor, serviu também para inventar mamarrachos e intervenções mal feitas e de fraca qualidade, para rechear os bolsos de alguns e dar imerecido protagonismo a outros.
Mas adiante, que o meu tema de hoje visa um conjunto específico de acontecimentos que posso identificar e singularizar num título. Refiro-me à Feira do Livro como a conheci, ainda na pré-adolescência.
Num ambiente ante-revolucionário, onde os divertimentos e as actividades culturais eram raros, esta feira era, para mim, e julgo que para muitos dos meus coexistentes temporais, um local lúdico e potenciador de possibilidades de conhecimento. Quanto às hipóteses de compra, já não eram assim tanto porque os livros iam começando a, lentamente, se tornarem artigos de luxo, com papel de muita qualidade e conteúdo de pouca.
Nesse tempo, grande parte da publicidade às novidades (ou nem por isso) expostas, era sonora; os editores e as livrarias apregoavam a sua mercadoria em grandes e repetidas parangonas auditivas, que apelavam à compra dos mais recentes títulos, prometendo fruições inigualáveis, o que nem sempre sucedia.
Desses tempos recordo algumas colecções e livros muito publicitados, como a Colecção Vampiro (policiais) e a Argonauta (ficção científica). De livros, poucos recordo, embora tenha presente O Macaco Nu, de Desmond Morris, a trilogia Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr. (Argonauta) e Que faz correr Sammy?, de Budd Schulberg. Este último foi tão badalado que ficou indelevelmente gravado na minha memória, embora nunca tenha tido conhecimento do tema e do autor até hoje, e que só sei porque pesquisei há bocado na internet, por curiosidade, antes de o mencionar. Talvez um dia o leia, quanto mais não seja para que o título que carrego na memória há mais de 40 anos faça algum sentido. Quanto ao Cântico, por ser um aficionado do género, comprei a trilogia e nunca me arrependi, pois considero-o ainda hoje uma óptima visão possível de um futuro improvável (será?).
A Feira era uma fuga para saborear, para sonhar, para fazer sacrifícios em nome do prazer e da cultura e em detrimento dos bolos da confeitaria e das partidas de bilhar e ping-pong. Só que, nesse tempo, por inexperiência, por juvenil incultura, por impulso ou porque, pelo nome ou referências críticas empoladas, os poucos livros a que tinha acesso (em termos de disponibilidade financeira, pois a mesada era curta) assemelhavam-se às “raspadinhas”: a maioria das vezes não premiavam os leitores como eu, embora alguns, num futuro, à época, mais remoto, até se tenham, por vezes, tornado interessantes. Aprende-se com os erros.
Acima de tudo, ir à feira era como ir à praia, era socialização, era partilha de gostos e interesses comuns, era consenso, era resignação, era aprendizagem, era selecção e aprofundamento de amizades.


3. mar, 2021
202 - Às vezes a vida tem 2 pés esquerdos e faz-nos andar mais devagar

04h07, 3ª feira, 02/03/2021
Não, não morri; não, não estive doente ou incapacitado; não, não abandonei o meu projecto de escrita; não, não tive tempo.
Essa foi a verdadeira razão para uma interrupção tão grande da regularidade irregular das minhas comunicações escritas a mim e ao mundo: não ter tido tempo nem predisposição psíquica para o fazer. Tenho sofrido um período de sono insuficiente ou, direi antes, deficiente, aliado (e também consequência directa) a um aumento de indisponibilidade provocado pela minha reentrada na vida universitária (ainda dizem que quem corre por gosto não cansa!).
Torna-se agora um pouco mais penoso dar continuidade ao que me propus fazer de há quase nove anos até esta data e que teria todo o gosto de que se prolongasse ad aeternum mas que a EMV (esperança média de vida) despoticamente não permite. Seria colossal ter uma obra que se espalhasse por dezenas, centenas de anos, e que espelhasse, não apenas uma experiência de vida entre muitas, mas também o lento mas persistente refinamento da capacidade de escrita, de estilo, de pensamento, de experiência e de sabedoria. Mas, como cantava Freddy Mercury, Who Wants to Live Forever?
Penso que, salvo excepções que não consigo quantificar, se chega a um patamar em que viver já chateia, em que o espírito se cansa do fardo que tem vindo a carregar desde o nascimento, e pede reforma, cada vez mais racional e insistentemente.
Sou muito apegado à vida e esse momento ainda não me chegou, essa “jubilação” pode ainda esperar mais uns anos ou, quem sabe, até décadas, se a funcionalidade física e mental o permitirem sem demasiado sofrimento. Caso contrário - e generalizando -, mesmo que não queiramos e para nosso bem e dos que nos têm de aturar, devemo-nos sujeitar à “reforma compulsiva” final - ao descanso do guerreiro.

Pax anibamus nostris.


201 – Comemorações consumistas ou os consumos comemorativos
(Ao fim de tantas publicações, acho que já é altura de titular as novas crónicas)

23h12, 14/02/2021, domingo – Dia dos Namorados Confinados
Ora aí está mais um dia tipicamente consumista, à semelhança do Natal, da Páscoa, do Halloween e de muitos outros. A natureza quase descaradamente negocial sobrepõe-se ao simbolismo e é, a maioria das vezes, criada e/ou alimentada propositadamente. Direi até que o significado comercial suplantou ou mesmo matou algumas datas comemorativas, e não me admirará muito se algum dia, num futuro não muito distante e distópico, o verdadeiro significado, a verdadeira essência de uma data, desapareça totalmente da memória da humanidade e se transforme em mais uma Black Friday ou similar, passando a figurar nas enciclopédias e dicionários como – e passo a citar esse futurismo: uma efeméride que se supõe ter sido baseada numa antiga e incerta festividade pagã, ou algo de muito similar, dando deste modo origem a um rol de conjecturas. E assim se vão perdendo as tradições para dar lugar às promoções.
Natal – brinquedos; Páscoa – ovos de chocolate; S. Valentim – flores e ceias; Dia de Fiéis defuntos (como antigamente se chamava) ou Halloween - disfarces e doces, e tantas outras datas que se irão transformar em algo quase ou totalmente irreconhecível. Um dia, por este andar, a representação simbólica e icónica da Humanidade será um grande saco de compras.
A saturação do mercado é já tão grande que nem os próprios criadores directos e indirectos – os lóbis comerciais e os pequenos comerciantes – beneficiam da situação. Já não vale a pena investir em produtos alusivos pois, como toda a gente vende, o escoamento não é garantido, por saturação, e poderá até ficar desatualizado de um ano para o outro, tornando-se um fardo inútil, um mono e, consequentemente, um prejuízo.
No entanto, o investimento continua, com novas e efémeras formas revolucionárias de esvaziar as carteiras dos consumidores e entupir as prateleiras dos comerciantes com inutilidades poeirentas.
Inverter esta situação é urgente e necessário, para bem da nossa sanidade mental e económica; porém, o retorno à pureza dos bens verdadeiramente essenciais torna-se cada vez mais difícil. Não nego que pequenos luxos, pequenas extravagâncias são sempre necessárias para aplacar e satisfazer o nosso ego, mas nada de exageros, é imperativo mantermos limites racionais, ponderados, sem cair nas tentações de um inferno consumista e fútil.


02. fev, 2021
Post 200

23h30, 02/02/21, 3ª feira
Ao fim de um interregno mais longo do que o normal, decidi-me a escrever novamente. Toda a carga negativizante das provações físicas e psicológicas que, directa ou indirectamente, temos experimentado, condicionam o humor, a disposição e a inspiração para escrever. Por vezes dá a impressão de que não vale a pena fazê-lo, de que nada vale a pena fazer.
Não sou nenhum super-homem nem sequer exemplo de perseverança e positividade, mas tenho consciência de que a inércia é mais prejudicial do que qualquer tentativa, mesmo que incipiente, de movimento, de reacção ao marasmo, que se propende instalar na mente de cada um. Por isso escrevo, por isso “dou corda às sapatilhas” do pensamento racional e debito qualquer coisa, por mais superficial e irrelevante que seja.
Há alguns anos, quem tinha carro, mas pouco o utilizava, punha-o a trabalhar de tempos em tempos, para carregar a bateria e olear as peças do motor, para evitar que gripasse, prevenindo assim arranques difíceis ou manutenções mais dispendiosas. Assim é com a mente e com a escrita, e até mesmo com o corpo: há que dar umas “aceleradelas” de vez em quando, para manter o bom funcionamento e não enferrujar.
Atualmente, tendemos a tomar consciência da nossa fragilidade e efemeridade. Que o digam as estatísticas, que mostram um aumento de preocupação com o porvir, na forma de escrituras e testamentos, visando acautelar as nossas relações com um futuro que, sendo sempre incerto, recrudesce agora de receios e incertezas, levando-nos a salvaguardar mais eficientemente o nosso legado geracional. Digamos que tais disposições legais são “just in case” - só para prevenir.
Há um ano, tal como em outras incontáveis gerações de próximas ou remotas épocas, julgávamo-nos imortais. Hoje já não é tanto assim, e essa revolução na forma de pensar e agir no mundo e com o mundo traz, para além do inevitável stress e seus associados sentimentos de impotência e até desespero, uma nova consciência de nós e do nosso futuro agregado, um repensar da vida e do seu sentido, um reforçar do altruísmo e da espiritualidade.


24. jan, 2021
Post 199

03h41, domingo, 24/01/2021
Pinto-calçudo! Expressão assaz curiosa que os meus familiares mais velhos usavam quando eu era miúdo!
Nunca questionamos essas expressões, esses “dizeres”, pois fazem parte do nosso currículo linguístico desde tenra idade. Até que um dia a curiosidade se instala, cola-se a nós, não nos larga até a satisfazermos. Bem, estou a falar de cor, não sei o que se passa com os outros, mas comigo, a partir do momento em que me proponho tal desafio, largo tudo o que estiver a fazer e procuro satisfazer essa minha curiosidade, esse meu hiato de interpretação etimológica.
Pois bem, hoje foi mais um dia em que a dita se instalou com sem-cerimónia, como acontece em todas as milhentas vezes que me espicaça. Não resisti, ela levou a melhor e, satisfazendo-a, satisfez-me. De acordo com o fidedigno site do “Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”, significa – e passo a citar:
Pinto calçudo é a denominação de um pinto que tem as pernas revestidas, em grande parte, de plumagem. Calçudo é palavra derivada de calças. Essa plumagem do pinto é comparada a umas calças. Nem todos os pintos têm essa plumagem, só algumas espécies, que constituem uma minoria em relação à generalidade dos pintos.
Por extensão, designava-se pinto calçudo o rapazito cujas calças aderem às pernas, que deixou os calções pelas calças compridas, que já não é menino mas ainda não é homem, e se mostra algo desajeitado na sua pele. O termo também se aplica a alguém que usa calças estreitas e ridículas, que não chegam bem ao fundo das pernas ou que está mal-arranjado ou se veste desajeitadamente, ferindo a norma clássica.
É interessantíssimo procurar a etimologia das palavras e expressões que utilizamos e que, muitas delas, se perdem nas brumas do passado. Há quem diga que isso é uma perda de tempo, que não interessa encontrar a raiz, uma vez que o conhecimento do seu significado é suficiente.
Uma palavra é tanto mais “oca” quanto mais desconhecermos a sua origem, o porquê do seu nascimento e do seu uso. Aliás, quando preenchida, permite-nos travar frutuoso conhecimento com todos os seus sinónimos e antónimos e respectivas nuances, enriquecendo, tanto a oralidade como qualquer texto escrito, seja ele uma simples dedicatória ou o mais complexo tratado.
O saber não ocupa lugar, mas ajuda-nos a preencher esses espaços ocos das palavras, recheando-as de significado.


13. jan, 2021
Post 198

23h29, 3ª feira, 12/01/21
Durante o meu percurso diário para o trabalho meditei um pouco sobre o conceito de Aldeia Global e da extrema desfiguração, ou antes e mais justamente, falta de acuidade, do termo. Como podemos nomear o nosso planeta, a nossa cidade, o nosso prédio, com essa terminologia, se nem mesmo neste último exemplo temos a mínima noção de quem são os nossos vizinhos do andar de cima ou de baixo, ou mesmo do lado?
Na autoestrada vejo passar centenas de veículos, conduzidos por pessoas das quais nem vislumbro as características faciais e que são para mim, consciente ou inconscientemente, objectos físicos ausentes de substância, meros entes biológicos amorfos, inidentificáveis. Reconheço muito mais facilmente os seus meios de transporte; sei que me cruzo, por exemplo, com um Toyota Yaris azul, do ano X, com a data de registo de matrícula Y, que contém no seu interior 2 ou 3 formas humanas vagas, ou simplesmente irrelevantes.
Isto pode algum dia ser uma aldeia global? Impossível! Há prédios que contém mais pessoas do que uma aldeia grande ou mesmo uma vila pequena e onde cada morador conhece quantos outros? 5, 10%? Nem isso?
É um conceito totalmente desadequado e impreciso. Para que fosse correctamente utilizado, teríamos, cada um de nós, seus co-habitantes, de conhecer mínimamente a vida, os nomes, as profissões, a família, as características gerais de cada um, o que é manifestamente impossível, mesmo para um génio ou um super-computador. Teríamos de ser um deus, mas não um daqueles deuses delegados do panteão dos deuses das grandes mitologias, pois cada um deles é “especializado” em algo muito particular: guerra, vento, amor, caça, oceanos, etc. Teríamos de ser o Supremo Arquitecto - seja um Zeus, um Jeová, um Alá ou que nome lhe queiramos dar.
Vivemos numa aldeia global sim, mas de cegos, surdos e mudos. Não vemos, não ouvimos, não falamos com o resto do mundo, limitamo-nos a ser grãos de areia numa praia ao sabor das ondas que nos revolvem. Não temos vizinhos ou lar, pertencemos ao Universo, apenas. Essa é a nossa indefinição global.


7. jan, 2021
Post 197

06h28, 4ª feira, 06/01/21 – Dia de Reis ou Festa da Epifania
 Ontem à noite foi dia de prendas para as crianças espanholas, pois a véspera e o dia de Reis são, para nuestros hermanos, o que a véspera e o dia de Natal são para nós, no que toca à oferta e permuta de presentes.
Afinal, quem está certo são eles, porque a raiz da tradição é a chegada dos Reis Magos a Belém, vindos do Oriente, com oferendas para o recém-nascido Messias. Não sei de fonte totalmente segura em que ponto da nossa religiosidade nacional nos separámos deste costume mais lógico do que o da nossa ancoragem natalícia.
Pelo que pesquisei, foi a partir da implantação da República em 1910, e em consequência do marcado anticlericalismo que atingiu, por arrasto, a própria religião católica – maioritária no país – que os feriados religiosos foram abolidos, só tendo sido restaurados em 1952 pelo Estado Novo, consequência directa da Concordata com a Santa Sé, em 1944. Restauraram-se de modo gradual comemorações e cerimónias religiosas e algumas foram renomeadas, como o Natal, que passou a ser o Dia da Família. Esse hiato de mais de quatro décadas (1910-1952) não foi bastante para retirar da alma dos nacionais os sentimentos religiosos, velhos de centenas de anos, embora algumas datas tivessem sido “mexidas” e outras agora já não passem de meras datas de calendário, ausentes ou quase da sua importância original.
Terá sido esse o caso do Dia de Reis, que certamente, antes da data referida, seria comum aos dois países ibéricos. À falta de uma revalorização, o dia perdeu a importância e o simbolismo originais, sendo a tradição “transferida” para o Natal, ou Dia da Família.
Mas pronto, as festividades antiquíssimas que marcavam o Solstício do Inverno e que foram adaptadas às tradições cristãs (eram a 21 e não a 24), acabaram. No fim do ano, se lá chegarmos, haverá mais, outras crianças nascerão para dar continuidade e alegria ao nosso Natal (seja com o Menino Jesus ou o Pai Natal) e ao Día de Reyes dos nossos vizinhos directos. Há mais 365 dias para viver, pontilhados aqui e ali por alguns feriados que servirão certamente para um pouco de olvido dos problemas e canseiras do dia-a-dia, para que o corpo e a mente, sujeitos permanentemente a pressões de variegadas grandezas, possam fazer pequenas paragens para recuperarmos energia e prosseguirmos as nossas vidas, cuja extensão, a bem da nossa sanidade mental, desconhecemos. Devemos dar o justo valor e esses pequenos tesouros calendarizados.


27. dez, 2020
Post 196

04h39, 2ª feira, 27/12/20
Acabou, passou o Natal. Como é sabido, trata-se de um dia que é impacientemente esperado pela maioria dos cristãos, dos religiosamente maleáveis, ou mesmo dos ateus para, pelo menos, estar com a família, e… Puff!! Já foi, ou como popularmente se diz, “já era”.
Este ano, como convinha, o número de presentes (falo dos presentes em carne e osso e não dos “presentes”) foi substancialmente reduzido: éramos apenas 7, embora nos dias de hoje mais de seis seja quase um anátema, um sacrilégio social, pois trata-se de um dogma governamental, apoiado nos dados do SNS e que compreendo, pois alguém tem de fixar limites de modo a evitar abusos que poderão vir a ser dramáticos. Resta-nos o consolo de podermos desabafar, embora com não muita convicção: “para o ano será melhor”. Será? Não é uma certeza, é uma esperança.
Daqui a 4 dias atingimos o portal de passagem para o novo ano (se dissermos ao contrário, fica melhor com maiúsculas: Ano Novo). Lembro-me de ter escrito que augurava cosas boas, tinha um feeling acerca de 2020. Acertei, nota-se.
Por isso vou deixar de me arvorar em adivinho e abster-me de presságios, formulando, no máximo, um “pode ser que…”, pois pode ser que muita coisa.


24, dez, 2020
POST 195

06h18, 4ª feira, 23/12/20
Tinha de escrever, nem que fosse algo de parco valor. A ideia atormentou-me durante grande parte da noite, onde me surgiram “textos” mentais que, a meu ver, seriam dignos de serem escritos, mas, como sempre, deixei passar a oportunidade. Faço-o agora, embora saiba de antemão que o que irei escrever é tão parecido com o que idealizei, como uma écfrase: tem pouco a ver com a inspiração original, será como uma fotografia desfocada ou uma aguarela desbotada pela humidade.
Como estamos a 2 dias do Natal, tento recordar a minha experiência infante, curta e ingenuamente pura, dessas 62 datas do passado. Bem, não serão totalmente puras, pois desde que nascemos vamo-nos tornando “sabidolas” de ano para ano, de dia para dia. No entanto, devido à tenra idade, podemos-lhes chamar puras, sem fugir muito à verdade.
Que recordações tenho desses longínquos períodos festivos, vistos e sentidos com olhos de rebuçados e mãos de prendas? Exactamente isso – gulodices e brinquedos. Por vezes também desilusões.
O Menino Jesus (era esse que dava as prendas, só muito depois é que o Pai Natal lhe usurpou o lugar), em alguns anos, devia ter os câmbios baixos e, como consequência, trazia algo de que eu não apreciava muito, como um brinquedo fraquito ou mesmo uma peça de flanela (verde) para fazer umas calças (este último foi o mais gelado balde metafórico de água fria com que levei).
Mas enfim, era sempre e apesar de tudo, um período mágico, com imensos filmes alusivos na televisão, inúmeros e cativantes desenhos animados, uns eventuais passeios pela longínqua cidade para ver as decorações das montras e a iluminação das ruas. Para uma criança como eu era, movimento, côr e luz apresentavam-se aos meus olhos como uma espécie de magia, um sonhar acordado de uma (ir)realidade idealizada.
Depois (aos 7, 8, 9 anos?) comecei a desconfiar que esse tal Menino Jesus não era o meu verdadeiro fornecedor de prendas. E como? Num desses Natais, há mais de meio século, recebi uma bola de futebol em borracha, resistente, cor de barro, mas que tinha um símbolo, uma marca com os dizeres” Made in West Germany”.
Estranho! Fez-me começar a matutar porque é que o Menino tinha ido à Alemanha comprar(?) a bola para me oferecer. Levantou-se então uma insidiosa suspeita que, na realidade, já andava a crescer há algum tempo na minha ainda incipiente cabeça: “se calhar foi alguém cá de casa que comprou, se calhar andei a ser enganado desde que comecei a ter algum discernimento, se calhar o Menino Jesus afinal não dá prendas nem nunca deu…”.
Estava a deduzir, a desenvolver a minha mente analítica, enfim, estava a crescer. Terminou assim o lado mágico do meu mito Natalício, morreu a fantasia.
Apesar de tão “desenvergonhadíssimo engano”, compactuei com ele, tendo sido mais tarde também desenvergonhadíssimo com as minhas filhas, e espero também que elas sejam igualmente enganadoras com os meus netos, se eventualmente os vier a ter.


14. dez, 2020
Post 194

03h52, domingo,13/12/20
Está uma noite de inverno (que ainda é outono) calma, silenciosa, com chuva miudinha que parece não molhar, mas que em pouco tempo nos encharca até aos ossos. Tempo melancólico, digamos. Traz-me à memória os postais que nos meus tempos de criança recebíamos em casa – por vezes mesmo um pequeno calendário de secretária – de uma associação de benemerência, da qual não recordo o nome, e que pedia donativos para ajudar os artistas que os pintavam. A particularidade e razão do pedido de ajuda era o facto de que todas as obras reproduzidas nos postais terem sido pintadas por artistas sem mãos, que pintavam com os pés ou com a boca, nada ficando a dever em qualidade àqueles outros em plena posse de todas as suas faculdades físicas. Curiosamente, após um interregno tão grande, recebi há dias um conjunto desses postais, enviados pela mesma associação.
Eram (e são) obras de muito boa qualidade, reproduzindo paisagens ou personagens alusivos ao inverno e ao Natal. Apesar de retratarem cenas natalícias (Pais-Natal, crianças a brincar na neve, anjos, pinheiros de Natal, brinquedos) ou outras alegorias festivas, adivinhava-as subliminarmente tristes, melancólicas, como acima referi.
Reflexo do estado de espírito dos pintores, talvez inconscientemente reproduzido e relacionado com a sua condição física, ou algo criado no meu próprio íntimo, por me aperceber dessas mesmas deficiências? Não sei.
Sei que as idealizações infantis têm grande influência na idade adulta, tanto positiva como negativamente, consoante as circunstâncias. Faz tudo parte da aprendizagem, do que experienciamos ao longo da vida, principalmente nessa época tão importante, em que somos marcados na carne e no espírito pelos choques da omnipresente e nem sempre feliz existência.
Iniciei esta crónica com a ideia pré-estabelecida de falar sobre os mitos da infância e juventude, e que são, numa percentagem quase totalitária, relacionados com a família e entes próximos.
Quando somos jovens temos os nossos ídolos, os nossos role models, aqueles de quem seguimos os exemplos, que são os nossos deuses pessoais, exemplares e imaculados. Em geral são o nosso pai, a nossa mãe, eventualmente um irmão ou irmã, tios ou avós. São seres que nos orientam, que nos castigam, que nos fazem a vontade, que nos contrariam, que nos afagam ou nos descompõem, em suma, que nos disciplinam física e espiritualmente, pois que além de role models, é imprescindível que sejam também rule models.
Depois vamos crescendo, não apenas no corpo físico, mas emocionalmente, e esses educadores, esses instrutores de vida, começam natural, progressiva e propositadamente a distanciar-se, a tolerar mais, a darem-nos espaço e livre pensamento. É geralmente a partir daqui que começamos a avaliá-los, já não ingénuos ou imaturos, mas progressivamente analíticos, embora essa análise seja ainda contaminada pela amizade, respeito e convivência. Eventualmente, acabaremos por nos render às evidências:
Eles, os nossos cuidadores e educadores, os nossos orientadores, não passam de seres normalíssimos, cheios de defeitos como nós, geralmente bons, por vezes maus. São mitos que criámos na nossa infância, super-homens e super-mulheres que a pouco e pouco vão perdendo a luz da aura que os ilumina e transformam-se em vulgares mortais, por vezes péssimos exemplos a seguir. São os nossos seres mitológicos, os nossos deuses de pés de barro pessoais.
Não pretendo com isto renegar a sua memória; apenas lembro de que foram seres imperfeitos como eu e que só a minha personalidade em formação os via isentos de pecado, perfeitos. Honro-os na mesma, pois que sem eles, sem os seus exemplos e fraquezas, não seria o que sou hoje. Devo-lhes alguns defeitos, é certo, mas também lhes devo sólidas e mais abundantes virtudes.
E por que falei neste tema? Porque também eu fui um deus no passado. Ao longo dos tempos fui perdendo estatuto, passei a deus menor, a semi-deus e finalmente ao tal ser imperfeito que continuo a ser.
Dou agora o lugar às minhas filhas; se elas tiverem descendência, sentar-se-ão no trono que já foi meu, e antes de mim, dos meus ancestrais. Mas é um curto reinado, menos de vinte anos, em regra. Também elas, por melhores mães que sejam, passarão um dia de bestiais a bestas e só recuperarão um pouco da dignidade perdida quando a sua ausência for sentida, quando nas margens do Estige, pagarem a Caronte a passagem para o outro lado do rio.


8. dez, 2020
 Post 193

04h25, 3ª feira, 08/12/20
Vêm-me por vezes – embora mais raramente, com o passar dos anos – recordações dos tempos de infância, adolescência e mesmo de jovem adulto. Acho que a memória vai progressivamente esquecendo o passado pois, à medida que o tempo rola, as ditas começam a deixar de fazer sentido, deixam de ser relevantes, ou mesmo merecedoras de atenção. A grande maioria das recordações do passado é tão relevante como (como era costume dizer-se) “a primeira camisa que vesti”, o que, certamente, foi um acontecimento extraordinariamente marcante na minha – à época – recém-adquirida e rudimentar memória. Da camisa não me lembro, mas recordo-me de, com 4 ou 5 anos, ter feito uma tremenda birra quando o meu pai me fez vestir o primeiro sobretudo, que tinha encomendado e feito por medida num alfaiate conhecido, de Oliveira de Azeméis. Naquele tempo (anos 60) ia-se ao alfaiate, não existia pronto-a-vestir. Porque é que embirrei com o sobretudo? Não faço a mínima ideia, talvez simplesmente porque.
Compreendo que não se deve deixar morrer o passado, quanto mais não seja para dar um testemunho de vida e de época, para que os vivos ou os mais novos possam saber como era existir “naqueles tempos”. Nós, cada um de nós (antepassados, viventes ou vindouros), somos a História, sem a qual não saberíamos bem quem somos, o que vamos legar e o que nos legaram. E para isso é necessária a memória.
No entanto, piedosamente, com o passar dos anos, o oblívio vai-se instalando, vai criando filtros que retêm aquelas nossas recordações que já foram importantes, mas que se vão tornando cada vez mais irrelevantes, lembranças que passaram a meras curiosidades e, portanto, dispensáveis. Se assim não fosse, acabaríamos por nos tornar velhos chatos, que só sabem falar do antigamente, das tais histórias que só interessam a eles próprios, entediando quem lhes ouve sempre o mesmo disco. Para esses, o presente não passa de lixo, pois antigamente é que era bom. Pobres peças de museu…
Eu, confesso, não me libertei muito do passado, ainda relembro coisas de infância. Ao relembrá-las, confronto-me por vezes comigo próprio e vou assim desfazendo muitos auto-enganos e mentiras, vou-me decifrando um pouco mais.
Conhece-te a ti mesmo, lia-se na entrada do Templo de Apolo em Delfos, na Grécia.


30. nov, 2020
Post 192

01h03, 2ª feira, 30/11/20
Quase Natal! Este ano passou lentamente a correr.
Uma afirmação que, embora aparentemente paradoxal, quase um nonsense, tem a sua razão de ser, a sua lógica. Senão, vejamos: este ano foi o mais atípico de todos, se é que houve, na minha existência, algum ano que tenha fugido tão brusca e radicalmente ao que, por vivência, chamamos ano típico ou normal. A partir de fevereiro, e em crescendo, começámos a sentir sobre nós o peso da constatação (ia dizer “da consciência” mas, por ambiguidade, soaria a algo moral, que não é o caso) de uma calamidade potencialmente letal. Eis que, vindo de algum ignorado esconso, abate-se sobre a humanidade o espectro da doença e da morte. Há que confinar, como agora é uso dizer-se, há que abolir beijos, abraços, qualquer contacto físico - a nós, os animais mais parecidos, em comportamento, com os macacos Bonobo; nós, que dependemos maioritariamente do contacto físico para socializar (Excluo, evidentemente, nesta comparação, a desusada interacção erótica dos ditos símios).
É evidente que me estou a referir às sociedades ocidentais, europeias, do Sul, às Américas e talvez à Oceânia. Em África, julgo que há um relacionamento social extremamente heterogéneo, dependendo do país e da miríade de culturas existente. Na Ásia há, em geral, um distanciamento físico muito pronunciado, e nos países do Norte da Europa será igual.
Estou, evidentemente, a generalizar. Haverá países, nos vários continentes, onde a variação dos relacionamentos humanos foge aos parâmetros que citei. Que se me perdoe a relativa taxatividade do julgamento.
Mas, voltando ao início da crónica, dizia eu que o ano foi temporalmente lento e rápido. Pois foi. Lento, no passar dos dias fechados em casa, sem poder sair como habitualmente, sujeitados a um novo conceito de niqab, cafés, restaurantes, locais de diversão nocturna ou diurna e espaços culturais, muito condicionados, ou mesmo fechados. O tempo, quando nos habituamos a gastá-lo em diferentes actividades sociais do mundo moderno, e que vemos abruptamente coarctadas, torna-se uma eternidade.
Por outro lado, e consequência directa do factor anterior, foi tudo extraordinariamente rápido pois, se atentarmos ao que não conseguimos fazer, à actividade que não tivemos, parece que passou num ápice.
Quantas vezes costumamos dizer: não consegui fazer nada, não tive tempo para nada, parece que o tempo não rende? Pois é, o tempo passou num instante, visto que nada se conseguiu fazer, “não tivemos tempo”. E, contudo, passaram-se 10 meses de um longo ano que não existiu.


24. nov, 2020
Post 191

03h17, 24/11, 3ª feira
Neste momento tomo conta do meu silencioso deserto. Nada se passa, não há vento, não há trânsito, não há nada. Isolando as causas, não sei se bendiga ou amaldiçoe este estado de ausência sensorial; estou habituado, desde o meu nascimento, a ruídos, movimento, estimulação ocular, enfim, tudo com que o progresso civilizacional nos brindou logo desde o nosso primeiro arfar, desde o primeiro contacto com este meio gasoso, sem o qual, após a chegada, não subsistiríamos: o oxigénio. O que seria uma vibração surda (já não me lembro – se é que alguma vez lhe tive fugaz memória), velada por uma ou mais paredes de carne recheadas por um líquido amniótico, tornou-se a partir daí a nossa convivência diária, o nosso deleite, o nosso espanto e o nosso susto. Exceptuando-se a palmada no rabo logo após a pouco triunfal entrada neste orbe (o que agora tem tendência a desaparecer) que nos prenunciava o longo e doloroso caminho que teríamos de percorrer até ao reencontro com o Logos dos estóicos (mas sentido não muito estoicamente), será a descoberta - direi mais: o uso - da audição que nos marcará mais fortemente nesses primeiros dias após a perda do Éden líquido em que beatificamente repousávamos. Claro que depois surgirão os outros sentidos: a visão, o olfacto e o gosto, que nesta fase preliminar é muito associado ao tacto.
Porém, o mais marcante contacto desses primeiros momentos é, para mim, o som, a audição como a primeira percepção do mundo exterior, a descoberta dessa coisa sem nome que nos seduz e aterroriza, e que surge muito antes da visão ou do tacto.
Voltemos ao meu “líquido amniótico”, àquele a que dedico 9 horas da minha vida, 5 dias (noites) por semana. Não fora as obrigações inerentes e um ou outro stress, o meu “útero” seria até perfeitamente aceitável. Não há bela sem senão, o mundo não é perfeito, é adaptado, ou então adaptamo-lo a nós. Aqui não existem os problemas, mas a memória dos problemas, e só nos preocupamos, só stressamos, só nos entristecemos porque, embora deixemos os ditos lá fora, na nossa “outra vida”, esquecemo-nos de arrumar a memória junto deles, trazemo-la connosco, e esse é que é o problema do problema. Algumas memórias deveriam estar ligadas à sua origem por um fio muito curto que as impedisse de nos seguir.


12. nov, 2020
Post 190

06h22, 4ª feira, 11 de novembro - dia de S. Martinho
Quase a raiar o dia, que agora, e até 24 de dezembro, começa cada vez mais tarde. Mas isso é do conhecimento geral, passemos à frente.
Esta noite foi das mais silenciosas que passei, em contexto de cidade. Nas aldeias é fácil nada ouvir, aparte algum breve latido ou o pio de um mocho ou de uma coruja. Aqui na cidade, não. O silêncio tem sempre qualquer coisa de barulho, seja um carro que passa, alguns noctívagos que falem, ruido de máquinas ou ventiladores. É sempre um silêncio branco-sujo.
Não posso falar de um silêncio supremo, pois dentro dos nossos ouvidos há sempre um barulhinho, quase imperceptível que, se prestarmos atenção, conseguimos “ouvir”, se se pode chamar ouvir a esta ténue sensação. É a nossa máquina que, também ela, faz barulho. É uma gradação branco-gelo.
Por vezes é muito agradável a sensação de ficarmos surdos no mundo e para o mundo. Direi mais, é imprescindível fazê-lo, pontualmente ou nem por isso, tentar encontrar um pouco de paz, de alheamento, de equilíbrio, ser como uma pedra, que simplesmente existe, que não ouve, não vê, não cheira, não sente, não fala. Apenas é (o mais próximo do Nirvana, o branco absoluto).
………………………………………………………………………………………………………………………………….
Medeiam quase 24 horas desde que escrevi as últimas linhas do texto acima. A minha falta de fé na consecução coerente e lógica do dito fez com que interrompesse sine die ou, neste caso, sine hora, o raciocínio (meta)físico-filosófico que tinha encetado. Tempus fugit, e com ele a oportunidade.
Constato, no entanto, que o silêncio se mantém como ontem, apenas acrescentado do bramido do mar, quiçá devido a uma acústica melhorada pela direcção do vento.


4. nov, 2020
Post 189

23h52, 3ª feira, 03/11/20
Decidi-me a escrever. Infelizmente, esta situação que vivemos actualmente (terão existido outras similares no passado, com outras gerações) não é, de certo modo ou para certas situações, muito favorável à criatividade.
Apercebo-me, embora quase subliminarmente, da propensão, que os psicólogos têm ultimamente ventilado, de que há uma situação generalizada de desgaste psicológico, de uma tendência para estados depressivos, bastante acentuada.
A minha avaliação da situação é geralmente calma, controlada, racional, por vezes estóica, pese-me embora um certo discurso negativista, no qual, todavia, não me revejo. É como se eu tivesse uma dupla personalidade, ao estilo de Dr Jeckill e Mr. Hyde : uma para a vida, outra para a escrita.
Admito no entanto que todas as actuais pressões psicológicas, potenciadas pelos media, pelos discursos de cariz realista, mas por vezes sensacionalista-catastróficos, minam a confiança num desfecho, que não direi ao estilo dos contos de fadas, onde o príncipe e a princesa vivem felizes por muitos anos, até morrerem pacificamente de velhinhos, mas num registo pré-pandémico onde se morre “naturalmente”, em geral por doença ou acidente, e cada vez menos por velhice.
Afinal, onde está a diferença entre se morrer de A em vez de B ou C ou qualquer outra letra do alfabeto? Morre-se. E por vezes por modos comparativamente piores, mais horríveis, mais dolorosos, mais desumanos. A diferença está na publicidade, na maneira como as causas são apresentadas.
Recordo-me de ter visto há alguns anos uma reportagem num país do Médio Oriente, em cenário de guerra. Veem-se pessoas no mercado a fazerem as suas compras do dia-a-dia, como sempre fizeram até então. A única diferença era os rockets a cair perto dali. Ninguém entrou em pânico, ninguém parou para pensar que estavam a cair muito perto, ninguém fugiu. Era a sua normalidade, era a consciência de que os rockets caíam ali como em outro lado qualquer. E não era fugindo que se conseguia fugir deles. Era, como diriam, pôr-se nas mãos de Allah e aceitar a Sua vontade.
E porquê? Porque a publicidade num epicentro de guerra não existe, ou quase. Porque não há media que pintem a morte com cores horríveis, porque a morte é simplesmente transparente, invisível. Fazer “ver” a morte, que é a função dos media, é torná-la visível no mundo físico, é materializar o etéreo e apelidá-lo de horrível, injusto e eminente – dirão antes, omnipresente. A morte passa a ser o bicho-papão, o Baba Yaga, que não existe, mas é agrilhoado à força na mente de cada um.


28. out, 2020
Post 188

23h52, 2ª feira, 26/10

Pego na pena e escrevo.
Escrevo ao correr da pena.
Noutros dias não escrevo,
e tenho pena.
Por vezes é penoso nada ter para escrever.
Nalguns escrevo muito de uma só penada.
Mas nem sempre algo que valha a pena,
nem o tempo de molhar a pena.
Tenho pena de não morar em Penamacor,
ou mesmo Ribeira de Pena.
Pena Ventosa não, seria muito penar.
Mas Penacova…
Ouço um esvoaçar e cai uma pena do céu,
em cima da minha pena.
Pego na pena caída,
É bonita, mas é-me inútil, a pena.
E deito-a fora com pena.


É uma pena perder tempo com poemas tão pueris, tão incipientes, tão naïve, mas é para o que me dá, às vezes. Posso ser um péssimo aprendiz de poeta mas, pelo menos, partilho a minha mediocridade, na esperança de ir melhorando. Ou piorando.


21. out, 2020
Post 187

01h28, 4ª feira, 21/10/20
Quão volúvel é o tempo! Há cerca de 1 hora havia no ar e nos sentidos uma beatífica sensação de quietude, transmitida pelo tempo atmosférico parado no tempo cronológico, aquele tempo outonal onde a inércia eólica e pluvial traz consigo um calmo silêncio (se é inércia, como pode trazer algo, se não há movimento?), uma poalha líquida que tudo envolve, qual Londres romântica e idealizada, onde impera o fogg, espraiando-se pelos parques, ruas, ruelas e jardins.
Digo Londres idealizada porque, na verdade, não acredito totalmente nesse fogg romântico. Talvez ele exista, mas é, em parte, mitificado pela literatura, pelos filmes produzidos nos anos 50 e 60 do século passado, pelos romances vitorianos e pós-vitorianos de Charles Dickens, Jack London, mesmo até pelos romances policiais de Agatha Christie. Enfim, uma miríade de clichés que foram formatando a nossa visão de uma cidade e de um país, ao longo de décadas.
Acho que todos os países têm, entre outros, o seu mito meteorológico, as suas estações do ano idealizadas, romantizadas, como, afinal, tudo o que um país tem para oferecer e que expõe nas suas artes, nas suas letras e no seu folclore: um fotoshop, uma fotografia retocada da realidade.
Mas, dizia eu, isso foi há cerca de 1 hora; agora o tempo mostra a sua verdadeira ou averdadeirada cara de outono. Vento fresco e desagradável, penetrante, ameaça de chuva que, julgo, se concretizará em breve, num princípio de desolação e desconforto que se vai avizinhando à medida que o inverno se aproxima e do qual, este mês e o próximo são o arauto e o prelúdio.
Ainda teremos, se tudo correr conforme a antiga normalidade de que nos estamos progressivamente a desabituar, o tradicional verão de S. Martinho, um mini-estio variável que ronda o 11 de novembro e dias precedentes e posteriores, e que é cada vez mais incerto.
Aí sim, é (era) a cerimónia da despedida dos dias cálidos e secos - como uma espécie de rebuçado que se dá às crianças antes de levarem a injecção da vacina!
Para o ano há mais! – é a promessa que paira no ar e que vamos aguardando ano após ano, até ao dia em que já não nos fará diferença.
Mas isso são outras histórias.


5. out, 2020
Post 186

05h55, sábado, 03/10/20
O que nos faz sermos o que somos, termos as aptidões que temos, ou a falta delas? Porque é que há quem vença na vida, se destaque entre os demais, como se tivesse nascido já ensinado? Não serão, seguramente, só os genes ou a aprendizagem.
Há quem não tenha nenhum ascendente de relevo ou sequer medíocre e torne-se um génio na sua área de conhecimento. Outros, pese embora o facto de terem nascido em famílias sobredotadas, não apresentam aptidões minimamente aproveitáveis. Outros ainda, providos de educação esmeradíssima, por mais que se esforcem, não conseguem extrair das suas existências nada de útil.
No entanto, há seres extraordinários que, mesmo sendo oriundos de ambientes familiares incultos ou desestruturados, ou ambos, e não tendo tido nada além de uma educação e instrução básicas, ou nem isso, tornam-se génios nas suas áreas de actuação.
Porquê estes percursos de vida aparentemente anómalos, como se o Supremo Arquitecto, o destino, o acaso ou que nome lhe pretendam dar, lançasse os dados aleatoriamente, como se a lógica do universo fosse uma mera tábula rasa?
Afinal, filho de peixe nem sempre sabe nadar. Parece que a humanidade contém nos seus genes de espécie, tanto a possibilidade de criar idiotas como prodígios, ignorando as matrizes, de um modo aparentemente ilógico. Isto numa análise que segue uma perspectiva individual e, portanto, potencialmente falível.
Podemos também considerar como factor a chamada teoria da reencarnação, já aqui focada em outras ocasiões: vimos à Terra para aprender uma lição no decorrer das nossas vidas e, mais tarde, retornaremos, ou para “avançar de classe” ou, se reprovarmos, para reaprender a matéria da aula anterior. Faz um certo sentido. Não significa, porém, que a teoria seja válida, pois é apenas uma teoria, como a da evolução, dos extraterrestres, etc. Todas têm falhas ou perguntas sem resposta, seja por ignorância nossa ou por apresentarem deficiências intrínsecas.
À medida que vamos evoluído, que vamos treinando e expandindo o nosso raciocínio, surgem cada vez mais perguntas e mais perguntas sem resposta. Evoluir traz consigo um acréscimo de incógnitas e incertezas que nos deixam inquietos e frustrados.
O saber traz sofrimento e, simultaneamente, alegria. Parece que quanto mais se sabe, mais perguntas surgem. Cada resposta cabal contenta o inquiridor, mas acarreta também mais dúvidas que o entristecem e afligem.
Felizes, só os pobres de espírito.


29. set, 2020
Post 185

00h42, 3ª feira, 28/07
Há um ano estava em Florença, há dois em Santiago de Compostela, há três em Londres e este ano em casa: quatro anos, quatro destinos diferentes, não me posso queixar.
Isto de estar em casa este ano e nos anos anteriores noutros países, não é ironia. Podemos ficar em casa e ter umas óptimas férias, apenas temos de saber aproveitar o tempo; foi, afinal, o que eu fiz. Há muito para descobrir no lugar onde vivemos, e por vezes admiramo-nos por nunca sequer termos imaginado as pequenas (e grandes) maravilhas que se encontram quase à nossa porta.
Recorda-me um slogan publicitário que correu o país há alguns anos, fruto de uma campanha de promoção turística nacional: “Vá para fora cá dentro”. Este ano, mais que nos anteriores, fez muito sentido, não apenas como substituição de uma difícil saída para fora das fronteiras, devido à situação sobejamente conhecida, mas também por se tratar de uma opção que tendemos a ignorar, como se o espaço em que vivemos e do qual somos cidadãos não merecesse uma atenção, uma exploração lúdica e cultural mais aprofundada.
Londres, Paris, Barcelona, Roma ou Atenas poderão ser destinos maravilhosos – pelo menos para a maioria – mas não podemos esquecer o nosso próprio país que, como qualquer outro, tem muito para descobrir e maravilhar. De que vale conhecermos o resto do mundo como a ponta dos nossos dedos, se desconhecermos o solo que pisamos e é nosso?
Não estou a ser hipócrita, todos os lugares que visitei durante estes anos foram por oferta de familiares e muito os apreciei, pois abriram-me novos caminhos, novos horizontes. Foram viagens agradavelmente compulsivas e involuntárias, pois não sou pessoa de me deslocar muito, em parte devido a circunstâncias particulares de que não falarei, por serem do foro íntimo. Porém, se essas limitações desaparecerem e a mobilidade e as finanças se mantiverem nos mínimos exigidos, terei imenso prazer em conhecer melhor o meu país, como sempre foi meu desejo.
Uma fotografia vale mais do que mil palavras, mas uma viagem vale mais do que mil fotografias.


20. set, 2020
Post 184

23h28, sábado, 19/09
Seis dias de não-trabalho, de não-férias. Não, não vou iniciar um choradinho de auto-piedade; apenas constato uma realidade, da qual ninguém tem culpa: a chuva e as restrições não são o melhor palco para férias. Talvez para o ano.
Mas não foi para isso que comecei a escrever, foi para arejar os pensamentos, para dizer qualquer coisa, mesmo que não diga nada. Chega-se a um momento em que o acto de escrever se torna quase uma compulsão, tal qual os livros que adquiro. São quase uma necessidade, algo de que não consigo abdicar sem me sentir assaltado por uma… Bem, não direi angústia, mas como um sentimento de que estarei a perder algo de que necessito para manter a minha homeostasia, o meu equilíbrio interno.
De certa forma compreendo os avaros, os que amealham tudo o que podem, que sacrificam a sua comodidade, o seu bem-estar, para acumular riquezas, das quais não tiram proveito. A avareza, embora mais desprovida de sentido, mais prejudicial para todos os envolvidos (o actor e o seu círculo de influências), assemelha-se à “livreza” (perdoe-se o neologismo), pois apercebo-me de que, embora tente seleccionar criteriosamente o que compro, refinando os meus padrões de interesses e consequentes gostos de leitura, nunca conseguirei ler em vida todos os títulos que vou adquirindo com relativa regularidade, facto que, para mim, é extremamente penoso. A grande diferença entre um e outro é que o primeiro amealha e não usufrui, enquanto o segundo amealha e não tem tempo suficiente para usufruir.
A exemplo do meu pai – a quem, por isso, estarei eternamente grato – fui, desde criança, um leitor ávido, que chegava a ler um livro por dia, todos os dias. e Isso traduz-se numa capacidade de fazer uma leitura rápida e profunda, sem hiatos nem simples afloramentos. Para mim, ler assemelha-se ao desempenho de um operário experiente, que faz as suas tarefas com uma perna às costas, como sói dizer-se.
Aliado a esta apetência junta-se o facto de que a minha tia, que me criou desde bebé, ter-me legado a sua parte da biblioteca de família. Entretanto, os meus irmãos, por variadas circunstâncias, delegaram-me a responsabilidade da guarda da outra parte, outrora pertencente ao meu pai. Somados aos meus, no cômputo geral, são já mais de 4560 títulos.
Actualmente já não tenho muito tempo para ler, nem a mesma disposição. As voltas da vida trocam-nos as voltas. Leio agora a um ritmo substancialmente inferior ao das aquisições e com a consciência de que os livros de que gosto e compro ficarão, na sua esmagadora maioria, fechados para sempre, pois estou convencido de que os hábitos de leitura desta casa morrerão comigo. Não que não me tenha esforçado no passado, mas porque simplesmente já desisti.


14. set, 2020
Post 183

14/09, 2ª feira, 1h32
Férias, finalmente! Daqui a ¼ de dia, entro oficialmente nas ditas. Para festejar o acontecimento, a própria Natureza, contente por me ver neste período breve de descanso, brindou-me com uma chuva de translúcidos confettis de ….chuva. Parece que estes festejos vão ser recorrentes e eventualmente acompanhados de “fogo de artifício” durante, pelo menos, a próxima semana. Que bom!
O que vale é que o Estado e a Direcção Geral de Saúde, cientes da minha necessidade de repouso, vão restringir a minha actividade exterior por um período indeterminado. Ouro sobre azul!
Deixemo-nos de ironias, o tempo está como está e a situação pandémica exige o que exige, tenho de me adaptar e descobrir modos de apreciar convenientemente o período sabático que hoje se me inicia, se a tanto me ajudar o engenho e a arte.
Como referi aqui uma vez, estamos a entrar no período em que as árvores se despem e os homens se vestem, o prelúdio da estação fria. Não sou muito adepto deste tempo indeciso mas há que reconhecer que, em parceria com a primavera, o outono apresenta as mais belas paisagens e os mais belos coloridos, com a única diferença de que a primeira exibe uma extraordinária exuberância de cores, vivas, alegres, extasiantes, enquanto no último predominam os tons pastel, uma pachorrenta calmaria de cores relaxantes, meditativas, que prenunciam a hibernação da Natureza, um convite à calma e à reflexão (também um convite a ficar em casa para fugir do frio e da chuva).
Tenho nos meus planos fazer todas aquelas coisas que não farei, tomar todas as resoluções que tenho postergado e que agora irei procrastinar. E, quando chegar o dia 28, vou olhar em retrospectiva e estressar com tudo aquilo que não fiz e que certamente não estará feito quando eu fizer a passagem para a fábrica dos tijolos, que é a única coisa que eu adio sem estressar.


13. set, 2020
Post 182

13/09, domingo, 04h09
Está na hora de gastar mais alguma tinta virtual no meu espaço web. Antes, contudo, gasto alguma tinta real numa folha, geralmente A4, que transferirei para o computador, após edição.
Anacronismo? Não, a escrita real dá-nos intimidade, um não-sei-quê diferente e reconfortante que nos sacia mais do que uma escrita por teclado. É algo que saiu verdadeiramente de nós, da glândula exócrina que é o nosso cérebro, instrumento da alma, do intelecto. Um computador é algo frio, impessoal, mecânico, útil mas amoral.
Isto, claro, é o meu entendimento, do alto dos meus 63 anos (e 2 exactos meses). Mas reafirmo que não estou a ser anacrónico, sou apenas um homem do meu tempo, que aprendeu a escrever, aprendeu a escrever à máquina – que ainda tenho: uma Royal, que era do meu pai – e, finalmente, a escrever num computador. O meu mundo era escrito à mão, sendo a máquina de escrever um mero instrumento de trabalho e o computador, uma ideia de ficção-científica.
Escrever à mão é gratificante; dá-nos prazer ver a mão, os dedos a movimentarem-se imperceptívelmente, a imprimirem no papel os nossos pensamentos, as nossas decisões, os nossos desabafos, as nossas parvoíces ou as nossas obras-primas. Escrever à mão investe o escrito de um peso ético muito grande - não tão grandioso, mas similar ao gesto de D. João de Castro, Vice-Rei das Índias, nos idos de 500, que empenhou as suas barbas como garante de um empréstimo que pediu a Goa para reconstruir Diu, arruinado pela guerra contra os turcos.
Quem escreve assume um compromisso, seja ele qual for, selado com a sua própria escrita, a sua própria mão. Falhar esse compromisso é uma desonra para a mão que escreve e para o seu possuidor.
Empenhar as barbas hoje em dia seria um anacronismo digno de chacota, uma atitude que, infelizmente, perdeu o seu carácter nobre e respeitado, tanto pelo credor como pelo devedor. Pena que a integridade, a honradez de antanho tenha deixado de ter valor neste nosso mundo desconfiado e corrupto.


10. set, 2020
Post 181

00h57, 4ª feira, 09/09/20
As minhas musas não se mostraram muito auspiciosas nestes dias e, portanto, não escrevi nada, pois não valeria a pena gastar energia com ideias estéreis ou rebuscadas. Mesmo agora faço um esforço quase desesperado para que elas apareçam a apadrinhar a prosa que tento escrever.
É evidente que nem todas me poderão ajudar: Euterpe e Terpcícore (musas da música e da dança) estarão um pouco alheias a este meu problema específico; quanto às outras, lá me poderão ainda ser úteis: Calíope na eloquência, Clio (nada a ver com a Renault) na história, Érato na poesia lírica, Malpomene na tragédia, Polímnia na poesia sagrada, Tália na comédia e Urânia na astronomia. Esta última sempre poderá dar uma mãozinha (ou as duas) para alinhar os astros a meu favor. Vinde, pois, filhas de Mnemosine (memória) e Zeus!
………………………………………………………..
 Esperei alguns minutos para que alguma se manifestasse, mas parece que, talvez devido ao adiantado da hora, elas não virão, devem estar a descansar. Sim, porque isto de inspirar o mundo inteiro deve dar um trabalhão: programação, armazenamento, expedição, entrega, criação de conteúdos, etc., não serão os 12 trabalhos de Hércules mas são, de certeza, um trabalho hercúleo (em sentido figurado, claro), e a ninguém interessa ter musas com esgotamento, com burn out; não são tarefas que se resolvam mudando as pilhas, mesmo que para Duracell.
Embora tenha a lamentar que não sejamos um orbe constituído exclusivamente por génios (o que também acabaria por ser muito aborrecido), por outro lado isso obrigaria a que as musas se multiplicassem, se clonassem em doses industriais, pois se apenas continuassem a ser 9, certamente estariam num manicómio e totalmente irrecuperáveis num curtíssimo espaço de tempo. Seriam necessários vários milhares de clones seus para suprir as necessidades, pois que, em caso de colapso criativo, seríamos um planeta de estúpidos, o que se tornaria muito mau e perigoso (mesmo assim já o é).
Termino esta crónica com a plena consciência de que disse muito sem ter, ao fim e ao cabo, dito nada.
As musas não me ligaram, tenho de lhes enviar o meu número de contacto pelo Whatsapp.


28. ago, 2020
Post 180

03h15, 4ª feira, 26/08/20
Sinto-me cansado e não apenas físicamente. Pressinto, mais do que vejo, a vida a andar para trás, como se tivesse nascido com um elástico agarrado a mim e este se fosse estendendo até ao máximo da sua tensão e agora, 63 anos depois, começasse a reclamar o retorno ao estado de repouso, o ciclo completo de um bunjee jumping, ao qual todos estmos ligados, cada um ao seu, e com diferentes tamanhos.
Essa corda extensivel-retráctil é o nosso kit de sobrevivência-surpresa, do qual não sabemos à partida o tamanho nem até onde nos podemos "esticar". Isto se não se romper bruscamente, cortado por nós, por outrém ou por acaso, pelo destino. Curiosamente, é como um cordão umbilical, só que ao inverso. Será que, quando se quebrar, renasceremos noutro lugar, físico ou nem por isso? A eterna incógnita.


14. ago, 2020
Post 179

05h03, 5ª feira, 13/08/20
Já não escrevo há uma semana. Entrei numa espécie de modorra, uma apatia que nem sequer se deve ao calor, pois nem calor tem estado. Será mais uma síndrome ou transtorno disfórico que condicionou a minha disponibilidade e o meu humor. É evidente que este estado psico-físico nada tem a ver com a síndrome ou transtorno disfórico pré-menstrual que, como é óbvio, não tenho. Limito-me apenas a utilizar uma categorização de largo espectro, que pode também incluir esse tipo de sintomatologia feminina.
Não que esteja deprimido mas um pouco apático, como se tivesse tirado uma licença sabática da actividade geralmente entendida como normal. Isto passa.
Tenho-me recordado que houve um período, há 3 ou 4 anos, em que escrevi micro-contos e poemas, cuja intenção seria a de me iniciar numa experiência de escrita criativa, um pequeno laboratório de actividade literária experimental. Desisti de um momento para o outro, nem sei porquê.
E se eu recomeçasse? De certeza que não criaria nada abaixo de péssimo. Então por que não (re)tentar?
Fica registada a intenção.


05,ago,2020
Post 178

04/08/2020, 06h10, 3ª feira
Antes, o meu nome era feto. Depois, nasci e fiz-me bebé. Só me fiz homem muitos anos depois, embora que parcialmente. Residualmente, continuo criança, ainda insegura, ainda não desencantada, ainda ingénua, ainda pura, embora a pureza tenha já tons de branco (muito) sujo.
É isto a chamada idade adulta: desencanto, insegurança com upgrade, ingenuidade quase sempre perdida, a linda roupagem branca da candura com que nascemos, coberta de lama, de fuligem, de excremento. Ecce Homo.
Pois, nasci. Da minha primeira infância só tenho um ou dois flashes; o resto, como é normal, está muito, muito escondido no subconsciente. É arquivo morto que só está lá porque está lá, como os arquivos temporários do disco duro de um computador.
Depois… Depois as memórias vão-se formando, ainda incompletas, ainda imaturas, recordações falsas ou empoladas pela distância temporal e pelas impressões que o desenrolar dos acontecimentos causa no nosso cérebro em formação. É aqui que aparecem as situações, coisas ou animais, monstruosamente grandes ou infinitamente pequenos, as distâncias incomensuráveis que, na realidade, são apenas 5 ou 10 metros, 2 ou 3 centímetros, etc. É aqui que nasce o que nunca aconteceu, as efabulações feitas memória, os factos não factuais. O nosso “aparelho de medição” está, nesta idade, ainda a ser construído, e os parâmetros estão todos baralhados.
A seguir vem a pré-adolescência, de delimitação variável, onde aprendemos aos poucos, geralmente por intermédio de frustrações ou episódios embaraçosos, a medir, não as distâncias referidas nos parágrafos anteriores, mas as outras: as distâncias sociais, as noções mais aprofundadas do bem e do mal, a moral nas suas múltiplas formas – social, religiosa, sexual, etc. Esta última ainda não a percebemos muito bem porque só atinge a sua plenitude e, portanto, a sua compreensão, na puberdade e seguintes.
Ora bem, a puberdade. Aqui é que a coisa se complica. A razão e as emoções digladiam-se ferozmente, e muitas vezes as emoções vencem. Começam as asneiras, os descuidos, a irreverência, o questionamento dos valores que os progenitores pacientemente inculcaram, o que indigna os ditos e os enfurece, porque se esqueceram que já foram como os seus descendentes e também quiseram mudar o mundo à imagem e semelhança dos seus pensamentos, dos seus ideais. Isso inclui-nos também, quer queiramos, quer não, pois que santinhos, só no céu, se o céu existir.
Não é por acaso que se diz que a história se repete, e não apenas como disciplina escolar, mas também como experiência de vida de cada um.
Ah! Finalmente somos adultos, acabaram as marés vivas! Bem, quanto a isso, apenas posso comentar que somos suficientemente estúpidos ou ingénuos – com os resquícios de ingenuidade que ainda temos – para acreditar na paz.
Não há paz! Há arranjar emprego, casa, casar, ter filhos, educá-los para eles depois (na nossa opinião) estragarem tudo, enfim… os problemas fazem-nos felizes nos raros momentos em que não os temos, nos intervalos entre o fim ou pausa de uns e o início de outros. A nossa felicidade é isto mesmo: efémera como um soluço e, tal como este, aparece ou desaparece num ápice.
Depois vem o Futuro, que é a reta final do nosso futuro, o período em que aguardamos a todo o momento ser descontinuados. Calmo ou tumultuoso, ele está lá, algures, à nossa espera. Preparemo-nos.


30. jul, 2020
Post 177

26/07/20, sábado, 02h46
Está um silêncio brutal. É curioso que me aperceba disso, quando noutros dias o ignoro, ou antes, não me apercebo da sua presença. O silêncio pode ser uma presença? Ou simplesmente o nome que se dá a uma ausência? Podemos nomear algo que é a inexistência de qualquer coisa e que, portanto, não é nada? Ou existem vários nadas coisificados para estabelecer diferenças entre inexistências? Parece paradoxal, embora possa também ter uma (in)certa lógica.
A nossa estrutura mental não nos permite deixar passar seja o que for sem um apodo, sem uma etiqueta. Se analisarmos essa nossa rotulagem virtual, encontraremos milhentos frasquinhos catalogados com os mais variados nomes; mais de metade nada contém: são as diferentes nomenclaturas do nada.
Silêncio, escuridão, insipidez, inodorabilidade, etc., são algumas das qualidades de que essas inexistências podem usufruir.
E voltamos assim à questão fulcral: como podemos classificar inexistências? Como atribuir características a um adjectivo que qualifica algo como não tendo características (não tem cheiro, não tem sabor, etc.), mas ao qual fornecemos o classificativo de “algo que não tem características”? isso é a negação do nada! Em que ficamos?


18. jul, 2020
Post 176

06h04, 5ª feira, 16/07/20
Ainda aqui estou, alive and kicking, como cantam os Simple Minds, embora noutro contexto. Já sobrevivi mais 73 horas ao 63º sucedâneo do meu nascimento. Quanto faltará para a deadline (no sentido literal do termo)? Não que interesse nem que eu esteja muito preocupado; por muito ou por pouco, ainda estou vivo e, enquanto estou, saboreio a vida que me resta o melhor possível.
Está a ficar um calor sufocante, a aragem forte da manhã traz um prenúncio de “forno”, como se de um vento do deserto se tratasse.
Dou-me mal com o calor, muito especialmente com o do Norte, que é húmido; no Sul, a temperatura é geralmente superior, mas aguenta-se muito melhor, é seco, não existe a sensação desagradável de termos tomado um banho de suor vestidos. Em termos globais, e apesar do desagrado húmido, ainda continuo a gostar do verão: dá-nos uma certa sensação de alegria e liberdade de que o inverno não é capaz.
No inverno parece que vamos sempre de viagem: transportamos sobretudo, impermeável, luvas, guarda-chuva, cachecol, gorro, pullover, camisolas interiores, meias grossas e, provavelmente, mais algumas pequenas coisas de que não me lembro. Saímos à rua só quando necessário e a contragosto. Sair é uma seca (na verdade, é mais uma molha).
No verão, não. Excluído o impacto inicial abrasador ou liquefactor da temperatura, saímos com o mínimo de roupa e, para quem não esteja a trabalhar, com o intuito de passar um bom bocado em qualquer sítio fresco ou, masoquísticamente, grelhar nalguma praia.
Há mais liberdade de movimentos, mais alegria, as nossas endorfinas saltam mais cá para fora. Quanto a queixarmo-nos do tempo horrível que faz, da canícula que comparamos com a entrada no Hades - que nem se pode pôr um pé na rua, que sufocamos, que não se aguenta… Isso são queixumes de alegria.
Bom, como em tudo, há excepções que fogem ao considerado normal; há dois ou três anos referi nestas crónicas que, já lá vão uns longos 44 anos, tive um professor cujo comportamento fugia totalmente à normalidade: no inverno, em dias bem chuvosos, ele (que, à data, teria sensivelmente a minha idade actual) vinha muito bem disposto, envergando um fato verde de tom médio a pender para o claro; no verão ou em dias solarengos, a sua alegria desaparecia sob um rosto carrancudo, a emparelhar com o fato preto ou cinzento escuro que envergava. Mais “normal” do que isto é, certamente, quase impossível.
Vistas bem as coisas, não existe uma normalidade irredutível. Nós somos todos “anormais” segundo os padrões dos outros, ou seja, o que para mim é normal, poderá não fazer sentido para outros, do mesmo modo que a sua normalidade poderá ser, para mim, estranha ou ambígua. Como sói dizer-se: “eu sou normal, os outros é que são doidos”. Cada um rege-se, não por normas padronizadas, mas pelas interpretações pessoais dessas normas. E está tudo dito.


13. jul, 2020
Post 175

03h55, 13/07/20, 2ª feira
Nasci há 25 minutos, há 63 anos. Quem diria!
Retrospectando (acho que não é um neologismo, mas sim português do Brasil) todas essas dezenas de anos e mais alguns, fico abismado com aquilo que vivi. Nunca, nem nos meus melhores ou mais fantasiosos sonhos, pensei conseguir chegar aqui, ultrapassar esta barreira que o Eu-jovem vislumbrava tão longínqua, como um número inatingível e insanamente grande, impossível ou duvidoso de alcançar.
E, afinal, eis-me aqui, o Eu-jovem já morto e enterrado e substituído pelo Eu-velho que sou. Continuo, no entanto, a duvidar das evidências, a duvidar que estou aqui (e vivo). Tento-me capacitar de que sou apenas um sonho mau do jovem que ainda sinto dentro de mim e que, tal como a Branca de Neve, vai despertar em breve da letargia em que se encontra.
Mas é apenas ficção, triste e amarga ficção. Estou bem desperto, mas persisto em tentar viver num passado que nunca mais voltará. É difícil aceitar as limitações que surgem agora, a cada passo que damos.
No entanto se, in illo tempore, me dessem a escolher, qual escolheria: a desenvolta irresponsabilidade juvenil ou a calma sageza dum ancião?
Difícil pergunta, mas, no meu caso, acho que escolheria, apesar de tudo, a última. Não apenas pela sua inevitabilidade, mas pelo desejo oculto que cada jovem tem de querer copiar aquilo que um dia, se tudo correr bem, se tiver cabeça, virá a ser - e quando refiro copiar, será apenas a ponderação, pois a juventude quer-se e crê-se eterna. Mas tudo tem um preço…
 Quanto tempo me resta neste sonho? 20 anos, 10, 1, nem isso? Não vale a pena fazer apostas nem especular. O que vier, veio, será eventualmente bem-vindo. Carpe diem.


9. jul, 2020
Post 174

09/07, 5ª feira, 03h14
Sono! A minha besta tentadora, o meu Inferno de Dante, a minha tentação de Santo Antão (que eram muitas), a minha serpente de Eva.
Que exagero! Já agora, só resta comparar com uma das 10 Pragas do Egipto, que figuram no livro bíblico do Êxodo, ou com a maldição de Tutankamon.
Na verdade, o sono é o meu maior inimigo em período de trabalho, que compartilho com um período de estudo pois, como é sabido, trabalho à noite, que é a altura em que a melatonina atinge os seus valores mais elevados. E, para este efeito, de nada serve dormir durante o dia: ela é produzida na mesma durante a noite e complica bastante o desempenho laboral e o estudo.
E agora, após toda esta autocomiseração, passemos para outras coisas igualmente pouco importantes.
E o que é, afinal, importante na vida de um vivente? Tudo e nada. Tudo, porque é pela junção, pelo conjunto de todos esses pequenos nadas que a existência “existe”; nada, porque todos esses pequenos nadas são realmente isso: pequenos nadas. Logo, nada, multiplicado por nada, o que dá é….. Nada.
É evidente que o que escrevi acima não passa de um mero exercício filosófico, embora tenha o seu fundo de verdade. Ligamos demasiado, damos demasiado valor às pequenas circunstâncias da vida. Não digo que não seja importante - é-o – na nossa reduzida perspectiva, no nosso mundo pessoal e intransmissível, mas não o é à escala cósmica.
Nessa escala, somos como as formigas que calcamos sem sequer notar, todos os dias. E é precisamente isto que eu quero dizer: à escala cósmica, ao nível da consciência cósmica, somos formigas calcadas sem remorso, invisíveis, exactamente como o fazemos nos microcosmos do nosso (também) microcosmos. Ninguém pergunta a uma formiga quais são os seus planos de vida; o nosso (para elas) cosmos não quer saber.
Somos formigas, ponto. E sujeitamo-nos às leis do nível em que nos encontramos, dentro da escala hierárquica do Universo.


01,jun, 2020
Post 173

01/07/2020, 4ª feira, 02h42
Nota de abertura: pesadelos de infância. Julgo que todos os tivemos ou, pelo menos, é o que os pedopsiquiatras e psicólogos dizem. Acredito que sim.
Os meus mais recorrentes “sonhos maus” de infância – se não os únicos – eram dois:
Um colocava-me numa farmácia, da qual só me apercebia do balcão, do farmacêutico e do meu pai. Eu sabia que era uma farmácia, mas nada visível o indiciava, era apenas o balcão e o farmacêutico, de bata branca e feições indefinidas. Nada de armários, nada de medicamentos, nem sequer um fundo detrás desses dois elementos. Do outro lado, o meu pai.
Estou da parte de fora, supostamente na rua, agarrado ao beiral da janela sem caixilhos nem portadas; um simples buraco de janela. Estou pendurado, sem apoio, apenas os braços fincados na beira interior da janela, para não cair. Por baixo de mim, o vazio, um abismo sem fundo. O meu pai e o farmacêutico, cada um do seu lado do balcão, observam-me impassíveis; não falam, não esboçam nenhum movimento, nada. Apenas olham, vivos, mas estáticos, não lhes adivinho nenhum impulso para me ajudar.
A situação aflitiva permanece até que acordo num pânico controlado, pois já sei, talvez pela recorrência, de que é apenas um pesadelo que tenho de ter e do qual acordarei antes de perder as forças e cair. Angústia.
O segundo era mais um sonho que um pesadelo: eu descia pela rampa em caracol, branca, de uma espécie de poço muito amplo, similar à espiral de acesso de algumas garagens públicas. Ao fundo adivinhava, mais do que via, o fundo, com água.
Ao descê-la, tinha o desejo de que ela fosse comprida, quase interminável, quase mágica, como um poço iniciático. Essa era a ideia subjacente ao início do sonho: a água ao fundo, num buraco grande, a rampa sugerindo grandeza, quase enormidade.
A parte “pesadélica” do sonho consistia na desilusão do que me ia apercebendo à medida que descia: a rampa era muito curta, quase só uma meia-volta e o poço não passava de um pequeno buraco no chão, como aqueles que os esquimós fazem no gelo, para pescar. A água não era estática, como se de uma pequena nascente se tratasse. Frustração.
Onirismos estranhos, como só estranhos podem ser os pesadelos de infância.
E eis-me aqui e agora, geração moribunda, a relembrar os primeiros dias da Criação, da minha criação, tão íntima e pessoal como só pode ser a de cada um.
Somos como que partículas subatómicas do Tempo, de Cronos¸ e ele só existe porque existimos e nós só existimos porque ele existe. É como uma relação simbiótica, como a relação entre uma rémora e um tubarão.
Se o Tempo fosse estático, ele não existia, por inércia; qualquer acção seria uma não-acção e, portanto, não geraria memória, qualquer memória, pois não podemos ter recordação de algo que não existe. A falta de inércia é acção, é acontecimento, é memória gerada pelo movimento do Tempo.
A vida é cinesia que cria memória e esta é como uma gravação que nos torna conscientes de termos vivido num passado que nunca deixará de o ser, porque aquilo a que chamamos presente não existe, é apenas uma linha limitatória entre o que foi e o que poderá ser. É aquilo a que chamamos futuro e que não passa de uma dádiva enganosa que Cronos nos dá, pois, um dia, ele no-la tirará sem aviso, sem apelo nem agravo.
Que seria da nossa existência se esse - para já - meio milhão de pessoas que, vítima do inominável, já morreu “a mais” no mundo, continuasse viva ou mantivesse a sua linha de existência como deveria ter sido naturalmente? Qual será (e já foi) o impacto na nossa existência? Toda a sucessão de acções ou não-acções que tivessem sido ou seriam produzidas por eles, a que ponto alteraram ou alterariam a nossa vida? Aqui, a não-acção toma outro sentido: não é a inércia, mas a ausência de um desempenho que teria sido feito se a pessoa ou pessoas em causa tivessem seguido o curso considerado natural e expectável da sua existência terrena.
Pelo chamado “efeito-borboleta”, há a hipótese de sofrermos as mais variadas consequências: ficar ricos, morrer, permanecer vivos, partir uma perna, perder um amigo ou familiar, não conhecer alguém que poderia ter nascido, ou então qualquer outra coisa, exactamente ou inexactamente ao contrário. É uma incógnita, ao jeito da chamada “experiência do gato de Schröeder”.
Vivemos num Universo flutuante, onde andamos ao sabor das marés do Tempo.


29. jun, 2020
Post 172

01h02, 2ª feira, 29/06/2020
Parece que as pandemias têm o condão de despertar a estupidez. Ou, numa explicação mais apologética, danificar a memória e o instinto de autopreservação.
Atendendo ao recrudescimento de casos dos últimos dias, provocado por festas, falta de proteção mínima e distanciamento e outras circunstâncias igualmente anómalas, poder-se-ia também atribuir a uma irreverência juvenil, à crença dos jovens de que nada lhes sucede de mal, pois isso acontece apenas aos outros. Mas não, o fenómeno estende-se aos mais velhos, não é exclusivo da juventude.
Será tão somente impaciência? Seremos como aquelas crianças que roubam a caixa dos chocolates porque não querem esperar que lhos deem, não tendo a noção de que irão ser castigadas pela sua atitude?
Seremos então, como espécie, os seres mais inteligentes e simultaneamente os mais estúpidos do nosso universo-lar? Teremos uma enorme apetência para criar coisas belas, boas, úteis e produtivas e, simultaneamente, estragar tudo o que de bom tenhamos feito com atitudes irreflectidas? É tão idiota como criar uma vacina para uma doença que ainda não existe e depois esforçarmo-nos por produzir a doença, mas de modo que ela resista à sua própria vacina.
Inconsciência? Estupidez? Raciocínio distorcido? Todas e mais alguma que me tenha escapado?
Há dias falei na memória de peixe e refiro-o de novo, pois parece que é o melhor exemplo para a época que atravessamos. Nessa altura dei tudo o que tinha a dar como exemplos, pelo que, quanto a este assunto, fico por aqui. A vida continua e nós, bem ou mal, continuamos nela e com ela.
 Entretanto, vou preenchendo as outras secções com pequenos contributos que me vão surgindo à feição de publicar. Agora que terminou o ano lectivo, poderei dedicar um pouco mais de tempo a mim próprio e ao meu pseudoblog, como lhe chamo. Está na altura de refrescar o cérebro, sacudi-lo como um cão molhado e olhar em frente, que isto de viver tem que se lhe diga e, deixemo-nos de tentar tapar o sol com a peneira, eu já estou na contagem decrescente. Carpe Diem quam minimum credula postero .


16. jun, 2020
Post 171

00h42, 3ª feira, 16/06/20
Resiliência. É a palavra que mais tem sido utilizada nos últimos anos e que agora, nas actuais circunstâncias, faz cada vez mais sentido. É resistência, é adaptabilidade, é capacidade de “dar a volta por cima”; é também estoicismo, um pouco de fatalismo, mas sobretudo esperança.
Vou parar estas considerações, já estou a ser muito lírico, a entrar em aforismos poéticos e moralistas a cheirar a romantismo, e não é essa a minha intenção.
Mudando de assunto, pois não quero falar ou aludir a coisas desagradáveis, embora por vezes tenhamos de o fazer, pois que a vida não é sempre um mar de rosas (às vezes é um daqueles cactos de espinhos compridos e duros), vamos mudar de assunto (epístrofe, tautologia propositada).
Bem, tudo aquilo de que se possa falar refere-se ao nosso pequeno universo conhecido ou cognoscível, aquele pequeno mundo muito pessoal, muito individual, que rara e muito residualmente partilhamos com os outros porque é por vezes demasiado nosso para podermos usufruir seja com quem for.
Todos temos um armáriozinho fechado a sete chaves, armadilhado e com código de segurança, onde guardamos as nossas secretas vergonhas e tesouros que não queremos ou devemos partilhar e que, avaramente, levamos connosco para o oblívio final. Essa é uma das características e a prova da nossa individualidade e da nossa personalidade.
A abertura total não existe nem pode existir pelas mais variadas razões e uma delas, talvez a mais relevante, prende-se com a sociedade, o relacionamento com os nossos pares. O que pretendo dizer é que a franqueza em demasia traz, não amigos, mas maioritariamente inimigos, pois nós – animal social – não aceitamos bem a verdade sem filtros, a exposição do Outro perante nós, o desnudar sem pudores dos seus sentimentos, dos seus pensamentos, das suas opiniões. E não se trata apenas do que o Outro pensa de nós, trata-se principalmente do que o Outro pensa, independentemente de quem ou do quê.
Digamos que, para um bom relacionamento, para que possamos aceitar e ser aceites, temos, neste orbe, de nos “vestir” e “pintar”, de fazer uma operação de cosmética, para que ninguém possa contemplar com os olhos da Verdade o nosso Eu profundo, tal qual ele é.


11. jun, 2020
Post 170

11/06/20, 5ª feira, 00h23
Noite fresca, vento fraco, mas persistente, céu parcialmente nublado: a Primavera a ser o que é.
Haverá comedimento este verão ou as pessoas vão-se comportar como se o amanhã não importasse, como se nada tivesse acontecido ou esteja a acontecer? Inclino-me mais, quase com certeza, para a 2ª hipótese.
A espécie humana sempre se comportou como a Dory, do filme de animação Nemo, ou seja, não tem memória, esquece o passado como se este tivesse apenas sido um sonho mau e nada mais.
Contra mim falo, que já experienciei uma espécie de sanduiche de anomalias vasculares (dois AVC’s com dois AIT’s pelo meio) e continuo, mesmo assim, a esquecer-me de vez em quando dos cuidados necessários. Afinal sou apenas o próprio foco da minha crítica, o mero humano que critico.
Somos assim, temos todos a memória curta, tanto para o bem como para o mal e a prova disso, como o melhor (pior) exemplo, são as duas guerras mundiais catastróficas, destruidoras, separadas por um intervalo de apenas 20 anos, e com os mesmos intervenientes principais, que não aprenderam com os erros cometidos. E as guerras continuaram, continuam e continuarão, justificadas sempre como legítimas; talvez não ad eternum, mas seguramente por um longo e inumerável rol de anos.
É a animalidade atávica a que aludi há dias num assunto que nada tem a ver com este exemplo, mas que tem, afinal, muito a ver: o marcar do espaço, o aqui e agora e daqui para o futuro, o “pisar de calos” que sucedeu há 10, 100, 200 ou 500 anos, que não está esquecido e que é rancorosamente guardado (para isso já há memória), a inveja do espaço que o Outro ocupa, a repulsa pela raça, cor de pele, religião ou qualquer outro pretexto, o ódio por quem é, de alguma maneira, diferente de nós, a birra simples e despropositada de um animal senciente que ainda não evoluiu para níveis por ele próprio demarcados como minimamente aceitáveis.
Embora tente com afinco, ainda não consegue resistir aos apelos do animal que se esconde sob a capa de uma racionalidade ainda incipiente. Pode ser que, entre avanços e recuos, a evolução intelectual deste bicho chegue finalmente ao nível do qual usurpa o nome: Humanidade.


7. jun, 2020
Post 169

01h07, domingo, 07/06/2020
Sinto a falta da minha “musa inspiradora”, da minha antiga actividade diurnal, onde a presença impactante do visível e do palpável permitiam absorver mais fluidamente as reflexões transformáveis em escrita. À noite não é a mesma coisa, há uma diferença abissal entre a visão psicológica e intimista e a observação empírica da realidade, tal qual se nos apresenta no momento vivido in situ e in loco ou, por outras palavras, no momento vivido “no momento”.
A visão diária salta-nos aos olhos, entranha-se-lhes e atinge a imaginação com muito maior força e pitoricidade, com um realismo vívido, quase palpável, que nos permite pintar, descrever o mundo com mais e mais brilhantes cores, mais pormenores e mais positividade.
Prefiro (ou, pelo menos, tenho saudade) da écfrase da realidade que antes descrevia; a visão nocturna é apenas a écfrase de uma écfrase, é uma descrição psicológica de uma descrição física e, portanto, idealizada. É certo que esta terá também o seu valor, mas para mim não se compara ao gozo de uma observação e descrição directa.
Escrever à noite é o mesmo que pintar uma paisagem de memória. Se a écfrase, se a descrição escrita é já de si uma ficção (por ser uma cópia da realidade), a narração nocturna passa a ser a ficção de uma ficção, pois a realidade não está fisicamente presente, apenas existe no nosso intelecto, sem nenhum contacto visual imediato, tornando-se assim uma memória virtual e imprecisa.


2. jun, 2020
Post 168

00h33, 3ª feira, 02/06/2020
Porque será que datamos tudo o que fazemos, mesmo que disso não haja, aparentemente, necessidade? É como se quiséssemos marcar a nossa presença no tempo e num determinado espaço. Sentimos a necessidade de dizer: “Eu estive aqui, eu estive no ano ou dia ou mês tal”.
A nossa marcação do espaço e do tempo tem uma grande importância para a personalidade, para a individualidade. Queremos deixar em tudo a nossa marca de água, como algo muito importante que deve ser comemorado ou lembrado espácio-temporalmente. As datas tornam-se relevantes, mas a presença física é algo de imprescindível. Aliás, a primeira não existe sem a segunda.
A presença é, indirectamente, uma declaração de propriedade, um atavismo que surge das origens da humanidade, já como seres pensantes, mas ainda muito próximos da animalidade primária. Deixámos para trás a marcação por odores, como muitos animais ainda fazem, e substituímo-la pela foto, pelo filme, pelos recuerdos que trazemos dos lugares que visitamos. É a nossa afirmação de “posse” do território, é muito importante no nosso percurso vital e perdura por intermédio da nossa memória. Quem não tem memória do espaço e do tempo que ocupa ou ocupou, não existe como ser humano, é um vegetal.
É importantíssimo marcar, afirmar uma presença espácio-temporal, provar que se existiu em tal lugar e em tal data, nem que se tenha vivido toda a vida no mesmo lugar, no mesmo espaço que ocupa e que a mais ninguém pertence porque se está lá, e dois corpos físicos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Quem nunca viu duas criancinhas a embirrar uma com a outra porque querem ocupar um determinado espaço só porque sim? É a herança genética primordial, a afirmação de posse de um lugar físico e cronológico.
Isto poderá levar-nos a considerações sobre as verdades ou inverdades de inúmeras teorias materialistas: Quem já leu, por exemplo, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de Friedrich Engels e Karl Marx, certamente reparará nas discrepâncias entre a teoria e a realidade, entre o que o Homem pensa e o atavismo que a Natureza determina.
Note-se que não se fala de política, mas de filosofia; falar de política, futebol ou religião é, muitas das vezes, destruir o princípio de neutralidade por que devemos pugnar. Exceptue-se, evidentemente, uma ou outra expressão de opinião a que se tem direito, como qualquer outro ser humano, e que deve ser entendida como tal e, como tal, respeitada, mesmo que as crenças ou ideais não se correspondam. Essa é a essência do Homem.


28. mai, 2020
Post 167

06h28, 5ª feira, 28/05/2020
Quase de saída, não resisti a escrever uma pequena elegia à madrugada, que engloba simultâneamente o meu trabalho e o meu período criativo. Já teci o meu inexistente hino ao Sol, nascido mais ou menos há 22 minutos, momento imortalizado em parte nenhuma, pois o Astro-Rei nasce e fenece todos os dias e será, portanto, uma perda de tempo dedicar-lhe odes diárias ou homenagens funéreas.
Sim, sim; eu sei que o sol não nasce e morre todos os dias, não passa tudo de uma ilusão provocada pela rotação deste seixo rolado, à superfície do qual moramos. Mas também sei que nós, seus habitantes, vivemos dentro da nossa cabeça num mundo de faz-de-conta e agimos em conformidade com ela e com ele. Fingimos e metaforizamos, encarnamos o papel para o qual nos preparámos desde o dia do nosso nascimento, somos actores (in)voluntários deste teatro de superfície terreno. Bons ou maus protagonistas, não interessa; não ouviremos apupos ou palmas quando sairmos de cena, o que significa que, afinal, representamos para nós próprios, somos os nossos egóticos espectadores, convencidos de que ocupamos o lugar central de uma qualquer epopeia sublime.
Quase parafraseando o cineasta Manoel de Oliveira: é a vã glória de viver.


26. mai, 2020
Post 166

00h39, 2ª feira, 25/05/2020
Antes de chegar ao meu posto nocturno habitual, tenho por hábito parar numas bombas de combustível aqui perto, para tomar café. É uma espécie de ritual que, em termos práticos, não aquece nem arrefece a minha capacidade de produção de melatonina, a hormona do sono. Ou, por outras palavras, não tira nada à minha capacidade de aguentar as investidas de Morfeu, cedência que seria perfeitamente normal e mesmo expectável, não fosse a desafortunada circunstância de trabalhar de noite.
É um hábito, parece que falta qualquer coisa se o não fizer; por isso condescendo comigo próprio e apetrecho-me sempre com 60 cêntimos para que possa morrer descansado, sabendo que degluti prazerosamente uns míseros mililitros de água castanha aromatizada e quente.
Hoje, porém, fui apanhado de surpresa por uma notícia que, embora directamente triste, ou mesmo chocante, é indirectamente aliviadora: soube que um dos funcionários da bomba, que já não via há meses, faleceu em abril passado, supostamente vítima de um cancro hepático, metastizado em outros órgãos vitais. Essa foi a parte directamente triste, ou mesmo chocante.
A parte aliviadora é o facto de que o rapaz (à medida que se envelhece, cresce a mania de chamar rapaz ou rapariga a toda a gente igual ou abaixo da nossa faixa etária), apesar de ter (tido) provavelmente a metade da minha idade, morreu primeiro do que eu. Não que eu seja insensível ou egoísta, não que lhe tenha desejado algum mal ou que não gostasse dele – até me era simpático -, mas apenas porque, sempre que algo de semelhante sucede, sinto alívio e gratidão para com a vida, por me ter sido possível sobreviver àqueles que foram ficando para trás, que se foram extinguindo com menos idade do que a minha pessoa.
Apesar dos grandes revezes da existência, é sempre gratificante podermos dizer que ainda cá estamos, que ainda não chegou a nossa vez e “alegrarmo-nos” por termos permanências temporalmente mais alargadas.
O Grande Arquitecto – seja Ele quem for, o que for, ou se sequer existe – tem permitido a nós, os remanescentes, prosseguir a Sua/nossa obra, seja ela também o que for. O que interessa é que, para já, estamos aqui para contar a história.


20. mai, 2020
Post 165

00h33, 4ª feira, 20/05/20
Back in business again! Como antigamente se dizia: por mal dos meus pecados, voltei. Estava melhor em casa mas a vida é assim, não há benesses eternas, e o ganha-pão tem de ser retomado, pelo menos até à temida/desejada reforma, que é um momento crítico, uma espécie de andropausa da vida (ou menopausa, conforme os casos), com os equiparáveis efeitos físicos e psicológicos, por vezes negativos, de tais estados.
É nesse momento que se lançam contas à vida e à bolsa e se avaliam as possibilidades de sobrevivência física e mental e onde, também, se começa a pensar mais no reduzido futuro que temos pela frente. Cabe a cada um criar o seu próprio fiel da balança, valorizando mais o aspecto positivo ou o negativo desta etapa da vida.
Apesar da minha propensão para o existencialismo, encaro essa fase pelo seu lado mais positivo, vejo nela (se conseguir sobreviver por mais alguns anos) a possibilidade de dedicar-me àquilo de que mais gosto, aos meus hobbies, aos meus estudos, sem os entraves evidentes de uma qualquer obrigação laboral. Por outras palavras, quero absorver o mais possível tudo o que a existência tem para me oferecer gratuitamente, que é o conhecimento.
A curiosidade humana é um poço impossível de encher, mas do qual podemos sempre retirar dividendos. A satisfação de saber ou, pelo menos, saber um bocadinho, é gratificante. Infelizmente essa necessidade não é inata, como o instinto de sobrevivência, o que é pena pois, se assim fosse, seríamos todos muito mais sábios, e o mundo seria um melhor lugar para se viver. Continuariam sempre a existir algumas excepções, alguns ignorantes, mas, com jeitinho, reduzir-se-ia drásticamente a praga dos estúpidos.


14. mai, 2020
Post 164

23h09, 2ª feira de férias, 11/05/20
Neste momento estou na cama, a escrever. Caso raro, geralmente estou a esta hora a pegar ao trabalho e quando estou de férias não escrevo.
Bem, estou de férias que não são férias, que não sabem a férias, é mais parecido com um fim-de-semana prolongado. É um modo upside down: ficar em casa para passar férias e sair de casa para trabalhar.
Não que eu não goste, não que eu estranhe muito, eu até aprecio uma certa solidão, longe do bulício normal de uma cidade, de uma sociedade, e não é por ser anti-social, é pela paz, pela fuga às convenções, porque ninguém me chateia, porque posso pensar por mim e não ser pensado pelos outros.
Sim, é bom estar só, é bom termos de procurar companhia quando necessitamos em vez de termos de aguentar uma companhia de que não podemos escapar, é queremos ser associais, é quando pedimos silêncio, quando o Nirvana significa estar sós connosco próprios, quando paramos tudo e fechamos os olhos para nada ver, nem sentir ou pensar.
Gosto de sonhar acordado um sonho calmo, gosto de me sentir e de me pensar, gosto de não ter tempo de ter tempo, de necessitar de tempo. Gosto da utopia, do impossível, da fantasia e da ficção, gosto de voar sem asas, gosto de tudo aquilo de que gosto e gostaria que houvesse momentos eternos e simultâneos.
Gosto do sono também, de dormir, porque gosto de estar cansado e poder “desligar a ficha”. É o que vou fazer.


4. mai, 2020
Post 163

07h06, domingo, 03/05/2020
Amanhã entro de férias. 15 dias completos. Vou finalmente poder viajar. Tenho os meus planos feitos com a devida antecedência, com as reservas e as visitas já programadas:
Irei à Minha Rua, hospedo-me no Hotel Home, que tem uma imponente vista para o quintal das traseiras. Terei tempo para visitar o Templo das Abluções Diárias e a Esplanada do Lazer e da Comunicação Audiovisual, que tem um óptimo serviço de catering, servido pelo Restaurante “a Cozinha”, mesmo na porta ao lado. Poderei contemplar a vista do patamar ao cimo das escadas, que nada deve ao miradouro do Sacré Coeur de Paris (que só tem as ditas um pouco mais numerosas e largas), e relaxarei, se o tempo o permitir, no frondoso jardim, de 165m², logo à saída da porta das traseiras, com prados verdejantes a perder de vista. Daí poderei contemplar os românticos telhados do casario vizinho, como só é possível nas grandes cidades históricas. Eventualmente, visitarei a Praça do Pão e a Baía dos Legumes. Como estamos, dadas as circunstâncias, em época alta, terei de esperar pacientemente no exterior, pois as visitas são controladas, para não deteriorar os magníficos frescos de renomados artistas panificadores e hortícolas que se encontram no seu interior. Poderei também visitar o Museu da Farmácia e um ou outro (super)mercado típico. Vão ser umas férias de luxo, a preços de ocasião!
Com tantas atracções e distrações, nem sei se terei tempo para estudar, mas vou fazer um esforço, pois as datas de entrega dos meus trabalhos de mestrado estão-se a aproximar.


29. abr, 2020
Post 162

06h01, domingo, 26/04
Quando vejo escrita ou ouço algures a frase que se está a tornar chavão - o mundo nunca mais será o mesmo -, não deixo de lhe dar inteira razão, aquiesço totalmente, como raramente o fiz com quaisquer outras afirmações que tenha ouvido ou lido até agora.
Na verdade, creio que uma vez aparecido, o inominável marcará o futuro da humanidade por algumas décadas(?). Não sendo tão notório no Norte da Europa e em algumas sociedades orientais (o resto do mundo não sei), as manifestações de amizade e carinho são, para nós sulistas, muito físicas: muitos beijos, muitos abraços, vigorosos apertos de mão, festas na cabeça, nos braços ou nas costas, todo o corpo sociabiliza.
A partir de agora temo um recrudescer de fobias, decorrentes do medo de contágios, uma “ouricização” ou “porco-espinhalização” nas relações entre humanos. E o que sucederá à nossa carinhosa e proverbial socialização? Tornar-nos-emos fisicamente frios como os citados europeus do Norte, ou prevalecerá o calor humano, mesmo com os riscos inerentes? Estou confiante de que, dentro de poucos anos e com os avanços dos meios de vacinação e da medicina em geral, voltaremos a esse pequeno Éden semi-perdido; talvez não totalmente, pois incidentes tão graves deixam ferretes, marcas difíceis de apagar, mas voltaremos.
A Humanidade, esse conjunto de frágeis animais sem carapaça ou qualquer outra espécie de protecção que não seja a sua admirável capacidade de, de algum modo, rodear as ameaças que a cercam, tem sobrevivido a tudo: desde guerras terríveis (1ª e 2ª Guerras Mundiais e outras menores, mas proporcionalmente mortíferas) a cataclismos naturais, como terramotos e tsunamis subsequentes, ou a furacões cada vez mais violentos. E também às doenças: A gripe espanhola, o tifo, a varíola, a cólera, a peste negra ou bubónica, o ébola, o zica, a malária, a sífilis, a tuberculose, a gripe suína (H1N1), a gripe das aves (H5N1) e outras variantes, etc., das quais algumas ainda vão fazendo os seus estragos, mas muito mais controlados, muito mais reduzidos. E, claro está, o inominável contemporâneo.
 Proteger o corpo é um trabalho árduo para nós próprios e para a medicina; proteger a mente é mais complicado, pois as sequelas são mais difíceis de curar. Spe habemus.


19. abr, 2020
Post 161

23h55, sábado, 18/04/20
De volta à rotina (?).
Tenho vindo a cogitar sobre a extraordinária adaptabilidade da maioria dos humanos em sujeitar-se a novas rotinas, novos procedimentos, novas restrições.
Afinal, não é muito de admirar essa capacidade de adaptação: o Homem, como ser individual e como sociedade, viveu durante milénios uma vida simples e pouco complicada. Embora não sendo despiciente a submissão, a servidão que a constituição de sociedades minimamente organizadas subentendia, ou seja, a obrigatoriedade de contribuir no esforço de guerra, os impostos omnipresentes, etc., os habitantes do planeta limitavam-se a existir sem muitas perguntas, sem muitas crises existenciais, conformados com a sua sorte.
Em contraponto às “benesses” providas pelo crescente incremento civilizacional a que nos fomos sujeitando, foram-se formando novos parâmetros de comportamento que redundaram, com maior incidência nos últimos 2 séculos, num acúmulo de hábitos e necessidades, ou falsas necessidades (direi, vícios), pelos quais nos deixámos subjugar e dos quais já dificilmente prescindimos.
Consequentemente, a nossa actual situação de recolhimento físico - voluntário ou não - pode originar estados como que de dependência. A liberdade transforma-se numa droga, por falta da qual apresentamos sintomas de privação, acusamos “ressaca”. Nas prisões, por exemplo e como resultado, sucedem-se esporadicamente actos de extrema violência; nestas instituições existe uma situação permanente de tensão de fluxo piroclástico - um autêntico vulcão, sempre pronto a explodir ao mínimo incitamento. Por similaridade, há actualmente na sociedade livre, e por força das circunstâncias, um aumento tendencial de agressividade, de stress, de descontrolo, tanto a nível físico como emocional.
Essa dupla instabilidade, além dos previsíveis prejuízos sociais, representa um acréscimo preocupante de fragilização, propício à exposição e/ou eclosão de doenças de ambos os foros. Mesmo estando conscientes disso e apesar da nossa já referida adaptabilidade, é-nos por vezes difícil fugir às investidas destas tensões. Podemos, a qualquer momento, “explodir”, sem que a razão, o bom senso, actue atempadamente. É imperativo que afixemos à entrada da nossa consciência um post-it virtual bem grande, com os dizeres:
Cuidado! Perigo de acidente! Mantenha-se atento!


16. abr, 2020
Post 160

00h55, 5ª feira, 16/04/20
Ao sermos intrinsecamente bons, amaciamos a dor das encarnações vindouras. Reconheço, porém, a minha irrefutável impotência perante as tentações do mundo, porque as estradas do erro são sempre as melhor pavimentadas.
Anónimo (fui eu, mas fica mais bonito assim)
Escrevi este apotegma (aforismo) no dia 20 de fevereiro com o intuito de o inserir numa aleatória crónica futura. Pois bem, e antes que perca a referência, chegou hoje esse futuro, que já se vai esvaindo no passado. Fica o registo.
É evidente que esta afirmação não é universal, muitos dos que a lerem não se identificarão com ela, ou porque acreditam em outra vida mas encaram outros desfechos, ou porque, simplesmente, a sobrevivência do espírito lhes seja inconcebível e/ou disparatada. Nada posso fazer para refutar quaisquer deles. Somos únicos e temos formas de pensar únicas, talvez formatadas, mas não formatáveis.
Assim é também o acto de escrita: formatado por todo o nosso background de crenças inculcadas, educação social, ambiente familiar, etc., a que se junta a nossa visão, a nossa moldagem muito própria, muito pessoal, do material que extraímos desse cadinho fervilhante de ideias herdadas ou impostas desde a nascença. Visão não formatável porque mais ninguém pode (re)moldar a nossa criação, acabada e irrepetível.
É o que cada obra saída das nossas mãos tem de bom ou mau: poderá ser copiada mas nunca verdadeiramente emulada, porque é um produto acabado, cristalizado, preso num passado físico e histórico.


5. abr, 2020
Post 159

05/04/20, domingo,00h15
Não ignoro o real, mas apenas a irrealidade do real; por isso evito falar do que foi tema das últimas crónicas, pois já existe (des)informação a mais, começando o assunto a tornar-se uma obsessão e a perturbar-nos o dia-a-dia, os relacionamentos, as próprias experiências oníricas.
Em vez disso prefiro falar do passado, não como “antes de…”, mas apenas como passado, por vezes melancólico, como uma experiência empírica que a vida nos oferece. Assim, fora algumas raras e desagradáveis excepções, todo o passado poderá ser encarado com nostalgia. Mesmo aquelas situações incómodas ou embaraçosas por que passámos, vistas hoje com distanciamento físico e emocional e das quais até nos podemos rir, são uma forma de recordação nostálgica.
Há uma rememoração de experiências, de aprendizagens e de relacionamentos, irreprodutível. É como usufruir de uma obra de arte, recordando ou imaginando todo o seu tecido constitutivo, seja ele físico, situacional ou emocional pois, como diz a canção de Vítor Espadinha: Recordar é Viver – e nós só queremos recordar o agradável, o nostálgico.
Numa das minhas primeiras crónicas (talvez em 2012 ou 2013), aflorei o facto de ter sido proprietário de um estabelecimento de hotelaria. Tal, apesar de ter sido a maior “dor de cabeça” da minha vida, responsável por dívidas que arrastei durante 20 anos, um AVC, uma depressão e um deficiente acompanhamento à familia, além de outras “benesses”, fez-me conhecer melhor a sociedade que me circundava e na qual, por mal ou por bem, tinha de me inserir ou adaptar. Conheci explêndidas e péssimas pessoas, exemplos e não-exemplos de vida, situações e vivências caricatas, algumas felizes, outras tristes, e das quais farei breves referências, salvaguardando no anonimato a sua privacidade:
Havia um senhor cuja alegria de viver era admirável e contagiante: tinha 90 anos e um sorriso radioso, reflexo de uma aura carregada de positividade que nos dissipava por contacto os problemas e maus-humores. Muito activo, trabalhava por conta própria em ourivesaria de prata. Morreu repentinamente, para consternação de todos.
Outro, uma alma inofensiva mas inconveniente, era funcionário camarário, um guarda de jardins, a trabalhar ainda, certamente por piedade. Tinha sido chefe de pessoal, mas um acidente grave afectou-o mentalmente, obrigando a autarquia a atribuir-lhe tarefas simples. Tinha um ar a seu modo desvairado, falava incomodativamente alto e, bebendo um copito a mais, tinha atitudes que podiam ser tomadas como agressivas, embora, na verdade, não fizesse mal a uma mosca. Era o que se costuma chamar uma “figura típica”. Começou a aparecer pouco, até que sumiu por completo.
Outro “cromo” era um senhor já velhote, adepto de uma crença religiosa, sempre com a bíblia debaixo do braço. Alguns gostavam de o provocar, só para o ver irritado e excomungar todo o mundo. Quando bebia, dava-lhe para cantar o fado, mas fazia-o com uma voz extraordinária. Morreu atropelado ao atravessar uma rua sem tomar as devidas precauções, por, ao que dizem, estar já alcoolizado.
Estes são apenas três exemplos de caracteres dignos ou indignos de exemplo e com os quais me cruzei, entre milhentos outros. Não posso negar que todas essas experiências foram positivas, no sentido em que enriqueceram aos mais variados níveis a minha enciclopédia mental. Tudo na vida tem importância, mesmo aquilo que não aparenta valer a pena.
Não há maus livros – alguém disse -, todos eles contêm algo de aproveitável, por ínfimo que seja.


23. mar, 2020
Post 158

00h58, 2ª feira, 23/03/20
Voltando ao inominável, que foi o meu tema da semana passada, verifico que o histerismo irreflectido de alguns está a desaparecer e a normalidade nos abastecimentos de primeira necessidade e demais consumíveis, cujo açambarcamento foi racionalmente injustificado e posteriormente ridicularizado como merece, está a ser reposto para valores normais, atendendo às circunstâncias.
Neste momento atravessamos uma falsa calmaria, precedendo uma tormenta a médio prazo. Aliás, serão duas as borrascas que se avizinham, uma a seguir à outra: o recrudescimento exponencial da afecção – o que é perfeitamente normal e previsível para quem tem dois dedos de testa. Posteriormente, uma crise económica e laboral, que já se encontra em florescimento e infrutescência precoce – esta também previsível, e que cabe nos dois dedos que acima referi. No entanto será, para alguns, uma bomba que explodirá inesperadamente, mesmo em frente aos seus olhos míopes ou cegos. Lá está a falta dos tais dois dedos… Bem, eles existem, mas muitos não os usam, não querem, ou sequer sabem usar.
Diz-se que depois da tempestade vem a bonança, é um facto, pois não há mal que sempre dure. No entanto, o ditado não refere o caos que a dita deixa por onde passa e com a qual temos de nos haver. Nisso ninguém pensa.
Por isso, para muitos, após a “banalização” do actual estado das coisas, virá a negação das consequências e, por último, a queda na dura realidade. Então, apenas para esses, dar-se-á início ao Apocalipse.
Não pretendo ser alarmista nem áugure do desastre; apenas previno cenários possíveis, para os quais todos devemos estar preparados, não caindo no desespero, que leva por vezes a reacções irreflectidas, muitas delas irreversíveis. Essa avaliação deve sempre ser feita “por cima” ou, como é usual dizer-se, “na pior das hipóteses”, para que não sejamos apanhados de surpresa.
Costuma-se dizer que a única coisa que não tem solução é a morte. Tentemos então solucionar o que nos aparece, à medida em que vai surgindo. Quanto à irresolúvel, não nos apressemos.


16. mar, 2020
Post 157

16/03/2020, 2ª feira, 04h24
Após o início de um período bastante conturbado da nossa civilização…….
Vou reformular:
Após o início de um período bastante conturbado para todas as civilizações do planeta…..
Vou re-reformular:
Após o início de um período bastante conturbado para todos os seres humanos do planeta, civilizados ou não, encontramo-nos num período de incertezas, de pânico ainda (mal) controlado, de despertares sobressaltados, de adormecimentos medrosos, de informações contraditórias e de imensas fake news.
Actualmente, há muitos arautos da “verdade verdadeira”, que se entretêm a disseminar notícias que reputam por fidedignas mas que apenas servem para atiçar o fogo da desinformação e do medo, avolumando, não apenas uma histeria colectiva (ainda latente), mas também a adopção de más, deficientes e desinformadas práticas de defesa e contenção.
Porque é que esses filantropos não guardam para si essas práticas, a maioria das quais fruto, ou da extrapolação oriunda da massa indefinida que têm no lugar do cérebro, ou então de fontes fidedignas de ali, ao virar da esquina? Deixem os outros, os tansos, a ouvir os médicos e os investigadores!
Há, é certo, gente bem-intencionada que passa essa desinformação com o intuito de ajudar, mas que não se preocupa em confirmá-la e transmite-a tal qual lhe foi transmitido, o que não passa, mesmo assim, de inconsciência a raiar a estupidez.
Por favor, não entrem em teorias da conspiração ou em práticas e mezinhas milagrosas e infalíveis. O caso é sério, mas é necessário manter a cabeça fria e pesar bem os nossos actos, pois estes poderão ter resultados perniciosos e irreversíveis.
Querem um exemplo? Consultem o link https://ionline.sapo.pt/artigo/686074/indiano-mata-se-por-estar-convencido-que-tem-coronavirus?seccao=Mundo.

5. mar, 2020
Post 156

00h03, 5ª feira, 05/03/20
Mais um dia (noite) em que começo a escrever cheio de vontade e vazio de ideias. Não é que a mente esteja oca, limpa como um quadro de escola deve estar no início de uma aula, ou como uma metafórica e aristotélica tabula rasa. O que acontece é que as “boas” ideias, as inspirações frutuosas, são como as “urgências” de um padecente prostático: só surgem nas piores alturas, nos momentos menos propícios. Quando estão reunidas as condições para efectivar o acto, geralmente desvanecem-se ou, a não ser assim, serão como a montanha que pariu um rato, pois a chispa ígnea quase desapareceu e só lhe restam brasas moribundas.
Será um pouco estranho ou, pelo menos, invulgar, fazer semelhante comparação, mas quem sofre de hiperplasia benigna sabe a que me refiro; quanto aos outros… informem-se e usem a imaginação.
Não podemos andar sempre com um caderno de apontamentos ou um gravador (agora um telemóvel serve) para escrever ou enunciar os picos de inspiração, de génio, que vão surgindo fortuitamente, quando menos se espera; quando corremos para a caneta, “já é tarde, Inês é morta”, como antigamente se dizia, e quem conhece minimamente a literatura e a história portuguesa, entende o que eu quero dizer.
Mas como o caminho se faz caminhando, o texto vai surgindo, vai tomando forma, tematizado ou não, justificado ou não, pois é isso que a mente humana tem de bom: encadeia, conta uma história, tece uma trama, cria do nada. Podem-se escrever páginas e páginas de um texto que não diga necessariamente nada útil e coerente, ou muito pouco. Ou muito.
É escrever pelo prazer de o fazer, o lavar da mente, uma espécie de ginástica espiritual que nos vai preparando para o próximo texto, para uma produção mais musculada, mais rica e fluida.
Os grandes pensadores, os grandes mestres da literatura, aconselham a escrever muito e a ler ainda mais; só assim se adquire a capacidade de criar obras que valham minimamente a pena serem lidas. Não tenho essa pretensão nem tempo para a ter. Além do mais, o meu ciclo vital não terá a lonjura suficiente para concretizar esse sonho, que não passará de um sonho feliz, só isso.
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce, escreveu Fernando Pessoa. Mas esse era um génio inato. Nem sempre o comum dos mortais está fadado para ser um génio ou tem tempo para o ser.De facto, é necessário ter tempo para se ser génio, e as vicissitudes da vida roubam-nos as possibilidades de atingir esse estado precioso. Quantos desconhecidos e extraordinários seres se terão cruzado, cruzam e cruzarão connosco sem que disso tenham e tenhamos noção, seres que murcham antes de desabrochar, homens e mulheres que nunca conseguirão desenvolver o seu desconhecido potencial, envolvidos que estão em existências frustrantemente absorventes, vampirescas, que lhes sugam ou embotam o talento!


26. fev, 2020
 Post 155

06h57, 23/06/2020, domingo
Amanhece. Recomeça o ciclo vital, sob a influência da melatonina. Não é o meu caso, pois trabalho de noite. No entanto, aprecio-a bem nos dias de descanso.
Melatonina, serotonina, ocitocina, dopamina e endorfinas: tudo o que é preciso para se ter uma ilusão de felicidade. (não confundir as últimas com as pitufinas, que em espanhol é o nome porque são designadas as strumpfs).
A primeira regula o sono e a vigília; a serotonina é, basicamente, um antidepressivo; a ocitocina socializa-nos; a dopamina dá-nos a vontade de lutarmos pela vida e dela obtermos prazer. Finalmente, as endorfinas são o nosso analgésico e fazem-nos rir, não porque sejam uma espécie de droga do riso, como a canábis, mas porque nos dispõem bem. Todas juntas e a funcionar em condições é, como sói dizer-se, “Deus com os anjos”.


9. fev, 2020
 Post 154

05/02/20, 5ª feira, 00h49
É sabido ou, pelo menos, é crença comum que a Terra e o seu habitante mais mediático – o Homem – regem-se por ciclos, por ondas periódicas, com os seus zénites e nadires ou, mais vulgarmente dizendo, os seus altos e baixos, condicionando os auges e decadências da história da humanidade e do planeta. Nesta perspectiva, o homem tem momentos de franco desenvolvimento, onde tudo corre bem, sem preocupações, e momentos de queda, de declínio mais ou menos acentuado.
A ser verdade, já passei por dois ciclos, um ascendente e o outro a sua contraparte. No primeiro, tudo vogava de feição, o futuro adivinhava-se auspicioso, sem nuvens no horizonte; quanto ao segundo, iniciado nos términos da década de 80, esse representou para mim uma queda profunda onde só não bati no fundo do poço porque, se calhar, este era muito profundo. Muito mais tarde, já no princípio da primeira década do século, notou-se uma lenta, lentíssima ascensão, da qual só agora parecem querer nascer tímidos rebentos. Ainda é muito cedo para comemorar, para entoar cânticos de vitória, pois há sempre que temer eventuais “geadas” que poderão ainda exterminar essas frágeis inflorescências.
No entanto, estou confiante que o futuro próximo me trará mais alegrias que dramas, embora deva ter em conta alguns acontecimentos mais negativos mas incontornáveis e que fazem parte da passagem dos seres sobre o planeta. Digamos apenas que serão consequência das leis da Natureza.
Apesar da minha faceta existencialista, fatalista, negativista, romântica no seu lado mais tenebroso, antevejo ainda um futuro próximo mais positivo, mais desanuviado.
E o estado do Mundo? Pois…nem sei! Estamos constantemente a dar, ora dois passos em frente e um atrás, ora um passo em frente e dois atrás. Enquanto concernir ao Homem determinar o seu destino – o que acontecerá sempre – mover-nos-emos inevitavelmente numa corda bamba, em constante risco de nos estatelarmos.
Não acredito na extinção da espécie ou num retrocesso civilizacional catastrófico, pois esse tipo de discurso, por excesso de uso, está gasto há milénios. É certo que existe a lenda/mito da Atlântida, de que falam Platão e algumas correntes espíritas, teosóficas e esotéricas. Nada provado, nada comprovável, apenas especulações. Eu próprio sinto simultaneamente crença e desconfiança nesta teoria tão improvável e, contudo, tão possível.
Muitos dirão que é pura fantasia, mera ficção científica ou uma espécie de teoria da conspiração inculcada por umas quaisquer entidades secretas, charlatães, illuminati ou similares. No entanto, existem no passado muitos factos inexplicados. A dúvida sistemática será a melhor solução, aliada a uma mente aberta para as mais variadas hipóteses, por mais mirabolantes que elas sejam. Não nos esqueçamos de que Julio Verne e, muito especialmente, Leonardo Da Vinci, foram visionários ridicularizados e desacreditados pelas mentes cultas da sua época.
No meio está a virtude: nem crença dogmática nem cepticismo fundamentalista.


2. fev, 2020
 Post 153

02h20, 02/02/2020, domingo
Deixei chegar esta hora quase propositadamente, esperei por este momento único para começar a escrever. É apenas pela piada, pela curiosidade, não tem nada de mágico, astrológico ou cabalístico, pois todos os dias e todas as horas poderão ser mágicos, astrológicos ou cabalísticos. Depende apenas da vontade, da crença ou da intenção de quem assim os considera.
Chamei-lhe momento único porque em verdade o é, constitui uma capicua pouco frequente, também chamada palíndromo ou palavra enclástica (neste caso, número enclástico) e pertencente a uma categoria literária chamada escrita constrangida (mais não explico, quem quiser vá pesquisar na internet).
Por falar em datas, faltam-me só 4 anos para a reforma, se até lá não resolverem aumentar a idade de jubilação para os 80 ou 90 anos.
Só 4 anos??? Estou definitiva e irremediavelmente velho! Parece que foi há tão pouco tempo que tomei consciência de mim como ente pensante, que entrei na conflituosa puberdade, que namorei, que casei, que nasceu a 1ª filha, que nasceu a 2ª… Nem elas nem ninguém escaparão à mó voraz do Tempo, que reduz tudo a uma fina poalha, dispersa nos incomensuráveis campos do Esquecimento, onde jazem as memórias de todos os passados e onde aguardam, abertos, os túmulos de todos os futuros.
Já aqui cheguei, quanto tempo me resta? Um segundo, um dia, dez anos? Vinte? Mais, será difícil. À medida que se envelhece, o intelecto vai-se adaptando à ideia de finitude, embora, por vezes, com relutância.
É o meu caso: aceito, compreendo, mas recuso-me a morrer tão cedo (é sempre “tão cedo”). Pode ser que um dia, se chegar a esse estágio, aceite e, até mesmo, queira morrer; se até agora passei da fase da recusa total à de aceitação, então poderei ou, seguindo a lógica, deverei aceder ao da espera impaciente, da jubilosa resignação.
Afinal, é o desfecho lógico: em novos, lutamos pela vida, depois pela família, pela perpetuação da espécie e depois… é o descanso do guerreiro, é quando concluímos e aceitamos que a nossa missão nesta etapa está terminada e podemos partir em paz, com a satisfação do dever cumprido.


27. jan, 2020
 Post 152

02h11, domingo, 26/01/20
Que aconteceu ao mundo, tal como o conhecemos no passado de que somos contemporâneos? No meu caso, poderei dizer desde há 50 anos, mais ou menos, desde os pálidos e indefinidos alvores da minha idade da Razão. A sua face mudou, e não apenas fisicamente. Aliás, física ou geograficamente mudou pouco; na primeira metade do século XX as alterações foram muito mais significativas.
Refiro-me, isso sim, à “face” humana, às características da humanidade, às suas componentes de honra, honestidade, respeito, piedade e outras virtudes reconhecidas como tais. Parece que estamos a regredir para antes da Idade Média, para uma época em que a sobrevivência se pautava quase exclusivamente pela lei do mais forte. Não que essa lei tenha deixado de existir, ela foi diminuindo gradualmente a sua influência ao longo dos tempos (não falando em guerras, são casos à parte). Nos entanto parece que, ultimamente, essa vertente mais animalesca da humanidade tem tido um incremento muito forte.
Ou será que a minha visão actual está contaminada pela de há 50 anos, pelos valores em que fui educado, pelo idealismo de uma juventude longínqua? É possível.
Sempre tive consciência de que o discurso das gerações mais velhas é de desencanto e não de contentamento, de crítica e não de aquiescência. A perspectiva dos ancestrais relaciona-se sempre ou quase sempre com a visão de um paraíso perdido (o Paradise Lost, de John Milton), de uma época onde os valores acima referidos eram cultivados e respeitados.
Mas seria mesmo assim? Ou estaremos nós, as gerações do “antes de agora”, a comportar-nos como os Velhos do Restelo, de que fala Camões, cuja visão era deturpada pelas influências da sua época, dos seus valores, ignorando tudo o que os sempre renovados ventos de mudança vão trazendo?
Serei eu também um Velho do Restelo, defenderei eu também valores obsoletos, ou estarei certo, ainda que parcialmente, e existem valores que foram sendo progressivamente deturpados ou perdidos pelas gerações que me seguiram?
É difícil ser-se imparcial á medida que a nossa mente, os nossos princípios se vão cristalizando. O mundo avança (direi antes, à cautela – modifica-se) mais rapidamente do que nos é possível acompanhar, e essa diferença de velocidades confunde-nos, não nos permitindo assimilar convenientemente a sua mudança ou avaliar atempadamente a sua justeza.
A única coisa de que tenho a certeza é de que desde há milhares de anos o discurso dos “velhos” tem sido e continuará a ser apocalíptico. No entanto, o planeta vai seguido o seu caminho, girando à volta do Sol e acolhendo novas gerações, adaptando-se a elas e adaptando-as a si, contrariando os vates que anunciam o fim do mundo.


22. jan, 2020
 Post 151

00h09, 4ª feira, 22/01/20
Surgiu-me no espírito uma dúvida: será que ando a centrar-me demasiado em mim, nas minhas vivências, em detrimento de assuntos mais importantes, de interesse geral ou, pelo menos, mais generalizáveis?
Será o meu pseudo-blog, nos seus temas e cogitações, uma leitura interessante ou instrutiva, geradora de reflexão e da qual se possa retirar algum sumo útil, ou não passará de um exercício frívolo, produto da mente de alguém que não tem mais nada que fazer senão criar textos fúteis para se manter ocupado nos momentos vagos?
Por vezes sou, qual John Stuart Mill, utilitarista, ou seja, pego (metafóricamente, claro) nos meus textos e examino-os à lupa, tentando descobrir neles algo de útil para outros que não eu, e mesmo para mim próprio: serão as minhas reflexões profícuas ou agradáveis de ler? É, para mim, um eterno questionamento humanista-existencialista, um pesar na balança, não do politicamente correcto mas do correctamente político.
Diz-se que não há maus livros (leia-se: textos) porque neles existe sempre algo, por pouco que seja, de útil ou aproveitável; é a minha derradeira esperança, e da qual não quero ouvir a resposta. Mantenho a crença de que o que aqui escrevo é, no mínimo, lisível – quanto mais não seja, para passar o tempo, como um conto de ficção. Caso contrário, ruiria toda a estrutura que fui construindo ao longo destes 7 anos de escrita, a minha tabula rasa, que é também a minha tábua de salvação. Ámen.


17. jan, 2020
 Post 150

23h56, 14/01, 3ª feira
A chuva e o vento voltaram para nos lembrar de que é Inverno e que este não é um mero e gélido mar de rosas.
Embora haja sempre uma razão oculta para explicar o inexplicável – pois acredito que nada sucede por acaso e o livre arbítrio não é assim tão linear – o facto de as apetências físicas e mentais (estas, principalmente) só surgirem ou surgirem maioritariamente com a idade madura e a velhice, coloca questões importantes e hipóteses de resposta cabal, no mínimo, frustrantes.
Na vida, tudo surge tarde ou tardiamente: o aperfeiçoamento das habilidades manuais, a destreza nas variadas actividades físicas, o amadurecimento das capacidades mentais, tudo isto vai surgindo progressivamente, à medida que vamos envelhecendo e perdendo a resistência física e a agilidade mental. Quando estamos prontos para a vida, quando os equilíbrios homeostático e mental começam a despertar, é quando entramos no declínio, quando, de facto, começamos a morrer; uma morte lenta, tanto mais lenta quanto mais nos apercebemos das limitações que vão surgindo e quando receamos aquelas que possam surgir, prejudicando o usufruto pleno das nossas faculdades.
Muitas vezes, quando começa este estado involuntário de dependência, inicia-se também um processo de auto-extinção, de inadvertido e insidioso suicídio, que degrada ainda mais a nossa força de viver e perante os quais apenas nos mantemos vivos por força do instinto de sobrevivência.
Aqui entra a nossa força de vontade, de carácter; resistir ao desapego, ao desinteresse pelo que a existência nos pode ainda dar – e que é muito – faz toda a diferença. As atitudes e pensamentos positivos são muito importantes: olhar para nós próprios como um copo meio cheio e não como um copo já meio vazio é essencial para reverter o processo de degenerescência, dando-nos satisfação pelo que ainda somos capazes de concretizar.


7. jan, 2020
 Post 149

00h17, 3ª feira, 07/01/20
Encerrado há minutos o ciclo de festividades de Natal e Ano Novo, concentremo-nos na gestão de todo um renovado período de actividade a que convencionamos chamar ano, seja ele civil, religioso, astronómico ou outro.
Voltemos ao Panem et circenses de Juvenal, à labuta diária pelo sustento familiar ou individual (depende dos casos) entrecortada por breves momentos de diversão, de escape das dificuldades inerentes à primeira premissa.
A expressão acima utilizada, embora na sua origem e através dos tempos tenha tido e ainda tem forte e justificada conotação política e social, é também psicologicamente legitimada no sentido de permitir (ou, pelo menos, tentar) um bom equilíbrio homeostático.
Que vamos fazer neste ano de 2020? O mesmo de sempre: auto-enganarmo-nos de novo, fazermos promessas e planos de correcção de vida, de elisão ou eliminação de vícios e maus hábitos, olharmo-nos ao espelho e imaginarmos o nosso íntimo coberto pelo ouro da rectidão, da vontade e da verdade, quando na realidade ele está envolto pelos ouropéis da mistificação.
É inútil tentarmos ser verdadeiros; temos uma enorme apetência pelo teatro, pela ficção, pela mimese da realidade. Usamos placebos com plena consciência da sua função, da sua ilusão, e imaginamo-nos felizes e completos, mas não passamos de balões cheios de ar, inflados de orgulho e pretensiosismo, cuja única realidade é o latex colorido que cobre a vacuidade da sua volumétrica mentira.
Hoje termino por aqui; sinto sobre mim o funesto e etéreo influxo de Sartre, moldando-me o texto, filtrando-me o pensamento num crivo existencialista, pesado e negativizante (embora, a seu modo, verdadeiro).
Mas, curiosamente, estou optimista.


1. jan, 2020
 Post 148

23h45, 31/12/2019, 3ª feira (terminado em janeiro de 2020)
É a última vez que datarei algo como criado em 2019, a não ser algum eventual documento referencial. São (eram) 15 minutos que cerram o que se convencionou chamar um ano. Como é usual entre, pelo menos, os ocidentais, faço uma resenha dos seus 12 meses, desde o nascimento até à sua morte, daqui a escassos minutos:
Guerras e cataclismos naturais similares aos dos anos precedentes e, eventualmente, dos procedentes; níveis de felicidade e infelicidade com poucas variações, avanços e recuos na política, nos acidentes, na religião. Enfim, um ano-fotocópia.
Interrompi por breves minutos para poder “sentir” o passar do ano, apenas por um hábito velho de 62 anos. Na verdade, o hábito é mais novo, terá uns 55 ou 57 anos, visto só por essa altura (5-7 anos) eu ter começado a interiorizar essa tal mudança que não é mudança, apenas um convénio firmado entre humanos culturalmente equivalentes.
O que espero do novo ano? Como ano, nada. Como um futuro não balizado pelo tempo, espero evolução, paz interior, saúde dentro do possível, estabilidade financeira, harmonia familiar e vicinal; só isto é-me suficiente.
Boa Ano para todo o planeta e circunvizinhanças (há lá por cima alguns astronautas).


24. dez, 2019
 Post 147

04h10, 23/12, domingo
O Natal está à porta, apenas a um degrau da entrada. No entanto, já pouco me importa, desapareceu a magia da infância e o fazer-magia da parentalidade. Como a “avozabilidade” tarda a chegar, deixo as festividades para os outros, para os filhos, pais e avós do resto do mundo.
Quando se começa a entrar na idade adulta da idade adulta, as mundanidades começam a perder significado, o que, por um lado, é bom. Vemos que aquilo a que dávamos tanta importância (festas, aniversários, baptizados), não têm afinal a importância que lhes atribuímos, não passam de uma feliz ilusão ou de uma ilusão feliz.
No entanto, esse desapego que a idade oferece tem também os seus perigos: o isolamento, a sensação crescente de que não se está aqui a fazer nada, que nada interessa.
O esvaziamento do sentido da vida é um dos piores dramas da velhice e atinge o seu climax quando um ser humano chega à conclusão de que está aqui, neste mundo, a mais. Não é a morte do corpo, é a do espírito, é quando nos tornamos fantasmas mesmo antes de termos carnalmente expirado. E é desse perigo que nos temos de precaver através de uma gestão ponderada daquilo que abandonamos e do que conservamos, do que já não importa e do que não devemos largar mão.
As vicissitudes da vida fizeram-me perder quase todos os meus amigos. Bons amigos, esses conto-os pelos dedos das mãos e ainda sobram dedos. Nenhum deles é meu íntimo. Conformei-me. Adaptei-me porque não consigo ter tempo para estreitar os laços com aqueles que ainda tenho. C’est la vie. Esforço-me por manter algum significado do muito que a actividade de relacionamento humano dantes tinha. Não quero terminar só, não quero tornar-me um sem abrigo social.
Existe, claro está, a família; no entanto, ela também seguirá a sua vida, criará laços e romperá aos poucos com os antigos. O rumo é para a frente, não para o passado. É natural e inevitável, nós também o fizemos e sabemos que, pouco a pouco, vamos ficando mais sós, mais isolados e vemos os amigos da nossa juventude e a família da nossa faixa etária desaparecerem e o nosso mundo com eles. Há, pois, que criar estratégias de sobrevivência social, evitar um tendencialmente crescente estado vegetativo, um viver só por estar vivo. É o nosso grande e derradeiro desafio.
Feliz Natal e, como dizia o já falecido Raúl Solnado: “façam o favor de ser felizes”.


22. dez, 2019
 Post 146

22/12, 02h07, domingo
Ponho-me por uns momentos a pensar sobre o que hei de escrever. Por vezes, a maioria das vezes, é difícil, não há um guião, não se tem algo já preparado e que basta copiar. O improviso que escrever representa tem os seus riscos: podem surgir textos de extraordinária lucidez, narrativas dignas de menção, pensamentos ao nível dos dos melhores filósofos ou descrições vívidas e absorventes, mas podem também surgir histórias medíocres, temas desinteressantes ou rasgos da mais pueril estupidez.
Se falar é um risco, escrever pode ser um ferrete indelével, pois o que se escreveu está escrito e pode ser lido por quem quer que seja, copiado, citado, apresentado como libelo acusatório. O acto de fala pode ser emendado como se fosse um mal-entendido, uma audição deficiente, um “não foi isso que eu disse”. O acto de escrita é um “preto no branco” onde as justificações ou pseudojustificações aplicáveis à acção verbal deixam de fazer sentido. Por alguma razão se fala na letra da lei e não na fala da lei (palavras, leva-as o vento).
É, pois, melindroso escrever, ser lido, ser interpretado por poucos ou muitos. A recepção dos textos molda a fama ou a desgraça, a consideração ou o desprezo, o crédito ou a desconfiança, a sintonia ou a diferença. Assim, quando o faço, tento ser coerente, sem ambiguidades, sem duplos sentidos. Cabe, evidentemente, aos leitores a interpretação dos textos, avaliar o seu valor, passe a expressão. Uns gostarão, outros nem por isso, pois aqui manda o livre arbítrio e a competência estética individual que, tal como as impressões digitais, são únicas em cada ser humano.
Aprendi que Jorge de Sena escrevia os seus poemas como testemunho de algo, não de forma confessional, não centrada em si. Quanto a mim, não sei em que estágio ou postura me enquadro, mas penso que estarei algures entre os dois: por vezes sou um queixinhas cheio de autocomiseração e desculpas, enquanto noutros momentos veiculo experiências vividas – os tais testemunhos de épocas, de situações isentas de valoração emocional, relatos neutros de um passado, de uma vivência comum a tantos outros co-viventes.
Sou piegas ou analista, ingénuo ou calculista, tendencioso ou isento? Não sei, mas não estou muito preocupado em saber. Escrevo o que surge, o que paira dentro da minha cabeça, os pensamentos que esvoaçam e que capto quando pousam (é tão difícil eles pousarem o tempo suficiente para os agarrarmos!).
Gostava de ser um encantador de pensamentos, saber enfeitiçá-los para que pousassem na ponta da minha caneta o tempo suficiente para os poder aprisionar no papel, numa prisão que, se ou quando for dolorosa, só doi ao carcereiro.


18. dez, 2019
 Post 145

18/12, 01h03, domingo
Assertividade.
Ser assertivo não significa ter razão. Por vezes (muitas) escrevo sobre temas com plena consciência de que estarei eventualmente certo, embora posteriormente essa minha assertividade se desloque para um campo que poderá ser diametralmente oposto.
Assertividade nada tem a ver com valores ou moral, embora seja evidente que se tocam e influenciam. É lógico que os últimos guiam as nossas convicções, formatam aquilo que pensamos e escrevemos.
Por exemplo, se eu for um católico convicto não poderei (ou, pelo menos, não será normal que o faça) defender o satanismo, ser assertivo nesse tema. Alhos e bugalhos são vegetais. Só. Isso não os liga de mais nenhum modo.
A mente é muito dúctil, muito elástica, adapta-se com relativa facilidade a novas formas de pensar, desde que não colidam com a nossa personalidade de base. Não é necessariamente errado ou condenável mudarmos de opinião, desde que o façamos com a convicção de que estamos certos, à luz de novas e, para nós, sólidas ou irrefutáveis evidências que ponham em causa aquilo em que antes críamos. Exemplos dessa mudança, por vezes inimaginavelmente radical, encontram-se por todo o lado: políticos, escritores, pensadores, teóricos, historiadores ou mesmo gente comum, pois as mudanças de opinião são como as gripes – podem afectar toda a gente, independentemente do sexo, cor, idade, nacionalidade ou estado civil e podemos já não concordar com as suas ideias mas não devemos deixar de os considerar por isso. No fundo, acabamos por nos rever neles, mesmo que o neguemos. Todos nós, algures num passado remoto ou recente, cometemos o mesmo “pecado”.
E que ninguém venha a armar-se em santo ou virtuoso, já o fez; pode é, convenientemente, ter-se esquecido ou confundido mudança de opinião com mudança de personalidade. Deixemo-nos de hipocrisias.
Citando um sobejamente conhecido aforismo, que é tradicionalmente atribuída a Jesus Cristo:
Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra.


17. dez, 2019
 Post 144

03h52, 16/12/19, 2ª feira
No decorrer dos últimos anos – direi: décadas -, habituei-me a ver a involução dos portadores da carta de condução. Não que eu seja isento de críticas, mas pelo menos tento cumprir as regras mais importantes em termos de segurança e também de respeito, do Código da Estrada.
Isto vem a propósito do hábito generalizado de aguardar pela mudança do semáforo num ponto da via em que os olhos do condutor conseguem abarcar mais eficientemente as cores que o compõem, em todo o seu esplendor, ou seja, directamente em cima da passadeira e imediatamente antes do poste luminoso, como se estivessem na pole position de algum torneio automobilístico. Em maioria, não é porque queiram arrancar à frente de todos os outros, numa manifestação de superioridade do carro ou do condutor, nada disso. Muito frequentemente estes adoradores de semáforos limitam-se a arrancar a uma velocidade normal ou até, por vezes, desesperadamente lenta, como se os condutores tivessem mais de 90 anos.
O percurso pedonal da passadeira fica comprometido mas nós, enquanto peões, comportamo-nos maioritariamente como os membros de um rebanho: atravessamos, pachorrentamente ou não, contornando o obstáculo, quiçá resmungando entre dentes aquilo que gostaríamos de verbalizar mas que contemos por medo, comodismo, indiferença ou educação.
Inclino-me para a crença de que os exames médicos para atribuição da carta estão a ser pouco rigorosos, permitindo que míopes profundos conduzam. É esta a justificação que acho mais plausível para semelhante fenómeno de passedeirofobia e semáforofilia.
Há ainda outra hipótese que é por vezes apresentada, mas que deve ser apenas produto das más-línguas, de calúnias sem fundamento: que esse fenómeno se deve à crescente falta de educação e desrespeito pelas normas estabelecidas numa qualquer sociedade de direito no sentido de criar um mínimo de ordem no galopante caos automobilístico provocado pelo enorme e progressivo aumento de veículos em circulação e pela crença de que a maioria dos manobradores de máquinas de transporte faz a sua própria lei da estrada (posso referir milhentas outras situações, não necessariamente ligadas a esta aptidão).
 Pondo de parte a ironia com que envolvi este assunto, e para que fique bem claro o que pretendo transmitir e que defendo, considero que, em matéria de condução, o respeito, tanto pelo próximo como pelas regras do Código da Estrada, têm vindo a ser gradualmente esquecidos e tratados como meras e inúteis formalidades: Ego sum rex via.
Até quando o atropelo (neste caso particular, na sua mais pura significação)?


3. dez, 2019
 Post 143

02h10, domingo, 01/12
…e fez-se chuva e vento.
Parece extraído de uma citação bíblica, mas é apenas uma constatação meteorológica e não um relato do Génesis.
Por que criamos, por que pintamos, escrevemos, inventamos? Qual é o objectivo? Quer sejam epicuristas, filósofos, misóginos, mecenas, humanistas, sádicos, místicos, misantropos ou filantropos, todos apreciam as artes; e continuo a perguntar: porquê? Que nos faz apreciar toda a criação humana, tecer-lhe observações críticas, coleccioná-la mesmo? Convém observar que existem “obras” criadas por animais, mas geralmente ligadas ao campo da engenharia, da física ou, eventualmente, da química, como é o caso das abelhas, dos castores, ou até de alguns pássaros, que mimetizam a arte nas suas colmeias, nos seus diques ou nos seus ninhos, sem nenhum intuito estético (embora possamos ver arte e estética nelas). Latu senso e strictu senso, não passam de técnicas de sobrevivência.
O Homem é o único ser vivo que cria para desfrutar de um prazer sensorial e espiritual. Como e porquê tal surgiu? Terá sido de algum modo numa tentativa de play God, como dizem os nossos aliados mais antigos ou os americanos?
Terá surgido no Homem, há incontáveis gerações, através das primeiras representações pictóricas (Foz-Coa, Lascaux e outras), cuja finalidade – de início, mágica – era de captar/capturar as presas de que se alimentava e vestia, numa crença que se foi interiorizando de que a representação desses animais, quanto mais perfeita fosse, maior seria a probabilidade de os poder reter e dominar. Ao pintar e, posteriormente, ao esculpir os objectos de desejo, e consoante o esforço e perfeição mimética da “obra”, o grau de sucesso seria directamente proporcional: a representação como que os capturava, os subjugava à vontade do caçador, anulava-lhes ou embotava-lhes a vontade própria, o instinto de sobrevivência. Tudo isto é magia, capacidade imaginativa, é fé, é crença, é religião, é arte.
Da representação mágica à arte que entendemos como tal, foi um processo muito longo, numa gradualização quase estática. Presumo que os “artistas” tenham começado a ser admirados pela sua destreza em tais representações de “alta magia”, o que levou a um inevitável e cada vez maior esforço de mimetização da natureza, de profissionalização pelo refinamento das capacidades artísticas e inventivas.
Daí surge a arte própriamente dita, que se foi aprimorando ao longo dos milénios e, por força da progressiva melhoria das condições de existência humanas, como o pastoreio ou a agricultura, foi perdendo cada vez mais o seu carácter mágico. Surge então o primeiro rudimento do sentido estético, começam a formar-se os primeiros apreciadores do mimetismo, já não como instrumento xamanístico de captura e domínio, mas como arte (qualquer destreza humana é uma arte). Porém, no fundo, o carácter mágico da arte ainda subsiste, bem fundo, no inconsciente colectivo: acompanhando as tendências do pensamento progressivamente mais evoluídas, com alto grau de subjectividade, começa a surgir já no séc. XIX uma tendência para a arte cada vez mais abstracta, minimalista, conceptual.
Essa arte esforça-se por se fundir com o intelecto, abjurando de qualquer representação (mimética ou não). É um retorno evoluído ao primitivismo pré-cavernícola, à união com a Natureza, com o Cosmos, dispensando já todo e qualquer simbolismo ou iconografia.


21. nov, 2019
 Post 142

06h18, 4ª feira, 20/11
Noite aborrecida. Não passa e nada se passa. Quanto a esta última premissa, até fico satisfeito, visto que, quando se passa algo aqui, não é geralmente prazeroso.
Tal como a noite, estou aborrecido; a única diferença é que eu estou, eu sinto-me, enquanto que ela, como entidade abstracta que é, não está, não sente. Em breve far-se-á dia e a noite deixa de ser e eu deixo de estar. É mais difícil para um dia o ser aborrecido, embora por vezes o seja. No entanto, toda a azáfama, todo o movimento que o caracteriza, ajuda-o a tornar-se mais sofrível, mais interessante.
Lato sensu, a parte obscura do dia, até pode ser repousante, produtiva, propícia à reflexão, à meditação; basta estarmos “para aí virados”. Uma noite bem aceite, bem aproveitada, até pode ser de grande utilidade, permitindo “arrumar melhor as gavetas do último andar”.
Infelizmente para mim, a capacidade que tenho para usufruir de uma “boa noite” pode por vezes diluir-se por força de variados factores, a começar pela idade, tocando outras infindáveis situações (um pouco exagerado) e terminando no tirânico gestor da duplicidade sono/vigília – o ciclo circadiano. Mais 5 anos e terei todo o tempo do mundo, se for vivo; se, entretanto, morrer, então terei toda a eternidade.
Todavia, não faz muito sentido dizer toda a eternidade; se é eternidade, então não tem princípio nem fim. Logo, é incontável e imensurável.
Ora, isto põe em causa o próprio conceito de eterno, pelo menos para aqueles que terminam o seu tempo entre nós, o que, no fundo, será também o nosso irrecusável destino: se eterno é existência “sempre antes” e “sempre depois”, como emparelhá-lo com o nascimento e a morte?
Segundo a teologia cristã, após a morte do corpo, a alma desencarnada parte, de acordo com os seus méritos, ou para a bem-aventurança, ou para a danação perpétua.
E antes do nascimento? Nada, não havia nada? se a eternidade não começa nem acaba, e já pondo de parte essa concepção ambígua do destino eterno da alma, como explicar o nascimento desta, que encarna num corpo também nascituro? Não faz muito sentido e as doutrinas teológicas omitem-no completamente.
Então nós, alguma parte de nós é, foi e será eterna? E sendo assim, tudo o que existe é, foi e será eterno? A aceitar estas premissas, Lavoisier estaria certo, muito para além da física e sem sequer o suspeitar (?), ao enunciar a sua bem conhecida Lei:
Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma (basta apenas entender Natureza como Infinito).


19. nov, 2019
Post 141

00h37, 19/11, 3ª feira
Escrever, pintar, esculpir ou congéneres, são actos que, depois de concluídos, pertencem ao domínio público? Ou podem ser pessoais? E se forem pessoais, são uma manifestação egocêntrica, um acto de pura vaidade, uma misantropia, ou apenas uma reacção de timidez, de baixa autoestima, de medo da crítica?
Quem publica será um orgulhoso que cria para se auto-vangloriar, alguém que necessita de um público para alimentar o seu ego? Ou quem o faz, fá-lo para dar sentido à vida, para justificar o ar que respira, para dar ao mundo um pagamento pelo espaço que ocupa?
Será o acto de criar uma necessidade, como deixar descendência ou ajudar velhinhos a atravessar a rua? Ou será como grafitar uma parede pristina ou partir o vidro de uma paragem de autocarro, como mera manifestação oca de afirmação de existência, uma vandalização da consciência dos outros?
Julgo que se trata de um caso muito íntimo e assaz diferente de pessoa para pessoa. Cada um age de acordo com um seu plano interno, intransmissível e, por vezes, críptico, mesmo para o seu detentor.
Porque fazemos seja o que for que fizermos? No fundo, saberemos explicá-lo? Ou agiremos por impulso, pelos ditames do espírito e incônscios da causa? A maioria dirá que tem plena consciência dos seus actos mas, na realidade, ninguém tem. As causas últimas estão bem escondidas no Id (link na página "Fotos"), relegadas para o canto mais esconso da mente, esse nosso gigantesco e charadístico labirinto.
Um iceberg.


13. nov, 2019
Post 140

05h09, 2ª feira, 11/11/19
Escrevo no único sítio onde, geralmente, tenho oportunidade de o fazer e onde lá vou usufruindo, mal ou bem, do mínimo de sossego e isolamento necessários. É, digamos, a minha “sala de chuto” literária, o local onde cedo ao vício da escrita, onde a metáfora transmuta a seringa e a “branca” na caneta e no papel com que, e onde, escrevo.
Gostaria de ter mais tempo e de me sentir mais isolado, mais despreocupadamente entregue à minha pequena compulsão, para poder abrir as asas a pequenos e pretensiosos voos que, infelizmente, não passam ainda de esvoaçares inseguros, por vezes destrambelhados.
Acho que a idade e o cansaço têm aqui uma palavra a dizer, embora a minha limitada capacidade de “desligar” do mundo danifique sobremaneira as minhas pretensões. Estou sempre a perder a concentração, sempre a, figuradamente, olhar para o lado.
Como dizia Mário Soares, “temos que viver com aquilo que temos”, o que se aplica, não apenas à economia, mas a tudo o que faz parte da nossa existência. No entanto, há em mim (e suponho que em todos os meus equi-pré-idosos, assumidamente ou não) uma dualidade de posturas perante uma situação de reforma que se vai aproximando:
Por um lado, o desejo de que o merecido tempo de descanso de uma vida de trabalho venha rápido, para que possa gozar e compartilhar o meu recém-adquirido tempo livre em repouso ou em actividades não compulsivas. Infelizmente, para alguns, e geralmente por questões económicas, tal não se torna possível.
Pelo outro lado, a obtenção da reforma surge como um espectro, um prenúncio de morte (como canta a Isabel Silvestre), a lembrança de um prazo de validade que irá expirar a curto ou médio prazo.
Depende agora de nós, os futuros reformados, interpretar essas mudanças nas nossas vidas, tão ou mais importantes e transformadoras como que se de uma menopausa ou andropausa se tratasse.
Pelo lado bom, surge uma renovada panóplia de oportunidades de desenvolvimento pessoal, de enriquecimento interno; bem gerido, dá-nos tempo para o que mais valorizamos, sem metas nem prazos, sem obrigações. Se, em contrapartida, a encararmos pela negativa, transmuta-se na nossa agonia, num inferno em vida que nos matará mais cedo que o que seria suposto acontecer.
Por tudo isto, tenho muita pena daqueles que começam a vaguear sem rumo, a vegetar numa jubilação frustrante e sem sentido, letal. Para esses, o quadro não pode ser mais negro pois, além da reforma do trabalho, reformam-se da vida. É uma anulação lenta e progressiva do sujeito, uma desintegração da própria personalidade, cuja única solução será o supremo paliativo – o decesso (que é uma versão mais pretensiosa da palavra morte – só para dar um ar de erudição pedante).


28. out, 2019
Post 139

06h38, domingo, 27/10
Os pernilongos estão a morrer. Falo daqueles insectos que parecem mosquitos gigantes e que surgem no início do outono. Chama-se geralmente pernilongos aos mosquitos e melgas, mas estes que refiro merecem verdadeiramente o título, devido ao seu tamanho e, principalmente, à lonjura das suas patas. Em termos científicos, são conhecidos por típulas ou mosquitos-gigantes e são inofensivos.
Pois, como dizia, termina mais um ciclo de vida destes (pouco) simpáticos insectos. Não que me prejudiquem em nada, mas a minha simpatia por eles nunca foi muito grande, limitando-me a tolerá-los, e julgo que esta é a opinião da esmagadora maioria dos meus congéneres.
Há insectos com que simplesmente não atinamos e por vezes nem sabemos porquê. Centopeias, aranhas e baratas estão no topo dos mais detestados, logo seguidos pelos mosquitos e pelas moscas.
Pensando melhor, julgo que os mosquitos estarão no primeiro grupo e em lugar destacado, por serem tão “melgas” e tão lesivos, não só do nosso sistema imunitário, como do sensorial (táctil e auditivo). Quem não se irrita quando eles “ligam o zumbido” mesmo junto aos nossos ouvidos?
Pois, como eu dizia, fora raros momentos de desorientação motora destes insectos (quando eles vêm contra nós), as típulas nunca me fizeram qualquer mal, raramente fui incomodado com o seu toque, nunca me picaram (porque não picam), nem sequer alguma vez senti o seu zumbido (porque não se ouve). No entanto, talvez pelas parecenças com os detestados e detestáveis mosquitos e melgas, a aversão é manifestamente comum. Coitados, têm uma vida curta e são malvistos, que mais podem eles almejar?
Todos os seres vivos, sencientes ou não, têm um papel na Natureza e que por vezes é difícil de definir. Veja-se, por exemplo, o caso de alguns humanos, que nem isso parecem ser: o seu papel na evolução e no equilíbrio natural é incerto, por vezes até parasitário, não parecendo fazer nenhuma falta à Grande Engrenagem Universal. Mas, no entanto, têm uma função, embora para nós desconhecida, tal como a efémera – esse pequeno insecto de curtíssimo ciclo de vida (1 dia) - o terá. Desconhecemos a que ponto o equilíbrio natural poderá ser rompido com a desaparição, tanto de uns como de outras, mas eles não existem por acaso.
Aceitemos a sabedoria do Cosmos.


22. out, 2019
Post 138

06h47, 2ª feira, 21/10
Ainda não despontou a aurora. No curto espaço de um mês, nota-se bem o seu atraso galopante. Ou seja, é cada vez menos visível a horas precoces, como antes. De dia para dia, a escuridão absorve mais manhã.
Agarrei-me à esferográfica para queimar tempo, já não dá para fazer mais nada no curto espaço que me resta antes de me virem substituir. Tenho andado um pouco “por baixo”, a vontade de escrever existe, mas a disposição necessária para o fazer e os temas (ai, os temas!), têm acompanhado as tendências da moda, ou seja, andam também por baixo.
As ideias estão cá, a turbilhonar, apenas não sei como dominar a tempestade, canalizar a energia em escrita, em algo com significado. O grande desafio é pegar nessa imensa sopa de letras, que é o intelecto (sim, também tenho um, seja lá isso o que for) e transformá-la em algo coerente, algo que faça minimamente sentido. É por isso que pouco ou nada tenho escrito ultimamente.
Estou plenamente consciente de que não sou nem jamais serei escritor (a não ser que tenha uma milagrosa e reveladora epifania), nem cronista, contista, bloguista ou algo relacionado; no entanto, sinto prazer em escrever, mas escrever algo que seja, pelo menos, sofrível. Quero deixar o tal testemunho, a tal pegada, não no planeta, mas na humanidade, ser lido nem que seja para que gabem a minha mediocridade, ou menos que isso.
Ninguém quer ser apagado da existência sem deixar algo que persista – muito ou pouco – na memória humana. Nem que seja apenas naquela pequena humanidade a que pertence, ao seu grupo restrito de família e amigos e, talvez, conhecidos. É muito importante para o nosso equilíbrio emocional termos a consciência de que somos recordados em um futuro cada vez mais próximo, quando a nossa presença deixar de estar fisicamente disponível a quem quer que seja, e se limite a uma simples recordação que, um dia, também se desvanecerá.
Não estaremos cá para ajuizar do impacto dessa nossa pegada na comunidade humana: o de alguns subsistirá durante largas centenas ou até mesmo alguns milhares de anos; o de outros será como as folhas do outono, varridas e dispersas pelo vento, esquecidas.
Cá para mim, as folhas de outono são mais a minha cara.


13. out, 2019
Post 137

13/10, 03h58, domingo
Está vento. E fresco. Está um vento fresco e um tanto desagradável. Noite típica de um outono jovem, onde um verão inconformado se agarra às folhas caducas que teimam em não se despegar da árvore-mãe, num gesto de desespero, prenúncio do inverno próximo.
O vento brame nas frinchas das portas, as folhas volteiam ruidosamente e em grupo, aproveitando aquele para uma derradeira dança de despedida. É a Natureza que recria ciclicamente os seus rituais milenários.
Em breve choverá, para desencanto daqueles que ainda creem que o estio retorna, entre as brumas de uma manhã de nevoeiro.
Entretanto, tenho muito sono. São os malefícios das férias: habituamo-nos a horários anómalos, por vezes desregrados, não coincidentes com os ciclos laborais. Isso paga-se caro nas primeiras semanas do regresso. Depois… a rotina faz o resto, durante mais dez ou onze meses.


8. out, 2019
Post 136

01h30, 08/10, 3ª feira
Neste verão (ou sucedâneo de verão), durante as minhas deambulações profilácticas pela praia de Matosinhos, reparei nalgumas zonas de eventual confluência de correntes ou qualquer outro fenómeno marítimo que não sei explicar, pois não sou biólogo marinho, meteorologista ou com conhecimentos de alguma outra ciência ligada ao mar. Nessas zonas, no fluxo e refluxo da maré, nessa vetusta fonte de toda a vida planetária, rolavam na areia restos, fragmentos de seres outrora vivos - estrelas do mar, caranguejos, conchas e búzios vazios. Enfim, um cenário de morte, um autêntico cemitério que nós, habituados a tais panoramas desde o início da nossa existência, ignoramos como natural, como fazendo parte da vida.
É verdade, a morte faz parte da vida desde o seu início e nós, rodeados de vida e de morte desde o primeiro contacto com o planeta, encaramo-la como natural. Na verdade, nem sequer encaramos – faz parte do cenário, é um simples adereço no palco da nossa representação teatral.
Salvaguardando o enquadramento emocional que algumas espécies de vida representam na nossa senciência (que incluem obvia e mais fortemente a humana que nos diz mais directamente respeito), tudo o resto é paisagem, não passa de “natureza morta”, ou menos que isso.
Uma Natureza Morta, enquanto obra de arte, é apreciada quanto à sua expressividade, à técnica utilizada, aos materiais e ao que é retratado; uma natureza morta real é ignorada após um relance do olhar, esfumando-se da memória em segundos. No geral, tal é a nossa relação com a morte. Talvez por isso a banalização das guerras e outras carnificinas seja tão “normal”. Entendo o facto como um mecanismo mental de defesa, uma barreira emocional que nos impede de pensar muito naquilo que um dia, mais tarde ou mais cedo, fará de nós também uma natureza morta, vista – ela também – com indiferença pelos que não são chegados, tal como faríamos se tivéssemos tido a sorte(?) de não termos sido os primeiros a partir. Para esses que nunca ou pouco nos conheceram, nada mais seremos que fragmentos de caranguejos, inertes estrelas do mar, conchas e búzios vazios que se movem para cá e para lá no fluxo e refluxo da maré.


6. out, 2019
Post 135

03h21, domingo, 6 de outubro
Terminaram as férias. Hélas! – à antiga francesa; por mal dos meus pecados – à antiga portuguesa.
Foram boas e deixam saudades, sem dúvida, mas há que prosseguir com a rotina da vida até, pelo menos, à idade da reforma. Aí, teremos 3 hipóteses: ou já estamos em férias eternas, ou mantemos uma suficientemente confortável vitalidade, ou já não temos forças ou saúde senão para apanhar um bocado de ar à janela, devidamente resguardados das correntes de ar. No meio está a virtude: pode ser que sejamos bafejados pela deusa Fortuna e prossigamos ainda sãos, sob a protecção de Hipócrates e com a bênção de Esculápio (o resto do trabalho é com S. Cristóvão).
Entretanto já posso dar-me ao luxo de invocar (um tanto a despropósito) metade daquele ditado: “Roma e Pavia não se fizeram num dia”; não fomos a Pavia, mas em Roma levámos 3 dias, mais 1 em Pisa e 3 em Florença e, no entanto, muitos mais necessitaríamos – talvez um mês ou dois, ou três, para as “fazermos”. Há imenso para conhecer.
Quando voltamos de férias, temos sempre uma sensação de incompletude, de que não conhecemos quase nada e de que um dia teremos de voltar para ver o resto. Puro engano! A nossa “sede” de conhecer e de conhecimento (num sentido turístico e cultural) rapidamente ultrapassa o visitado e adapta-se a novos lugares e novas oportunidades, porque o que conta não é o visitar, é o conhecer, é o prazer da montagem do grande puzzle que é a história da Europa e do Mundo, seja através da arquitectura, dos usos e costumes ou da arte. Cada viagem, cada visita, é mais uma pedra no edifício da nossa cultura individual, mais uma etapa na nossa quase imperceptível evolução.
Para o ano, se cá estiver, quero ir à Lua!


10. set, 2019
Post 134

00h00, 10/09, 3ª feira
Samelo, canhão, vasculho, armado em Fangio (ou, mais recentemente, Fittipaldi), afiambrar, sendeiro, achandrar (ou achantrar), básico, diacho, estar um barbeiro, dar às de vila Diogo e tantas outras expressões do calão português de antanho que eu conheci e que conheço mas que entraram em desuso e, para as novas gerações – mesmo os já trintões – nada significam, são crípticas.
É a vantagem de ter convivido com pessoas cuja existência remonta aos fins do século XIX e durante a primeira metade século XX, com as quais a minha geração aprendeu muito do que forma a sua personalidade actual e a sua cultura social e etnográfica, entre outras. Ao ter estado em contacto com estes testemunhos outrora vivos e connosco coexistentes, tivemos o privilégio de manter um conhecimento que os mais novos dirão ser ultrapassado, anacrónico, bota-de-elástico (mais uma expressão de argot pré-histórico). No entanto, tudo faz parte do conhecimento que cimenta a nossa civilização, ajuda à compreensão do passado e, consequentemente, espelha-se no presente e no futuro.
Há quem defenda uma nova escola onde o conhecimento prático impera, em detrimento da memorização de factos irrelevantes para o nosso dia-a-dia. Concordo e não concordo.
No meu tempo de escola decoravam-se coisas inúteis, como rios, linhas de caminho de ferro ou redes de estradas. Neste caso, estou totalmente de acordo: seria e será tão infimamente necessário fazê-lo como decorar o percurso e nascente do rio Aar na Suíça, o do Volga, na Rússia, ou saber qual o caminho de ferro que passa por Abidjan ou o percurso do Transiberiano. Actualmente, quem disso necessitar, pode aceder à internet e tem lá tudo escarrapachado. Antigamente era um pouco mais complicado mas, com um pouco de esforço, conseguia-se.
Há, porém, saberes e saberes. Defendo acerrimamente a cultura geral, que poderá passar pela literatura, a música, o teatro, a ópera, a poesia, algumas línguas, mesmo o latim ou o grego, e um know-how do mundo em termos gerais, tanto num contexto físico ou da química, como geográfico, etnográfico, político, etc.
Os defensores da nova escola certamente concordarão que não basta aprendermos apenas de acordo com as nossas aptidões (embora tal seja da maior importância), mas também necessitamos de conhecer a nossa “paisagem envolvente”. Caso contrário, não passaremos de animais instruídos que quando necessitam de algo para além das suas profissões, utilizam a internet. Passa-se já comigo e passar-se-á com todos, em maior ou menor extensão. Estamos a perder progressivamente a capacidade de, através de apenas as nossas sinopses cerebrais, mantermos uma correcta e coerente conecção com o mundo. Agora e cada vez mais, só conhecemos o mundo se soubermos recorrer à internet e seus meandros (embora este conhecimento seja também cultura geral).
É preocupante, começamos a perder o contacto com a realidade e dependemos cada vez mais do virtual. Citando como exemplo a tabuada, esta tem sido progressivamente relegada para a categoria do supérfluo. Quem quer fazer uma operação matemática, ou usa os dedos, nos casos mais simples, ou a calculadora, que se pode encontrar em qualquer telemóvel.
É evidente que defender o conhecimento de uma cultura geral é entrar num campo de grande e complexa ambiguidade. O que é útil ou interessante saber? E porquê? Cada cabeça, sua sentença, nunca existirá consenso, pois cada caso é um caso.
Quem optar por nada saber para além daquilo que necessita no momento para sobreviver ou singrar na vida, poderá tornar-se um técnico muito competente na sua profissão, mas não passará de um analfabeto.
Será aqui relevante apontar a sociedade norte-americana, com os seus livros de instruções, ou o próprio presidente, em quem a ausência de um mínimo aceitável de cultura é deplorável, reflectindo-se em toda a sua actuação, tanto a nível nacional como internacional. Nele, o mais grave ainda é não reconhecer essa gritante limitação.


4. set, 2019
Post 133

00h55, 4ª feira 04/09/19
Cada acto de escrita é irrepetível, seja ele bom ou mau. Diz-se que o que a boca pronuncia perante um ou mais receptores, é indelével, não pode ser apagado. É um facto, mas tal como o acto de fala, o de escrita também não pode ser eliminado, no sentido em que aconteceu. A única diferença entre estas duas acções é o veículo pelo qual se expressam. A destruição da escrita não implica o seu desaparecimento como produção. Na realidade, formalmente, ambos existiram, independentemente da presença ou não de um receptor.
Observo estes factos à luz da lógica e não da física quântica, onde algo só executa uma acção se existir um espectador, ou na perspectiva de um ramo da filosofia, de que não me recordo o nome, em que a realidade só existe se houver um observador.
Algumas filosofias transcendentais acreditam que a natureza, o éter ou algo algures entre ambos, guarda um registo fiel de tudo o que sucede ou sucedeu connosco, à nossa volta, à volta e a respeito de tudo. Parecerá algo inconcebível, utópico, irreal. No entanto, ao longo dos últimos séculos, os humanos desenvolveram técnicas de gravação de som, imagem, actividade cerebral ou comportamentos químicos ou físicos. Nestes últimos, a relativamente recente disciplina do conhecimento chamada Quântica, tem feito e observado verdadeiros e paradoxais “milagres” . Será o registo, afinal, assim tão inimaginável?
Para qualquer leigo, essa abordagem será tão fantástica, tão fantasiosa como uma obra de Tolkien, de Jonathan Swift, Lewis Carrol ou mesmo a tão actual J. K. Rowling. No entanto, existem muitas “antigas” fantasias que se tornaram actualmente realidade. Basta atentar nas obras de J. M. Low, Robert Heinlein ou mesmo Julio Verne – para não mencionar os projectos científicos de Leonardo Da Vinci ou do Padre Bartolomeu de Gusmão.
Apercebi-me de que me estava a desviar da linha de pensamento com que iniciei esta crónica. Assim, e voltando à ideia original, o que eu queria focar no início era o facto de que detesto começar a escrever e, ao cabo de meia dúzia de linhas, interromper o raciocínio, seja por falta de oportunidade ou de inspiração. Nessas escassas palavras grafadas produzi um discurso que, ou reaproveitarei parcialmente (o que originará uma perda de originalidade e espontaneidade) ou remeterei ao arquivo morto akáshico, – que é o nome por que tal gravação trancendente é conhecida entre os budistas, os hindus ou os teosóficos – o tal suposto registo universal que atrás referi.
Embora creia e aceite sem contestação a Lei de Lavoisier, de que nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, é contudo penoso abandonar o meu acto de criação, mesmo que péssimo, do mesmo modo que não se abandona um filho, mesmo que ele seja um deficiente profundo. (Evidentemente, neste confronto, não estou a comparar qualidade, mas intensidade).
Esforçamo-nos por criar coerência e continuidade, embora nem sempre com sucesso. A título de consolação, o nosso espírito não descartará totalmente esses ensaios artísticos “falhados” e reaproveitará a sua essência primordial para (re)criar algo melhorado.
O criador, o artista, vai produzindo obras progressivamente mais refinadas, mais aperfeiçoadas, fruto da experiência adquirida em cada falhanço, em cada insucesso, e que servirá de pedra de toque para a próxima génese, numa perene e eternamente improfícua tentativa de atingir a perfeição.


1. set, 2019
Post 132

2h00, 01/09, domingo
E acabou Agosto. E com ele uma grande percentagem de esperança num verão decente que só o país do fado, futebol e Fátima, com o seu sol maravilhoso, pode dar (versão publicitária do Estado Novo, estilo António Ferro, via SNI). Agora já nem a versão Verão Quente, à moda de 1975, conseguimos ter. A meteorologia só nos prega partidas, aparafusa-nos desilusões e rebita-nos suspiros de saudade.
Não que eu seja um saudosista (bem, talvez 30%), mas lamento aqueles meus tempos de infância e juventude em que havia Verões e Invernos com letra grande – e não estou a falar na grafia: frio a sério, calor a sério e chuva q.b.
Serão as tais memórias falsas de que falam os psicólogos e também os meteorologistas? Estes últimos apresentam sempre gráficos e tabelas para demonstrarem que estamos enganados, que afinal o tempo, antigamente, também nos pregava partidas, e algumas maiores que as de agora.
Por outro lado, há meteorologistas e outros “istas” que nos avisam de que o tempo está a mudar radicalmente e que não podemos continuar a contar e a acreditar numa normalidade a que estávamos habituados. Uns e outros dão provas do que afirmam… com gráficos e tabelas!
Em que ficamos, então? Acho que mais vale continuarmos a confiar nos nossos sentidos e lamentarmos esse Éden meteorológico perdido em que soíamos viver, num passado ainda não muito longínquo. E desconfiemos de todos os arautos da normalidade e da mudança que nos confundem:

São os loucos de Lisboa (e doutros lados)
Que nos fazem duvidar
A Terra gira ao contrário
E os rios nascem no mar.

(canção da Ala dos Namorados)


28. ago, 2019
Post 131

05h00, 3º feira, 27/08/19
Pedras.
Existem há biliões de anos. Espantoso.
Observar uma pedra e atentar na sua idade é surreal, é inabarcável pelos nossos sentidos (que se fixam no presente e na memória de curíssimo prazo, em termos cosmológicos) e difícil de extrapolar. Quando a analisamos à luz desta constatação, sentimo-nos sufocados, microscópicos, e apercebemo-nos da nossa pequenez temporal.
Durante o verão, como já relatei em posts anteriores, e para recuperar e manter uma certa forma física de que sinto saudades e necessidade, costumo sair do trabalho e caminhar pelo Parque da Cidade, como tantos outros atletas matinais. Embora bem visíveis, nem nos damos conta dessas existências pétreas nas quais tropeçamos, que contornamos ou nos servem de assento, nas ruínas construídas de ruínas, naquela moagem que nos escorre entre os dedos dos pés, na praia, e nos massaja e esfolia as plantas dos ditos. Vêmo-las mas não as interiorizamos, calcamo-las com indiferença e naturalidade.
O Parque está delas generosamente guarnecido. Algumas, esparsas, talhadas propositadamente para integrar um fragmento de muro ou um pórtico; as outras, a esmagadora maioria, são constituídas por blocos de variados tamanhos que já tiveram, visivelmente, outra função. São os restos de construções demolidas, desaparecidas do rosto da cidade, que a Câmara aproveitou para emoldurar e embelezar este espaço de lazer. É ver aqui uma cornija, ali um vão de janela, a ombreira de uma porta ainda com o buraco para a lingueta de uma desaparecida fechadura, e outras inidentificáveis, mas marcadamente modificadas pelas mãos dos homens a que sobreviveram, quem sabe durante quantas gerações.
Estas pedras narram estórias que não ouvimos porque não somos sensíveis à sua linguagem, não as sabemos traduzir. Na memória das pedras existem todos os ingredientes de uma história universal:
Alegrias, dramas, namoros, assassinatos, confidências, estupros e discussões, roubos e actos de bondade, inveja, inocência. Tornados, incêndios e inundações. Negócios. Trapaças e risos. Abandono, ruína. Tudo por elas passou, a tudo assistiram impassíveis, sem julgar, sem condenar, mudos e passivos espectadores do Tempo e do espaço.
São sábias estas pedras, mais do que os homens que as moldaram. Nelas encerra-se uma sabedoria atemporal, pronta a ser compartilhada. Nós é que ainda não entendemos as suas mensagens.


25. ago, 2019
Post 130

23h54, sábado, 24/08
Admiro a resiliência de algumas pessoas, para não dizer de alguns povos:
Entre os americanos do Norte (EUA), a região central é insistentemente fustigada por tornados destruidores e, contudo, eles continuam a refazer a sua vida nos mesmos lugares onde ela foi posta em causa, tanto física como material ou emocionalmente. São como as formigas ou as abelhas, ou mesmo os castores - essa espécie autóctone do norte do continente; refazem pacientemente, as vezes que forem necessárias, aquilo que a Natureza (quantas vezes adulterada ou influenciada por mão humana) destruiu.
O mesmo se passa com alguns povos do Médio e Extremo Oriente, que sofrem na pele (e no resto do corpo) as consequências da sua fixação em locais de forte e recorrente actividade sísmica. A sua resiliência – direi, por vezes, resignação – é extraordinária. Enterrados os mortos, começam imediatamente a tratar dos vivos, a refazer as suas casas e a sua existência, sem olhar para trás. Sabem que, de um momento para o outro, a sua vida pode terminar abruptamente, a sua labuta diária pode ter sido inútil e/ou os seus bens reduzidos ao seu corpo. E, como os americanos, igualmente estóicos, recomeçam de novo as vezes que forem necessárias. O seu apego à terra mantém-se, apesar de e para além de todas as vicissitudes.
No nosso cantinho da Europa não temos nada disso, desses pequenos e aterradores apocalipses. Temos sorte, nascemos num país telúricamente estável e pouco sujeito às crueldades da Natureza - tsunamis incluídos.
Contudo, como ninguém está bem com a vida que tem, choramo-nos do calor extremo, da seca extrema, da chuva extrema, da porcaria do verão e dos invernos rigorosos. É natural, quem nunca teve dores a sério, chora com uma picada de alfinete. Não porque sejamos piegas mas simplesmente porque não estamos habituados e respondemos emocionalmente em proporção.


21. ago, 2019
Post 129

20/08, 3ª feira, 5h28
Não é raro encontrar no YouTube vídeos engraçados de animais e de animais engraçados. Aí vemos reacções dos nossos amigos de 2 ou 4 patas ou mesmo sem patas, como os peixes ou os patos solitários e, por serem anómalos em relação ao comportamento humano dito comum, chamam-nos a atenção. Não é apenas por serem diferentes e/ou cómicas, mas também por apresentarem respostas que os humanos acham ser rasgos de inteligência inusual em animais irracionais.
Aliás, é um pouco estúpido pensar que os animais são estúpidos ou ainda assombrar-se com os rasgos de inteligência de uma criança pequena como se ela também tivesse a obrigação de ser estúpida. Não nos esqueçamos de que também já fizemos parte dessa categoria de crianças “estúpidas”.
Cada animal, seja irracional ou humano, é dotado pela Natureza do grau de inteligência de que necessita para o seu estágio evolutivo (salvo raras ocorrências, positivas ou negativas). No caso dos animais pequenos, estes estão em progressão no seu desenvolvimento mental e aprendizagem e devem ser tratados e encarados como tal e não como génios precoces, com, evidentemente, algumas felizes excepções.
As reacções que achamos fora do comum não passam de um aprendizado que, através de um conjunto de sinapses fortuitamente combinadas, origina uma ligação neuronal mais clara, mais “avançada” que o normal expectável. Chama-se a isso evolução.
Dou um exemplo: o Nuno – um meu falecido gato – tinha por hábito abrir a porta do frigorífico para roubar comida. Decerto aprendeu empiricamente, por observação. Quando demos conta, reforçámos a porta do frigorífico com uma “fechadura” de velcro, convencidos de que tal resolveria o problema. Mas, - sinopsis jacta est –, ele já se tinha apercebido da forma de abrir e, portanto, não desistiu, fazendo mais força. Evoluiu, portanto.
Se fosse uma gata e tivesse filhotes, todos eles teriam aprendido a superar essa dificuldade.


25. ago, 2019
Post 130

23h54, sábado, 24/08
Admiro a resiliência de algumas pessoas, para não dizer de alguns povos:
Entre os americanos do Norte (EUA), a região central é insistentemente fustigada por tornados destruidores e, contudo, eles continuam a refazer a sua vida nos mesmos lugares onde ela foi posta em causa, tanto física como material ou emocionalmente. São como as formigas ou as abelhas, ou mesmo os castores - essa espécie autóctone do norte do continente; refazem pacientemente, as vezes que forem necessárias, aquilo que a Natureza (quantas vezes adulterada ou influenciada por mão humana) destruiu.
O mesmo se passa com alguns povos do Médio e Extremo Oriente, que sofrem na pele (e no resto do corpo) as consequências da sua fixação em locais de forte e recorrente actividade sísmica. A sua resiliência – direi, por vezes, resignação – é extraordinária. Enterrados os mortos, começam imediatamente a tratar dos vivos, a refazer as suas casas e a sua existência, sem olhar para trás. Sabem que, de um momento para o outro, a sua vida pode terminar abruptamente, a sua labuta diária pode ter sido inútil e/ou os seus bens reduzidos ao seu corpo. E, como os americanos, igualmente estóicos, recomeçam de novo as vezes que forem necessárias. O seu apego à terra mantém-se, apesar de e para além de todas as vicissitudes.
No nosso cantinho da Europa não temos nada disso, desses pequenos e aterradores apocalipses. Temos sorte, nascemos num país telúricamente estável e pouco sujeito às crueldades da Natureza - tsunamis incluídos.
Contudo, como ninguém está bem com a vida que tem, choramo-nos do calor extremo, da seca extrema, da chuva extrema, da porcaria do verão e dos invernos rigorosos. É natural, quem nunca teve dores a sério, chora com uma picada de alfinete. Não porque sejamos piegas mas simplesmente porque não estamos habituados e respondemos emocionalmente em proporção.


11. ago, 2019
Post 128

02h57, 11/08, domingo
Ainda hoje, por mera associação de ideias, espoletadas por uma conversa com uma pessoa das minhas relações e que não interessa discriminar, relembrei a minha infância e adolescência inicial, não numa perspectiva pessoal mas da sociedade em geral e do modo como eu/ela encarávamos o nosso (à época) presente, que hoje está enterrado, embora muito mal, pois a memória é um coveiro deplorável que deixa os zombies do passado quase a descoberto.
Nesse tempo andávamos, como diz Camões, naquele engano de alma ledo e cego, indiferentes e ignorantes do que se passava no nosso mundo, à nossa volta, ao nosso lado. Era assim e pronto! Não se questionava porque é que a Avenida dos Aliados ficava interdita e cercada por um cordão policial no dia 1º de Maio ou porque é que não se podiam apanhar do chão aqueles panfletos que caíam como chuva, despejados por alguma incógnita avioneta.
Também ninguém reagia muito virulentamente aos atrasos de 5 horas nos comboios tranvia de passageiros, mesmo quando o foguete, o rápido, o comboio-correio (com as suas típicas carruagens bordeaux e estofos a condizer) ou o mercadorias lhes passavam à frente: tinham prioridade – era assim. Tudo isto justificado pela renovação da Linha do Norte, feita a passo de caracol.
Faço aqui um aparte: por vezes apanhávamos o comboio-correio, com os tais estofos bordeaux, feitos de esponja coberta de napa. Era muito diferente, muito mais luxuoso do que as carruagens ordinárias do tranvia. Neste, os bancos eram de madeira nua na II e III classe (sic) e na I classe em cetim vermelho, recheado de sumaúma recalcada e já desconfortável.
Era normal existirem escarradores em esmalte nas barbearias e, muito especialmente, nos tascos e tascos-mercearia. Nem calculo sequer como é que os donos dos estabelecimentos tinham estomago para limpar aquilo e arredores.
As crianças eram muitas vezes mandadas a esses tascos-mercearia para comprar géneros pelo sistema de apontar no livro, que era uma espécie de cartão de crédito primitivo. Aí, o azeite e o petróleo – os motores do lar – eram vendidos lado a lado, por intermédio de bombas de êmbolo montadas em cima do balcão, ao lado da faca fixa de cortar bacalhau (uma espécie de guilhotina, uma peça de museu que deve ser raríssima, pois nunca mais vi nenhuma) e, junto às paredes, o arroz, a farinha, o milho e outros géneros, alimentares ou não, dentro de uma espécie de gavetas fundas, que hoje seriam certamente confundidas com cestos de roupa suja: tudo isto era vendido a retalho, pesado em balanças de pratos, dentro de cartuxos de cartão grosso riscado, com o fundo colado com cimento ou doses generosíssimas de cola espessa.
Pois estas crianças deparavam aí, na parte tasco da mercearia que, a maioria das vezes nem separação tinha ou era meramente simbólica, com o seu provável e expectável futuro: vizinhos, desconhecidos ou o próprio pai, entretidos a embebedar-se e a discutir temas, geralmente do mais básico e rasca possível.
Era normal, como o era ver ao fim do dia crianças de 10(?) ou 12 anos a regressarem do trabalho, na companhia de colegas mais velhos ou mesmo dos seus pais-colegas.
Recordo ainda as longas noites sem luz – horas e horas de cortes de energia saídos do nada, sem aviso. Apenas aconteciam, e por tempo indeterminado. A casa estava cheia de velas de estearina, candeeiros a petróleo, lamparinas de azeite e lâmpadas de carboneto - estas pintadas de verde-claro.
Não havendo luz, não havia notícias do Mundo exterior ao meu pequeno mundo. Nada de rádio ou televisão, apenas os jornais. “O Primeiro de Janeiro” e “O Século” eram os jornais que se recebiam regularmente em casa. Notícias falsas, censuradas ou insignificantes, onde o Estado veiculava uma imagética de paz e progresso e onde os ventos do mundo quase não se sentiam, porque Portugal era uma ilha isolada e feliz.
Hoje encaro tudo isto com estranheza. Refinei-me, refinei a minha consciência social, perdi a cegueira de quem faziam acreditar que não havia nada mais para ver, porque era aquela a vida real e ideal. Não sei bem se gosto do que vejo…. Mas não quero voltar a cegar.


6. ago, 2019
Post 127

05/08/19, 2ª feira, 07h15
O que é o ridículo? É o risível, é o trágico, o estúpido? Tudo depende das circunstâncias, das pessoas, dos lugares, até das épocas. O ridículo não é uma norma ou um estado, é um conceito.
Para nós, ridículo será alguém ir trabalhar vestido de palhaço (a não ser que seja a sua profissão), andar na rua de fato de banho no pino do inverno ou transportar – se o deixassem – uma vaca no metro.
Mas seria assim tão ridículo? As opiniões podem divergir. Cada cabeça, sua sentença. Para muitos, alguns dos exemplos abordados até teriam a sua lógica ou seriam aceitáveis, enquanto para outros seria, no mínimo, bizarro, lamentável ou impensável. Achar algo ridículo é o mesmo que gostar de azul ou preferir o campo à praia, é uma questão do foro íntimo de cada um, de opinião. Nem sequer se pode invocar a maioria: se em cem há um que aceita e acha natural, isso fará dele um “anormal”? Claro que não, é apenas livre-arbítrio, e escudarmo-nos com a opinião da maioria acaba por ser uma falácia. Se calhar, noutro país ou noutra cultura, os termos se invertam, isto é, apenas 1 discorda e 99 estão de acordo.
Ser-se humano e pensante é complicado. O falso ou o verdadeiro, o ridículo ou o normal, o aceitável ou o inaceitável, o feio ou o belo, são muito pessoais, muito nossos, e temos, por vezes, que os gerir ao agrado da maioria, sermos hipócritas para podermos usufruir de um bom relacionamento social, viver como Deus com os anjos – embora deste modo os anjos possam andar stressados (ou Deus).


31. jul, 2019
Post 126

04h47, 4ª feira, 31/07
Acabei de criar uma página neste meu cofrezinho de memórias, à qual dei o nome de Tributos Culturais. Nela figuram os meus trabalhos académicos mais relevantes no campo da literatura comparada, os quais acabariam por se perder na caótica arrumação electrónica do meu computador.
São pequenos trabalhos de opinião e investigação que não aconselho nem desaconselho a ler porque, como abordam temas muito específicos, muito direccionados para a teoria literária, poderão, para um leigo, ser demasiado maçudos e desinteressantes. Contudo, be my guests, se desejarem, o saber não ocupa lugar.
Para aceder, basta clicar no "mais", que se encontra no cabeçalho e procurar.


30. jul, 2019
Post 125

02h34, 3ª feira, 30/07/19
Por vezes ponho-me a pensar no que é, foi e se tornou este nosso mundo. Quando eu era jovem, e aparte as crises típicas da adolescência, a vida era ou parecia simples, despreocupada, embora por vezes difícil. Tenho de ter em linha de conta que a consciência política, social e outras, eram escassas ou inexistentes, enquanto atualmente somos literalmente bombardeados por elas.
Tudo bem, é louvável essa tomada de consciência do que nos envolve, de quem nos envolve, das circunstâncias, das atitudes, das consequências da nossa pegada neste belo planeta que pisamos e que beneficia ou sofre pelos nossos actos e pelos nossos resíduos, assim como todos os nossos co-viventes, passados, presentes e futuros.
No entanto, penso que, em alguns aspectos, essa tomada de consciência colectiva sofre do mesmo mal de que sofreu a dinastia dos Plantagenetas que, como é sabido, após gerações de inter-relacionamento genético, acabou por dar origem a perfeitos idiotas, padecentes de múltiplas mazelas físicas.
O que pretendo dizer é que, tão grande é a ultra-ortodoxia de alguns dos seus arautos, tão importante se tornou o cultivo do politicamente correcto, tão fanática é a sua aplicação, que o que deveria ser algo louvável e virtuoso tende a transformar-se em atitudes veladamente hipócritas, servindo propósitos obscuros. Está a surgir uma autêntica caça às bruxas de Salem, que de diferente apenas tem a época e os interesses que esconde. Fechada sobre si mesma, a virtude degrada-se e infecta tudo à sua volta.
Basta deslizar os olhos pelas notícias e atentar nesta nova arma político-social (já nem sequer é religiosa, com antigamente) que corruptos utilizam para perseguir corruptos, ladrões para acusar ladrões, mentirosos para denegrir mentirosos. Deixou de ser a arma dos virtuosos para se transformar num instrumento de destruição social. Penso que, agora, há demasiados Edgar J. Hoover, demasiados “beatos” a conspurcar a Terra sob a égide do Bem.
Posso e espero estar errado. Caso contrário, os novos jihadistas da moral farão, a curto ou médio prazo, mais estragos do que aqueles a quem tentam retirar o poder.
Com estas palavras não apoio os corruptos, apenas alerto para os pseudo-puros de coração que se estão a fanatizar. Muitas ditaduras começaram assim, com salvadores sem mácula.


28. jul, 2019
Post 124

00h16, domingo, 28/07
É sabido que o mundo tem ciclos, altos e baixos, que podem durar séculos. As civilizações também, e estou em crer que até as localidades, as famílias e, por último, cada ser humano. Todos sofremos as consequências destes altos e baixos, seja individual ou colectivamente.
No entanto, esses ciclos não são coincidentes em todos os escalões; podemos experienciar períodos áureos enquanto a nossa cidade, o país ou o mundo em geral, dele não beneficiam, ou vice-versa. Não há sincronia, não há ciclos coincidentes – a não ser ocasionalmente – nem períodos temporais definidos.
Eu, como toda a gente, também tive e espero voltar a ter, nesta curva física descendente em que já me encontro há largos anos, um novo e durável período de bem-estar social e económico. “Não há mal que sempre dure…” – já dizia a minha avó.
Omiti a segunda parte do ditado popular – “…nem bem que nunca se acabe” -, pois seria desconfortavelmente negativo, no meu estágio actual. Omitimos sempre as coisas más ou que não nos interessam, o que comprova mais uma vez a sempre presente hipocrisia, a interesseirice (não consta no dicionário, mas dá para perceber) humana, latente em cada um.
É certo que, se não fosse assim, a vida seria demasiado neutra e sensaborona, ou demasiado trágica. Enganamo-nos porque nos sabe bem, porque nos faz sentir bem, porque essas omissões levantam o moral, embora, no fundo, saibamos serem falácias intencionais.
No geral, quem dentre nós, e perante uma adversidade, não pratica o auto-consolo de dizer que “amanhã será melhor, já passou tudo”? Mesmo doentes terminais (e que o sabem) mantêm o moral alto, minimizando ou ignorando a sua condição fatal e irreversível porque se sentem bem com isso e porque os ajuda a suportar o inevitável.
É por esta linha de pensamento que acredito (ou finjo acreditar) numa melhoria das condições de vida, de que tenho lógicas saudades. Já estive bem, já vivi razoavelmente despreocupado e creio e quero voltar a experienciar um novo ciclo ascendente.
Entretanto, uso o piedoso fingimento para me convencer de que tudo está bem e amanhã estará melhor.


17. jul, 2019
Post 123

23h42, 3ª feira, 16/07/2019
Este ano nem questionei a minha passagem pelo orbe por ocasião da coincidente 62ª translação da Terra à volta do Sol, ou seja, para não parecer tão rebuscado, não teci dúvidas existenciais sobre a minha sobrevivência ou não por altura do meu aniversário natalício. Também, que haveria mais a dizer além do que já foi veiculado aqui em aniversários anteriores? Mais do mesmo, dito de outra forma?
O que interessa (?) é que os 62 “já cá cantam” e ninguém mos tira, o que me recorda com cada vez mais premência o meu embrulho definitivo. Embora pense sempre nisto, passe a expressão, não quero pensar muito nisto, pois esperar o fim é e não é simultaneamente, esperar por Godot: é, porque esperamos por algo que nunca chega; não é, porque um dia, num futuro para nós sempre remoto, ele chegará, quando geralmente não esperamos que ele apareça.
Chega por hoje de tanato-filosofia. A vida é para ser desfrutada enquanto existe, desde que a encaremos pelo lado mais positivo. Como já mencionei há uns tempos, as minhas considerações sobre assuntos de cariz negativo ou existencial não veiculam necessariamente uma postura perante a vida, mas referem apenas uma opinião desapaixonada sobre temas que os seres humanos, geralmente, não gostam de referir. Serei um tanto ou quanto sartriano ao abordá-los, mas alguém tem que o fazer, o mundo não é um mar de rosas, mas também não é um mar de espinhos, ambos coexistem no mesmo espaço e no mesmo tempo, quer queiramos, quer não. Não há mundos perfeitos e a consciência dessa realidade tem também de ser abordada, não esquecendo nunca a contraparte positiva, pois esta age como contrapeso na balança da existência.
Para mim, tocar na negatividade significa apenas ser realista, ver no mundo a sua face oculta e encará-la como natural e necessária.


16. jul, 2019
Post 122

11/08, 06h05, 5ª feira
Fico furioso quando descubro um bom tema de desenvolvimento a destempo e depois, passadas horas, ele esfuma-se como se nunca tivesse existido, deixando na boca o sabor amargo da sua perda irreparável.
Na manhã passada, durante o meu retomado exercício diário, deparei, como coelho saído de uma toca, desprevenido e súbito, e num flash de pensamento, com um tema apelativo e passível de óptimo desenvolvimento.
Agarro-o, exploro-o, saboreio as suas potencialidades e, ingenuamente - direi antes, estupidamente - encosto-o num canto da minha actividade mental, confiante que o encontraria com facilidade para o expor nestas ou noutras linhas, durante a noite.
Sou como aqueles idiotas, aqueles fracos de espírito que caem sempre no conto do vigário, nas falinhas mansas com que a procrastinação nos engana vezes e vezes sem conta. Já deveria saber (já estou farto de saber) que não posso confiar em mim próprio, ainda para mais com as minhas lacunas de memória.
Tudo perdido, mais um once in a life time que desperdicei e que nunca irei recuperar. Há mesmo alturas em que, embora se consiga recordar o tema esquecido, a chama, a centelha ígnea já lá não se encontra, e a exposição que teria sido brilhante, perdeu o fulgor, o orador transformou-se num gago.


4. jul, 2019
Post 121

1h17, 5ª feira, 04/07/19
Retomei as minhas caminhadas profilácticas, interrompidas em setembro do ano passado. Tenho feito 8 km por dia ou, no mínimo, 5,3 km, dependendo do cansaço ou de compromissos que eventualmente surjam.
Já não era sem tempo, pois a ferrugem nas articulações das pernas e a crescente gravidez estavam a tornar-se preocupantes, não apenas em termos de mobilidade e resistência mas também devido aos riscos acrescidos derivados da relação estreita entre o perímetro abdominal e a possibilidade de ocorrência de problemas vasculares graves que eu, com o historial que possuo, tenho que tentar, a todo o custo, evitar.
Não é bem verdade que só agora o tenha podido concretizar, pois até ao momento pouco me esforcei nesse sentido. É evidente que o bom tempo que se tem feito sentir propicia o incremento da actividade física; no entanto, poderia já ter optado por outras formas de contenção dos referidos problemas físicos, se para tal tivesse havido vontade.
Nas minhas caminhadas vieram à baila, novamente, questões existenciais: há dois dias, quando estava em pleno exercício, deparei com um carreiro de formigas, que evitei calcar. Tenho respeito por todas as formas de vida que não me ameacem, pelo menos directamente. As formigas estão nesse grupo. Poderei, eventual e involuntariamente, levar algumas para casa, junto com os meus pertences; nessa altura, e reparando que elas lá estão, é evidente que tentarei eliminá-las para que não me criem incómodos desnecessários (aparecer no açúcar, p. ex.); à parte essas situações pontuais, evito matá-las, pois, como todos os insectos e animais (e plantas) são seres necessários ao equilíbrio ecológico e, além do mais, desgosta-me fazê-lo. Voltando ao carreiro de formigas: ultrapassei-o, deixando-as indemnes, e segui o meu caminho. No entanto, como os olhos estavam ainda focados no chão, começo a ver formigas por todo o lado, isoladas ou em grupos. Não tive outro remédio(?) senão retirar o meu olhar do chão, meter os escrúpulos no bolso e seguir caminho, consciente de que a minha caminhada teria já matado e iria matar talvez centenas de formigas e estropiar outras tantas, que ficariam a sofrer (serão mesmo sencientes?) até que as suas funções vitais terminassem por falência, ou algum pé ou pneu de bicicleta misericordioso terminasse com a sua desdita.
A minha ética impele-me a poupar vidas, sejam elas de que espécie forem: por vezes, em casa, esforço-me por encaminhar quaisquer insectos que encontre – mesmo que sejam aranhas ou centopeias – para o exterior, onde não incomodarão. É evidente que, se não o puder fazer, sentir-me-ei na obrigação de os eliminar para que não causem dano ou incómodo a pessoas e bens. Do mesmo modo o farei com mosquitos, melgas e moscas pois, além de extremamente irritantes, podem constituir risco para a saúde, porque não só pousam em qualquer lado como a sua picada pode causar inflamações e contágios das mais variadas doenças.
Após esta exposição, reflito e questiono-me se a minha ética será assim tão ética: respeito outras vidas enquanto não me incomodam, o que significa que a ética é uma norma de conduta hipócrita, que se esquece de si própria a partir do momento em que nos “pisam os calos”. Significa, portanto, que a ética é interesseira e egoísta, que não tem ética, que a sua conduta como norma de conduta segue ao sabor da maré, é permeável e flexível, consoante os interesses do seu portador.
Ética, moral, carácter, etc., todas as pedras basilares do comportamento humano, não passam afinal de hipocrisias que servem unicamente os interesses “interesseiros” do Ego.
Afinal, perante semelhante conclusão, o que fazemos na vida é tirar os olhos do solo, deitando para trás das costas o quantas formigas vamos pisar, deitar para trás das costas a ética, a humanidade e o remorso, amordaçar a personalidade e a moral e seguir em frente, pois estas qualidades aqui referidas têm a memória curta, para que os nossos actos não nos pesem na consciência.

18. jun, 2019
Post 120

00h57, 18/06, 3ª feira
Finalmente! Acabei a minha análise crítica, para entregar na Faculdade. Tenho pela frente três meses de dolce studiare niente. Mais uma etapa vencida, pelo menos a avaliar pelo trabalho que apresentei. Posso agora fazer o que quiser: dedicar-me à cultura de alforrecas, aprender natação, escrever disparates com maior frequência ou simplesmente criar bolor, nada me prende.
Neste momento e desde há cerca de 5 anos a esta parte, estou sentado onde habitualmente escrevo: numa secretária virada para o meu mundo nocturno e semi-estático, decorado com uma paleta de carros estacionados e, na minha rectaguarda, no jardim, um grupo de patos que aqui habitualmente pernoita. São 4, às vezes 5 patos, e uma pata. Desconfio que os patos já sejam de 2ª geração e a pata sempre a mesma. Felizmente, muitos residentes já os aceitam como parte integrante do seu condomínio e há quem habitualmente lhes dê de comer. Tirando alguma sujidade, não incomodam ninguém e passaram já a fazer parte da paisagem.
Que mais dizer? Nada me ocorre, como nada me tem ocorrido ultimamente. Sinto-me um pouco frustrado (bastante) por esta falta de rasgo, de inspiração para escrever. Pergunto-me por vezes a que se deve isto, será simplesmente cansaço ou haverá outras causas ocultas que me começam a condicionar o raciocínio?
Tenho notado um quase imperceptível acréscimo de dificuldades de memória, principalmente aquela relacionada com os acontecimentos mais recentes. No entanto, curiosamente, à medida que esses acontecimentos se vão esvaindo no tempo, a sua memória torna-se mais vívida. Não falo na memória mais antiga – todos sabem que, mesmo os idosos, têm sólidas recordações de acontecimentos passados há décadas. Falo da memória recente, aquela da qual tenho frequentes dificuldades de rememoração: com o passar dos dias ela torna-se mais sólida ou, por outras palavras, a memória que quase se apagou, renasce dos mortos e consolida-se. Estranho, não é?
Já pensei em todas as causas possíveis, desde o cansaço de que acima falei, passando pela degenerescência ligada à idade, a Alzheimer, enfim… Tudo isto preocupa-me um bocado.
A este respeito, o meu barómetro tem sido, como fiz transparecer no início deste escrito, as crónicas que escrevo e que me apercebo não terem aquela sequência, raciocínio e profundidade de antanho.
Talvez eu esteja enganado e tudo não passe de uma exigência de qualidade que não tenho ou não consigo imprimir no que escrevo. No entanto, apercebo-me de que há mudanças de aptidão literária.


11. jun, 2019
Post 119

04h47, domingo, 09/06
Hoje foi noite do fogo de artifício no Senhor de Matosinhos e do encerramento do NOS Primavera Sound no Parque da Cidade, que ainda está nos últimos estertores.
Uff! Um mês atribulado. Não um mês de nome, mas de extensão, ou seja, 30 dias de confusão e barulho, a começar com a Queima das Fitas e a acabar agora. Continuarão a surgir outros eventos, mas ocorrem durante o dia e por isso já não me afectarão, ou quase.
Na imobilidade quase fotográfica das trevas envolventes, movem-se noctívagos isolados ou em pequenos grupos; assemelham-se àqueles cães vadios que por vezes deambulam por aqui, com particular incidência no período de cio das cadelas. Não que os primeiros tenham algo a ver com esses animais nem com o período fértil deles, mas apenas porque surgem igualmente em pequenos grupos, andando uns atrás dos outros ou a par, é simplesmente uma comparação cinésica, uma metáfora. Bem, julgo que é mais um mimetismo.
A aurora vai surgindo, mas continua a batida. Parece que ainda há resistentes que não querem ir-se embora. Pelo menos são mais calmos que os da Queima, ainda não me apercebi de nada anómalo, nem sequer qualquer vozearia fora do aceitável. Outro público…Ao referir-me à Queima em termos depreciativos, não estou verdadeiramente a depreciar essa juventude, embora muitos pouco tenham de louvável. Eu também, no “meu tempo”, fazia coisas pouco louváveis e antes de mim, gerações antes de mim, os jovens faziam coisas ainda menos louváveis. Já a minha avó falava das tropelias, por vezes mais que estúpidas: graves -, dos estudantes de Coimbra.
Em verdade, o que concede gravidade a certos actos, não é a liberdade (direi: libertinagem) e descaramento com que são praticados, é a desfaçatez com que são tolerados ou permitidos. A sociedade tornou-se demasiado tolerante à estupidez e inconsciência que existe e sempre existiu na juventude, mas que sempre foi mais ou menos reprimida e castigada com o intuito de evitar repercussões futuras, tanto a nível da sociedade como dos membros prevaricadores, os quais, a maioria das vezes, acabam por ser eles próprios a colher os frutos podres da sua imaturidade. Tal atitude de “travão” serve maioritariamente para fazê-los caír em si e evoluir moral e emocionalmente. Atualmente, os jovens até têm sorte, essas chamadas de atenção, antigamente, eram feitas à lambada (e não estou a falar da música). Resultava muito bem e ninguém era acusado de violência.
Hoje já não é assim e muitas vezes nem é por culpa dos educadores. Estes, a maioria das vezes, estão demasiado ocupados a trabalhar para sustentar a sua prole e com isso a vigilância esmorece, as próprias relações familiares têm-se vindo a diluír, esfumam-se, tornam-se tão diáfanas que por vezes desaparecem.
Os pais sabem cada vez menos o que os filhos fazem ou com quem andam. Esse poder foi-lhes retirado e substituído por um certo utilitarismo, ao estilo de John Stuart Mill, onde os progenitores trabalham para o bem-estar da sociedade, sacrificando os seus filhos ao bem comum e estragando-lhes o futuro e, por consequência, a estabilidade do próprio edifício social.
Estamos encurralados neste mundo que construímos e do qual só concebo uma fuga possível: para a frente, para um futuro com poucas hipóteses de futuro. Do modo como as coisas estão, nada vejo de promissor.
Enquanto há vida, há esperança; o pior, mesmo o pior, é se a esperança morre primeiro que a vida.


31. mai, 2019
Post 118

06h00, 5ª feira, 30 de Maio
Tenho 1 h e ½ para queimar, ou seja, neste espaço de tempo não tenho nada que fazer senão esperar que me venham substituir.
Podia estudar ou ler ou passear pelas redondezas, mas sinto-me no “dever” de dar continuidade às crónicas do ócio, que tenho ultimamente descuidado. Não porque desdenhe de o fazer; o tempo tem sido curto para elaborar o meu ensaio e a vontade de o fazer tem tido a mesma dimensão. Assim vai a vida até ao fim de Junho. A partir daí nada (?) me impede de reatar a escrita.
Hoje, (aparte o facto de a minha miopia ter vindo a regredir, embora o astigmatismo tenha aumentado ligeiramente), encaro o dia nascente com bons olhos. Poderá eventualmente revelar-se uma desilusão, mas para já não vislumbro nada de negativo.
Os dias quentes e solarengos voltaram como, até agora, todos os anos tem sucedido. No entanto, ainda virão algumas chuvas, como é expectável até à primeira quinzena de Julho. O que é certo é que, ultimamente e cada vez mais, torna-se difícil contar com qualquer estação do ano nos moldes tradicionais.
Nos últimos 50 anos (período que menciono por já ter consciência própria, maturidade mental que me permitem ter memórias minimamente fiáveis) têm-se alterado os marcos basilares do comportamento meteorológico. O tempo geralmente associado a uma dada estação do ano, já não é um dado adquirido.
Há “Niños”e “Niñas”, superfícies frontais e anticiclones desfasados, correntes marítimas desviadas, tornados e dilúvios inesperados, secas extremas, fenómenos totalmente descontrolados.
Mas serão estes fenómenos esporádicos, normais? Pelo que vejo, cada vez menos. Porém, tenho lido amiúde que sim, que tais anomalias sucedem com regularidade, embora delas não nos apercebamos.
A minha memória não me diz tal coisa, mas sei que, por vezes, somos enganados por falsas recordações, que nos baralham.
Pode ser que o rol das anomalias meteorológicas seja agora mais visível devido a uma cobertura mais mediática. A globalização dá-nos a possibilidade de estarmos mais completa e rapidamente informados dos males do mundo.


22. mai, 2019
Post 117

00h38, 4ª feira, 21 de Maio
Tenho muito, muito sono; só dormi esta tarde cerca de 3 horas. Bastaram 10 dias de férias para f…* tudo (é assim que aparece nos media, é assim que se usa escrever para não chocar as mentes mais sensíveis, como se a palavra substituída pela sua letra inicial e astericizada não invocasse nos tais sensíveis uma imagem mental correspondente à da palavra subentendida. Assim já não ofende, assim já é aceitável {!?}).
Não posso condenar esses fiscais da moral porque já fui um pouco assim, fruto de uma educação que, embora já decadente e pouco flexível, anda incutia determinados valores e comportamentos. Alguns eram talvez preconceituosos, outros de um pudor virginal e muitos, parados no tempo. No entanto, foram esses valores que me formaram, que me moldaram como sou.
Todo o indivíduo é educado de uma determinada maneira, não importa qual; o tempo, a experiência de vida, o meio social e a própria personalidade de base, fazem com que essa educação se vá transformando, para bem ou para mal. Não podemos afirmar que somos o que os nossos pais nos inculcaram; nós somos, na verdade, o que os nossos pais nos ensinaram, mas adulterado ou purificado, de acordo com os nossos próprios instintos. Essa é a grande diferença.
Um ser humano modelo pode ter vindo de uma família que nada tenha que se recomende, do mesmo modo que um “sola grossa” ou um escroque pode ter surgido no meio de uma família exemplar. Não somos, portanto, o que os nossos pais fizeram de nós, não existe determinismo que nos force a ser o que intimamente não somos. Parte depende de nós, da firmeza das nossas convicções e do íntimo da nossa alma.
Mas dizia eu, logo no início, que os meus ciclos circadianos estão afectados pelas curtas férias que tive o mês passado. É verdade, é assim todos os anos, o que me acarreta défices graves de sono, de descanso. Aliás, tenho um trabalho para apresentar na faculdade que, como se costumava dizer, me está a dar água pela barba (eis aqui uma expressão popular “sexista” que poderá pôr em pé os cabelos de muitos moralistas modernos, excepto, evidentemente, aqueles que são calvos).
Voltando à faculdade, dizia eu que estas circunstâncias estão a afectar fortemente a minha capacidade de raciocínio, o meu necessário relaxamento e a minha memória – essencial para tudo isto. Estou convencido que esta será a disciplina em que, até ao momento, terei classificação mais baixa.
Sinto-me mental e fisicamente de rastos, necessito de descanso – descanso a sério -, mas sei que é uma utopia.
Cá me vou aguentando, que remédio!


13. mai, 2019
Post 116

00h15, 12/05/19, 2ª feira
Livre de novo, ao fim de uma semana de barulho, álcool e vómito. Enfim, livre da Queima por mais um ano.
Sou aberto a muita coisa, mas há limites. Todos os têm, uns mais outros menos, outros se calhar nenhuns. Desses tenho pena pois fazem e farão coisas de que um dia se poderão arrepender.
Aliás, o tema da Praxe, da Queima na sua pior faceta, é recorrente nesta altura, ano após ano, em tudo o que é média, pelos incidentes e espectáculos lamentáveis a ela associados.
Notícias e artigos de opinião dos mais variados sectores políticos e sociais são, infelizmente, marcada e justificadamente negativos. Tratando-se de um tema que daria “pano para mangas” mas que, contudo, é extremamente desagradável e delicado, ponho aqui para já um ponto final.
Regresso, pois, à normalidade possível de um emprego nocturno, entremeado com uma salutar, embora custosa, actividade académica. Coragem, falta apenas um mês e meio para o término de mais um ano lectivo.
Não quero ser saudosista e melancólico, mas tenho de o ser: continuo a sentir o estrago que os cerca de 30 anos (uma vida!) de inactividade cultural a quase todos os níveis me provocou. É costume dizer-se que não se chora sobre leite derramado mas, no fundo, cá muito no fundo, chora-se sempre, embora o escondamos, mesmo de nós próprios. Como eu já disse uma vez: “adiante, que haverá sempre mais leite para derramar”.
Tenho o computador na mala, tenho três livros e apontamentos, mas não tenho força nem coragem para lhes pegar. Talvez ligue o computador, não com uma intenção de didatismo académico mas apenas para “folhear” a Internet, os mails ou ver apenas um filme. Caso contrário dá-me o sono e o resto da madrugada torna-se um inferno.


17. abr, 2019
Post 115

5h57, 3ª feira, 16/04/19
Noite longa, tão longa como qualquer outra, anterior ou vindoura; noite que custa a passar, tanto como qualquer outra, passada ou futura; noite escura, tanto como as que passaram ou hão de passar.
Porquê longa, custosa e escura? Que a faz ser assim? Uma noite é uma noite como qualquer outra noite, quer queiramos, quer não. O tempo é que no-la modifica, alonga, escurece, torna-a maçadora e custosa.
O Tempo! O tempo não existe, assim como a noite não existe nas diferentes gradações que lhe conferimos. E se assim é, como gradamos algo que não existe, utilizando outra inexistência? Como classificamos um produto dos nossos sentidos através de uma medida imensurável, de algo impalpável cuja extensão não existe ou, se existe, é infinitamente dúctil?
A noite não existe se o tempo não existir e ambos não existem se não existir observador e o observador não existe se não existirem circunstâncias assimiláveis ou mesuráveis pelos sentidos (para não referir que os sentidos não existem se não existir observador). Curiosamente, a mecânica quântica já comprovou algo que até agora pertencia à especulação filosófica e que é o Efeito Zeno Quântico, que tem, de certo modo, a ver com a Experiência do Gato de Schroeder.

23h57, 3ª feira, 16/04/19
Estou cansado. Não devia, após uma tarde de sono. Talvez tivesse sido insuficiente, talvez tivesse a ver com os ciclos circadianos, talvez não tenha tido a ver com nada em especial. Certo é que estou cansado.
Escrevo com exactamente 18 horas de intervalo. Desci neste interregno, à terra, à materialidade. Estava no domínio da filosofia, do virtual, do pensamento; de vez em quando é necessário alternar entre o modo mental e o modo físico. Nem só de pão vive o homem, mas filosofar é necessário como de pão para a boca, a bem do equilíbrio, da homeostasia.
Somos o que comemos, mas também somos o que pensamos; o corpo ressente-se do stress, dos sentimentos negativos, da falta de descanso intelectual. Por vezes estamos doentes porque a nossa mente está doente, porque os pensamentos são deprimentes, porque os problemas surgem e agarram-se à mente como rémoras a um tubarão.
Acredito na meditação, no Reiki, no Ioga, mas não os pratico. Falta de tempo, de oportunidade? Acho que é apenas falta de vontade, o “não se querer dar ao trabalho” típico de quem procura um pretexto para justificar as suas maleitas e a sua preguiça.
Esbofeteio-me virtualmente, à boa maneira de Jean-Paul Sartre, pois por vezes é necessário fazermo-nos isso, a bem da coerência e da saúde mental. Somos juízes extremamente parciais dos nossos comportamentos porque raramente temos a coragem de nos olharmos ao espelho – no sentido figurado, evidentemente. Que moral teremos, como poderemos avaliar os outros de cabeça levantada, se não olharmos primeiro para nós próprios?
Blá, blá, blá, que lindas palavras que me saem da mente, mas que, passada a ênfase do momento, caem no meu próprio saco roto! Bela autocrítica que me sai da boca para fora! E acções, e compromissos com o que defendo? Pura demagogia para me enganar, papalvo que sou! Que somos! Todos nós, a seu modo, somos demagogos e tansos, caímos no nosso próprio conto do vigário e acreditamos sempre que o fazemos pela última vez.
Cordeiros hipócritas em pele de lobo e lobos escondidos em pele de cordeiro.


10. abr, 2019
Post 114

00h11, 10/03/19, 4ª feira
Estou a fazer uma recensão crítica sobre um capítulo de uma obra de Plotino, um filósofo neoplatónico do séc. III. É um tratado sobre o Belo, entendido como bom, positivo.
Que lindo serviço, estou bem arranjado, estou metido numa bela alhada. Espero conseguir levar a bom porto esta empreitada, a bem da minha prestação académica. Mas, como não há bela sem senão, tenho perdido uns bons pares de horas de sono num esforço para que tudo saia bem. Estou convencido de que farei um belo trabalho.
Pelo parágrafo anterior, nota-se bem a importância que as palavras, os conceitos de Belo e Bom como sinónimos, têm na nossa existência. Curiosamente, a maior parte das frases de cariz negativo utiliza palavras de categoria contrária para hiperbolizar os actos ou conceitos que focam, ou seja, as noções de belo, bom, justo, claro, etc., são utilizadas, não apenas para significar o que realmente significam, mas também para reforçar elocuções negativas.
Não tem lógica ou não soa bem dizer (reportando-me aos exemplos acima): que feio serviço, estou mal desarranjado, estou metido numa feia simplicidade, não há feia sem senão, perdi uns maus pares de horas. Deste modo, ao hiperbolizar todas essas expressões negativas por intermédio de conceitos positivos, estamos simplesmente a utilizar a ironia. Deduzo daí que, mesmo os mais bonzinhos dentre nós são, afinal, mauzinhos disfarçados, ou seja, a ironia é uma figura de estilo que utilizamos com um sentido mais ou menos explícito de gozo, de crítica, de censura, de desvalorização. Outros ainda mais mauzinhos serão ao utilizar o sarcasmo, que é uma ironia mais explicitamente maldosa. Ao fim e ao cabo, os bonzinhos utilizam também a ironia, o que indicia a latência de um lado negro indelével na espécie humana.
Tomos somos maldosos no mais íntimo da nossa alma, todos temos o mal, o mau, o feio, o negativo, num quartinho fechado, algures dentro de nós. Porém, a porta que o encerra tem frinchas, e alguma feiura e negatividade extravasam por aí.
Não há santos, há apenas seres humanos que conseguem tapar melhor as frinchas da porta, contendo sofrívelmente a sua faceta obscura


9. abr, 2019
Post 113

06h57, 08/04/19, 2ª feira
Ora cá temos um “inverno” tímida e tardiamente assumido. Parece que S. Pedro, Zeus, qualquer dos múltiplos deuses responsáveis pela chuva, como Téfnis (egípcia, filha de Ra), Hoder (filho de Odim), Chaac (Maia) ou, para os ateus, a Meteorologia, têm andado a beber uns copos e esquecem-se de mandar chuva no seu devido tempo e lugar. Poderá também ser um problema logístico, de distribuição. Ou os funcionários encarregados da chuva serem subcontratados e estarem-se marimbando para o serviço.
Bom, seja como for, ainda estamos a tempo de levar com uma chuvinha. Diz o velho ditado: “Abril, águas mil…”.
01h52, 09/04/19, 3ª feira
Parece que a minha “reclamação” chegou a quem de direito, pois esta noite está a chover mais um bocadinho do que ontem. Ainda não é significativo, mas demos o volume pluvial por suficiente, não vá algum responsável começar a ficar demasiado zeloso.
Pois é, nunca mais vem a reforma para eu poder começar a apodrecer na inacção, refastelado no sofá ou a jogar as cartas com velhos batoteiros, sabidos e barulhentos.
Nunca! Alapar-me na poltrona, ainda vá que não vá, de vez em quando. Estupidificar-me a jogar às cartas é que não. Aqui atrasado, emiti a minha opinião sobre isso: detesto perder tempo com tamanhas futilidades e semelhantes ambientes.
Se fosse xadrez, ainda pensaria duas vezes. Poderá haver outros, mas este jogo é o único que eu conheço que oleia o cérebro, pela complexidade do raciocínio dedutivo necessária. Falta é parceiros, seria uma boa opção, mas esporádicamente, para evitar uma insalubre cultura do sofá. Conhecer novas terras (se houver dinheiro para isso), ler muito (imprescindível), andar q.b., serão essas as minhas prioridades no pós-laboral definitivo. Um hobby para os dias em que não se sai de casa, também seria salutar e aconselhável.
Tudo isto, claro, se lá conseguir chegar. Se não conseguir, só me restará permanecer eternamente deitado ou esfumar-me por aí e esperar que alguém me sacuda algures o pó. Sim, porque a minha família não é daquelas de ter esqueletos no armário; a não ser que fosse para um dia ensinar anatomia aos meus (para já) hipotéticos netos em idade escolar: “Ora olha aqui para o teu avô: isto é a tíbia, aqui o perónio, estas são as….. etc, etc.
Hmmm…….não me parece.



18. mar, 2019
Post 112

20h49, 17/03, domingo
Tenho uma noite perante mim. Miro e remiro essa entidade obscura, cuja ausência de luz em tempos jovens me atemorizava, me fazia ver os demónios dos meus medos mais íntimos e irracionais. É na infância que nos é impresso esse cunho de temor, muitas vezes de terror insano, indiscritível e injustificado. Freud, tem piedade de nós e faz-nos ver entre as trevas que nos rodeiam!
Passo à frente, já não me incomoda, os pesadelos das tenras idades há muito que desapareceram.
O que me aborrece hoje em dia é a sensação de semi-inutilidade que o meu trabalho, nestas particulares circunstâncias, transmite. Não há muitas hipóteses de criatividade numa tarefa que exige simultaneamente vigília e inacção, onde a concentração é constantemente interrompida por pequenos, embora necessários, arroubos de vigilância, próprios da actividade que exerço.
Em suma, o “desligar do mundo” nunca acontece aqui, o empenho no estudo e investigação é sobremaneira prejudicado por estes altos e baixos da atenção.
Há que viver de acordo com as nossas possibilidades, o que nem sempre é fácil e quase nunca satisfatório.
Neste sentido somos, infelizmente, frustrados, incompletos, seres que nunca conseguimos atingir o nosso ideal ideal (passe a redundância). Existe uma tensão permanente entre a frustração e a completude, um ondear raiano entre a satisfação e o desapontamento, mas que é, simultaneamente, o tempero que necessitamos para dar algum sentido à existência – o comummente chamado sal da vida.
Este jogo de tensões mantém-nos em luta permanente com a negatividade, a frustração, a inércia. Desistir do combate seria morrer em vida, numa existência vegetativa, inútil, de morte cerebral sem morte cerebral. Que o teísmo agnóstico nos livre de semelhante contingência!


15. mar, 2019
Post 111

19h03, 6ª feira, 19/03
Não era minha intenção repisar temas funéreos mas, por desafortunada coincidência, o meu gato, César, que estava internado durante o fim-de-semana numa unidade veterinária devido a problemas renais que necessitavam de tratamento urgente, faleceu dia 10, de madrugada, quiçá durante o meu episódio de escrita. Tal acontecimento causou perplexidade e dor, por inesperado, pois tratava-se de um felino ainda jovem, com apenas 10 anos.
Custa. A afeição entranha-se e torna-se muito difícil de extirpar. Resta-nos a triste e, em simultâneo, aliviante certeza de que nada é eterno, nem mesmo as emoções. A médio prazo a mágoa atenuar-se-á e cederá lugar a uma recordação melancólica, esfumada no passado. Felizmente é assim; doutro modo sucumbiríamos, asfixiados pelo “peso” dos nossos mortos.
O condigno epitáfio foi escrito, prossigamos.


10. mar, 2019
Post 110

04h03, 4ªfeira, 27/02/19
Hoje estou a escrever para não adormecer: tive um dia complicado, com problemas que não são para aqui chamados, e só dormi 2 horas, contra o meu costume de dormir, pelo menos, 6 a 7 horas.
Embora tenha uma consulta de manhã, conto, após a referida, compensar esta vigília de modo minimamente satisfatório. Amanhã (5ª feira) recomeçam os meus seminários de mestrado e devo descansar para poder dar o rendimento necessário para a prossecução dos estudos.
Mais uma vez, durante estes dias em que não escrevi, tive magníficos pensamentos, ideias merecedoras de interessante e prometedor desenvolvimento, observações e constatações extraordinárias que não pude aproveitar como mereciam (a meu ver, pois tudo é relativo) por não me encontrar nas condições requeridas para as recolher ou no momento oportuno para o fazer, para registá-las, materializá-las no papel ou no computador para tratamento e memória futura.
Pérolas perdidas, espalhadas, esquecidas pela memória. A maioria surge naquele estado meio de vigília, meio de sono, onde nos encontramos suficientemente acordados para ter consciência, mas insuficientemente despertos para nos mexermos; aí surgem as reflexões mais claras, mais originais,
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05h00, 3ª feira, 05/03/19
Afinal tive de interromper o fio dos pensamentos que estava a começar a desenvolver na semana passada, dando razão ao meu lamento sobre a dificuldade ou impossibilidade de (d)escrever o íntimo, o inner self, em tempo útil. São as tais pérolas perdidas…
Agora, com o início de um novo semestre e a necessária focalização nos temas veiculados nos seminários, tornar-se-á difícil retomar o ritmo que já estava a tentar imprimir às minhas crónicas; fá-lo-ei como antigamente, ou seja, sempre que o tempo mo permita e a predisposição me impila (curiosa e pouco utilizada conjugação do verbo impelir, mais concretamente, o presente do conjuntivo. É correcta mas tem uma conotação que poderá parecer quase pornográfica).
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04h22, domingo, 10/03/19
Pelo acima exposto, disperso temporalmente e fragmentado como um vestígio arqueológico, pode-se constatar que a minha projecção mental feita grafia constitui, feliz ou infelizmente, um patchwork nem sempre visivelmente lógico (pelo menos na aparência).
Porém essa lógica existe e, tal qual o exemplo do patchwork que referi, pode ser entendida numa macro-escala, ou seja, apenas fará sentido na visão da sua totalidade relativa. Melhor dizendo, é necessário um certo distanciamento para obter uma visão de conjunto e que é, entenda-se, todo o leque existencial e conceptual reflectido nos testemunhos, aqui gravados, dos últimos quase 7 anos e que, no fundo, abarcam 6 décadas de vivências, sucessos, fracassos e outras circunstâncias mais ou menos neutras ou mais ou menos relevantes.
O leitor deste tipo de escrita autobiográfica e figurativa tem que investir-se filósofo, psicólogo, tornar-se arqueólogo e juntar os fragmentos para “adivinhar” o todo ou a parte que lhe permitam ter a percepção do que realmente é dito, numa construção que nunca terá fim, mas que será interrompida algures no porvir. É, digamos, um continuum sem continuum, uma “obra de Santa Engrácia” que, ao invés desta, nunca terá conclusão.
(E, de novo, veladamente, subreptíciamente, retorno ao meu tema preferido que, para não me repetir, chamarei eufemisticamente decesso ou passamento).

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27. jan, 2019
Post 109

00h25, domingo, 27/01
Nem parece Inverno, a temperatura está demasiado “amena” para esta época do ano, ou seja, há uma ausência atípica do frio espectável num mês de Janeiro, assim como também não há chuva relevante. Nota-se que o tempo está preocupantemente mudado.
Vejo passar o tempo (cronológico) e comparo-o a um registo fotográfico; é como se estivéssemos permanentemente a observar uma fotografia, ou melhor dizendo, uma sequência de fotografias, sempre no pretérito.
Sim, sei que, por natureza, as fotos são sempre registos de algo que já sucedeu, nem que apenas “mostrem” o ar. Uma foto tirada por acidente, a um muro, ao chão, para o céu, mostra esse muro, esse chão e esse céu num dado momento do passado, é irrepetível.
Outro registo, mesmo respeitando os mesmos parâmetros, mostra outro passado, nunca o mesmo. Se tirarmos agora um auto-retrato e o visualizarmos imediatamente, mesmo assim ver-nos-emos como éramos e nunca como somos.
É costume dizer-se que o tempo voa, passa rápido. Porém também o podemos sentir como algo que passa muito lentamente, o que não nos permite observar as diferenças, de forma significativa, no nosso dia-a-dia. O que nos dá a visão do passado é o afastamento temporal, reflectido na forma física e nos faz ver no “agora” o “agora” do passado.
Bem, isto está a ficar muito complicado, o nível de abstracção está-se a tornar demasiado complexo para poder ser “traduzido” com recurso a palavras. É, pois, conveniente mudar de assunto para algo que seja minimamente tradutível.
Pensando melhor, acho que fico por aqui.


17. jan, 2019
Post 108

2h43, 5º feira, 17/01
Faltam 5 horas e 17 minutos para a minha “liberdade condicional” de todas as semanas. Como já disse há dias, não sei se é óptimo ou terrível.
O tempo, agora, passa com uma velocidade assustadora, como passaria um TGV a um contemporâneo da Época Vitoriana e, a médio ou longo prazo (não muito longo), mudarei de profissão, com um lugar garantido na produção cerâmica: a fazer tijolo.
Será bom, será mau? Estou simultaneamente curioso e horrorizado com a perspectiva. Curioso por saber como é o “outro lado”; horrorizado ou, melhor dizendo, aterrorizado, pela mesma razão. É uma dicotomia muito interessante, mas muito desconfortável, e não tem nada a ver com a visão ou o dogma religioso, que é um bicho-papão com que nos sugestionaram desde pequeninos.
Aceitarei muito mais facilmente uma teoria budista do que o dogma cristão do céu e do inferno, não esquecendo o limbo ou purgatório, ou prisão preventiva ou alfândega, ou como lhe queiram chamar. Simplesmente não faz sentido.
Em tempos veiculei aqui a ideia da parvoíce total que nos é impingida há milénios, primeiro pelos judeus, depois pelos cristãos e, no fundo, por todas ou quase todas as religiões, de que há um castigo horrendo, inominável e eterno, assim como uma recompensa maravilhosa, um paraíso, por vezes misógino, como é o dos muçulmanos, tudo em directa consequência da nossa performance terrena.
Há, pois, um Deus premiador/castigador que, partindo do princípio de que somos todos uma parte Sua e a Ele voltaremos, é simultaneamente sádico e masoquista, pois inflige a nós, suas partes integrantes, castigos impossíveis de descrever, e para todo o sempre.
Aceito muito mais facilmente a teoria budista ou a espírita da reincarnação, do carma ou lei da causa e efeito.
Essas farão mais sentido: voltamos a encarnar para aprender o que falhámos e, eventualmente, para sofrer pelo que fizemos sofrer.
A outra teoria, a dos ateus, para mim também não faz sentido, pois seria incongruente virmos à Terra só para a melhorarmos (ou piorarmos) para as gerações vindouras. Qual seria o sentido “dessa” vida? Nenhum. Isso significaria evoluirmos em direcção a quê e para quê?
As nossas vidas são regidas por recompensas, quer queiramos, quer não, consciente ou inconscientemente. Então, qual seria a nossa recompensa? Morrer e acabou! Pronto, está dito! E legarmos aos nossos filhos um mundo onde eles possam morrer melhor. E guerras para que as gerações vindouras possam morrer melhor e mais cedo.
É este o sentido da vida? Curtir umas festas, sofrer doenças e desgostos, fazer filhos perecíveis como nós, iludindo-os com a crescente esperança média de vida e, finalmente, morrer sem saber quando? Essa eu não compro.


15. jan, 2019
Post 107

1h37, 3ª feira, 15/01
E cá estou de novo a escrever, ainda nem sei sobre o quê, mas é sempre assim. O acto de escrita, se for muito pensado, perde a sua originalidade, a sua simplicidade, e passa, ou pode passar a ser, um acto rebuscado, onde o que se escreve reflecte quase sempre um não sei quê de artificialidade. É evidente que excluo aqueles actos de escrita cujo fim é premeditado, ou por se tratar de algo temático, ou pela imposição de circunstâncias que exijam esse tipo de atitude.
Continuo sem saber, há dias assim.
Ouço Chopin no meu telemóvel, em altavoz (mais propriamente em altamúsica). Quando faço as minhas rondas, costumo ouvir uma selecção de músicas que baixei do YouTube, geralmente clássicas. Tenho outras – rock, pop, disco, etc – quase todas dos anos 80 e 90 e que, por qualquer razão, merecem presença no meu Top auditivo, tudo depende da disposição e das circunstâncias. Mas do que eu mais gosto é, sem sombra de dúvida, a música clássica. Talvez seja por influência da minha infância, onde a minha tia pianista marcou forte presença, física, emocional e musicalmente. Dela herdei esse prazer.
Ainda criança, tentou (assim como aos meus irmãos mais velhos) ensinar-me a tocar piano, mas sem resultado; faltava-me a costela da música, que os genes não legaram, circunstância de que tenho muita pena.
Se não ficou o jeito, pelo menos o gosto, louvado seja Apolo, o deus da Música, e Euterpe, a musa dessa sublime arte.
Há quem já nasça com dons específicos, mais ou menos marcados; outros, como eu, nunca souberam verdadeiramente quais as suas aptidões naturais (se as há ou houve) e como desenvolvê-las. Sim, porque nem sempre são evidentes as capacidades de cada um, por vezes são outros que no-las descobrem. Infelizmente, no meu caso, nem uma coisa nem outra. Por isso, toda a minha vida pratiquei profissões ou actividades nas quais não me revia e que acabaram por se revelar, com o tempo, medíocres ou pouco exitosas.
Culpa minha? Talvez. Provavelmente não soube escavar na direcção certa, falhei o filão que me levaria, se não ao sucesso, pelo menos a uma vida mais completa, mais feliz. Dizem que nunca é tarde e eu acredito, mas os meus 61 anos não são o argumento mais apelativo para o sucesso. Contudo, mantenho a esperança naquela tal revelação epifânica que todos esperamos pois, como se costuma dizer, a esperança é a última a morrer (Olha! Fiz um verso!).



14. jan, 2019
Post 106

06h19, 2ª feira, 14/01
Hoje, contra meu costume, estou a escrever estas linhas bastante tarde. Bem, bastante tarde para mim, para o comum dos mortais será bastante cedo, eventualmente hora de levantar ou perto disso.
Não interessa, não vou escrever resmas de páginas só para falar no sexo dos anjos que, a fazer fé num dogma religioso que diz que o que está em cima é como o que está em baixo, deve ser constituído pelos dois sexos e, novamente fazendo valer esta badalada máxima, haverá outros mais ambíguos. Teremos, portanto, anjos e anjas, anjos transexuais, bi, etc., e não falemos mais nisso.
Em breve notar-se-ão pálidas nuances de vermelho, laranja e amarelo, a leste, prenúncio de mais uma radiosa e fria aurora, emoldurada pelo crescente azular do céu, pontilhada aqui e ali por tímidas nuvens e envergonhadas estrelas e planetas que teimam em não deixar o firmamento. As aves iniciam suavemente a sua sinfonia, como se não quisessem perturbar a calmaria do estertor da noite. Em breve emitirão os seus pios e gorjeios a plenos e miniaturais pulmões, como se contentes pelo nascer do dia.
Paralisei. A caneta, levemente afastada do papel, aguarda pacientemente a ordem do reinício. Não sei que escrever. E, contudo, há um mundo inteiro fora de mim, um mundo do qual, por mais que eu viva, não conhecerei nem a centésima parte e sobre o qual há um inesgotável manancial de histórias, de contos, de tradições, de usos e costumes, de maravilhas e tragédias, sobre que escrever. No entanto, nada me salta à vista ou à memória.
Saltar, salta. Porém a mente (a minha, a nossa) escorraça esses pensamentos por os considerar demasiado corriqueiros, não importantes, vulgares, indignos da tinta que se gastaria ou do papel.
Mas são pensamentos úteis, são pensamentos escrevíveis, são a massa que molda os sonhos, a história, as vivências do dia-a-dia. Somos demasiado elitistas para os utilizar, não são interessantes, não são grandiloquentes, não interessam a ninguém. E, contudo, são esses pequenos, insignificantes pensamentos, que moldam grandiosas histórias. Há muitos grandes escritores que usam pequenos pensamentos. Aliás, são a grande maioria. São os alquimistas das palavras, aqueles que transformam o chumbo em ouro, os desprezados e minimalistas produtos da nossa mente em obras deleitosas e memoráveis.


6. jan, 2019
Post 105

23h52, sábado, 05/01
A última vez que “croniquei” foi no mês passado e no ano transacto. Não posso dizer que não tenho tido tempo, apenas não estive para aí virado.
Certo é também que não tenho conseguido gerir o meu tempo livre, tenho utilizado os meus períodos de lazer de uma forma stressada, ou seja, querendo fazer tudo ao mesmo tempo ou, pelo contrário, entrando em modo de dolce fare niente, o que apenas me cria mais ansiedade. No fundo, quero optimizar o tempo de uma maneira minimamente útil ou criativa mas não o consigo fazer, não encontro energia suficiente para rodar o motor de arranque.
Tenho que me actualizar em mecânica de automóveis, pois parece que agora já não existe motor de arranque, tudo é regido pela centralina, que é uma espécie de domótica para carros. Novos tempos, novos processos, novas palavras.
Bem, como toda a gente, em todos os inícios de ano, prometi a mim próprio que a partir de agora vai ser tudo diferente. E, como toda a gente, em todos os inícios de ano, chegarei novamente à conclusão, incessantemente repetida e experienciada, de que de boas intenções está o inferno cheio.
No entanto, a chispa pode saltar um dia, quando menos se espere. Foi assim que eu deixei de fumar, quando a força de vontade superou o vício, quando a dinâmica superou a inércia.
Não estou feliz com o que sou, nem como sou ou como ajo, nem sequer estou conformado. No entanto, aceito-me como um ser em progressão, como uma consciência que toma consciência ( passe a expressão) de uma mudança positiva – embora irritantemente lenta – da maneira de pensar e agir.
Se eu vivesse mais algumas centenas de anos, transformar-me-ia num santo, disso não tenho muitas dúvidas. O mal é que, com o tempo limitado que usufruímos nesta vida terrena, as tais boas intenções raramente chegam à prática.
Admiro aqueles que têm vontade férrea, embora tal possa constituir um perigo a longo prazo, pois essa postura poder-se-á transformar, ou em despotismo ou em ideias fixas, como não é raro suceder em pessoas avançadas na idade. Aqui, a tal vontade férrea transforma-se, com o envelhecimento e consequente cristalização da forma de pensar, na certeza inabalável de que apenas está correcto aquilo que entendemos que está correcto. Tive muitos exemplos disso na família e afins.
O problema é que deveríamos tomar esses exemplos como lições mas, à medida que caminhamos para anciães, essa consciência da fossilização do pensamento vai-se desvanecendo e acabamos por tornar-nos naquilo que hoje criticamos.
Há uma canção de Miguel Araújo (Dª Laura) que é o exemplo perfeito daquilo que eu quero dizer (link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=UImEBsYTOm4. também está na nova página que criei - Videos).
Mas, como diria o historiador Joel Cleto, no Porto Canal, são outros factos, outras histórias, seguramente outros posts do pseudo-blog.


25. dez, 2018
Post 104

25/12/18, 3ª feira, 01h15
Natal. Noite. Nostalgia.
Lembranças de Dickens. Scrooge e os contos da Disney. Bolo-rei com brinde, as rabanadas, os bolinhos de abóbora e de cenoura, a espera ansiosa pela manhã, pelas prendas, pelos doces.
Já se passaram mais de 50 anos desde que comecei a questionar a existência desse tal de Menino Jesus (uma espécie de Pai Natal menos comercial e de formato católico), que deixava os presentes durante a noite. Continuo, no entanto, com saudades dessa época longínqua de cândida e feliz ilusão.
Tempo de descoberta e de magia, de aprendizagem e desengano, simultâneamente triste e venturosa. Não quero entrar no estereótipo do “quem me dera voltar atrás”, mas não resisto e penso: quem me dera voltar atrás, para essa inocência pura, crédula, irresponsável e resiliente.
Mas já sei que, no fundo, ninguém quer voltar atrás (nem eu), mesmo com o passado, passado. Ninguém quer reviver a inteligência imatura de uma criança; isso é o que sai da boca para fora, como se costuma dizer. Quem aceitaria agora voltar a esse desenvolvimento mental embrionário para (re)viver fugazes momentos de felicidade sob o olhar limitado de um intelecto em formação? Ninguém.
Essa ideia é muito linda de um ponto de vista romântico, mas não resiste a uma análise racional. As vivências são para ser vividas uma vez, se assim me posso exprimir. Não podem nem devem existir repetições, pois é assim que a vida funciona: através de experiências singulares que tornam a própria vida, ela também, única e, por isso, merecedora de ser vivida, mau grado alguns episódios negativos, pontuais, mas inevitáveis.


19. dez, 2018
Post 103

23h40, 3ª feira, 18 de dezembro
Tenho pela frente uma noite de trabalho. Vou, como quase sempre, utilizá-la para estudar, pois em janeiro tenho um resumo de leitura para apresentar na faculdade.
É deveras curioso o facto de que, quanto mais evoluído é o ser humano, mais questões se propõe, mais teorias apresenta, mais sugestões de conhecimento expõe à consideração dos seus pares. Pergunto-me a que ponto, nalguns aspectos que adiante focarei, tal é benéfico, tal é necessário ao desenvolvimento intelectual da espécie.
Somos seres muito complicados; será útil complicar ainda mais uma existência, já de si, complicada? Por vezes questiono o objectivo de algumas propostas de conhecimento, de algumas teorias, de alguns temas de investigação, e não consigo vê-los senão como um simples exercício mental que, de benéfico, de útil, apenas será o de “muscular” a mente.
Se eu expressasse publicamente o que aqui confio, seria por certo apelidado de inculto, ignorante e outros epítetos igualmente abonatórios da minha capacidade intelectual. Mas não seria possível que muitos me dessem razão, apenas amordaçados pelo receio de ostracização, de lapidação às mãos dos seus pares ou outros congéneres considerados superiores?
Cada nova forma de pensamento emergente é uma invenção. No bom ou no mau sentido. Haverá quem o faça na convicção de que isso irá contribuir para o desenvolvimento intelectual da humanidade – pelo menos o de alguns dos seus elementos; outros fá-lo-ão como forma de se auto-proporem a um nível superior, a uma deificação desejada, por reconhecimento das suas capacidades pelos demais académicos.
A esse respeito, abstenho-me de comentários. Apenas fico confuso e questiono certas derivações teóricas, das quais não vislumbro o interesse prático, nem a curto, nem a médio ou longo prazo.
Talvez um dia eu próprio elabore raciocínios similares, talvez um dia eu renegue ou ignore o que agora defendo e, se tal vier a suceder, certamente o farei com a convicção da sua utilidade e da lógica do que defendo.
Pode ser que ainda não tenha recebido “luz” suficiente e aguarde por uma fulguração epifânica que me desvele os cantos obscuros do meu espírito e a razão de algumas complicadas criações intelectuais.
Então aí eu, outrora descrente, poderei igualmente criar algo, também aparentemente inútil.


9. dez, 2018
Post 102

00h49, domingo, 09/12
Estou cheio de sono e não sei o que hei de escrever. Contudo, apetece-me fazê-lo.
Hoje fui a um funeral em Vila Pouca de Aguiar. É daqueles funerais em que é a primeira vez que vemos a pessoa que está dentro do caixão, nunca tivemos contacto com ela em vida, nada de amizade ou outros laços, um corpo neutro em que inevitavelmente nos espelhamos, independentemente do sexo ou da idade. Nem o nome dela eu sabia!
Mas quando olhamos para aquela forma que ali jaz inerte, vemo-nos no seu lugar, a ser velados, chorados e esquecidos. Tornamo-nos um pedaço de carne sem valor que tem de ser enterrado o mais depressa possível, antes que apodreça e cheire mal, antes que o espelho se deforme e nos horrorize com a sua/nossa aparência, com a sua/nossa condição de objecto perecível e degradado. Lixo com ele, enterra-se que já não presta! Cumprido ou não o seu papel, não importa, não é reutilizável.
Quando contemplo um corpo morto, estou a mirar-me, a ver-me no seu lugar, como a uma peça que visto numa loja de roupa. Acho que inconscientemente estou a preparar-me para um dia ocupar esse lugar, imóvel e horizontal, como compete a um defunto que se preze.
Depois? Incógnita! As nossas crenças, as nossas opiniões, não significam necessariamente a verdade, que poderá mesmo ultrapassar o inimaginável, porque ninguém voltou para contar a história, nem mesmo o tão falado e mítico Lázaro.
Ninguém nos consegue dar respostas, só suposições ou teorias fantasiosas. Morrer é (fazendo um paralelo com a cosmogonia) entrar num buraco negro sem saber o que acontece do outro lado. Seja o que for, pode não ser o fim, mas é seguramente o fim de uma etapa, o abrir de uma porta que dá para o desconhecido, para uma infinidade de possibilidades ou para o nada.
Não tenho mesmo emenda! Voltei pela enésima vez a abordar o meu tema favorito, a minha cisma de estimação – a morte. Não consigo evitá-lo, penso nela porque ao fazê-lo, não estou a pensar nos outros, mas em mim próprio, a questionar a minha própria existência.
Porquê? Porque tenho memórias e porque morrer é perder as memórias por completo, e isso é deixar de existir. Como escrevi há uns meses, não ter memórias é não pertencer a nenhum universo, a nenhuma forma, nem mesmo a nenhum nada. não ter memórias é o zero mais que absoluto.


25. nov, 2018
Post 101

25/11/18, domingo, 01h04
Falta um mês para o Natal, uma data que, para mim, já perdeu muito do seu significado.
Há 40 anos…. Bem, digamos 30 anos, e isolando a conotação que a data tem nos termos da religião em que fui educado e que nunca verdadeiramente me convenceu, os natais eram uma época alegre, de reencontro familiar e de amizade. Enfim, um período que as pessoas aguardavam com impaciência, com expectativa, pelas mais diversas razões: as crianças, impacientes pelas prendas, pelos doces e por toda aquela azáfama bem-humorada que entretinha os mais velhos – as mães principalmente, e as avós; os adultos, que anteviam com satisfação a reunião dos clãs e as indispensáveis visitas e votos dos amigos e respectivos retornos de cortesia e amizade. Os velhos, talvez mais do que ninguém, porque viam reunida a família, os descendentes, afastados ao longo dos anos pela canseira da sobrevivência e pelo apelo atávico de, eles próprios, criarem novas raízes.
Hoje os tempos são diferentes. Perdeu-se ou tem-se vindo a perder a tradição, os núcleos familiares vão-se fragmentando e afastando cada vez mais, por imposições laborais ou mesmo por perda das noções seculares da família.
Algumas alterações aceito, visto compreender que existe, tem de existir, uma constante evolução e a nossa “formatação” já se encontrar obsoleta; outras não consigo aceitar porque subvertem os ditames do senso comum. Mas destas nem vale a pena falar.
Lembro-me quando as minhas filhas eram pequeninas e desdobrávamo-nos em esforços para que tudo corresse bem, para as fazer felizes, especialmente nesse período. Inventávamos mil e uma maneiras de receber o Pai Natal e as prendas. Cheguei a atar uma campainha, com um fino fio de nylon a um poste a cerca de 50/70 metros de casa, para anunciar a presença sempre misteriosa do velhinho das barbas brancas lá em casa. Tínhamos vindo de passar a consoada em casa da minha mãe e dirigíamo-nos para a nossa, a fim de cumprir o sagrado ritual da aparição e abertura das prendas (antecipadamente espalhadas à beira da árvore, às escondidas das pequenas).
Antes de chegarmos, puxei o fio para que ela soasse, fazendo parecer à mente ingénua da miúda (neste caso, a mais nova) que era o Pai Natal quem lá estava. Lógico que, quando entrámos, e para afastar suspeitas e manter a magia por mais um ano, corremos a casa toda com ela para comprovar que ninguém estava e todas as saídas estavam fechadas. Entretanto, alguém fez desaparecer o “móbil do crime”.
Bons tempos esses em que “mentíamos” descaradamente às crianças para as fazer felizes e dar uma aura de mistério ao invisível “fornecedor” das prendas.
Depois era o convívio, os comes e bebes (outra vez) festivos e despreocupados, com a família e um ou outro amigo que eventualmente convidássemos. O dia seguinte era descanso sagrado, para curar a ressaca e arrumar toda a confusão e começar a pensar noutra, a do Ano Novo.
No meu caso, como atrás referi, os tempos agora são outros, as datas festivas são mais comerciais, já ninguém tem tempo nem paciência para todos aqueles preparativos de antanho. Os mais novos ainda vão fazendo alguma coisa, mas o cariz íntimo de antigamente, a ligação forte com as raízes vai-se perdendo a pouco e pouco, os conceitos mudam, o dinheiro agora escasseia mais.
Há que aceitar a lei de Lavoisier: “na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, infelizmente nem sempre para melhor.
(Será que o Natal também evolui de acordo com as teorias de Darwin?)


19. nov, 2018
Post 100

00h26, 2ª feira, 18/11
Por vezes fico estático, com a caneta a pairar sobre o papel, o olhar perdido no limite do horizonte visual que o local me permite e que, infelizmente, não é muito propício a inspirações. As musas, por mais “in” que se tenham tornado ao longo dos tempos, dificilmente aparecerão para inspirar quem as procura num ambiente de blocos de apartamentos, bombas de gasolina e candeeiros públicos. Certamente escolherão lugares, se não mais bucólicos, pelo menos não tão declarada e cansativamente urbanos como este. Se ao menos o meu posto estivesse voltado 180º, para o Parque da Cidade, talvez vislumbrasse alguma musa a pairar sobre o lago ou os campos verdejantes do local (que nem se veem daqui). Infelizmente, tudo o que eventualmente posso ver serão gaivotas e patos, nada de muito inspirador.
Paisagens campestres são difíceis de encontrar num ambiente urbano ou mesmo suburbano; aliás, são a sua antítese. O mais caricaturalmente parecido com os ambientes arcadianos de antanho serão os pastores das variegadas seitas, evangélicas ou não, que pululam com os seus rebanhos, como cogumelos, dentro das florestas de betão.


13. nov, 2018
Post 99

00h25, 3ª feira, 12/11
“Quase” Natal; ainda há bem pouco tempo transpirava-se com o calor inusual de um Setembro atípico e agora, de vez em quando, entramos num sucedâneo de clima de monção ao qual só lhe falta o calor, ou seja, não escasseia a chuva a potes, torrencial, “que Deus a dá” como se dizia antigamente.
Bem, pondo de lado as habituais menções meteorológicas que caracterizam os meus pontapés de saída gráficos, falemos de outras coisas que, no momento de escrita em que me encontro, não faço a mínima ideia do que sejam.
Por outras palavras, apetece-me apenas escrever “não sei o quê”. Tento fugir aos meus temas recorrentes, tais como o tempo, o existencialismo, a comiseração reflexiva, a morte e similares e apercebo-me que, embora existam milhentos assuntos sobre que falar, nenhum me ocorre e aqueles que dariam “pano para mangas” são demasiado pessoais para este cantinho electrónico semi-público.
De que falar então? Do sexo dos anjos? Da pouca sorte do vizinho do lado ou dos mexericos sobre os moradores do 2º esquerdo daquele prédio ao virar da esquina? De política? Das doenças? Talvez uma dissertação sobre o meu cão ou o meu gato ou mesmo sobre os meus falecidos cães e gatos? A Casa dos Segredos? (desinfecto o ecrãn sempre que, por azar, ao fazer zapping tal aberração me aparece).
Ando cansado, stressado, tenho um emprego nocturno que já não é para a minha idade nem para o meu estado de saúde; por isso tudo e outras causas o meu cérebro já não consegue fazer fluir ideias e pensamentos como eu desejaria que sucedesse (lá vem a auto-comiseração…).
Nada a fazer, é esperar melhores e mais produtivos dias. Até lá vegeto numa auto-reflexão um tanto ou quanto limitada. Continuo a acreditar nos tais melhores dias de um futuro que pode nunca suceder, mas são essas crenças não comprovadas que fazem avançar o nosso mundo e o dos outros.



21. out, 2018
Post 98

00h25, domingo, 2 de Outubro
Está um tempo óptimo - 20◦, sem vento, sem chuva.
Como geralmente nós, humanos, temos o costume de duvidar, desconfiar das benesses que se prolongam por mais tempo que o normal – daí o “quando a esmola é grande, o pobre desconfia” -, há a sensação de que este limbo meteorológico é apenas um prenúncio de travessia do Estige, esse mítico rio que a alma, após a morte do corpo - e se de tal merecedora - , atravessava para o inferno (entenda-se aqui como inferno, não o de Dante mas o do IPMA ou do AccuWeather).
Bem, este pobre (eu) desconfia.
Façamos como a formiga, que prossegue a sua incessante labuta sem pensar na hipótese de ser pisada por quem passa. O que tiver que ser, é. Ponto, parágrafo.
Falando de outro tempo que não o atmosférico, mas o cronológico, por mais familiar que a situação seja, é sempre de admirar a ductilidade do tempo, que nos permite esticá-lo ou encurtá-lo consoante as circunstâncias.
Utilizando um exemplo muito pessoal e intransmissível, falo dos meus períodos de descanso semanal do trabalho.
Consoante factores que ainda não consegui bem determinar - talvez porque nunca me tenha debruçado a sério sobre o assunto –, há alturas na existência em que esses repousos cíclicos assumem dimensões liliputianas; outras em que a dimensão é, não direi pantagruélica (porque nunca é) mas notávelmente alargada (julgo que o Einstein é o culpado, visto ter sido ele quem elaborou a Teoria da Relatividade).
Assim foi este fim de semana, que, apesar de não ter tido muito tempo para nada (nunca se tem), soube como umas reconfortantes miniférias. Outros fins de semana há, porém, em que o tempo se comprime, de modo a que, mal entramos no período de descanso, estamos logo a saír dele, o que cria uma sensação mais ou menos depressiva de frustração, uma impressão de não-descanso extraordináriamente negativa e óbvia e redundantemente fatigante.
O espaço-tempo estica e encolhe, muitas vezes contra os nossos desejos e as nossas necessidades. Controlá-lo significaria gerir o nosso bem-estar físico e mental. Tal repercutir-se-ia numa melhoria efectiva da saúde e aumentaria a esperança média de vida da humanidade.
Com treino, é possível, mas ninguém se quer dar ao trabalho de o tentar e, contra mim falo, eu também não.
Em suma, sofremos porque assim o desejamos, por protelação e preguiça.



7. out, 2018
Post 97

00h34, domingo, 7/10
Fresco. Um estio prolongado mas moribundo que se e nos tenta enganar com anémicas tentativas de aquecimento. As noites já não têm força, o frio, coadjuvado pelo vento, leva vantagem e, em breve, a sua aliada – a chuva - entrará em campo. Mas, como prognósticos só no fim do jogo, esperemos para ver.
Do alto dos meus 61 anos contemplo a vida. A meus pés a íngreme escadaria que me elevou a este patamar, feita de tempo e vitórias, derrotas e experiências, saber e sacrifício; perante mim os degraus que ainda não subi e que não posso contar, pois estão envoltos em espessíssima neblina.
Do alto dos meus 61 anos não é a vida que contemplo, é o passado que já não é vida. Esta, não passa de uma fronteira, uma linha divisória entre o passado e uma promessa que, como todas as promessas, poderá ou não vir a existir.
Darei o próximo passo? Encontrarei terreno firme ou precipitar-me-ei no vazio(?) do pós-vida, aquela incógnita tão receada?
Direi que todos a temem, embora haja quem o negue. Todos têm receio. Ninguém gosta de dar passos no desconhecido, ninguém aceita verdadeiramente diluir-se na bruma. Podemos não ter medo da morte, mas tememos sempre o desconhecido.
Diz-se que recordar é viver e, ao fim e ao cabo, é verdade; sem memória não há vida, não há céu, inferno ou purgatório, não há sofrimento ou alegria.
É o passado, todos esses muitos ou poucos degraus que subimos, que nos dá a ilusão de existência.


3. out, 2018
Post 96

00h11, 4ª feira, 02/10/18
Fim de verão (já é outono), temperaturas amenas, anúncios de frescura no vento. Temos que nos preparar para o inverno.
No entanto, e atendendo à meteorologia atópica dos últimos anos, este discurso peca por inconsistente. Verões e invernos já eram, perderam toda a tipicidade; as modificações climáticas sentidas e vividas nos últimos decénios, atestam-no.
As estações do ano da minha infância e adolescência andam travestidos, inconfiáveis, como se Zeus os tivesse baralhado como a um jogo de cartas.
Estaremos a fazer juízos de valor errados? Será que “no meu tempo” essas alterações anómalas eram tão recorrentes como agora e a minha visão de velho, a minha memória do passado, prega-me partidas?
Não me posso esquecer que é muito normal a pessoas mais velhas (e não só) considerarem que no seu tempo as coisas eram muito diferentes.
Teriam sido? Ou a memória é uma falsa memória, deturpada pelo distanciamento temporal e pela consequente falta de nitidez?
Todos nós temos memórias falsas, as quais se insinuam imperceptívelmente nas reais, acabando por delas serem indistinguíveis; pseudo-recordações de actos e momentos que nunca existiram mas nos quais acreditamos piamente, e ai de quem nos diga que são apenas fruto da nossa imaginação: ninguém gosta de passar por mentiroso, nem que seja por um acto involuntário, pois fere a credibilidade e o amor-próprio.
Neste caso, no caso do tempo meteorológico, temos um tira-teimas que são os registos históricos. Mas quem se dá ao trabalho de pesquisar e comparar esses dados com os actuais e com as memórias, verdadeiras ou falsas, de quem viveu longas décadas em outras experiências e outros rigores do clima?
Não raras vezes a nossa teimosia prevalece sobre esses dados históricos (para nós, errados) e relatamos climas ameníssimos ou autênticos cataclismos apocalípticos que só existiram com tal intensidade na nossa imaginação.
Todos somos, a nosso modo, Fernões Mendes Pinto e narramos factos mirabolantes que, dependendo da nossa credibilidade social e da nossa capacidade retórica, aliadas a sólidas memórias falsas, são altamente credíveis.
Afinal não estamos, cronológica e mentalmente, assim tão longe daqueles navegantes de antanho que relatavam a existência de monstros terríveis, seres geralmente mais aumentados, modificados e demonizados pela recordação posterior e pelo exagero, o que lhes concedia, por vezes, ainda maior credibilidade.
Continuamos a ser assim e a querer ser assim; basta atentar em certas publicações sensacionalistas e revistas cor-de-rosa, que transformam as lagartixas em crocodilos, os vermes em jibóias, as pintas de sangue em lagos onde se pode andar de barco e os seres humanos em demónios ou megeras.
Quem nunca relatou algum facto passado através de uma lente de aumento, que atire a primeira pedra…



9. set, 2018
Post 95

00h47, domingo, 9 de Setembro
Há planos na nossa vida que nunca foram nada mais senão isso: planos. Muitas das vezes esse incumprimento prende-se com questões monetárias, familiares, de dificuldade ou impossibilidade funcional, etc. Porém, em grande percentagem, essa imobilidade que impede a passagem da teoria à prática, tem a ver com a nossa própria indisponibilidade, cujas únicas justificações são a preguiça ou o protelamento institucionalizado, sistemático.
Existem milhares (exagero) de pequenos projectos, velhos de anos (ou mesmo de décadas), que agora, no “fim da vida” (não é para interpretar à letra), tenho tentado pôr em prática. Pecam por tardios mas, dentro das agora mais reduzidas possibilidades físicas, tento concretizar à laia de “ reformado que faz obras na casa para poder acabar os seus dias com a consciência tranquila de que concretizou os seus sonhos de juventude (?)”.
Pelo texto acima, torna-se evidente que me refiro a projectos de obras, de melhoramentos estruturais ou estéticos da casa onde vivo. Travados pelas mais variadas (e muitas justificadas) circunstâncias, na minha força da idade, acabaram por se transformar num círculo vicioso de adiamentos sucessivos que agora tento reverter. Não é ainda tarde; é, isso sim, pelos condicionalismos da idade, do emprego e da saúde, mais difícil.
Haja força de vontade, essa energia masoquista que nos faz lutar contra tudo e contra todos.


2. set, 2018
Post 94

12h47, sábado, 1 de Setembro
Calor. 33◦ C hoje, durante o dia, e 26◦ C neste momento. O mês de Setembro enunciou-se tal qual o de Agosto: o 1º dia foi “de arrebentar”. Seria bom se se mantivesse calor, um calor aceitável durante este mês, pelo menos para compensar os de Junho e Julho, que foram muito fracos.
Com este clima ameno sabe bem fazer uma caminhada nocturna à beira-mar, sentir a brisa suave e fresca do oceano, fazer parar o tempo num momento de fugaz prazer. Mas tudo passa e essas breves e agradáveis sensações são (es)tragadas pela voracidade do Tempo.
Esse (Chronos, o Tempo) é o verdadeiro Papão da humanidade, chamem-lhe Homem do Saco, Baba Yaga, Bougeyman, Épouventail ou Croque-Mitaine, Schwartz Mann, Ogro, Coco ou Hombre del Saco, Ronca ou tantos outros nomes que povoam a imaginação da maioria das crianças e adultos à superfície do nosso planeta.
Este come-criancinhas é afinal um come tudo e todos, digere-nos a pouco e pouco, sem piedade e sem se fazer notar. Quando dele nos apercebemos, já é tarde, sempre foi tarde logo desde o nosso nascimento, ou mesmo antes. Autêntico buraco negro, suga tudo, mesmo o nosso bem mais precioso – as memórias – , os pilares da nossa existência.
Há, pois, duas coisas positivas/negativas na vida e nas quais esta se resume: o Tempo e a Memória; nenhum deles pode existir ou desaparecer sem o outro, é a simbiose indissociável que move o Mundo, tal como o conhecemos.



29. ago, 2018
Post 93

23h23, 3ª feira, 28/08
Mais umas linhas escritas do meu balcão de trabalho e de (tentativa de) criação literária.
Fim de um verão chocho mas que teve, no entanto, alguns dias bons. Neste momento já se vislumbra o prelúdio de mais um outono que esperamos não seja muito agressivo.
Dentro em breve cessam todas as actividades de veraneio, acabam as férias, quem as gozou volta ao trabalho, quem estuda volta à escola, começa-se a pensar no que é necessário para atravessar a invernia que se aproxima. Enfim, toda a parafernália necessária num país que não é, nem equatorial nem tropical e que tem, por isso, que suportar temperaturas que, embora não extremas, são por vezes bastante díspares entre estações.
Não me posso queixar muito pois, embora não propriamente de carácter lúdico, mas fisioterápico, as minhas caminhadas matutinas pelo Parque da Cidade e praia de Matosinhos têm sido boas e contribuído para elevar a minha auto-estima, a minha saúde física e o meu “bronze”, embora este último ainda contenha uma percentagem maior que o normal de estanho, em relação ao cobre.
E os banhos de mar terapêuticos? Acho que, a não ser no Algarve, há quase 20 anos, nunca tomei tantos banhos em tão curto espaço de tempo (3 semanas). Aproveito sempre para uns sniffs de água do mar, que fazem bem às vias respiratórias, para não falar na descarga energética que tais banhos proporcionam.
“Zé, aproveita enquanto não és tão velhinho” – digo eu a mim próprio – “que só por meteres o dedo grande do pé na água apanhas uma pneumonia, ou já nem força tens e corres o risco de te afogares em 20 cm de água. Isto para não falar no imenso e penoso deserto que terás que atravessar só para chegar à orla do oceano”.
Pois é, nessa altura, mar, só em fotografias ou nas memórias do passado.
De músculos férreos e ossos resistentes passamos a frágeis peças de porcelana de Limoges ou Vista Alegre, que têm sempre que ser muito bem-acondicionadas para o transporte e manuseamento. Os lares de 3ª idade não são mais que prateleiras onde, quais bibelots, se põem os velhinhos para que não se quebrem. Mesmo assim, a fragilidade osteoporótica continua a ser responsável por muitas mortes.


14. ago, 2018
Post 92

23h53, 2ªfeira, 12 de Agosto
Sabe bem passear de manhã pelo parque e pela praia, molhar os pés e, eventualmente, tudo o que está acima deles.
Quando inicio no parque o meu reconhecimento diário, noto sempre algo um tanto ou quanto paradoxal: há, na periferia do referido, 2 ginásios cheios de gente. É evidente que neles existem aparelhos (poucos, a meu ver) que trabalham a musculatura e/ou desempenham outras actividades que não é possível fazer cá fora. Mas… o tapete rolante, a bicicleta, outros talvez de que não me lembro e que fazem as vezes de exercícios que podemos fazer sem ajuda?
É um pouco como ter uma máquina de venda de comida dentro da cozinha de um restaurante ou fazer publicidade à Ryanair dentro de um avião da Tap. Não desfrutariam melhor se corressem ou andassem de bicicleta ao ar livre? Apercebo-me que há quem não saiba andar de bicicleta, tudo bem. Sei que o tapete também não é igual à corrida no exterior. Mas, excluindo os comodistas e os eventuais ignorantes velocipédicos, pergunto: Porquê?
Será status? Será show-off? Será porque é in andar num ginásio ou porque tem todas as comodidades, incluindo cafetaria para repor os níveis de calorias perdidos? É o oposto a todo o conceito de exercício físico, que implica algum sacrifício e contenção.
Pelo amor de Deus (embora eu seja agnóstico), não vamos fazer campismo para um hotel! Do mesmo modo, não devemos fazer exercício num health club (?) paredes-meias com um parque fortemente vocacionado para esse efeito!
É a minha opinião e vale o que vale. Radical, intolerante, pouco conhecedor das razões por detrás deste tipo de comportamentos? Talvez. Mas exerço o meu direito de opinião que, perante a eventual existência de argumentos válidos que se me apresentem, poder-se-á modificar. Para já mantenho o que disse, é a minha convicção. Estou aberto a esclarecimentos.


12. ago, 2018
Post 91

11/08, domingo, 00h16.
Será que subir e descer 52 escadas + 28 e percorrer 100 metros, multiplicado por 3 e a alombar com móveis, substitui o agora usual percurso do perímetro do Parque da Cidade e uma caminhada pelo areal, desde a Anémona ao Paredão e volta (cerca de 5 km)? Ignorando a lombalgia, espero que sim, pois foi o que eu fiz hoje. É mesmo amor ao exercício!
Pois é, de há uma semana até à data, tenho andado a fazer exercício físico mais intenso, a desenferrujar as partes (não as íntimas, tudo o resto), as quais estavam preocupantemente emperradas. Os braços, as pernas (principalmente), a elasticidade abdominal e lombar, tudo estava a necessitar de WD40. Felizmente, parece que estou no bom caminho, já me consigo mover melhor, com menos esforço.
Só há uma coisa que me preocupa sobremaneira: o ventre. Pareço grávido e nem é de comer ou beber muito; julgo que é mesmo da falta de exercício localizado, o que, como acima escrito, tenho andado a tentar colmatar.
Bem, deixando de tratar os meus problemas como se fossem os únicos males do mundo dignos de serem mencionados, passemos de alhos a bugalhos – expressão muito usada no “meu” tempo e que julgo estar a caír em desuso, como tantas outras expressões que, ou deixaram de fazer sentido por o que lhes deu origem já não o fazer (sentido), ou foram substituídas por outras, mais actuais, mais ligadas aos tempos que correm.
(Pedindo desculpa pela tautologia das 2 orações antecedentes, passemos à frente).
Outro dia, por mero acaso, surgiu-me perante os olhos um artigo sobre as origens, modificações e polémicas que, ao longo dos tempos, têm rodeado uma das representações simbólicas do país – a bandeira –, assim como do hino que a acompanha e, a seu modo, mitifica.
Referindo-me apenas ao hino, encontrei uma informação curiosa que julgo virá justificar e explicar uma expressão que referi há algum tempo e que era utilizada pela minha avó e que deduzi, após pesquisas entretanto efectuadas, ser algo negativo: canhão.
Ora bem, não me enganei. Aliás, a conotação dada na sua utilização, pouca margem deixava para dúvidas.
Reportando-me às origens do hino nacional, composto por Henrique Lopes de Mendonça, em 1890, com música de Alfredo Keil, há quem diga que, no lugar dos actuais canhões da letra, estavam bretões, o que era fruto do ressentimento nacional popular (e não só) contra os ingleses, em consequência do polémico ultimato britânico, aquando do projecto português vulgarmente designado como Mapa cor-de-rosa, de 1890, que pressupunha a ligação territorial das 2 colónias ultramarinas de Angola e Moçambique, formando um só território.
Embora desmentido pelo historiador Rui Ramos, essa versão d’A Portuguesa pode, todavia, ter circulado como uma versão patriótica com alguma aderência entre as massas populares.
Seja como for, o hino nacional sofreu algumas modificações ao longo da sua existência, tendo sido finalmente fixada a versão que hoje conhecemos durante a vigência do Estado Novo, mais concretamente em 16 de Julho de 1957, tinha eu três dias de idade. Também convém não esquecer que A Portuguesa é um hino que, embora escrito e musicado no início da última década do século XIX, é intrinsecamente republicano, só foi adoptado após a implantação deste regime político, pois antes era proibido. Em seu lugar existia o chamado Hymno da Carta (grafia da época), de 1834.
Bem com tantas considerações, perdi o fio à meada, já nem Ariadne me pode valer. Há, entretanto, outros assuntos que exigem a minha atenção e que não posso protelar por mais tempo. Fico por aqui.



7. ago, 2018
Post 90

01H13, 6 de Agosto, 2ª feira
Eis-me de novo a escrever. Sobrevivi à fornalha marroquina que assolou o país na última semana. De (micro-)vaga de calor semelhante não tenho memória. Ou antes, tenho uma ténue recordação de temperaturas dignas do Hades em anos recuados, mas que, pela sua invulgaridade, se vão diluindo no passado e confundindo-se com a fantasia própria das memórias longínquas que, num esforço de recordação, acabamos por transformar em algo em parte ficcional e de cuja veracidade já nem nós temos a certeza.
É assim que se criam os mitos, os contos de fadas, as histórias heróicas dos nossos antepassados que, de simples figurantes de um acto de uma peça do teatro da vida, perdidos num passado que maioritariamente desconhecemos, passam a personagens importantes, quando não principais.
É assim que o trisavô (que nem sabemos bem quando nasceu, morreu e onde) se transforma de cabo em general, de pedreiro em arquitecto, de curandeiro em médico, de lavrador em nobre. As histórias de família reinventam-se, do nada faz-se um herói.
Do mesmo modo, das temperaturas que mal fazem subir dois centímetros no mercúrio do termómetro (agora são digitais) criam-se tempestades de fogo apocalípticas dignas de figurar nos anais do Guiness. Somos assim: uns exagerados.
Pois bem, dessas pretéritas temperaturas que fariam o meu forno da cozinha corar de vergonha, passámos para valores que, embora um pouco baixos para a época, são perfeitamente aceitáveis, confortáveis até.
Na frente do prédio, fruto de um ventinho fresco que surge esporádicamente a varrer os resquícios das poeiras do Sara, vejo, nas árvores, formas animalescas ou antropomórficas, fruto da minha imaginação e da aglomeração peculiar das folhas. Vejo um urso, que pode simultâneamente ser uma hiena, ou um burro, ou um cão, a agitar as patas da frente, empinadas, e um focinho que mau grado se agite inquieto, não projecta medo.
As árvores são como nuvens agarradas à terra, assumem as formas que a imaginação molda. São, porém, menos volúveis; assumem, pela sua natureza, papeis mais duradoiros. Formas não voláteis, mais fiéis ao pensamento que lhes deu forma. As nuvens são caprichosas, recusam-se a assumir identidades de longa duração: o que era um elefante há cinco minutos, é agora um automóvel ou um vaso c/ flores.
Felizmente na natureza nada é estático e esse movimento aparente permite-nos criar sonhando.


24. jul, 2018
Post 89

01h07, 24/07, 3ª feira
Eis-me de novo virado para a janela do meu pequeno mundo, o diminuto universo que abarco com o olhar, daqui, do meu posto de observação.
Os seres humanos têm uma capacidade, dir-se-ia infinita, de não “enjoar” a visão repetitiva a que frequentemente estão sujeitos, seja em casa ou no trabalho ou em qualquer outra situação.
Esse é o meu caso: faz 4 anos que tenho como pano de fundo sempre a mesma paisagem estática – os mesmos prédios, os mesmos postes de iluminação, a mesma rua, o mesmo passeio, o mesmo horizonte celeste, limitadamente visível.
Mas as paisagens não são estáticas, não são pinturas ou fotografias, há sempre elementos que quebram a sua monotonia. Podem estar sempre os mesmos veículos estacionados, porém em diferentes lugares; podem existir as mesmas árvores, mas vão crescendo e ganhando ou perdendo folhas ao correr das estações do ano e vão sendo sacudidas suave ou violentamente por brisas ou tempestades; pode chover, estar tempo seco ou nevoeiro. Em suma, a paisagem não é estática, é simplesmente lenta, funciona a um ritmo cineticamente diferente do nosso e é isso que a faz parecer o que não é. Se calhar é também por isso que não a enjoamos.
E agora, muito Montypythonicamente, algo que não tem nada a ver):
Onde reside a originalidade? No génio? No acaso? Nalguma predisposição genética ou malformação (bemformação) cerebral?
Por que não somos todos originais? No fundo somos todos, mas não no sentido criativo; digamos que somos medíocre ou medianamente originais. Certo é que se fôssemos todos “fora de série”, a vida seria de uma insuportável sensaboria. O incentivo da originalidade consiste na diferença qualitativa, no rasgo, em fazer algo que ninguém fez, em criar.
Aqui, entram muitos factores: a autoestima, a vaidade, o orgulho, a filantropia, o ódio, a necessidade de ser diferente, de se destacar da mediania, o prazer, o amor. Todos estes factores, isolados ou em diversificadas combinações, fabricam a originalidade. Todo o efeito tem uma ou várias causas, fruto de uma intencionalidade, por vezes camuflada, por vezes ostensiva. A arte não surge de borla, tem um custo emocional.



19. jul, 2018
Post 88

23h55, 18/07, 4ª feira
 Pois é, mais uma vez sobrevivi ao meu aniversário, against all odds. A percentagem de sucesso reduz-se cada vez mais por cada ano que passa. É a lógica ilógica da passagem do tempo, responsável pelo expirar da data secreta do nosso prazo de validade. Seja como for, 61 já cá cantam, ninguém mos tira.
O que escrever, como escrever? Aguardo sempre aquele rasgo de génio que espreita a cada esquina do nosso percurso existencial. É arisco, fugidio, sempre que o julgamos ter alcançado quando dobramos a tal esquina de onde o vimos a espreitar, ele já lá não está, avançou para a seguinte. É volátil, etéreo, por vezes quase que o apanhamos, mas ele escapa-se-nos por entre os dedos.
 A maioria dos mortais passa a vida a vê-lo a espreitar, alguns nem isso. Fate.
Depois das minhas recorrentes considerações filosóficas, volto ao velho problema: escrever e o quê.
Parece fácil, há montes de assuntos sobre que escrever. Também há paisagens maravilhosas, temas cuja captação óptima depende das definições que aplicamos ao aparelho fotográfico (ou gráfico). Porém falta algo, a sensibilidade de escolher o ângulo certo, a luz, a perspectiva, o momento. …e o génio fugidio!
Todos esperamos por Godot. Ele virá por nós?


10. jul, 2018
Post 87

Domingo, 01/07, 00h24
De vez em quando vêm-me à memória flashes do passado; não apenas imagens ou situações, mas frases, ditos populares, modos de dizer e fazer que hoje já não farão sentido.
Sinto-me medievo perante a juventude de hoje, do mesmo modo que a geração anterior à minha se terá sentido a respeito daquela a que pertenço. Quando se é novo, tudo o que é precedente é bota de elástico (expressão mais que anacrónica que já no meu tempo o era), antiquado, desatualizado. É e será sempre assim de geração em geração, não tenhamos dúvidas.
Tem lógica, cada nova fornada humana - e usando termos informáticos (sinais dos tempos) - faz upload de software novo, actualizado. Porém, tal como o material informático, chega uma altura em que já não há actualizações e aí é o ponto de partida para a obsolescência, não importa o volume da informação que se contenha.
Isso já é outra coisa. Esse conhecimento, esse saber precioso que a vida vai dando para o nosso armazenamento ilimitado, é muito importante, mas pouco conta para os novos modelos. Deveria contar.
Teho a certeza que o que penso agora acerca disto já foi pensado por incontáveis gerações antes de mim; e eu, no meu tempo, também não quis saber, o que contava era o novo, a novidade. Poderia ter contrariado a corrente? Impossível, faz parte do aprendizado individual da maioria das formas de vida sencientes e é o motor empírico da evolução.
Seria esta mais rápida se se aproveitasse a informação já disponível? Sim, seria. Mas não é assim que funciona. A nova vida em desenvolvimento é demasiado presunçosa para aceitar a experiência das anteriores.


25. jun, 2018
Post 86

23h35, domingo, 24/06
Dia de S. João, do calendário católico, o santo que devia gostar de sardinhas e alho porro.
No “meu tempo” (como se o tempo fosse algo que me tivesse alguma vez pertencido) dava-se com o alho porro – a flor – na cabeça das pessoas; o martelo já existia (desde 1963) mas ainda não tinha expressividade, não fazia ainda parte da tradição.
Era um quase aflorar, um leve toque do alho, como uma investidura na ordem dos foliões de S. João; não como agora em que é necessário um movimento mais rápido e forte para que o sucedâneo estilizado e plastificado da planta original produza o seu efeito musical.
Aliás, o simbólico vegetal partir-se-ia se fosse lançado com força contra o objectivo.
Os carecas eram o seu alvo preferido; era vê-los a roçar os crâneos alopécicos aos 3, 4 e 5, numa orgia de cabeças.
Outra tradição era o raminho de cheiros, geralmente de erva-cidreira, que se fazia passar imprevistamente pelo órgão pituitário do folião ou foliona desprevenidos. É claro que também havia uma versão aromática mais desagradável, feita com outras plantas ou com algum produto que, aspergido no ramo, pudesse fazer surtir o efeito desejado.
Mas tudo isso eram outros tempos, outras tradições, seguramente outros caminhos da História, como diria Joel Cleto, o nosso mediático historiador.
Não fui à Baixa porque estava a trabalhar. De qualquer dos modos, também não iria. É muita confusão e agora, à medida que se envelhece, quer-se cada vez mas sossego e descanso. Não porque nos deixemos derrotar pela idade, mas porque é assim. Os interesses, as prioridades mudam, muda o modo de ver o mundo, muda o modo de usufruir dele. Já não queremos ser actores no filme da vida, preferimos ser seus espectadores. Não que o nosso tempo tenha passado, mas interagimos mais estáticamente, mais analiticamente, somos os seus críticos e não os seus autores.


13. jun, 2018
Post 85

06h57, 3ª feira, 12/06/18
Há dias em que apetece escrever; hoje é um deles.
Não sei o que irei grafar nesta folha que converterei mais tarde em Word e farei desaparecer, como por artes mágicas, algures num espaço virtual do éter.
Magia negra, bruxaria, pacto com o diabo! Consequência: fogueira. É do que seria acusado e o que me sucederia se e caso me fosse possível cronotransportar e teletransportar para o passado, para a Idade Média, junto com o meu computador ou smartfone. Claro, devidamente carregados pois a demoníaca energia eléctrica só surgiria algumas centenas de anos depois e mostrá-la seria mais uma acha na fogueira onde me queimariam.
Escrita virtual? Satânica manifestação que muitos jurariam ter visto materializar-se (?) envolta numa terrível nuvem de fumo que emanava do objecto demoníaco, acompanhada pelo fétido e indispensável cheiro a enxofre, vindo das profundezas do Inferno. Um efeito cénico e olfactivo que o diabo certamente não dispensaria, pois fazia parte da sua manifestação teatral para atingir a verosimilhança e o efeito catártico preconizado por Aristóteles.
Enquanto o diabo esfrega um olho – passe a expressão – surpreender-me-ia na margem do Estige, esperando que a barca de Caronte me transportasse para o Hades e confiando que o barqueiro me aceitasse o pagamento em euros.
Triste fim morrer grelhado como se fosse um porco…
Voltando à vaca fria (velha expressão em desuso) e retornando à gatafunhagem desta folha de papel que em breve, como já dito, tornar-se-á virtual, continuo sem saber o que dizer (escrever). Limito-me a ir escrevendo ao sabor dos pensamentos que me vão surgindo.


14, mai,2018
Post 84

00h09, 4ª feira, 13/06/18
Fui ontem obrigado, por motivos de serviço, a fazer uma IVG (interrupção voluntária de grafia) e que, apesar de voluntária foi, ao fim e ao cabo, involuntária, pois eu não queria interromper o que estava a escrever, embora voluntariamente o tivesse feito.
Bom, deixemo-nos de silogismos e recomecemos a grafia. Não confundamos com grafagem, que é a soldadura das peças de uma máquina, geralmente a carroçaria de um automóvel.
Estou às voltas com uma recensão crítica do ensaio de Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo. Neste, o autor pinta um quadro muito negro do estado da cultura no mundo actual.
Diz ele que já não há cultura, que esta foi transmutada em espectáculo, que o nivelamento da dita, para a tornar acessível às massas, foi feito muito por baixo, dando origem a que, agora, todos somos cultos e ninguém é culto.
Não deixo de lhe dar razão, embora em certos aspectos ele exagere na sua visão catastrófica.
Porém, no tocante ao abaixamento da fasquia daquilo que se entendia por cultura, é real, infelizmente real. Não que eu encare isso segundo uma perspectiva elitista (que defendo) mas apenas perante o senso comum. Exemplo disso é o que até agora se fez no campo das habilitações literárias (as tais 2ªs oportunidades), onde se saltaram vários níveis de ensino para atingir o almejado 12º ano através de um curso ridiculamente simplificado e pelo qual pessoas quase analfabetas são agora detentoras, por equivalência (!!!), da invejada escolaridade mínima obrigatória.
Não que quem o fez tenha alguma culpa, mas tal equivalência é um insulto à cultura e a quem se esforçou, ano após ano, para lá chegar. Mais valia estes últimos terem interrompido os estudos na 4ª classe e depois, em 2 ou 3 anos, ficarem milagrosamente aptos para entrar na universidade. Chegar-se-ia assim à consecução plena do significado do dito popular: “um burro carregado de livros é um doutor”.



14. mai, 2018
Post 82

07h02, 14/05/18, 2ª feira
Não está frio, mas molinha desde as 4 horas; é um daqueles dias nevoentos e melancólicos.
Já não escrevo há 25 dias, não tenho tido tempo nem disposição. Então a semana passada, com a Queima… nem é bom lembrar.
De qualquer modo e até ao fim do ano lectivo ser-me-á muito difícil escrever com regularidade, visto ter trabalhos para entregar, trabalhos esses que requerem muita concentração, muito estudo, muita investigação e tem havido dias em que nem tenho conseguido raciocinar devidamente porque o cansaço embota-me o discernimento. São sinais da idade, agravados por outros factores como o horário de trabalho e…. a idade.
Dia 8, terça-feira passada, morreu o homem que propiciou o início das minhas crónicas; sem ele, talvez nunca as tivesse começado a escrever.
Chamava-se Filipe e contratou-me para as entregas ao domicílio do Restaurante Paraíso, na rua com o mesmo nome. Filho da Lapa, aí nado e criado, era uma alma generosa, estimado por todos e a quem eu considerava um amigo quase (talvez mesmo) íntimo logo desde o início. Detentor de uma personalidade cativante, bondoso, honesto, alegre, bom marido e bom pai, era um empreendedor inteligente, um “fura-vidas” que julgava(mos) que teria à sua frente um futuro promissor e duradouro. Enganou-se.
Um cancro no fígado (paradoxalmente, não fumava nem bebia), já demasiado metastizado, tardiamente diagnosticado (em Fevereiro) e com um tratamento desatempado (início de Abril) – que nem chegou a ser iniciado, por tardio – ditaram o seu fulminante declínio e morte e o fim dos seus sonhos. Tive o privilégio de ainda o poder visitar, há cerca de 1 mês e 1 semana, não adivinhando que seria o nosso derradeiro encontro, a nossa última conversa. É dos poucos seres humanos que conseguiu, pela sua personalidade, ficar gravado no meu coração. A ele deixo esta breve mas expressiva homenagem.



19. abr, 2018
Post 81

23h48, 18/04/18, 4ª feira
Voltou a primavera ou, pelo menos, já se levantou a ponta do véu de chuva e frio com que até agora se encontrava coberta.
Já apetece viver de novo, libertos do pessimismo cíclico que nos envolve ao vermos aproximarem-se as amplas redondezas do equinócio de inverno. Bem, regra geral.
Tive um professor de português no 5º ano liceal (actual 9º) que era o paradigma do paradoxo: em dias de chuva, de invernia, era vê-lo alegre, bem-disposto, activo; quando fizesse bom tempo vestia-se de escuro, mal-disposto, nada simpático, carrancudo. Excepções à regra….
Não que eu goste particularmente do calor do verão, pelo menos do verão do Norte; é pegajoso, incomoda com tanta humidade. Já mais para o Sul é razoavelmente tolerável, é seco, não se sente o incómodo da roupa colada ao corpo.
No entanto, o verão é mais triste a Sul, mais propriamente Centro-Sul (pelo menos no nosso e no de Espanha). É desolado, desértico, monocromático, com depressivos tons de palha e ocre.
No Norte é o verde que domina. São os nossos mini-trópicos, com toda a sua carga clorofílica mas também, infelizmente, toda a sua carga hídrica volátil (leia-se epidérmica).
E do inverno, podemo-nos queixar? Antes de o fazermos, olhemos para o Canadá, a Sibéria, ou mesmo Nova York (a nossa Serra da Estrela ou o Marão são fracas amostras).
Agora ponhamos a mão na consciência e respondamos. Afinal o Diabo não é tão mau como o pintam.
Contudo, para quem nunca sentiu dor para além da picada de um alfinete, uma injecção é tortura. Tudo é relativo, o nosso inferno pode ser o paraíso dos outros.


11. abr, 2018
Post 80

23h28, 10/04/18
Tenho um pouco de sono, dormi mal. Bem, o meu sono, actualmente, não é de grande qualidade, basta para tal dormir de dia, contrariando assim os ciclos circadianos.
Dia em que durma bem, noto-o no meu desempenho físico e intelectual: as ideias fluem, os músculos respondem mais eficientemente, o esforço crónico e, por vezes, alguma dor ou desconforto, decorrentes das sequelas do meu episódio vascular dos inícios de 2016, atenuam-se. Aprendi a viver com essas maleitas, mas cá no fundo ainda sinto uma certa amargura. Nada a fazer, apenas seguir em frente.
Ao prosseguir os meus estudos, apercebo-me que o chão que piso está cheio de fracturas, de soluções de continuidade evidentes e penosamente lesivas da eficácia da aprendizagem. Usando uma metáfora: circulo na senda da cultura com os pneus mal cheios.
As 3 dezenas de anos (grosso modo) que interrompi e negligenciei esse bem precioso que é o conhecimento, estão a dar frutos, porém tocados, ameaçados pelo bicho da ignorância que deixei que se instalasse no período de inflorescência e maturação.
Sinto agora a falta que me faz essa continuidade cultural: obras que deveria ter lido, temas sobre os quais deveria ter-me debruçado, enfim…Uma miríade de actos ou processos de conhecimento simplesmente ignorados ou desperdiçados.
Não se deve chorar sobre leite derramado, é certo; mas choro essa Hagia Sophia que perdi, maioritáriamente por culpa própria.
A ignorância gera ignorância, mas não nos isenta de culpa; mesmo aos ignorantes dever-se-ão imputar responsabilidades por não pensar, por não utilizar o senso comum, por não reagir à sua própria estupidificação progressiva.
Sei que ainda não é tarde, que nunca é tarde, mas, como dizia Ricardo Araújo Pereira, não é a mesma coisa.
Tenho actualmente grandes dificuldades na prossecução de um esforço voluntário de conhecimento: idade, situação laboral (trabalho à noite, com o cansaço e a falta de tempo decorrente), falha de algumas bases culturais relevantes. No entanto, tenho tido bons resultados e isso incentiva-me a continuar. Além do mais, no tocante à absorção de cultura em geral, procuro ser uma esponja.



10. abr, 2018
Post 79

23h35, 9/4/18
Passaram hoje 100 anos desde o fatídico dia em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado na batalha de La Lys, em França, na I Guerra Mundial. Já não haverá ninguém vivo que tenha sofrido na pele, na 1ª pessoa, este acontecimento trágico.
Que nos diz esta data, a nós, nascidos maioritáriamente na 2ª metade do séc. XX? Relativamente pouco. À parte esparsos laços geneo-históricos (desculpando o neologismo), como é o caso do meu tio-avô Aníbal que participou na I Guerra como oficial-médico e que faleceu novo, 23 anos antes do meu nascimento, em consequência da inalação de gás mostarda lançado pela facção alemã, essa data perde-se no passado, é-nos tão pouco relevante como a Implantação da República ou a Guerra Peninsular, do mesmo modo que as Invasões Francesas o foram para os revolucionários republicanos.
São factos importantes, é certo, mas apenas num contexto histórico, impessoal, como parte episódica de uma herança cultural que vai perdendo, ao longo dos tempos, os laços de proximidade que tenha eventualmente mantido connosco ou com os nossos antepassados mais próximos.
O mesmo de poderá dizer de D. Afonso Henriques ou da Restauração; são datas importantes, mas meramente a título histórico, cada vez mais “curiosidades” do que relevâncias.
A Revolução dos Cravos está-se também progressivamente inserindo nesta categoria das curiosidades: 44 anos após o seu acontecimento e exceptuando a nós, suas primeiras pessoas, é já algo que pouco diz às gerações pós-revolução, as quais só conhecem meras “estórias”, contadas pelos seus pais ou avós.
A relativização temporal da história “mata” a própria história.
Viriato ou D. Afonso Henriques, o Semeador ou o Desejado, o Mestre de Aviz ou o Navegador estão conceptualmente tão longe de nós como Noé, Maomé ou Jesus Cristo, Alexandre O Grande ou Nabucodonosor, Xerxes ou Platão, tornando-se cada vez mais episódios de ficção histórica.


2. abr, 2018
Post 78

00h00, 2 de Abril de 2018
Vagueio pelos mais antigos e esconsos arquivos da minha memória, procurando algo a que me agarrar para manter activas as recordações nostálgicas do passado.
Não que seja saudosista (?? Quem não é?), mas sabe tristemente bem recordar os momentos felizes do arquivo, os quais, a não serem pelo menos esporádicamente utilizados, têm tendência a apagar-se definitivamente, como uma velha cassete que se vai desmagnetizando com o tempo.
Todos temos um pouco de Alzheimer inato na nossa estrutura mental, o que é tão destrutivo para os registos de memória como aquele com que nos vamos acostumando cada vez mais a ver à nossa volta e que nos pode dramática e irremediávelmente transformar em seres vegetativos, se não nos matar antes. A única diferença é que o nosso Alzheimer natural apenas apaga os arquivos de memória antigos e não afecta o resto do cérebro ou do corpo no seu todo; o outro, o mais temido, afecta tudo e, o que é mais triste, vamo-nos apercebendo disso, tomando consciência e sofrendo com a percepção de que lutamos em vão contra algo que nos vai inexorávelmente destruindo.
Ainda há dias estive a ler correspondência pessoal, recebida e enviada há 40 anos. Grande parte da informação que recolhi, se não estava já definitivamente apagada, estava apenas suspensa por um ténue fio em vias de quebrar. Relembrei coisas que já quase tinha esquecido, outras de que não tenho a mínima recordação, algumas que ainda mantenho.
Relembrar o passado é mantermo-nos vivos. Sem ele não há vida senciente, há apenas seres que existem porque comem, respiram e o coração bate, nada mais.
É uma falácia dizer que o passado é passado, que não interessa. Sem ele de que valeria viver? Nós somos as nossas memórias e as dos nossos ancestrais. Todas as sociedades têm o seu culto dos mortos, não para se lembrarem deles, mas para preservarem a memória que eles representam.
 Após mais esta pequena pérola expositória do meu dark side, acho que por hoje nada mais tenho a dizer.



21. mar, 2018
Post 77

23h50, 20/03/18, 3ª feira
Frio médio sem chuva. Ponto. Ausência de vento. Ponto. Céu parcialmente limpo. Ponto, parágrafo.
Lacónico e tautológico. E meteorológico.
O tempo já não passa nem flui: corre. A vida orgânica prossegue ao mesmo ritmo, o que até seria bom em termos desportivos – de fitness, como sói dizer-se – mas a nível fisiológico, de suporte de vida é, no mínimo, preocupante.
Não que não saiba o que nos espera a todos, mas a preparação psicológica que acompanha o envelhecimento não tem em mim a mesma pedalada, ou seja, ainda não me sinto preparado para terminar pacificamente as minhas funções vitais.
Porque é que tudo o que escrevo toca na morte física, porque é que tudo acaba na morte?
Penso que a maioria das pessoas tem horror à morte e evita falar nela. Porém, o “inimigo” tem que ser encarado com realismo, com a consciência de que existe e de que mais cedo ou mais tarde o enfrentaremos. Não há que fugir pois não escapamos.
Longe vai o tempo em que, jovem, pensava ser imortal; visão quimérica que eu alimentava e que com o amadurecimento mental foi desaparecendo progressivamente. Pois que melhor haverá que, para aceitar o término, falar nele como de um conhecido, tratá-lo por tu? Assim, quando ele chegar, e se de tal dermos conta, será como o reencontro entre dois velhos amigos.
Blá, blá, blá, muito lindo no papel, quero ver quando chegar a altura do frente a frente. Quase nunca são fáceis esses reencontros. Como será? Vou esperar (claro) para ver.


8. mar, 2018
Post 76

03h57, 5ª feira, 08/03/18
Estou num impasse: sem vontade para ler ou estudar, nada. Tanto que posso fazer e nada me apetece.
Há dias assim (ou noites, no meu caso), dias em que apenas nos apetece pastar, ceder ao spleen e stressar por o termos feito, ficando com uma sensação de vazio, de inutilidade, de tempo inglória e irremediavelmente perdido.
São aqueles momentos que nada rendem e não e nem nos esforçamos para que o façam, são horas sabáticas a que nos entregamos com a plena consciência que nos sabem depressivamente bem e frustrantemente mal.
Conformo-me. À medida que envelhecemos, habituamo-nos a “comer” coisas das quais antigamente nem o cheiro suportávamos. Há quem lhe chame a sabedoria da idade….
Tenho saudades dum certo “antigamente”, da inexistência dos telemóveis e dos computadores, das televisões de canal único, dos cafés tradicionais e das conversas com os amigos para passar o tempo. Não que eu seja antiquado ou retrógrado mas porque se era mais focado no mundo que nos rodeava. Hoje é-se generalista, numa conotação geralmente negativa, ou seja, sabemos um bocadinho mínimo de tudo mas acabamos por não saber nada de nada; não há aprofundamento, não há verdadeiro interesse no que nos rodeia. É como se em vez de termos um jardim, olhássemos de passagem para a montra da florista.
Quero com isto dizer que, embora tenhamos o mundo na mão por intermédio do monstruoso volume de informação ao nosso dispor através da internet, jornais, revistas, televisão, rádio e milhentos outros processos de actualização, nada conseguimos fixar ou saber em profundidade, somos como crianças numa loja de brinquedos ao fim de um par de horas: é tanta a diversão que até chateia, deixamos de lhe prestar atenção.
É isso o mundo de hoje, é isso que me faz ter saudades desse “antigamente”, onde havia tempo para ler, brincar, estudar, ter um hobby, passear e cultivarmo-nos; hoje passamos a vida agarrados ao computador ou à TV e, quando os largamos, ficamos vazios, pouco ou nada conseguimos assimilar ou aprender.
O grande problema é que nos tornámos junkies da tecnologia e dos media, fomos sendo progressivamente, imperceptivelmente, formatados há muito tempo, já não vai lá nem com uma desintoxicação. Sabe-se de tudo sem verdadeiramente saber de nada, há excesso de informação e os nossos flippers estão sempre a dar tilt.
É caso para implorar: “Salvem-me do progresso!”



4. mar, 2018
Post 75

Sábado, 23h53, 03/03
 Back in business, os dias de descanso passam muito depressa. No entanto, faço o reparo de que a sua qualidade tem melhorado a todos os níveis, o que depende sobremaneira da minha predisposição mental. Digamos que a qualidade e eficácia de um período de repouso assenta maioritáriamente num modelo que vai sendo optimizado empiricamente, permitindo, através de múltiplas experiências, encontrar uma fórmula cada vez mais aperfeiçoada de o pôr em prática. Não há uma ciência, não há um módulo único, um processo específico de repousar eficiente e satisfatóriamente; tudo resulta de tentativas sucessivas que visam obter, retirar o melhor partido das circunstâncias em que se desenrolam e que estão em constante mudança, permitindo e obrigando à reformulação das suas premissas, que são muito pessoais e intransmissíveis; ou seja, o nosso modelo de obtenção das condições mínimas satisfatórias para um repouso eficiente, não pode ser utilizado como uma regra válida para todos, não é nem pode ser um medicamento que interage com outros indivíduos como connosco, uma panaceia universal. Cada vivência, cada circunstância temporal e psicológica, é única e intransmissível, não obedece a nenhuma regra específica e não pode ser tratada por nem como nenhum genérico.
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Cortei por alguns minutos o Fio de Ariadne e já não consigo retomar a ponta perdida nos labirintos do meu pensamento. Não tem muita importância, o essencial está escrito, pouco ou nada haveria mais a dizer.
Tenho à minha frente uma longa noite. Não a Longa Noite Fascista, como apelidavam, no pós-25 de Abril, o período de vigência de 48 anos do Estado Novo, mas uma longa noite de vigília (que também não é Pascal) cujo objectivo é, como sabido, a vigilância de pessoas e bens, motivo pelo qual sou remunerado.
Vigência, vigília, vigilância. Curioso como inadvertidamente consegui juntar 3 vocábulos, aparentemente com a mesma raíz semântica, num único parágrafo. Não é muito comum.
Só me faltava referir uma palavra semelhante, que é o nome do colega que geralmente me rende de manhã, ou seja, Virgílio (não o autor da Eneida, outro). Para não iniciar outra similaridade semântica, não aponho nem mais uma vírgula, mas um ponto final, fazendo assim um ponto final ao que tenciono escrever hoje.
 Ipso facto, chau.


01, mar, 2018
Post 74

00h11, 01 de Março 2018
Já não escrevo há muito tempo. Está na hora de pôr em dia (ou antes, em noite) os meus escritos, tempo de grafar a minha “prova de vida”.
Começando, como quase sempre, com o boletim meteorológico, relato que o Inverno parece ter finalmente chegado, há dois dias. Chuva, vento e frio, queda de neve nas terras altas e queda de árvores um pouco por todas as terras. Parece que a estação acordou finalmente da sua longa letargia.
 Deitando agora a meteorologia para trás das costas – claro que é uma metáfora, senão ficaria com as costas todas molhadas e apanharia quase de certeza uma pneumonia, podendo eventualmente obter assim um passaporte para ir desta para melhor. Felizmente sou masoquista e não quero ir para melhor, prefiro manter-me onde estou o mais possível. O Além não pertence ao Espaço Shengen, não poderia ir e voltar quando quisesse. Digamos que o Além é um espaço (será?) de onde os seus cidadãos não podem sair livremente, uma ditadura tipo “Hotel Califórnia”, onde you can check out any time you like, but you can never leave.
Mas, dizia eu, deitando metafóricamente o tempo para trás das costas, vou falar de outra coisa qualquer que me venha à cabeça, uma qualquer dissertação sobre algo ou sobre nada (será possível dissertar sobre nada?).
Posso começar por referir que ontem saíram os resultados da disciplina de mestrado que estive a frequentar na Faculdade; não me querendo gabar, gabando-me, conquistei o “tri”, ou seja, é a 3ª vez consecutiva que subo ao pódio no 1º lugar, desta vez ex aequo com outros(as) colegas. Fiquei satisfeito, aumentou a minha bagagem cultural e o meu ego, deu-me forças para continuar. Não que me sirva para nada, pois não conto com esta idade utilizar os conhecimentos que adquiri, uma vez que a sociedade considera-me refugo, algo que só terá valor numa loja de antiguidades, e mesmo assim… Bem, por este andar, qualquer dia necessito de um contentor para levar a dita bagagem.
Deixando o intelecto e voltando à condição de simples mortal, nada há a assinalar. A minha condição física mantém-se quase estática, com um desenvolvimento, não direi mínimo, mas minimalista, a passo de caracol – embora os caracóis não deem passos, deslizam, por um processo que já esqueci, guardado nalgum arquivo morto da minha memória, na secção de “Ciências da Natureza” do antigo 4º ou 5º ano liceal ou até talvez do Ciclo Preparatório.
Estou convencido que a manter-se a progressão neste ritmo, quando for mesmo velhinho, lá para os 90 anos (se lá chegar, o que duvido), poderei ir ao encontro do Criador de boa saúde e na posse de todas as minhas faculdades locomotoras. A única coisa que eu desejo é que a caixa de comando, a centralina, se mantenha em boas condições, até me levar para a derradeira sucata. Depois… um bom apetite para os bichinhos, que lhes saiba bem o bife tártaro ou a carne assada, a preparação já não dependerá de mim.
Tenho dito.


7. fev, 2018
Post 73

06/02/18, 3ª feira, 23h27
Continua o frio, mas não chove, o que começa a tornar-se preocupante, porque as barragens ainda estão vazias. Este ano é um pouco a antítese do trágico 2001, ano em que a ponte Hintze Ribeiro, em Castelo de Paiva, caiu. Entre novembro de 2000 e março de 2001, choveu quase ininterruptamente, tornando este o período mais chuvoso desde o longínquo ano de 1900.
Ainda estamos no período límbico em que acreditamos que este ano vai superar as espectativas quanto à melhoria das condições gerais de vida , muito particularmente, as nossas. É o sonho do mito, do qual só acordaremos quando finalmente, mais mês, menos mês, nos tivermos convencido de que irá ficar tudo mais ou menos na mesma, como nos anos precedentes.
É cíclico, lá para dezembro voltaremos a sonhar. Chama-se a isso Esperança que, como todos sabemos, é sempre a última a morrer. Entretanto, vamos culpando ou agradecendo à sorte ou ao destino, a Deus ou aos Vates, às bênçãos ou ao mau-olhado, os sucessos ou revezes que nos forem acontecendo. Somos animais de crenças, muitas delas irracionais, mas que para nós fazem todo o sentido, mesmo sabendo ou suspeitando que sejam falácias. É a Fé, e esta move montanhas.
Portanto, com uma fé que move montanhas e uma Esperança que é a última a morrer, que nos pode acontecer de mal?
Tudo!


6. fev, 2018
Post 72

06/02/18, 3ª feira, 03h55
Hoje, sem mais nem menos, abruptamente, de modo inesperado e sem contar, decidi-me a criar uma nova página no meu pseudo-blog; chamei-lhe (In)vulgaridades. Aí, insiro palavras (in)vulgares da língua portuguesa, sua origem e significado.
Sempre gostei de conhecer (e utilizar) palavras novas que muitas vezes conduzem a novos significados, novas interpretações, ou que aprimoram a definição das antigas, das que sempre usámos com o mesmo significado ou equivalência. São palavras “novas” que podem ser usadas em benefício da compreensão dos textos, da mesma maneira que usamos alguns neologismos, palavras inventadas ou termos importados. São por vezes palavras cujo significado abarca conceitos que, de outro modo, teríamos que grafar mais extensivamente, com mais palavras. Assim, constituem um enriquecimento linguístico, ao fazerem parte da nossa bagagem cultural.
Entretanto, na página Pensa/mentos, vou acrescentando poemas, aforismos e citações que aí mereçam ser transcritas.
A noite apresenta-me hoje um panorama acústico invulgarmente silencioso. Dá a impressão de que, quando faz frio, os sons retraem-se, como se não se quisessem expor a tão baixas temperaturas. Há muitos anos que me apercebo desse fenómeno. Parece que a natureza se recolhe, numa espécie de hibernação.
Não estou a inventar, nas noites frias tudo emudece, o silêncio sobressai, numa espécie de calmaria simultaneamente desagradável e orgásmica. Para mim, este tempo frio desperta-me uma certa melancolia, construída com as histórias da minha meninice e juventude, com as aventuras rocambolescas de Ponson Du Terrail e as descrições românticas e aventurosas de Júlio Verne. São escritores que contribuíram bastante para moldar o meu percurso literário, não esquecendo também, noutras vertentes de leitura, nomes como Henry Dalton e Philip Gray, Emílio Salgari, Philip K. Dick, Robert Heinlein, Ursula K. Le Guin e tantos outros que seria fastidioso enumerar. Ao meu pai, esse devorador de livros, e a esses escritores, devo a minha apetência pela leitura e a minha “obsessão” pela aquisição de livros, alguns dos quais, provavelmente, nunca conseguirei ler.
 Tenho um desgosto avant la lettre: temo que a geração que me vai suceder na linha temporal encare a biblioteca que fui criando (ou antes, que fui acrescentando à de raiz) como um estorvo, como algo sem utilidade, um mono a despachar. O futuro, esse futuro do qual já não farei parte, o dirá.



1. fev, 2018
Post 71

24/01, 4ª feira, 00h12
Tão depressa passou janeiro! Na verdade, o relógio mental, com a idade e com o uso, deve ter as molas mais frouxas e acelera muito. Sim, porque o meu relógio ainda é dos antigos, de dar corda, desgastou-se com o uso.
Se hoje pudesse voltar atrás no tempo, para a minha juventude, gostaria de ter sido pintor (de quadros, não de paredes). Sinto que não consigo exteriorizar tudo o que me vai no íntimo e pintar (como escrever, esculpir ou qualquer espécie de criação artística) é dar voz ao ego, esse triste mudo que usa o corpo para comunicar as histórias que tem dentro, os anseios, os temores, as paixões. Aquele que não o consegue fazer morre entupido, asfixiado pelos sentimentos, perece de frustração. É um infeliz que não vive porque não consegue dizer que viveu.
Um artista é um comunicador, “fala” por intermédio das suas obras porque tem necessidade de que os outros (e ele também) saibam o que guarda, o quanto tem para partilhar. Pro bono!



24. jan, 2018
Post 70

23h58, 23/01, 3ª feira
Estive a pensar (já o faço há mais de 60 anos) e cheguei à conclusão de que existe actualmente um certo vazio de análise crítica da minha parte sobre o mundo que me rodeia, justamente porque existe também um vazio de relacionamentos, de contacto mundano que o meu trabalho, pelas suas características, condiciona. Como falar do dia-a-dia se a minha vivência é no noite-a-noite, onde convivo (direi antes, apenas cumprimento) com 2 ou 3 pessoas? Como falar de um mundo que vive enquanto eu durmo e dorme enquanto estou de vigília?
Antes, os meus temas fundavam-se na observação do mundo in loco; agora, ao vivo e a cores só eu, se me mirar ao espelho ou se me espelhar no que escrevo. Daí o meu egocentrismo, não num sentido pejorativo mas no sentido analítico.
Tenho actualmente o meu universo muito reduzido. Sinto-me como naquele filme de ficção científica em que a humanidade, devido a qualquer cataclismo apocalíptico, ficou reduzida a escassos milhares de pessoas espalhadas pelo mundo. Um mundo quase vazio, onde qualquer movimento se destaca num pano de fundo estático. Isto é a noite, isto é o meu trabalho nocturno. Deve ser por isso que tenho pensamentos tão sombrios (just kidding!).



21. jan, 2018
Post 69

01H09, domingo, 21/01/18
Estamos num S. João invernoso! A 6 meses de distância da festividade de Junho, a “molinha” reapareceu e é tão chata como a do verão.
Memórias, memórias… há recordações que nunca revelamos a ninguém, são demasiado pessoais, tão íntimas que mostrá-las seria como que uma auto-violação. Outras há que, mesmo mostrando um pouco de nós, não violentam o nosso íntimo, são confidências consentidas, onde as intimidades estão salvaguardadas, como que a nossa fotografia, a nossa representação mental em fato de banho. Às primeiras, levá-las-ei comigo para o túmulo ou para o crematório; quanto às outras… bem, essas recordações que mostram o lado superficial de cada um, que mal há em expô-las, em escrevê-las?
A partir do fragmento de memória de que falei num post recente e à medida que a infância caminha para o seu termo, as recordações vão-se desfragmentando, criando continuidade, numa lógica temporal.
Do que me lembro dessa idade da inocência que vai dos 3 aos 5/6 anos? Das camisolas de lã que a minha tia fazia, à mão ou na máquina de tricotar Passap, para mim e para os meus irmãos mais velhos, em tons coloridos ou lisas, de umas calças de malha cinzentas com fecho éclair, onde um dia trilhei a….bem, adiante!
O desvelo com que o meu pai construiu no quintal um conjunto de canteiros, numa simetria cuidadosa, feita de losangos e círculos, onde ele cultivava flores. Recordo o Fox-Terrier preto e branco malhado, o Boby, que anos mais tarde morreu de pneumonia. Vejo o meu pai a vender a moto Norton verde, o pequeno barco à vela “Plâncton”, do senhorio, que estava na loja da casa (espaço amplo, tipo garagem, por debaixo do piso habitacional) e que ainda lá estará, completamente podre. Lembro a Páscoa, os verdes à porta, à espera do compasso, as amêndoas de licor, o pão de ló. O quintal com as suas árvores de fruto: 1 limoeiro, 2 pereiras, 1 ameixieira, 1 pessegueiro, 3 laranjeiras, 1 tangerineira e outra que dava o que chamávamos tanjas (tangerinas maiores). Recordo o maravilhoso espectáculo dos pirilampos nas noites de verão, a bomba de água com que enchíamos o depósito, o poço, a fossa, o sabugueiro que o meu pai plantou e que agora ainda existe e está monstruosamente grande.
Lembro também os maus momentos: não era uma criança débil mas estava sempre doente. Ora gripes, laringites, faringites ou amigdalites que me prostravam na cama dias a fio, crises de vómitos violentas, ataques idem, de fígado, problemas intestinais, febres a causar delírio. Lá vinha o Dr. Ramalho e, numa fase posterior, o Dr. António Ferreira de Sá. Nessa altura era perfeitamente normal os médicos virem ao domicílio, agora é quase um luxo.
Nesse tempo as curas passavam pela administração de antibióticos injectáveis e dolorosos, que eu sofria na pele e na carne, nas veias que as agulhas não encontravam por serem finas e profundas (ainda hoje o são). Era espetado 4, 5 ou mais vezes, até o médico acertar. Ainda hoje tenho marcas, que se converteram em sinais. Quase até ao fim da minha adolescência, tinha calafrios só pela visão dessas agulhas.
Não posso deixar de relembrar a minha avó, velhinha que me adorava mas que era implacável quando tocava à educação e ao respeito. Foi a primeira morte a que assisti e que me marcou profundamente, não só pela ocorrência em si mas também porque gostava muito dela.
Recordo-me também criança que até aos 11 anos não saía de casa sozinha, acompanhado e educado por 3 velhos, uma experiência que não recomendo.
Não posso dizer que tenha tido uma infância muito feliz, mas a felicidade, encontrava-a então nos pequenos nadas da vida: ir a Espinho à feira, ir ao Porto, sair da gaiola, enfim. Eles viveram e fizeram-me viver a vida que achavam correcta, não posso condená-los. Outras mentalidades…



18. jan, 2018
 Post 68

  01H21, 5ª feira, 18/01/18
Já alguma vez me questionei sobre o que queria ser ou ter sido nesta vida que me coube em sorte? Ou será que me limitei a vogar ao sabor da maré, sem realmente ter a mínima ideia de para onde ela me levava?
São perguntas irrespondíveis que me consomem há largos anos. Não sei se tenho que ter remorsos por não ter dado um rumo à vida ou terei que me limitar a resignar-me com o que tenho, não sei se advogue o livre arbítrio ou curve a cabeça ao destino. O azar é que acredito em ambos; por um lado o livre arbítrio torna-se-me aceitável porque a existência é feita de actos ou situações, ora forçadas ora evitadas, como, por exemplo, aproximar-me ou afastar-me da beira de um penhasco. Pelo outro lado, acredito que, apesar dessa possibilidade de escolha, o destino também tem um papel na evolução dos acontecimentos: evitada ou não, a queda ou não queda do penhasco já está contemplada no plano global do universo, independentemente ou não da existência de qualquer entidade reguladora, vulgo Deus ou Grande Arquitecto. Caso contrário, o mundo seria um caos total, onde os acontecimentos se processariam de um modo total e irracionalmente aleatório.
Por tudo isto, não acredito que se possam alguma vez fazer viagens físicas no tempo porque isso pressuporia a possibilidade de modificar os acontecimentos, tanto passados como futuros, o que conduziria a um caos ainda pior que o anteriormente mencionado, pois essa manipulação acabaria por criar paradoxos irresolúveis, como poder matar os meus pais no passado, antes de eu ter nascido, e existir no presente para o fazer.
Ora, se eu os matei no passado, nunca fui concebido, portanto não existo no presente nem nunca existi ou existirei e, sendo assim, não os posso ter morto.
Acredito, isso sim, que possa haver algum processo de leitura do passado, uma espécie de gravação equivalente a um registo fílmico, onde se possam apenas consultar acontecimentos passados. Os budistas acreditam que tudo fica registado no éter ou algo similar e pode ser consultado em condições muito restritas e apenas por pessoas espiritualmente muito desenvolvidas.
E quanto ao futuro? Será possível consultar algo que ainda não aconteceu? Tenho sérias dúvidas. Ver o futuro seria como matar a vida, retirar-nos todo e qualquer ânimo ou vontade de continuar a lutar por algo que já sabíamos que, fosse como fosse, iria acontecer. Além de que, obviamente, esse conhecimento tornaria impossível a consumação do futuro.


14. jan, 2018
 Post 67

  01h05, domingo, 14 de Janeiro
Está frio (6 graus) e aguaceiros esparsos que poderão converter-se em chuva.
Boletim meteorológico feito, falemos de outras coisas.
Bem, há dias em que nada sai da cabeça, nem caspa. É como se tivesse por lá passado uma brigada de limpeza e aspirasse tudo indiscriminadamente, sem ter em atenção a o quê. É nesses dias que nos apercebemos da enorme importância do pensamento e do conhecimento a ele associado.
Bem-aventurados os pobres de espírito – são felizes! Quanto maior o grau do conhecimento, quanto maior a consciência de si, maiores serão as hipóteses de infelicidade, de frustração, de incompletude, de inadaptação. Quem mais tem mais quer (e não me refiro a bens materiais): é este o cerne da natureza humana e que muitos desconhecem porque vivem da (na) superficialidade. São os tais felizes…
Há 2 tipos de pessoas: os que vivem para viver e os que vivem para perguntar. Os primeiros limitam-se a isso mesmo – viver; os outros vivem para perguntar, para ter respostas. E cada resposta conduz a outras perguntas. É um círculo vicioso, não tem fim, é um percurso sem retorno. Sentimo-nos felizes por questionar e infelizes pelas respostas, é o preço a pagar.
Acabou a filosofia de bolso, apetece-me falar do passado, das memórias. Há algumas que estão tão profundamente enterradas que podem passar-se dezenas de anos até que reapareçam; às vezes basta uma palavra, um cheiro, um fugaz déjà vu, uma foto, um sabor: a memória ressurge e em breve arrasta outras co-existentes, como se tivessem ocorrido ontem. Outras, a grande maioria, mantêm-se enterradas para todo o sempre.
A memória mais antiga de que tenho memória (passe a expressão), a primeira manifestação que conheço do nascimento do meu ego, da minha individualidade, foi ver-me a olhar para o meu irmão mais novo deitado num berço de palhinha creme com losangos marron do mesmo material, teria eu 2 anos e meio. É evidente que parte da recordação pode ser falsa, é muito comum; no entanto, o facto aconteceu.
É um flash, segundos de consciência fotográfica que ficaram retidos na memória, sabe-se lá porquê. São momentos que até nem são de relevo, mas são marcantes porque indicam o início de uma individualidade, o princípio do fim da máquina de mamar que todos somos até atingirmos a consciência, como entidades únicas e sencientes.



11. jan, 2018
Post 66

11 de Janeiro de 2018, 04h02
O que é que é escuro, molhado e dura 7 horas? A madrugada de hoje (piada seca sobre um item molhado).
As minhas crónicas, últimamente, têm sido um corolário de auto-comiseração, uma ode ao “coitadinho de mim”, sobretudo após o episódio da doença que me atingiu e marcou ligeira (?) mas indelevelmente. Acho que nunca mais recuperei totalmente aquela joie de vivre que me caracterizava, pelo menos superficialmente.
Isto, claro, para não falar dos tenebrosos segredos, dos dantescos monstros do meu Id, dos macabros recônditos do meu espírito, etc.: Ora aqui está um bom exemplo de atitude gótico-romântica que caracterizou a literatura e o pensamento do século XIX; se eu tivesse nascido nessa época, teria certamente suplantado Edgar Alan Poe ou Mary Shelley e as suas histórias de horror e suspense. Continuo a crer que nasci na época errada, deveria ter vivido no período vitoriano, com o seu romantismo negro, fantástico, povoado de ogres e almas penadas, de revivalismo gótico e demónios terríveis, de loucos e deformados.
Todos os revivalismos são ilusões, desejamos viver ou ter vivido em ambientes passados que apelam a uma certa nostalgia, a um desejo pueril de pertença. Afinal, sempre que concretizamos um anelo, e passado o período da ilusória satisfação inicial, constatamos que tudo não passou de uma quimera, de uma miragem que nos deixa quase tão vazios como antes da conquista. Somos como os cães, que nunca estão satisfeitos com o que se lhes dá, querem sempre mais e esse mais nunca é suficiente, nunca concretiza o desejo de completude.
Aliás, se pudéssemos reviver esses nossos sonhos de épocas passadas, seríamos com certeza bastante infelizes, pois estaríamos condicionados por noções de vivência totalmente diferentes dos desses períodos, já para não falarmos dos abismos tecnológicos com que nos depararíamos e no desconhecimento dos conceitos básicos (a todos os níveis) que tornam a vida contemporânea relativamente mais fácil e segura.
 Sonhemos com essas utopias mas apenas como meras fantasias recreativas, pois que a sua concretização constituiria uma decepção inimaginável e um tremendo retrocesso evolutivo que condicionaria perigosamente o nosso equilíbrio psíquico. Carpe diem (e Carpe noctem).



1. jan, 2018
 Post 65

  00h17,2ª feira, 01/01/2018
Embora data meramente simbólica, momento cronológico puramente virtual, ele chegou – o Novo Ano. Como sempre, faz parte da tradição toda aquela caterva de votos que é costume desejar nesta altura do calendário e que nos faz sentir melhores, mais felizes e solidários. É talvez o segundo momento mais “humano” do ano, logo a seguir ao Natal, independentemente das crenças de cada um, porque o que conta é o espírito, a intenção com que foi exteriorizado (e interiorizado) esse momento particular que sai directamente do mais íntimo da nossa faceta “boa”.
Pena é que esses sentimentos elevados de irmandade cósmica duram breves horas ou mesmo minutos; tratamo-los como uma caixinha de chá, a qual, após servido, é rapidamente tapada para não perder os aromas; deveríamos era usá-lo como um pot-pourri: deixá-lo exposto para que as suas fragâncias chegassem a todo o lado e se mantivessem indefinidamente.
Sei que é pura utopia, mas que mal há em sonhar? O sonho comanda a vida, como dizia Rómulo de Carvalho, vulgo António Gedeão. Sonhemos pois, que esta vida são dois dias e só nos apercebemos disso quando chegamos ao terceiro, que não existe.
31. dez, 2017
Post 64
30/12, sábado, 23h38
Estamos a chegar ao último dia do ano sem sequer sabermos se sobreviveremos a este (a e oeste, e a norte e a sul). Conto estar cá daqui a um dia e daqui a um ano e daqui a dez anos, mas também sei que posso contar com uma estimativa cada vez mais reduzida por cada dia que passa. O Tempo mata…
Tenho saudades da feliz despreocupação da juventude, onde o tempo era lento e nós imortais, onde só sucedia aos outros o que agora sucede a nós, onde o futuro era um dado adquirido e nem valia a pena pensar nele. Agora o futuro é o nosso dia-a-dia, cada vez mais curto e mais incerto, volátil.
Só escrevo, só exteriorizo pensamentos em tons de cinza ou negro (talvez porque o negro me faz mais magro), e dentro desses pensamentos ainda consigo fazer humor negro; é simultaneamente engraçado e triste.
Cheguei, como todos os ainda vivos, àquele período do ano – entre o Natal e o Ano Novo - em que inconscientemente deitamos contas à vida, fazemos um balanço dela (geralmente pela negativa) e esforçamo-nos por não nos atolarmos nas sombras das nossas vidas. Há quem não consiga, e por isso há muitas mortes súbitas ou esperadas, muitos suicídios cometidos por aqueles a quem a vida apresenta um saldo de bancarrota. Para esses, o futuro deixou de existir há muito, e quem não tem futuro já está morto antes de morrer.
Já foquei o tema do suicídio há largos meses, talvez mais de um ano, e disse (e reitero) que não está nos meus planos fazê-lo, nem agora nem nunca. Cheguei a ter essas ideias no início da adolescência, mas isso acho que todos por lá passam, é uma idade muito conturbada, cheia de paradoxos e pensamentos desconexos, dúvidas existenciais, conflitos connosco próprios e com os outros. É normal e geralmente ultrapassa-se. Aí, questionamos a nossa existência mas aguardamos pelo dia de amanhã, a ver se é melhor; agora, questionamos a nossa existência sem sabermos se temos amanhã, é diferente.
Eu sou como Claudio Magris: desespero com a razão mas acredito com a vontade e é isso que me faz ter esperança nesse amanhã incerto. É lógico que com esta atitude a ideia de solução de continuidade não está nos meus planos, mas lá diz o ditado: nunca digas “desta água não beberei”. No entanto, estou demasiado agarrado à existência para sequer considerá-lo como opção (ainda bem).
Já chega de pensamentos tétricos (não tem nada a ver com o Tetris), amanhã também nascerá o sol; se calhar as nuvens tapam-no, podemos não o ver, mas ele está lá e nós sentimo-lo.
  

 25. dez, 2017
Post 63
20h16, domingo, 24/12/17
Calhou a mim fazer a véspera de Natal. O que vale é que já estou numa idade em que essa ausência de ambiente familiar já não afecta tanto. Contento-me em celebrar por reflexo, nas famílias de aqui, esse momento.
Não me importo, a sério! É certo que está sempre subjacente uma certa nostalgia, uma memória dos bons tempos passados, mas tudo, afinal, não passa de uma ilusão, uma espécie de estereótipo de felicidade, ao qual nem sempre corresponde o real. Por vezes, nesse passado, houve momentos menos felizes, mas que a nossa piedosa memória dilui ou faz esquecer.
Como exemplo, recordo o meu Natal de 2013, talvez o pior de sempre: um emigrante (quase) sozinho, ainda por cima no meio de uma cultura (cambojana) que não valoriza o Natal, apenas o aproveita, logicamente, para, também eles, juntarem a família (os únicos ocidentais presentes eram eu e o meu cunhado). Dói, quer queiramos, quer não.
Estou rodeado de silêncio. A esta hora toda a gente está metida em suas casas, em amena confraternização. No entanto, há ainda alguns raros familiares ou amigos que vão chegando para a celebração; em breve, e durante umas 4 ou 5 horas, não haverá barulho nem vivalma. Depois começa a debandada dos sinceros ou menos sinceros visitantes, dos que vêm por amor, por simples amizade, por piedade ou por hipocrisia.
…………………………………………………………………………………………………
Afinal, os raros familiares e amigos de que estava a falar, estão agora a chegar em força. Por isso, tive que cortar temporariamente o fio dos meus pensamentos e já não sei da ponta, já não tenho ponta por onde se lhe pegue. Vou ter que terminar por aqui, com as interrupções seccionei as veias da criatividade e estou a esvair-me de pensamentos coerentes; por hoje, morri (intelectually speaking).



17. dez, 2017
 Post 62

  5ª feira, 14/12/17, 00h00
O tempo (não o atmosférico, o outro) tem sido escasso para escrever. A faculdade – quando não o sono - absorve grande parte do meu tempo útil.
O tempo (desta vez o atmosférico) está a voltar aos padrões normais para a época, como dizem os meteorologistas.
Estou num impasse; nem triste nem alegre, nem esperançoso nem desesperado, nada. Digamos que é um estado de espírito insípido. Mas sempre sono, muito sono; é curioso que sempre que tenho férias, sempre que fujo às rotinas subordinadas a Cronos e a Morfeu, sempre que experiencio essa espécie de jet-lag vivencial, demoro cerca de 3 meses a reorientar, normalizar o meu (forçado) ciclo circadiano, o que é muito desagradável e inconveniente.
Esse défice de “proper rest” reflecte-se, evidentemente, na minha vida do dia-a-dia, o que se traduz por períodos em que a vigília cede lugar ao sono, em que a concentração se dissipa, em que a memória se esquece, em que o corpo, mesmo que em repouso, não descansa.
Consequência do trabalho ou da doença? Ou de ambos? É stressante ter agora que gerir o descanso ao milímetro, ter que medir a vida pela escala dos minutos. Vejo um quadro muito negro à minha frente – porque é de noite e os candeeiros públicos não iluminam tudo (pelo menos ainda mantenho o humor).
(Ponto, parágrafo):
Vivo há 35 anos na “minha” casa, tantos quantos os anos de casamento. Tudo mudou: o comércio tanto desaparece como regressa (ou não), as pessoas nascem e morrem, está tudo em constante mudança.
Quando eu era jovem, via as coisas como se imutáveis, como frames: estáticas, sempre iguais. Agora vejo um filme repleto de anacronismos e imagens do passado, mudanças colossais, nem sempre para melhor. Antes havia ourivesaria, 2 papelarias, mercearias, pastelarias, banco, 2 sapateiros, 2 estofadores, fábricas, 2 sucateiros, 2 serrações, cafés, barbearia, casa de móveis e electrodomésticos, armazéns variados; hoje não há ourivesaria, só há uma papelaria, não há banco nem barbearia, nem fábricas, nem casa de móveis, nem sucateiros ou serrações, metade dos armazéns, menos cafés, imensos espaços devolutos, com anúncios de aluga ou vende. Progresso? Não parece. A zona está degradada e envelhecida (eu incluído), não há aqui nada que sirva de incentivo a nada, morte lenta. Mais abaixo, está-se a construir um hospital privado; virá a tempo de curar a zona ou não passará de cuidados paliativos?
Paralelamente, vejo o meu mundo – o meu mundo interno – a arruinar-se, a envelhecer, a caminhar para o fim e não encontro nele nada que me permita dizer que valeu a pena ter existido.
Cumpri a minha “obrigação” vital: o esforço de perpetuação da espécie. Fora isso, pessoalmente, não vejo muito sentido em viver e ter vivido. Mas isto é apenas a minha visão do mundo; poderia ser mais colorida mas, se calhar, sou daltónico.



2. nov, 2017
 Post 61

  00h05, 5ª feira, 02/11/17
Acabou de acabar (passe a expressão) o dia em que prezámos não ter sido homenageados, o dia em que agradecemos não ter recebido flores na nossa residência nem familiares ou amigos a visitarem-nos. Comemorámos ontem o Dia dos Vivos, o Dia de Todos os (ainda não) Santos. Neste dia celebrou-se um ritual de sobrevivência, uma elegia à senciência terrena activa; foi o dia do alívio mas também do medo do porvir, da lembrança profética da inversão expectável (embora temporalmente incógnita) da nossa posição face ao mundo sensível e anímico (soa a tautológico...).
Neste dia cantámos uma ode à vida, camuflada de dor e saudade pelos que já não se encontram fisicamente presentes. Não que essa dor e essa saudade não existam, mas no fundo, bem soterrada no inconsciente, espreita a alegria de viver e a satisfação perante a posição que detemos face àqueles a quem fomos recordar.



30. out, 2017
 Post 60

  23/06, sábado, 28/10
Ora bem, isto não é um blog; ou antes, é. Não é no sentido tradicional (mas já há uma tradição? Os blogs nasceram há quê? 10, 15 anos?) em que o autor pega num tema-base ou trata de vários assuntos de interesse mais ou menos alargado e expõe-nos para um público que está “na mesma onda”. Não, isto é mais uma sequência de flashes de vida, de pensamento, ao estilo “diário” de Miguel Torga.
Perderei com isso hipotéticos leitores, mas é o meu estilo, é a manifestação da minha zona de conforto, da qual, todavia, me quero eventualmente libertar, partir para outros voos, mas que, ao oposto de Ícaro, não me atrevo a tentar. Pés de barro, asas de cera, insegurança? Pode ser que nunca saia do meu cantinho, pode ser que irrompa repentinamente, qual vulcão adormecido, quem sabe se nunca.
Neste momento apenas tenho as minhas “cartas” electrónicas, os meus solilóquios virtuais que ninguém (dos 7 que dele têm conhecimento) lê. Apenas um aflora irregularmente, talvez num momento de ócio, de quem nada mais tem para fazer.
Isto prova que os mais próximos são os mais distantes, que ler um jornal ou revista é mais importante que ler uma vida.
Resignemo-nos, estamos votados ao esquecimento, o que escrevemos vale menos que uma fotografia num álbum de família, se é que ainda existem. Provávelmente, também elas estarão esquecidas num disco duro ou numa nuvem, um objecto arqueológico para as gerações vindouras.
Não importa, continuarei a escrever em atenção ao meu seguidor mais fiel: eu.


24. out, 2017
Post 59

Sábado, 21/10, 13h35
Hoje, contra o costume, a minha paisagem mudou; não vejo o meu espaço à luz dos candeeiros da rua, mas à luz do sol. É igual, mas é diferente, com o hábito tornei-me uma ave nocturna.
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Domingo, 22/10, 23h35
Ontem não deu para mais, acabei por interromper algo que, a continuar, seria uma manta de retalhos literária, sem qualquer coesão.
Dei conta há muito tempo ou, pelo menos, suspeitava (não é suspeita, é certeza, mas insinua-se tão sub-repticiamente que nem é perceptível) que estou mesmo a entrar no processo natural, progressivo e irremediável do envelhecimento. Como? Pelo processo mais fácil e comum de detectá-lo, embora a maioria das vezes, por medo, por negação, o não façamos: observando a nós próprios com olho crítico.
São pequenos tiques, são ruídos (palavras ou não), mais coerentes ou menos coerentes, que começam a fazer parte do nosso dia-a-dia vocal, é uma atitude mental mais conservadora a alguns níveis e mais liberal noutros. É, enfim, uma postura menos preocupada com as convenções sociais que espartilharam a maior parte da nossa vida e que agora são encaradas com uma abertura por vezes inusitada, que os mais novos têm tendência a confundir com a rebaldaria ou o desleixo, próprios dos velhos.
Em parte, isso sucede (o desleixo) mas muitas das vezes confunde-se o libertar das convenções com a degenerescência mental, o que é normal, pois não é concebível para um humano mais novo a ousadia, o sacrilégio da quebra dos tabus nos quais assentámos a nossa existência. Chega-se a um ponto em que we don’t give a damn sobre o que os outros poderão pensar e tornamo-nos politicamente incorrectos. É a irreverência tardia daqueles que, em novos, não tiveram a coragem de a assumir.



16. out, 2017
 Post 58

  23h52, domingo, 15/10/17
Acabou o verão, acho que definitivamente. Esta noite espera-se chuva que, em princípio, durará toda a semana. Embora o meu “Eu” citadino peça mais bom tempo, o outro, o da razão e bom-senso, está satisfeito pela vinda da chuva (esperemos que moderada).
Já há rios secos, enormes áreas florestais ardidas, culturas destruídas pelo fogo ou pela seca; é tempo de dar voz ao outono e ao seu patrão, o inverno.
Entretanto, o meu jet-lag pós-férias continua a incomodar: noites (dias) mal dormidas, cansaço constante, défice de atenção e memória… Enfim, uma panóplia de estados psico-físicos indesejável. É como se o trabalho, a rotina, nos fizessem pagar caro por os termos abandonado tanto (?!) tempo. À parte isso, tudo bem.
Que se passa com os incêndios? Toda a gente sabe que são fogos provocados. Que se passa com as pessoas? Como é que gente, aparentemente normal, se põe a atear incêndios sem sentir escrúpulos, arrependimento, sentimento de culpa, remorsos por destruir vidas – no sentido de percurso de existência – e vidas – como entidades anímicas? Como é possível que possam viver com isso, como podem ignorar todo o prejuízo e sofrimento que causam?
A sociedade está gravemente enferma e – o que é ainda mais grave – sente-se inimputável, arranja bodes expiatórios para justificar a sua loucura, sejam eles o sistema, os vizinhos, a falta de emprego ou qualquer outro pretexto. Ela está gravemente enferma nos seus valores, na sua ética. A transmissão das normas de conduta moral e cívica é cada vez mais deficiente e há-que culpar a sociedade como um todo mas também e muito particularmente cada indivíduo em si, cada unidade singular como transmissor de valores que está esquecendo progressivamente e que está esquecendo de transmitir ou que está deturpando, e isso vê-se em todo o lado: é um progenitor que deita lixo para o chão em frente de todos, incluindo os seus descendentes, é um pai ou uma mãe que faz um escândalo público ou agride um professor numa escola, são os autocarros com os velhos de pé e os novos sentados, é o desrespeito progressivo e generalizado nas posturas físicas e na linguagem, é o vanglorio público de actos reprováveis ou desonestos.
Estamos a atingir um pico de decadência em marcha acelerada. Já houve outros, é certo, porém vivemos neste e é este que nos interessa, não nos vamos desculpar com os anteriores.
Apercebo-me de que estou a falar como um homem de 60 anos, mas tal é expectável, como também é de esperar que os hajam, para manter o equilíbrio. Sou velho mas não sou um Velho do Restelo, aceito mudanças no bom sentido, não aceito é a vulgarização da má educação e das atitudes desonestas.


5. out, 2017
 Post 57

  05/10/17, 5ª feira, 00h28
Já está! Já se foram as férias, como se nunca tivessem acontecido. Só ficaram as memórias, boas, em geral.
No entanto, estas férias, apesar de apenas de 2 semanas, valeram por muito mais do que a vivência dos últimos anos (Quantos? 10? Já perdi a conta!), onde não tive o que verdadeiramente se pudesse chamar um emprego, com todos os seus direitos e deveres nem, em consequência, férias.
Aqui reside a diferença: quando se fazem biscates ou se está desempregado, os tempos livres não são de lazer, são de insegurança, angústia, frustração, são não saber o dia de amanhã, não ter futuro, não ter sequer dinheiro disponível para algo fora do essencial, ou nem isso. Em contrapartida, ter um emprego estável (já não há empregos estáveis) significa descansar e ser pago por isso, saber que no fim tem-se um trabalho minimamente garantido e, por tal, saborear todo e qualquer bocadinho de lazer com mais satisfação.
Bem, foi óptimo enquanto durou, alarguei um pouco mais os horizontes do espírito, e isso valeu por tudo o resto. Tirando uma gripe de coffin to the grave, a minha experiência de 5 dias em Londres valeu mais (não sei bem explicar porquê) do que os 9 meses que passei em Paris.
Não nego que, para mim, Paris foi uma experiência extraordinariamente enriquecedora, mas Londres foi, a seu indefinível modo, superior.
Ambas as cidades têm a sua aura mítica: Paris é, por excelência, a capital do conhecimento e da arte e reflecte bem uma hegemonia simultaneamente cultural e romântica; Londres é o retrato de um império, também ele fortemente cultural mas notóriamente de glória, de grandeza. Embora ostente um passado imperial, não se lhe nota a hipocrisia francesa, traduzível por uma burguesia invejada e invejosa, um capitalismo encapotado sob a divisa Liberté, Égalité, Fraternité.
Londres é rica e mostra-o sem ostentação e parte do seu encanto reside nessa atitude.
Resumindo, acendi mais umas luzinhas no meu mapa-mundi íntimo; são luzinhas modestas, mal iluminam, mas já vão orientando, criando uma ainda ténue penumbra onde antes só havia trevas. Enquanto for vivo e válido tentarei aumentar essa visibilidade, ver ou tentar ver onde não via, iluminar o meu caminho.



6. set, 2017
 Post 56

  00h21, 4ª feira, 05/09/17
Cada vez se nota mais a despedida do verão, um adeus sentido por quem fica e nunca sabe se assistirá ao seu retorno.
Dia 19 vou a Londres tentar catch up um pouco do que foi a minha juventude perdida, tal como uma velha árvore que absorve ávidamente nutrientes da terra sabendo, contudo, que não terá mais frutos; é uma questão de sobrevivência do espírito.
Quando falo em juventude perdida, não me refiro à sua integralidade mas apenas àquela parcela, a meu ver, mais importante, que é a abertura a novas realidades, àquela 5ª dimensão que nunca tive oportunidade de viver: viajar, conhecer novas terras e culturas, interagir, sacudir mitos e preconceitos, pensar como o “outro”, ser o outro, nem que por breves momentos. É difícil viver num mundo que desconhecemos, confinados ao nosso buraco, como uma toupeira cega que nunca viu o sol e que é cega porque se habituou a não vir à superfície. É um pouco tarde para curar essa cegueira congénita, mas nunca é tarde para tentar; por pouca visão que se ganhe, vale sempre a pena (quando a alma não é pequena – como diz Pessoa). No fundo, temos medo de sonhar porque, quando sonhamos, assustamo-nos com a grandeza dos nossos sonhos. Não vivemos felizes, vivemos acomodados.
Hoje a Cristina fez 24 anos; dia 12 de outubro, a Sofia fará 33. Cronos é impiedoso (para mim e para elas). Não há futuro.


3. set, 2017
 Post 55

  03/09, domingo, 00h33
Depois do período de acalmia próprio dos meses de verão, volta-se gradualmente ao “mesmo de sempre”: retorno ao trabalho, início de aulas, perda acentuada do bronzeado, sensação de satisfação/perda/nostalgia própria de quem terminou as férias, novo vigor para retomar a rotina contrabalançado pelo desgaste de a ter de retomar; enfim, a dicotomia típica dos humanos dos 2 últimos séculos ( este incluído), pois antes, essa sensação de euforia/tristeza não existia, a nossa formatação não incluía a invenção moderna das férias e seus efeitos secundários.
Essa revolução social pós-romântica e pós-modernista foi uma conquista dura de obter, principalmente (ou, direi mesmo, exclusivamente) devido à resistência das entidades patronais, que viam reduzida a sua força de trabalho e aumentados os seus importes, directos ou indirectos.
Mas todo o prazer tem os seus custos. Não só permite uma liberdade de excessos que não seriam possíveis em período laboral normal – com os consequentes resultados malfazejos na saúde – como provoca adicção – o que por vezes resulta em depressões ou quebra de tónus vital no período pós-férias, com a consequente quebra de produtividade, alterações de humor, sentimentos de tristeza, desânimo ou revolta.
Não que critique ou abjure as férias, não senhor! Venham elas, serão sempre bem-vindas. Apenas digo que não há bela sem senão e que cada conquista de bem-estar pessoal ou colectivo traz sempre consigo uma contrapartida menos agradável, um preço a pagar. Quanto mais evoluirmos a este nível, mais preocupações teremos por tentarmo-nos despreocupar.
As benesses que foram sendo conquistadas ao longo dos últimos séculos pelas classes trabalhadoras trazem consigo uma data de “preocupações de felicidade” que não sei se as gerações de há 100 ou 200 anos e anteriores conseguiriam suportar. Toda a logística inerente a uma vida que incluísse relações trabalho-férias surgiria como um problema e não como um alívio. Julgo que o nível de felicidade-padrão da sua época seria de tal maneira abalado que as repercussões seriam devastadoras.
Tudo isto a propósito de quê? Absolutamente de nada, limito-me a pegar nos meus pensamentos e dar-lhes forma com palavras, livremente, como uma criança pega em plasticina e molda o que lhe vem à cabeça.
Escrever comporta 2 opções: ou tese ou dissertação, ou ter um objectivo definido e falar sobre ele, explorá-lo, esmiuçá-lo, ou pegar em algo ou coisa nenhuma e deixar fluir. Evidentemente, isto não é assim tão linear. Se tomarmos um romance como exemplo, encontramos algo híbrido, que não é nem tese nem dissertação (isto no sentido que lhe aponho). Não há géneros absolutos como não há louros absolutos ou negros absolutos ou whatever.
Tenho pena da minha inconstância literária, da minha impaciência. Não sou criador de grandes textos, como um romancista ou um enciclopédico; serei mais um cronista, escrevo uma coluna ou pouco mais e chega. Será um defeito, uma constatação de incapacidade de produção literária ou terei nisto alguma virtude? Não sei, não sou crítico, satisfaço-me com pouco.
Embora cada mente produza grandes torvelinhos de forças, autênticos ciclones, o resultado reduz-se por vezes a nada mais que um saco cheio de vento.



31. ago, 2017
 Post 54

  11h44, 26/08, sábado
É interessante observar as diferenças entre vivências e sensações pró-pessimistas e pró-optimistas, entre dias-sim e dias-não.
Nos últimos tempos os meus dias de descanso têm sido melhores que os observados (e vividos) nos últimos meses. A sensação de compleição e alacridade tem subido de qualidade. Não que tenha conquistado grandes feitos ou experienciado senão pequenos prazeres corriqueiros; tudo se resume a uma postura interna, um laisser faire, laisser passer consciente e responsável que faz toda a diferença.
Antes, deixava-me assoberbar pelas preocupações, pela ansiedade (leia-se stress) das metas não cumpridas, da consecução tantas vezes sobrevalorizada ou mesmo utópica de tarefas às quais impunha prioridades, não direi exageradas mas forçadas e que, por consequência, eram geralmente não cumpridas ou pírricamente cumpridas, gerando ainda mais stress que satisfação. Neste momento (pois que todo o processo é cíclico) desvalorizo a importância das metas, permitindo-me deste modo cumpri-las mais eficientemente devido à ausência dessa “pressão opressiva” compulsória. Talvez demore mais tempo, mas as conquistas obtidas não soam a forçado, a empreitada, a obrigação.
É evidente que o que neste momento exponho não terá mais validade daqui a dias ou meses, tudo depende do estado de espírito do momento, dos altos e baixos do “astral”.
And now – como diziam os Monty Pyton – something completely diferent:
Agora, com os meus sessenta anos feitos (está escrito em cursiva para não parecerem tantos) e tristemente bem disposto (para já), reparo no meu mundo cada vez menos meu e cada vez mais da segunda e mesmo terceira geração, e assusto-me com o que vejo.
Será que os olhos de um Velho do Restelo substituíram os meus, ou o mundo está, na verdade, a tornar-se preocupante? Só vejo valores basilares desaparecidos ou distorcidos, extremismos absurdos, corrupções monstruosas e monstruosamente aceites, laxismos preocupantes e inconcebíveis.
Não posso dizer que “antigamente é que era bom”, porque não era, mas parece que agora a Terra está-se a tornar num local perigoso para viver.
Lembro-me da legenda de um cartoon que li num livro humorístico, na minha juventude (talvez uma obra de André Brun), em que a rábula focava as enormes diferenças entre ricos e pobres (dejá vu?). Lia-se: devante a dura realidade, o tapume da fantasia. Quero com isto dizer que “no tempo da outra senhora”, muita coisa era escondida, é certo; mas mesmo agora que já disso temos conhecimento, mesmo agora que nos apercebemos das muitas mentiras, injustiças e atrocidades, o mundo apresenta-se-nos com tons cinzentos, ainda e cada vez mais carregados. Será que se eu tivesse nascido na geração seguinte, veria as coisas mais cor-de-rosa ou na verdade estamos a descambar para o caos? Gostaria de ter a certeza.
O fim do mundo já foi anunciado muitas vezes ao longo dos últimos milénios por mentes assustadas ou esclerosadas (ou simplesmente estúpidas). Serei uma ou os jovens também vêm o mesmo?


21. ago, 2017
 Post 53

  23h35, domingo,20/08
Calor abrasador. Ou antes, desagradávelmente sticky. Hoje obtive a confirmação definitiva de que, ou nasci no lugar errado ou que a minha última reencarnação foi na Era Glaciar.
Claro que isto é a perspectiva de um trabalhador ao serviço, que está do lado errado das férias; se estivesse do lado certo (das férias), seria uma oportunidade de sofrer esta vaga de calor com prazer. Digamos que quem está de férias é, a seu modo, um masoquista.
Isto leva-me a pensar até que ponto, ao longo de incontáveis gerações, a mente humana se modificou, não sei se produto da evolução natural, se de um processo voluntário ou voluntarioso, ou seja, se a transformação mental se ficou a dever a uma atitude mais ou menos “pensada”, de uma mudança, não de adaptação mas de vontade, um processo que, ao longo de gerações, se foi automatizando e acabou por tornar-se inconsciente. O que quero dizer é que não foi o homem que se moldou pela evolução natural (em parte, foi) mas que ele próprio moldou a sua evolução.
Não sei se já existirá alguma teoria coincidente mas, a existir, nada mais fará que provar que não estou assim tão errado.
Há comportamentos que o Homem adquiriu, algures nos últimos milénios ou centúrias, que me levam a raciocinar desta maneira, comportamentos esses que não se observam nos povos ditos primitivos. Falo, por exemplo, do já citado masoquismo, do sadismo, mas não só. Muitas atitudes e gostos um tanto ou quanto bizarros ou desviantes, ou mesmo outros considerados normais, são partilhados por largas camadas da população humana. Isso parece significar que não foi apenas o “passa-palavra” que os despoletou, há algo mais que condiciona essas atitudes, como uma espécie de memória colectiva, um registo arquetípico a que todos, inconscientemente, têm acesso e ao qual vão, regular ou esporádicamente, fazer o seu upgrade. Digamos que é um ADN comum, constantemente actualizado.
Como existencialista que me considero, tenho de vez em quando estes ataques de questionamento ao Infinito, que questiono também se é assim tão infinito. Há coisas que não cabem bem, não se encaixam bem no meu discernimento e que são explicadas muitas vezes através de elaboradíssimos processos matemáticos e/ou fórmulas químicas, físicas, quânticas, atómicas ou outras que até podem fazer muito sentido para os entendidos mas que eu comparo com as análises literárias. Nestas, um investigador encontra razões, ligações, segundos sentidos e afins, que correspondem a díspares realidades, tantas quantos os críticos, algumas das quais que nem o próprio autor suspeita existirem.
Serão todas realidades? Serão todas falsas? Ou paralelas? Quem me garante mesmo que estou a viver ou a sonhar ou ambos, cada um de mim no seu universo muito próprio, cada um real, embora antagónico ou auto-excludente. Ou pretensamente auto-excludente.
Não há ciências exactas, há é teorias mais elaboradas que se apresentam como a suprema e irrefutável verdade. Einstein veio destruir algumas. Porém, agora, mesmo ele está a ser questionado, nem mesmo ele não foi detentor da verdade absoluta. Nem os actuais, nem os que lhes sucederem.
Vivemos uma vida que desconhecemos, somos órfãos da nossa própria existência. Metafóricamente, somos seres intrínseca e eternamente frustrados.


7. ago, 2017
Post 52

11h25, 6 de Agosto, domingo
Estou enferrujado! Estou manifestamente enferrujado, tanto física como mental ou gráficamente.
Porém, atente-se: estou enferrujado, não esclerosado. O sedentarismo forçado a que estou submetido por razões profissionais óbvias, emperrou também um pouco a minha capacidade criadora. Estou um tanto ou quanto “animal enjaulado”, com pouco por onde expandir. Não há bela sem senão, lá diz o ditado; o que perdi em capacidade imaginativa, ganhei em concentração. Porém lamento a primeira, pois sempre gostei de puxar pela cabeça e que dela saísse alguma coisa. Estou confiante que, a seu tempo, encontrarei o equilíbrio almejado.
Hoje dei um revigorante passeio em família, pela margem esquerda do Douro, do Freixo a Gramido – célebre pela convenção com o mesmo nome, que em 1847 teve lugar na Casa Branca (há exactamente 170 anos) e ditou o fim da chamada insurreição da Patuleia. Esse edifício ainda hoje existe e está, felizmente, bem conservado e é utilizado em benefício da comunidade, através de exposições e outras actividades culturais e lúdicas.
Como não pretendo fazer uma palestra de história, voltemos ao passeio: levei o Mindelo – não algum dos Bravos que ajudaram D. Pedro IV contra o seu irmão absolutista (onde honrosamente consta o meu tataravô paterno), mas o meu cão, cujo nome é toponímico, pois foi lá que ele nasceu. Estando esterilizado, tem tendência a engordar e o exercício é-lhe essencial e, também, da parte dele, bem-vindo: faz jogging, corrida e natação (de que é exímio praticante), além de exercitar a voz, desenvolver a sua capacidade olfactiva e prevenir problemas urinários.
Apanhou-se sol, passeou-se, fez-se também uma necessária desoxidação das dobradiças, para fugir à tenebrosa ensofalite, essa perigosa enfermidade, essa sereia que nos tenta encantar com as suas promessas e falsas premissas de um descanso revigorante. Foi um pequeno oásis no deserto stressante do trabalho diário e rotineiro.
Só lamento que esses pequenos momentos de lucidez existencial nos passem despercebidos no dia-a-dia, pois se tirássemos, nem que fosse meia hora todos os dias para esses relaxantes “bocadillos”, seríamos porventura mais felizes e mais saudáveis. Infelizmente, o que sucede é que, após o trabalho, a mente, endrominada pela ensofalite, grita-nos que estamos demasiado cansados para o fazer (o que na maior parte das vezes é informação infladamente tendenciosa).
É fácil falar, o que digo agora aqui, estou a negá-lo amanhã porque também sou constantemente atacado e seduzido pela tal sereia e deixo-me levar pelo seu apelativo canto. Somos uma sucessão de asserções e contradições, mas não queremos admiti-lo, vivemos sempre no meio de um combate entre a verdade e a mentira, onde a maior parte das conquistas são pírricas.



31. jul, 2017
Post 51

24/07, 2ª feira, 3h30
A semana passada surgiram duas polémicas nas bocas do nosso pequeno mundo, à beira-mar plantado. Uma dizia respeito às declarações do Dr Gentil Marques sobre os homossexuais e sobre o Ronaldo; a outra reportava-se ao autarca de Loures, André Vinhas, a respeito dos ciganos.
Quanto ao Dr Gentil Marques, a observação sobre o Cristiano Ronaldo e das barrigas de aluguer para ter filhos, faz um certo sentido. Esta questão de ter filhos sem assumir um relacionamento, soa-me um pouco a narcisismo: “olhai, estas crianças são meus filhos, só meus e de mais ninguém. A mãe não existe ou é irrelevante, para não ofuscar o brilho da minha paternidade”. É um misto disso e de “angelinajolymania”. Bem vistas as coisas, talvez se tivesse excedido ao falar da mãe do jogador (ser culpa dela, por não ter sabido educá-lo), embora, se calhar, não seja assim tão inverdade.
No tocante aos homossexuais, eu não seria tão radical ao chamar à sua condição anomalia, embora assim o considere. Todo o desvio de uma tendência normal da existência é uma anomalia.
Actualmente é politicamente correcto (mais que isso: é-nos inculcado) que os homossexuais têm que ser defendidos e encorajados. Contra isso, contra a discriminação, nada. No entanto, porque é que ser homossexual não é uma anomalia e ser pedófilo ou ter relações com cadáveres ou animais, é? Já sei que os “formatados” vão-se logo irritar e dizer que uma coisa não tem nada a ver com a outra, etc., etc. É sempre assim! Desde que o mundo é mundo e enquanto o for, os crentes irão sempre tentar descredibilizar e achincalhar os não-crentes.
Ser coxo ou ser cego também são anomalias, os coxos e os cegos sabem disso, mas não é por isso que se vão sentir anormais, do mesmo modo que a anomalia da minha falta de cabelo o não fará.
Sim, sentir-se-ão anormais, discriminados, se alguém se lembrar de começar a implicar com essa categorização vaga. Todos nós somos anormais em qualquer coisa, o que não faz de nós seres anormais.
Segundo caso: o autarca e os ciganos.
André Ventura tem todo o direito – direi mesmo, obrigação, de denunciar situações que já se arrastam há muitos anos e um pouco por todo o país e que já foram referidos em 2009 por outro político da região e que nem sequer era do mesmo partido.
Todo o mundo sabe, e quem não sabe é porque não contacta com (principalmente) as camadas mais baixas da sociedade, que há grupos étnicos para quem a submissão às normas da sociedade em que vivem é coisa difícil, sejam eles árabes, ciganos, negros ou outros. Não estou a dizer nenhuma mentira ou a ser tendencioso ou racista. Basta olhar para as minorias portuguesas por esse mundo fora (e são, maioritariamente, caucasianos), onde elas tentam continuamente rodear ou infringir a lei e impor os seus costumes. Sim, noutros países também somos uma minoria e temos que, a bem ou a mal, acatar as normas do local de acolhimento.
Isto não é racismo ou discriminação, é fazer respeitar a lei e, ao fazê-lo, sermos respeitados. Porém, à semelhança do tema anterior, somos influenciados pela lavagem (ou esterilização) cerebral dos valores primários da Revolução Francesa, onde somos todos citoyens. E caímos todos na esparrela do igualitarismo, até chegar o dia em que deparamos com o facto incontornável de que não somos tão iguais quanto isso.
Sejamos politicamente incorrectos e não deixemos que nos lavem demasiado o cérebro. Acredito na igualdade quando há respeito mútuo; quando não há, deixamos de ser iguais. A sociedade, para ser homogénea, tem de limar as suas arestas, internas e externas, arredondar as suas superfícies como os seixos da praia, guardando, contudo, e tal como estes, as suas diferenças, a sua individualidade, pois que os seixos são todos redondos, mas de diferentes cores e tamanhos.



19. jul, 2017
Post 50

23h45, 18/07,3ª feira
Voltei às minhas práticas desportivas, àquelas que nunca deveria ter abandonado há cerca de 2 anos: percorri todo o parque da cidade, pela periferia, e ainda fui até ao paredão de Matosinhos, numa distância que julgo ultrapassar os 4 km. Custou um pouco mas é necessário e cada vez custará menos.
Por que será que, como diz o ditado, nada se faz sem esforço? Não seria bom fazer tudo sem custar nada? Mas, se o fizéssemos, isso retiraria o prazer do achievement, seria tudo sensaborão, aborrecido, nada apeteceria fazer. Daí o esforço físico, económico, espiritual, daí o “prémio”, o prazer da obra feita, a satisfação de se ter conseguido algo, e que é tanto maior quanto maior o trabalho necessário para o obter.
Felizmente, temos a memória curta: acabamos por esquecer ou “diluir” o desagradável e, no extremo oposto, são necessários novos feitos para repor o nível da satisfação “diluída”, como se de uma droga se tratasse e da qual precisaremos sempre uma nova dose. Mas é uma droga boa, activa as endorfinas sem efeitos secundários adversos. Tal como as outras (as más), ao fim de algum tempo não podemos, felizmente, passar sem elas.
O tema memória é recorrente; ainda há dias falei das memórias da infância e juventude. Afinal, vida e memória (con)fundem-se, uma não existe sem a outra e cada uma é feita da pluralidade da outra: a vida é feita de muitas memórias e a memória é (pode ser) feita de muitas vidas.
A primeira justifica-se por si; quanto à segunda, para que o conceito que exponho possa fazer sentido, basta dizer que, por exemplo, a memória de um povo, ou mesmo de uma família, é feita de muitas vidas.
Quem não tem memória, vegeta, ou nem isso, visto que um vegetal tem vida e evolui e adapta-se – por isso, tem alguma espécie de reminiscência. Quem não tem memória não esteve, não está e não estará, não vive. Trata-se apenas um corpo que existe mas não é, pois que ser pressupõe reconhecimento e este, lembrança, logo, memória.



12. jul, 2017
Post 49

12/07, 4ª feira, 1h35
Amanhã farei 60 anos. Parece que foi há dias (e foi: 21000 dias, mais coisa, menos coisa) que precisava que me desapertassem os calções e me sentassem no bacio, por falta de capacidade mental para o fazer. Quem sabe se, daqui a uns indefiníveis anos, me voltarão a fazer o mesmo… não sejamos pessimistas: viverei até aos 90 anos e totalmente autónomo (querias!).
Pois é, 60 anos que não acredito nem me sinto ter, mas que – sejamos realistas – tenho medo de ter, porque, a partir daqui, começo a lobrigar a minha “solução final”, a uma distância incerta, lá, ao fundo da ravina por onde deslizo sem hipótese de poder travar. Contudo, e apesar do inexorável negro futuro que todos temos que enfrentar, não desespero, não entro em pânico; aproveito para olhar à minha volta e apreciar a paisagem, guardar na memória que perderei, os bons momentos da vida. E, para meu consolo, essa memória perdida permanecerá, de algum modo, nas memórias das minhas filhas, fará parte das suas memórias e das dos seus procedentes. Enquanto ela durar, eu existo.
60 anos! 60 anos de recordações que já foram actos e omissões, doenças, alegrias, tristezas, sucessos e erros, decisões, arrependimentos, momentos felizes. Agora não passam de um filme guardado numa caixa, que vemos de vez em quando e que só para nós fazem todo o sentido. Neste filme existem também muitos segredos não partilhados com ninguém, segredos que só nós conhecemos, segredos que não revelamos por modéstia, por irrelevância, por medo ou por vergonha. Esses, não os partilhamos nas nossas memórias, morrem connosco.


12. jul, 2017
 Post 48

  11/07,3ª feira, 5h43
O dia (a minha noite) está a despontar. Por detrás dos prédios à minha direita vislumbro com nitidez um céu verde-claro com pequenos toques de rosa e pontilhado (direi antes, traçado) por esparsas nuvens, quase inexistentes. Prenuncio um dia quente e agradável.
Quando comecei a escrever, tinha em mente algo….. já me lembro! Lembro-me que em setembro fará 5 anos que iniciei a minha espera pelo Paraíso. Evidentemente, não no sentido literal, espiritual. Esse, essa espera, gostaria que fosse como a de Brecht: por Godot, ou seja, nunca ou, pelo menos, perdida no futuro do futuro. Nada invalida que não mude de ideias um dia. Afinal, nós, os humanos, somos seres que se deixam levar pelos ventos da inconstância.
Estou a falar da espera pelo Paraíso, também este com letra grande, mas apenas por se tratar de um nome próprio, aquele Paraíso de onde eu distribuía comida pelos famintos, não com qualquer intuito altruísta mas comercial. Daí para cá, muita água correu por debaixo das 5 pontes da cidade e de todas as outras pontes do mundo. Esse tempo-acção, para mim, acabou, já não posso deslocar-me de motociclo e o descanso diário é, para mim, essencial. Neste preciso momento, cabeceei de sono, já não aguento tanto. Fará também 5 anos que comecei a escrever estas crónicas, o princípio do “devezemquandário” que, de vez em quando, preencho com as coisas que me saem da cabeça, além da caspa (piolhos, não tenho).


14. jun, 2017
Post 47

23h48,13/06, 3ª feira
Está calor, abafado, desagradável, húmido, doentio; nada apetece fazer, nem mesmo o pasmar indolente dos desocupados.
Estanco, imóvel e sonolento, na quietude deste prenúncio de verão. Sei o que me espera: a tortura calorenta e pegajosa de um estio não totalmente desejado. Os meus genes e outros intervenientes físicos assim o determinaram, tenho a impressão de que nasci no clima errado, talvez a cegonha tenha confundido as moradas.
O que é a vida? Resume-se aos nossos 5 sentidos, às nossas sensações, às nossas emoções? Estaremos aquém da percepção do seu verdadeiro significado, aquém do que nos é apenas cognoscível?
Não creio numa existência mecanicista, não creio que façamos apenas parte de uma máquina concebida para trabalhar sem fim determinado e que se perpetua, criando as suas próprias peças sobressalentes. Nada disso faz sentido.
A evolução não existe por existir, só para tornar mais ou menos funcionais os seres vivos, de modo que, daqui a 100 milhões de anos, eles continuem uma evolução que, 100 milhões de anos depois, continuará e continuará e continuará. Então vivemos porque o nosso fim último é evoluir só pelo simples acto de evolução? Que objectivo vazio e estúpido!
Não podemos ser formigas que põem ovos, para gerarem formigas para porem ovos, tem que haver algo mais que escapa à nossa compreensão, algo cósmico (na falta de palavra mais significativa) que faça algum sentido.
O grande objectivo da filosofia e a grande frustração do homem pensante é essa resposta que, de tão grande, imensa, não se nos consegue revelar por não caber no nosso limitadíssimo entendimento.



7. jun, 2017
Post 46

3h47, 4ª feira 06/06
Um salto à adolescência, pois que a infância deixa as saudades da irresponsabilidade: é uma “máquina de mexer” com excesso de pilhas, um carrinho tele(des)comandado que bate em tudo o que encontra à sua frente.
Mas a adolescência terá sido melhor, mais responsável? Não me parece. A adolescência é uma “máquina dos 5 sentidos” que quer explorar todo o seu potencial, sem atender às consequências. Enquanto a 1ª é cega porque não tem visão, a 2ª é cega porque não quer ver.
Primeira asneira após a fuga das saias parentais: fumar. Fumar porque se pode e porque é fixe e porque sugere maturidade(!). Mesmo que saiba horrivelmente, mesmo que cause náuseas, mesmo que cause vómitos (como a primeira vez que fumei 2 cigarros seguidos). Dá estilo, dá status, enche o ego de importância.
Após isso, porque não uma outra erva? Dá mais estilo, dá mais status, enche ainda mais o ego. Além disso, é proibido – pela sociedade e pelos pais. Mas proibido não é exactamente o que um teenager tem a obrigação de fazer? Senão, és um tono, um merdas, um betinho efeminado (agora ser efeminado também dá importância, não no meu tempo).
Dão pica as coisas proibidas. A transgressão aumenta a testosterona, a adrenalina! A arte de dissimular (por vezes, dando mais nas vistas), o medo de se ser apanhado mas, simultaneamente, a certeza de que não se é, ocupam a imaginação em esquemas fantasistas, dignos de um McGyver ou um 007, por vezes com maus resultados.
Mas quê?? Não é para se aprender, é para tentar de novo!! Jovem que é jovem, tem de ser dono e senhor de uma responsabilidade a raiar a idiotia. Senão é um totó!!
Esta é a visão generalizada do adulto em relação à criança grande. Mas não foi ele também um jovem idiota? (ah, pois, já não se lembra). Nunca fez asneiras? Foi um santo, querem ver? Corrigir e “dar cabo da cabeça” quando é preciso, é a função de um adulto responsável, mas consciente de que já foi igual (ou pior). Em vez de passar-se agora por coisas que já fez, deve tentar entendê-las como parte de um processo de amadurecimento e preveni-las, e aconselhar, e castigar com justeza, não com a indignação de uma alma pura.
Tanta parvoíce, irreverência, falta de atenção, de sentido crítico, de senso comum! Os jovens são (fomos) assim. Sobrevivemos melhores e mais fortes, mais equilibrados.
Não vale a pena lamentar e criticar, é um processo natural por que todos passam, uma “estupidez” necessária, um ritual de iniciação. Alguns ficam pelo caminho, como as crias demasiado ousadas que caem abaixo do ninho, acasos infelizes. Mas coarctar tudo isso seria colocarmo-nos numa estufa, numa prisão, com sérias consequências ao nível dessa mesma responsabilidade que tanto queremos preservar, deformando-a, destruindo a auto-estima, criando autênticos deficientes.



6. jun, 2017
Post 45

01h53, 3ª feira, 06/06/17
Memórias, memórias! A semana passada iniciei um ciclo de memórias de infância que teimam, felizmente, em permanecer no meu “disco duro”.
Falasse a alguém em disco duro nessa época e logo a imaginação reportar-se-ia a um pedaço circular de vinil, 45 ou 78 rpm, negro, com riscos concêntricos e que, colocado num aparelho reprodutor (de som) emitia música ou algum outro ruído. Falasse-se em computador e talvez, por associação de ideias, a mente tivesse pensamentos perversos ou seria, no mínimo, uma palavra a evitar por conter um registo fónico associado, por similaridade, a acções menos dignas, a referências socialmente condenáveis ou desaconselháveis.
Pois dizia eu que as recordações de infância são algo que perdura geralmente durante toda a vida, embora por vezes tenhamos que fazer um esforço para recuperá-las das profundezas da memória. Mas, à medida que vão surgindo à superfície, trazem consigo outras, enterradas também, encostadas a um canto, aguardando uma ressurreição salvadora.
Há coisas que surgem vívidas, saídas de um passado oriundo do início da nossa existência, flashes que aparecem como fotografias ou curtíssimas metragens, sem razão aparente, focando na generalidade situações banalíssimas, tão banais que admiramos que a nossa memória as tenha gravado. É como se tivéssemos uma máquina fotográfica ou de filmar que, de repente, disparasse sozinha e desligasse em seguida. Muitas das vezes estão repletas de pormenores e, às vezes, sentimo-las como se vistas de fora, como por um alter ego. São fotos onde, embora tiradas por nós, aparecemos na fotografia.
Sempre fui rijo de pernas, isso devo-o ao meu pai. Com 5 anos já fazia caminhadas, junto com os meus irmãos mais velhos, de cerca de 11 km. Obviamente, íamos parando de vez em quando, o meu pai não era nenhum sádico. Imagino que terá sido gradualmente que ele nos incutiu esse hábito; o que é certo é que, antes dos 7 anos, já eu o fazia “na boa”. Sei com certeza que seria antes dos 7 porque, a partir de 1964, se a memória não me atraiçoa, os meus irmãos foram viver com a minha mãe. E também sei com segurança a distância, pois eram 11 os quilómetros de Esmoriz, onde vivíamos, até Ovar. Ou então até Espinho, que eram 6 ou 7.
É evidente que, a maioria das vezes, voltávamos para casa de camioneta ou de comboio, embora também o fizéssemos a pé, tudo dependia do grau de cansaço.
Falando de Espinho, lembro-me que íamos muitas vezes (já depois de os meus irmãos terem abalado) a uma espécie de armazém-mercearia (o sr João) na – salvo erro – Rua 14, entre a 21 e a 23, onde o meu pai passava horas esquecidas a conversar (ele era um grande conversador), para meu desespero. Recordo-me também que ele nunca baixava a guarda na vigilância sobre mim, era um atento controlador das minhas acções, nada lhe escapava: um dia, num dos meus actos de “desvio”, próprios de qualquer criança (quem nunca o fez, que atire a primeira pedra), surripiei, com a mestria inata de que só uma criança é capaz, uma amêndoa descascada. Relembro que, na época, os frutos secos, o arroz, o feijão, as leguminosas em geral e muitas outras coisas, eram apresentadas ao público, nos estabelecimentos, em grandes sacas de serapilheira, com as bordas dobradas para fora, para maior comodidade.
Pois bem, o meu pai estava atento, apesar da amena cavaqueira em que se encontrava imerso. Aliás, como disse, ele estava sempre atento aos meus actos, aos meus gestos, a tudo. Se eu saía do seu campo de visão, ele mudava discretamente de posição para controlar-me ou, se tal não era possível, chamava-me para a sua beira. Não o critico, por essas e por outras devo-lhe muito do que a minha personalidade tem de positivo.
Voltando ao assunto, ele, imediatamente e antes que eu pudesse fazer desaparecer o corpo do delito, chamou-me e deu-me uma descompostura pública.
Em criança, eu era muito envergonhado; senti-me tão mal que… nem sei como me senti, só sei que das vezes seguintes que lá fui com ele, fugia da presença das pessoas que testemunharam o “crime”, sentia no íntimo como se eles ainda me apontassem um dedo acusador.
Era assim o meu pai e, bons ou maus métodos, devo-lhe muito do que sou hoje. Todos os pais têm defeitos, alguns grandes. Eu não serei excepção.
Havia ainda na Rua 19 (em Espinho, todas as ruas eram identificadas por números – as paralelas ao mar por pares, as transversais, por ímpares) uma outra grande mercearia; esta, porém, porém, já era avant-garde, fugia ao tradicional. Chamava-se Celeiro e acabou por se transformar num dos primeiros supermercados que conheci, um pioneiro, a par com a Casa Villares, na Rua Formosa, em frente ao Bolhão, no Porto, e que já está encerrada há talvez 20 anos.
Fazíamos aí as compras para o mês inteiro, as quais eram geralmente transportadas para casa de táxi. Embora vivêssemos com algumas dificuldades, esse meio de transporte não era assim tão caro. Outros tempos!



1. jun, 2017
Post 44

2h27, 30 de Maio, 3ª feira a 1 de Junho, 5ª feira, 4H15
Recordo os meus tempos de criança, recordo a vida como era há mais de 50 anos. Pelo menos, o pequeno mundo em que vivi, limitado pela tenra idade e pela trela parental burguesa, carregada de conceitos e preconceitos, sabedorias e ignorâncias, mitos e verdades.
Recordo o ambiente de uma vilazita quase sem história: o Alves Dias da taberna-mercearia-drogaria, junto à gasolineira da BP, com a sua bata cor de galão com manguitos até aos cotovelos; aí vendia-se, a peso, o feijão, o grão, o açúcar, a farinha e o milho para as galinhas, retirados de baús-armários de madeira; em cima do balcão de mármore branco-rosado um dispositivo para cortar bacalhau seco – do qual não sei o nome - e ao lado, montados no balcão, 2 bombas de extracção.
Trabalhavam com um êmbolo, puxado por uma manivela e que se deslocava por uma espécie de eixo helicoidal. Lado a lado, ainda compatíveis em irmandade, o azeite e o petróleo, o verde e o salmão. Lado a lado também, vendiam-se os bagaços, os copos de vinho e iscas de fígado ou o bacalhau e o arroz, o açúcar e as batatas.
Lembro-me dos cartuxos de papel grosso riscado, cujo fundo era colado, ou com cola grossa, espessa, ou com cimento(!), para pesarem mais. Lembro-me do chão de cimento, coberto com serradura, e do indispensável escarrador, esse objecto em esmalte cinzento-claro ou branco, presente também nas barbearias e até nas farmácias. A higiene acima de tudo!
Em frente era o Aleixo – drogaria-papelaria-electricista-livreiro, também ele bata cor de café com leite e mangas de alpaca, que vendia gás de garrafa (claro) e entregava-o numa furgoneta Austin verde-garrafa – daquelas que já só se vêm nos filmes antigos – cujo motorista era o sr Manuel. O carteiro também marcava presença diária, mesmo aos domingos; só me lembro que, dos dois, um chamava-se Cruz.
Lembro-me que se fumava em toda a parte: nos comboios, nas camionetas, nas mercearias, drogarias, farmácias e talhos. Só não se fumava nas peixarias porque não existiam, eram as peixeiras que vendiam o peixe às portas.
Os comboios tinham tabela mas não chegavam a horas: chegavam quando chegavam, por vezes com 1 hora ou mais de atraso. Havia prioridades sobre os comboios para o povo: passavam sempre à frente o “Foguete” (o “Pendular” da época) os comboios de mercadorias[!] e o “Correio”, com as suas carruagens bordeaux típicas. Ninguém reclamava, limitavam-se a aceitar resignadamente um dado assumido.
Em dias de feira em Espinho, era ver a III classe a abarrotar de gente, cestos com galinhas e hortaliça, numa carruagem que mais parecia um “wagon” do Faroeste americano: um contentor de madeira com bancos e overbooking heterogéneo, perfumado com Chanel de sovaco e capoeira.
O que não faltava era respeito e educação: mesmo os mais rascas dos rascas, mesmo a gente do povo mais básica, mais rural e analfabeta, era educada; não se ouviam asneiras na presença de desconhecidos e o respeito pelos outros estava sempre em alta, embora a higiene e as maneiras rudes – no sentido de pouco refinadas – não marcassem muita presença.
Recordo com nostalgia as locomotivas a carvão, altivas, possantes, barulhentas, fumegantes, mágicas. Vê-las passar, estar perto delas, era um deleite para os sentidos; o barulho, o fumo, os silvos, conferiam-lhes uma aura de deuses do Olimpo.
Televisão: caixotes de madeira com écran reduzido, imagens a preto e branco (de medíocre ou péssima qualidade, para os padrões de hoje), programação de curta duração, que, salvo erro, começava ao fim da tarde e terminava cerca da meia noite. Quanto aos programas difundidos, embora visados pela censura, eram variados e focados no país, com uma vertente cultural, a seu modo, elevada: peças de teatro às 4as feiras, filmes portugueses e estrangeiros ao domingo, (in)formação rural também ao domingo, pelo engenheiro agrónomo Sousa Veloso, concursos que privilegiavam a cultura geral, programas de literatura e poesia, e também touradas, missa e informação estatal.
Vivia-se num país sem muitas pressas, um locos amoenus morno, uma Arcádia sem altos nem baixos, onde as pessoas, mal ou bem, se limitavam a viver no seu cantinho, metidas consigo próprias, sem ambições. Um limbo.
Ida ao Porto: uma aventura sensorial, o supra-sumo das experiências. Esperada com excitação e impaciência, era viagem imperdível e inesquecível, o penetrar num mundo onírico, aparentado com a ficção científica. De comboio ou camioneta (eram dos Carvalhos ou de Lamas e eram vermelhas), num maravilhoso e inexcedível desconforto e sobrelotação, era um espraiar de olhos sobre paisagens nunca vistas (mesmo que já observadas várias vezes), uma visita à grandiosa cidade, émula da Metropolis de Fritz Lang. Não havia auto-estrada, só a ponte Luis I para aceder à urbe. Fila deleitosamente interminável que permitiria, no dias de hoje, fazer uma curta-metragem durante a dita travessia. E… boquiabertismo!
No comboio, na ponte Dª Maria I, a 20km à hora (velocidade máxima permitida), o êxtase era o mesmo, apenas com a diferença de que, se nos debruçássemos na janela, podíamos vislumbrar o rio Douro, directamente por baixo, através das traves da via-férrea.
O rádio era presença constante: música portuguesa a 99,9%, folhetins, informação nacional e alguma internacional “peneirada”, folhetins e missa, tudo a condizer com a pacata vida.
Nesse tempo dava-se valor ao tempo, que nunca era escasso. Os raros brinquedos eram mimados, apreciados, exploradas todas as suas potencialidades, mesmo as improváveis. Havia tempo para brincar, para estudar, para estar em família e, muito importante, para pensar.
Não quero dizer que antes é que era bom, que sou saudosista no sentido de querer voltar ao passado. Não. Cada tempo tem o seu tempo, o seu prazo de validade. Atualmente não é melhor nem pior do que há 50 anos, é o que é, o que deve ser, de acordo com a evolução da sociedade e das mentalidades e devemos aceitá-lo como tal.
Que se conteste o estado em que está, é natural; é necessário fazê-lo para que haja desenvolvimento e para tentar melhorar a justeza da vida, tal como foi contestado há 50 anos, ou 100 ou 1000 anos.
Porém, o “nosso” tempo, a época de cada um, é insubstituível, as memórias de vida são pessoais, intransmissíveis, únicas e, não raro, carregadas de nostalgia, mesmo que, em parte, esse passado tenha sido desagradável. As recordações acompanham-nos para sempre e são o nosso fiel da balança, o juiz do nosso presente.


21. mai, 2017
Post 43

11h42, sábado, 20/05/17
Back in business! Após um interregno de algumas semanas, volto a escrever. Não que tenha muito tempo – neste momento estou (pre)ocupado com uma mini-tese de mestrado – mas porque tenho de voltar a escrever, para não perder a prática e para “arrumar as prateleiras”, desabafar à minha maneira, descomprimir. Entretanto, montes de ideias perderam-se, deitadas ao gato, atiradas fora sem hipóteses de serem preservadas. Outras cresceram, amadureceram e secaram pelas mesmas razões, pensamentos perdidos, desperdiçados, deitados pela pia abaixo, sem remissão.
O que escrevo hoje não será o mesmo de que se o tivesse escrito há 1 ou 2 semanas, 1 ou 2 dias, 1 ou 2 horas. O pensamento é como o mar: a água é a mesma, as ondas são sempre diferentes.
Quando se caminha para sénior (um eufemismo para velho – assim dói menos), o relógio do tempo acelera extraordinariamente. Noto isso por, entre outras coisas, o descanso semanal: parece que se encavalitam uns nos outros, parece que ainda ontem estive e hoje já estou, é bom e aterrorizante. Se, por um lado, são dias aguardados com impaciência, dias de descanso, onde podemos fazer tudo o que nos der na gana, ou pôr em ordem assuntos pendentes ou compulsórios, não espartilhados por uma farda ou relacionamentos profissionais, pelo outro lado, começamos a sentir mais o “peso dos anos”, temos mais tempo para observar as nossas limitações ditadas pelo natural desgaste físico, temos mais tempo para olhar o futuro, mais tempo para meditar no “fim do prazo de validade”, cada vez menos tempo para pensar, agir, viver.
Há pessoas que se dizem em paz com a existência e com o seu destino óbvio. São pessoas que afirmam que viveram uma boa vida, cheia de tudo o que uma vida tem (incluindo os maus momentos que, no futuro de cada um, podem ainda ser, a seu modo, felizes recordações).
Eu ainda não estou em paz comigo e com a existência. A minha vida tem lacunas profundas que nunca poderei preencher, por mais tempo que viva. Ainda não me sinto preparado para o Grande Dia (que, paradoxalmente, é o mais curto) mas sei que ele virá disfarçado de dia normal e, quando der conta, não haverá outra aurora ou pôr-do-sol para contemplar. Quando nascemos, começamos imediatamente a adiar o inevitável.
Estarei alguma vez preparado? Tenho que admitir que talvez. Já aceito coisas que há anos seriam para mim inconcebíveis, inaceitáveis. Porque não mais outra, só mais outra? Prometo que será a última.
O tempo está calmo, ameno. Prenúncio de Verão, de calor. Este tempo já não era sem tempo, basta de frio e chuva. Para isso, o nosso íntimo é-nos suficiente.



17. abr, 2017
Post 42

02h09, 2ª feira, 17/04
De volta ao meu lugar-comum, a fazer coisas que são um lugar-comum, numa vida que é um lugar-comum. Enfim, uma comunidade total.
O silêncio, hoje, como que me incomoda, esse som mudo que é, ao fim e ao cabo, um zunido surdo imperceptível ou quase, do qual apenas nos apercebemos se fizermos um exame mental atento. É como um ruído de fundo, uma estática.
Deve ser simplesmente horrível ser realmente surdo, a sensação de vazio auditivo deve causar uma solidão incomensurável, apenas imagino.
Já o ser cego, experienciei parcialmente e não foi agradável, é um negrume total, ou antes, nem isso, é uma ausência aflitiva de qualquer sugestão de imagem e que não pode ser recriada artificialmente.
Quando tapamos os olhos, há sempre sombras, sensações de movimento, como que ondulações invisíveis mas liminarmente percepcionadas. Na cegueira não, há uma ausência total de seja o que for, como se fotónicamente não existíssemos, nada existisse.
Comigo isso sucedeu em 2007, em consequência de um acidente isquémico transitório, que obturou os vasos sanguíneos do nervo óptico de um dos olhos, já não me recordo qual.
Ausência total de luz, de cor, de qualquer sugestão de movimento, de qualquer tipo de percepção: sem palavras.
Agora só me falta falar do olfacto, do gosto e do tacto, isto para não mencionar o sexto sentido, que na verdade ninguém verdadeiramente sabe se tem ou se existe, mas que presumo estar ligado a uma qualquer inexplorada apetência para detectar alterações do campo magnético, possivelmente através de alguma zona inexplorada do cérebro e por processos igualmente desconhecidos que para nós, simples mortais cognitivamente subdesenvolvidos, apenas poderão ser abordados num campo subjectivo e hipotético, meramente teórico, que alguns apelidarão de efabulação, devaneios oníricos ou utopia.
Bem, não vou falar dos outros sentidos, não estou para aí virado, talvez noutro dia.
Falta-me uma certa paz de espírito, que anda arredia, como há tempos disse (por outras palavras), falta-me aquela pachorra beatífica, o inverso da urgência paniquenta com que me tenho deparado mas que esforço-me por controlar. É às vezes como se fosse hoje o meu último dia e quisesse fazer tudo o que não farei, uma espécie de stress que, em termos psiquiátricos, terá certamente um nome mais altissonante, críptico, gráfica e conceptualmente apenas compreensível para a douta classe indirectamente referida. E por aqui me fico.



11. abr, 2017
Post 41 (editado)

Madrugada de 10/04/17
À minha frente espraia-se um fragmento da periferia da cidade, pontilhada por pirilampos brancos e amarelos, outros mais coloridos e diversificados , insectos luminescentes que se alimentam de carvão e ar e água e que adormecem ao raiar da aurora. Espalhados pelos passeios, contemplam indolentemente e com indiferença os seus semelhantes que passam esporadicamente, à boleia de um qualquer meio de locomoção, ou então vêm passar um ou outro raros humanos gratos e confortados pela sombra da sua luz.
Evidentemente, falo da iluminação pública, dos anúncios comerciais e dos veículos, não vá alguém pensar que pirei de vez e exteriorizo monólogos incoerentes. Digamos antes que relato o que vejo à luz de um certo simbolismo e uma pitada de surrealismo.
Por vezes sinto que uso um corpo estranho que não reconheço como fazendo parte de mim, assemelhando-se a um veículo emprestado. Outras vezes percepciono-me como irreal, como uma personagem que de alguma forma criei para esta peça de teatro que represento com todo o resto do mundo e seus cenários. É como se fosse outro eu que não eu, fazendo seu o corpo que habito mas não me pertence.
06h44, 4a feira, 29/03
É quase dia, o céu passou de negro a anil, não chove nem vai chover hoje. É pena ter que dormir e estragar a contemplação do esplendor de um nascer do sol primaveril. A minha vida é feita de crepúsculos.
O silencio adormece e dá lugar ao despertar da vida, ao barulho da vida. Quando à noite estou em silêncio e solidão, evito fazer barulho, como se com ele temesse acordar os meus demónios.
A noite é -me estática e familiar, criadora, calma, repousante. É nela que eu escrevo e estudo, a minha musa. Só lamento a paisagem e os sonos trocados mas não há bela sem senão, há sempre um preço a pagar.
Pela janela vejo uma infinidade de pombas e gaivotas, recortes móveis contra um céu farfalhado de rosa e chumbo, como se fossem cinzas esvoaçantes de um grande incêndio. Nunca tinha reparado nessas migrações matinais, decerto repetidas desde tempos imemoriais. Não me admiro muito, por vezes apercebo -me pela primeira vez de coisas, ninharias que me passaram centenas, milhares de vezes pelos olhos mas que nunca vi. Há evidências gritantes que nunca vimos nem veremos porque os nossos olhos abertos estão tapados.


23. mar, 2017
Post 40

20h46, 22/03,4ª feira
Dei-me ao trabalho de calcular quantos dias vivi desde a data do meu nascimento (mera premissa convencional) até hoje: 21 802 (já com 15 dias adicionais, referentes aos anos bissextos).
De acordo com a psiquiatria, esta atitude de procura de exactidão denota traços de comportamento obsessivo-compulsivo. É possível, por vezes tenho uma certa.... não direi necessidade mas curiosidade... bem, terei mesmo que dizer obsessão de responder a esta ou aquela questão que me proponha (e agora vem aquela parte em que me desculpo perante mim próprio e a sociedade): Mas quem é que não tem ou teve este tipo de comportamento durante ou nalgum momento da sua vida?
Calculo que esta atitude tenha a ver com o questionamento, a necessidade de encontrar um sentido à vida, uma resposta última que julgamos será tanto mais satisfeita quanto mais respostas obtivermos das parcelas que a compõem, por mais ínfimas e (a nosso ver) mais insignificantes que elas sejam. Gostaria de saber um pouco mais sobre psicologia, sociologia e psiquiatria para aduzir ou abduzir esta correlação que, suponho, terá significado ao nível do grau de satisfação/insatisfação do homem confrontado consigo mesmo e com a força anímica que ele questiona.
Ou seja, serei um obsessivo-compulsivo (e por esse motivo) sujeito a uma visão questionante e negativista da existência ou, inversamente, levará a obsessão-compulsão à dúvida sobre o sentido da vida? Serão as dúvidas existenciais obsessivo-compulsivas?
Isto conduz-me a outra pergunta: acreditando na continuidade extra-corporal (em que acredito), será que a demanda do significado da existência do espírito e do Universo continuará aí, no pós-vida, a fazer sentido? Esta conjectura é impossível de determinar antes da chamada viagem de não-retorno. Como tal, de momento, não estou muito interessado em saber.

16. mar, 2017
Post 39

00h42, 5ª feira, 16/03
Noite calma, desanuviada, quente para a época, apetece passear. Como estou confinado ao “meu” prédio, desgasto as solas dos sapatos e o desejo de espaços abertos, na periferia do mesmo. Nos intervalos leio, estudo. Ou vice-versa: passeio-me nos intervalos do estudo.
Tenho pena, remorso, dos projectos protelados, procrastinados, da minha vida. Bem, dos não-utópicos. Luto sempre com o sentimento de que é tarde demais para recomeçar, que deveria tê-lo feito há 20 ou 30 anos. Mas não é nunca tarde. Se assim fosse, para quê estudar, para que estaria, passo a passo, disciplina a disciplina, a tirar um mestrado?
Não é tarde enquanto fizer sentido, enquanto permitir (re)viver para além das nossas mesquinhices, do nosso statu quo, afastar-nos da deletéria cultura do sofá, aquela onde definhamos a vida e engordamos o corpo e o cérebro. Apesar de toda a carga pessimista (não derrotista) que caracteriza as minhas memórias e crónicas, não vou deixar-me assoberbar pela cultura do desperdício intelectual (nem físico) e transformar-me num monge contemplativo da ordem da Santa Televisão ou prestar culto no altar dos jogos da Santa Sueca dos reformados e ociosos da zona. Não! Isso seria suicídio do corpo e eutanásia do espírito.
Bolas, lá estou eu com hipocondria de pensamento e autocomiseração. Apercebo-me que o que maioritáriamente escrevo é sobre mim próprio, um centralismo egótico a raiar uma muito suave patologia. É certo que, afinal, falo sobre o que mais (des)conheço...
Este estado de espírito tem um pouco a ver com o volte-face da minha vida de há um ano a esta parte, um certo fatalismo associado a uma já existente propensão para encarar a existência como algo um pouco pointless. No entanto, já vejo sinais de recuperação, o período de luto está a passar e, se ainda não vislumbro luz no fundo do túnel, vou-me apercebendo de uma certa penumbra.


14. mar, 2017
Post 38

00h58, 3ª feira, 14/03
De volta à minha tabula rasa gráfica, aquela onde (e aqui recordo o magnífico Escriba Sentado, do Museu do Louvre) gravo as minhas memórias e considerações do momento, sempre móveis, sempre em transformação.
O pensamento é como uma criança: irrequieto, volúvel, em constante correria; a sua relação com o corpo que habita é de imutabilidade, pois enquanto este envelhece, aquele mantém a sua irrequietude (a não ser que algum gravetozito, seja do foro neurológico ou psiquiátrico, tenha travado a engrenagem).
Estive a pensar naquilo que nos mantém vivos: a memória. Sem memória não há ou existiu vida, é ela que nos faz ter 3, 20, 30, 50 ou 100 anos. Sem ela não temos idade porque esta é feita das recordações da nossa existência.
Quando olhamos para uma árvore genealógica e vemos Fulano(a) de Tal casado(a) com N, isso significa que o cônjuge é Nada, Ninguém, Neutro, Nulo, determina que quem foi já não é, diluiu-se na não-existência, deixou de pertencer à nossa memória ou à de quem quer que seja. É por isso que guardamos cartas, documentos, fotografias, retratos, túmulos. São eles que nos fazem existir, são eles que transportam alguém para um presente que ainda não aconteceu e que só acontecerá se esse alguém aí tiver representação, se criar memórias nas memórias de outras pessoas, como se em caixinhas chinesas ou Matrioskas.
Ser significa ter memórias e, paralelamente, ser memórias. Somos um objecto, uma pedra, se não tivermos memórias, nada somos se ninguém tiver memória de nós, mesmo que parcial ou residual: ser alguém que fez parte disto ou daquilo algures num passado mais remoto ou menos remoto – uma batalha, uma fundação, um acto pioneiro, um documento. Transmite-nos mais, faz mais sentido um túmulo identificado do que os estimados 6 milhões de esqueletos existentes nas catacumbas de Paris, pois do primeiro criam-se memórias espaciais, temporais, conceptuais, memórias de pertença a esta ou aquela região, a este ou aquele país. São vagas, remotas, impessoais, mas existem e fazem com que esse ser que jaz, tenha existido. Em contrapartida, cada um dos ossos, cada um dos esqueletos presentes nas catacumbas ou ainda qualquer Naenderthal, Cromagnon, Sapien, Erectus ou outros, são curiosidades ou peças de museu sem nenhum peso, sem nenhuma recordação, nada nos dizem a não ser como “objectos” de um passado histórico.
Lembro-me de ter anotado há meses esta reflexão: quando morremos, somos hipócritamente tudo de bom e/ou maldosamente tudo de mau. Somos uma memória transmitida para as gerações vindouras (evidentemente conotada com a simpatia ou antipatia por parte dos nossos analistas) e que nos faz ser alguém enquanto perdurarmos como memória, seja ela qual for, e até nos diluirmos na não-existência. Só aí retornamos ao pó primordial, que diluirá para sempre o nosso ser, a nossa individualidade, pela ausência da lembrança.


14. mar, 2017
Post 37

00h45, 12/03, domingo
As minhas folgas de 5ª e 6ª feira foram desperdiçadas em inutilidades úteis, uma forma de perder tempo recuperando energias e, simultâneamente, perder energias por stressar com o tempo malbaratado. Paradoxal mas verdadeiro. O ganho, a existir, passa pela gestão do modo como encaramos o dito desperdício de tempo: se lamentamos o laxismo a que voluntáriamente nos sujeitámos, então mais valeria não termos folgado, pois o sentimento de culpa dá-nos cabo da saúde, tanto mental como física e deixa-nos uma sensação de vazio e desperdício.
Se, pelo contrário, preferimos e aceitamos o dolce fare niente como algo que merecemos e a que temos direito, um recarregar de baterias necessário para aguentar mais uma semana de trabalho sem ou com poucas sequelas, então só teremos a lucrar: melhor disposição, melhor saúde, mais positivismo e gratificação laboral, mais sentido na vida (se tal é possível).
Nunca sei para que lado pende a balança do meu discernimento: acho que o stress e a satisfação estão sempre em luta pelo poder e isso também cria ansiedade, embora esta seja mais fácilmente sublimável.
Ponto da situação: o meu índice de felicidade – e usando a terminologia dos analistas económicos – está um pouco acima de lixo, o que é óptimo (ou pelo menos, bom).
No fundo, no fundo, penso que sou feliz em estar como estou e ser como sou. Feliz em ter esta idade e não ser mais novo nem mais velho: se fosse mais novo teria menor experiência e, consequentemente, menos sabedoria. Se fosse mais velho, teria os pés mais perto da cova e isso já diz tudo. Um dia de cada vez. Feliz em ser (ou esforçar-me por ser) justo, equilibrado, humano e não o inverso; a maldade, a má formação de carácter é, para mim, horrível.
Em suma: não sou santo mas tento sê-lo e isso é o mais importante do nosso percurso na vida terrena. A felicidade não existe em toda a sua plenitude. O que sentimos são choques efémeros de felicidade sempre que pomos os dedos na tomada, sempre que degustamos um momento agradável, e isso ajuda-nos a viver uma vida equilibrada. A felicidade omnipresente acaba por se tornar na maior das infelicidades, no supremo spleen que nos tira a vontade de viver. É como os pratos orientais: ao lado do arroz neutro, sem sabor, há outro ingrediente que produz o choque, o contraste que dá paladar ao prato da refeição, à experiência sensorial e espiritual.


6. mar, 2017
Post 36

00h42, 06/03, 2ª feira
Estou num daqueles impasses decisórios que julgo acontecerem de vez em quando a toda a gente, mesmo àqueles que dizem nunca tal lhes ter sucedido. Esses são os que, consciente ou inconscientemente, sentem-se mais equilibrados ou mais perfeitos que os outros. Não quero com isto dizer que sejam convencidos; por vezes é uma reacção natural de pessoas normalíssimas. Afinal continuamos a ter traços bem fortes da animalidade primordial que nos compele a tentar inconscientemente ser melhores que os outros, como forma de selecção natural. Apenas evoluímos em relação aos nossos “congéneres” anímicos no tocante ao refinamento desse esforço de nos sobrepormos, como forma de domínio ou superioridade.
Dizia eu então que estou hoje num impasse. É verdade, não sei que fazer, como fazer, que voltas a dar à minha vida mais imediata, àquele futuro possível e incerto que terei a curto prazo, se a roda da vida mo permitir.
Às vezes, mesmo as resoluções mais simples e básicas tornam-se complicadas, as soluções que normalmente surgem fluidas e intuitivas representam um quebra-cabeças que nos atormenta, mesmo sabendo que são pontuais e insignificantes, tempestades num copo de água. São momentos aflitivos, no mínimo desagradáveis, que nos provocam tensões mais ou menos intensas, consoante sejamos mais ou menos emotivos. Comparo-as às “aborrecentes” brancas que surgem quando nos queremos lembrar de algo que está mesmo debaixo da língua, da nossa língua cerebral, mas que teima em não surgir. Essa frustração é muitas vezes dramática, ficamos alterados pela incongruência e isso tira-nos (metafóricamente) anos de vida. Essa aterosclerose cognitiva preocupa-nos mais à medida que vamos envelhecendo, o intelecto apercebe-se da degeneração lenta e progressiva que o afecta e começa a criar-se um clima de tensão permanente, difícil (se não impossível) de eliminar.
Quem nunca teve pensamentos de temor sobre o que nos reserva o futuro, se formos vivos, se continuamos a envelhecer? Quem nunca pensou em Alzheimer e outras doenças cerebrais degenerativas? O medo de perder faculdades é pior que o medo de morrer, é um sentimento de morte em vida, um tormento que pode arrastar-se por muitos anos.


20. fev, 2017
Post 35

04h17, 2ª feira, 20/02
Iniciei uma escrita sem destino, sem propósito definido. A minha mão é um barco que voga no papel à mercê do embate das vagas do pensamento.
Vem-me à ideia a noção de que tudo é uma inutilidade que teimamos em repetir, um edifício em constante degradação e permanente re-consolidação para evitar a ruína, uma casa que mantemos mas que nunca verdadeiramente habitamos e que legamos aos vindouros para que façam o mesmo, num movimento perpétuo que relembra o suicídio dos lémures: frustrantemente incompreensível.
 Eis-me portanto aqui sentado a escrever e a exercer uma função profissional que repetirei ad nausea para poder sobreviver num ciclo também indefinido do binómio comer/defecar. Poderei acrescentar pensar/agir, mas tudo depende do primeiro; e tudo sem um objectivo definido, sem algo a que possamos realmente chamar o sentido da vida.
Comer/defecar/pensar/agir – morrer; uma minúscula peça de uma engrenagem gigantesca e complexa que se move e trabalha como um relógio sem ponteiros, sem finalidade. Mas no entanto funciona! E vai substituindo as peças desgastadas por outras que foi criando, uma máquina cuja única função visível é fabricar vida efémera para se auto-renovar, uma espécie de fonte da eterna juventude em que a máquina, imutável e imortal, tem como razão de existir a sua própria existência.

8. fev, 2017
Post 34

04h01, 08/02, 4a feira
Pergunto-me ao espelho o meu Futuro e espero-me em vão uma resposta. O meu Presente: silêncio. Pergunto-me o meu Passado e vejo-me horas, dias a fio, a contar-me vida.
Toda a vida é Passado; a morte, o momento da morte, é Futuro. Depois a morte é Passado, até que este se desgaste, desfaça-se por atrito com o Tempo, para quem nem a perenidade é perene.
Sem ser para mim, o que sou eu? Um ponto no nada que se afasta até ponto deixar de ser, até que o nada não seja nada e deixe de existir.
Hoje sou, antes de ser nada; amanhã fui, antes de ser nada; depois... nada, e no fim, se é que existe um fim quando nada há, nem isso.
Mas como é possível não ser nem sentir aquilo que sou e sinto, como posso desaparecer se não existo? O que haverá para além de mim que desconheço, que Nada será esse o do porvir?
Sofro o sofrimento da morte que é mal vinda, que essa sim, não morre enquanto houver vida, durará talvez eternamente.


8. fev, 2017
Post 33

00h23, 31/01, 3ª feira
Eis-me só. Só com os meus botões e fechos éclair. (???) Sim, eu disse mesmo fechos éclair. Afinal os ditos populares, os chavões a que estamos habituados e com os quais convivemos durante grande parte das nossas vidas têm que evoluir, senão acabarão por deixar de fazer sentido e serão pronunciados por mero hábito ou por ouvir dizer aos mais velhos. E, embora sabendo os contextos em que são usados, já não saberemos o seu significado etimológico. Ou, pura e simplesmente, desaparecerão como modismos que foram ou contextos que deixaram de ser.
Dar às de Vila Diogo, chamar o Gregório, dar com os burrinhos na água, carapau de corrida, trinca-espinhas, ir às malvas, bater a cassoleta e tantos outros, são expressões cada vez menos usadas porque perderam já o impacto da sua significação original ou foram sendo substituídas por outras expressões geracionais que, por vezes, difícilmente aceitamos porque estamos demasiado apegados às nossas próprias expressões geracionais.
A língua evolui e com ela o argot, o calão. Se assim não fosse, ao falarmos, estaríamos tão desfasados da nossa época como sucederia se estivéssemos vestidos com indumentárias da Idade Média.
Dizia eu, então: só. Envolto na minha carapaça de memórias, pensamentos, alegrias e fobias, vivências e esperanças. Afinal não estou só, tenho o meu mundo comigo, as minhas descobertas, as minhas pequenas felicidades, os meus desgostos, as minhas experiências, a minha família, os meus amigos, as minhas esperanças e desilusões. Tenho afinal um pequeno universo particular cheio de vida, que fervilha de vida e interage comigo, não estou sózinho no meu mundo. Apenas não o sei gerir, razão por que me sinto tão isolado. Aquele que controla o seu mundo é feliz.



8. fev, 2017
Post 32

01h45, 5ª feira, 19/01
Frio, 0°. Dilema: aqueço-me ou congelo-me? Faço ronda ou limito-me a ver as câmaras? Tenho que ser honesto comigo próprio, não me sinto bem sem cumprir a minha obrigação laboral, independentemente de ser bem ou mal pago, ter ou não frio, apetecer ou não e nisto sou o meu mais acutilante crítico. Não digo que não faço batota de vez em quando mas quando o faço fico sempre com um peso na consciência, sinto não ter cumprido eficaz e honestamente a minha obrigação como profissional que sempre tentei ser nos meus múltiplos empregos. Poderei eventualmente não ter sido bom executor mas pelo menos tentei sempre cumprir e mesmo superar as minhas obrigações sem esperar em troca nada mais do que a satisfação do dever bem cumprido, pelo menos formalmente. Sacrifícios no trabalho? Se forem actos voluntários, são gratificantes.
Haverá consciência sem vida ou vida sem consciência? Li há alguns anos que, por experiências feitas em laboratório, as plantas entram numa espécie de coma quando a sua integridade física é posta em causa (ler Michael Pollan e Peter Tomkins). Isto deixa-me a braços com a interrogação inicial: se não houvesse consciência não existiria tal reacção, pois não havendo qualquer espécie de sofrimento experienciável e consciente, não faria sentido o tal estado comatoso. Isto levanta questões filosóficas e existenciais muito importantes, pois é universalmente(?) aceite que as plantas e os insectos não são seres sencientes, o que os relega para uma existência regida apenas pelo mecânico instinto de sobrevivência. A ser verdade, a experiência relatada põe em causa muitos conceitos, noções, dogmas que temos inculcados nas nossas mentes. Temos que ter abertura suficiente para aceitar hipóteses, por mais improváveis que sejam e às quais não chamaremos absurdas pois absurdo era, segundo os sábios de diferentes épocas, pôr na água navios de ferro porque iriam ao fundo ou pôr a voar fôsse o que fôsse mais pesado que o ar ou circum-navegar a Terra, que todos sabiam que era plana e que o mar terminava num abismo.
Ou seja, as plantas e os insectos são eventualmente sencientes e eventualmente não sencientes, para já é tudo uma questão de crença e escolhemos a que mais gostarmos, correndo sempre o risco de tomar a decisão errada (ou não).


18. jan, 2017
Post 31

01h03, 4ª feira, 18/01
Faz mais de 30 anos que estou para ler Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio; trouxe-o hoje, comprado há dias em 2ª mão por 1 euro, mas não me apetece lê-lo hoje ou, pelo menos, agora. Talvez mais tarde, quando o spleen se instalar, altas horas da madrugada.
Ainda me lembro do Nemésio, tinha um programa na televisão assim chamado: Se bem me lembro. Aliás era assim que ele começava sempre as suas crónicas no pequeno écran, a sua imagem de marca. Essas conversas televisivas começaram em 1969 e estenderam-se até 1975, lembro-me vagamente delas. É bom sinal porque se me lembro é porque eram para mim residualmente interessantes. Digo “residualmente” porque com 12 a 15 ou 16 anos não pertencia muito às minhas prioridades de adolescente estar a ouvir fosse quem fosse a falar de memórias e outros contos, implicava uma capacidade de concentração incompatível com a de uma jovem cria. Contudo, da mesma época ou anterior, João Vilarett, o declamador, encontrava em mim um ouvinte assíduo e espectador mais atento, talvez pelo modo cativante com que lia os poemas que apresentava.
Nesse tempo ainda não metastizado pelo lucro e pelas audiências (que são a mesma coisa), via-se cultura na caixa que mudou o mundo: boas reportagens (com temas que não ofendessem o Regime ou a Igreja, bem entendido), peças de teatro todas as semanas, concursos inteligentes e não popularuchos, entrevistas a poetas e escritores. Claro que nem tudo eram rosas: política – só a do Estado, religião – só a católica, opinião – só a do Regime. No entanto e paradoxalmente, embora vivendo nessa ignorância política e social, a programação era mais culta do que nos dias de hoje, onde a diversão se sobrepõe quase completamente aos programas de desenvolvimento mental e espiritual.
Se calhar existirão hoje mais programas culturais do que nesse tempo mas são meras gotas de água de um oceano que nos afoga em inutilidades. Eles estão lá mas diluem-se, o esforço de rastreio é tão grande que perdemos a vontade de os procurar e acabamos por ver um filme (também os há bons) ou uma qualquer outra distração improdutiva. É a moderna versão do pão e circo romanos, os objectivos e efeitos são exactamente os mesmos.
Hoje em dia a informação que conta no meio de tanta “informação” é como um canto de pássaro no centro de uma grande cidade: está lá mas não se ouve, têm que se filtrar milhentos ruídos para o ouvir, muitas vezes sem sucesso.
Faz muito frio lá fora, já não me lembrava de um frio assim, os últimos anos até foram amenos. O pior ainda é o vento moderado que sopra e uiva através das frinchas do prédio. Aqui não me incomoda mas na rua é imensamente desagradável.
Hoje sinto-me bem, sinto-me em paz. Ajudado pelo Spotify, o tempo rola calmo e silencioso, nem se dá conta da sua passagem. No entanto em mim, cá bem no fundo, sinto (sempre senti) uma urgência indefinida, uma impaciência por algo que não sei o que é e que estraga toda a minha desejada serenidade interior. É um medo, uma insegurança, um desnecessário pânico controlado, um esperar de algo que tarda a vir e que agita a superfície do calmo lago que deveria ser o meu espírito.Todos temos as nossas fobias, os nossos terrores de algo apenas adivinhado e irreal, os monstros e bruxas más dos nossos edénicos contos de fadas pessoais, talvez resquícios modificados e irreconhecíveis dos perigos dos nossos mais longínquos ancestrais, temores esvaídos no tempo e dos quais ainda conservamos os mitos e que legaremos às gerações vindouras.



28. dez, 2016
Post 30

01h43, 3ª feira, 21/12
Está à porta o meu último Natal quinquagenário. Se sobreviver a este e a mais um ano e se tiver sorte, durante dez anos celebrarei natais sexagenários, até ao início de um novo ciclo. Como diz o velho ditado, é a lei da vida!
Após uma gripe de caixão à cova que felizmente não se concretizou (nem o caixão nem a cova), eis-me de novo a escrever as minhas crónicas-memórias, experiências um pouco insípidas de uma existência não muito rica em acontecimentos relevantes.
Volto à velha questão existencialista: o que estou aqui a fazer?
Tenho sorte de não ser um génio. A esses, o peso da demanda é muito maior, sentem mais intensamente essa frustração íntima. Curiosamente, são eles quem mais contribui para o sentido da vida e os que menos se satisfazem com os resultados.
Acho que todos aspiramos à imortalidade, mesmo os que não acreditam nela. Não no sentido físico mas espiritual, como um estado de plenitude, de existência, não no sentido de acção mas no de essência, no ser e não no agir. Feliz ou infelizmente só o poderemos saber após rodarmos o trinco da última porta que nos separa dessa incógnita, só aí saberemos se vamos acordar ou se tudo não passou de um gigantesco embuste. Entretanto, carpe diem.



27. nov, 2016
Post 29

00h19, domingo, 27/11
Quase Natal de novo, para mim é a 59ª vez. Quantos mais?
Gostaria que o Pai Natal, o Menino Jesus ou o S. Nicolau (ou todos eles) se lembrassem de mim este ano, mas de uma maneira mais generosa (leia-se monetária). Claro que jogo no totoloto, às vezes no Euromilhões, eventualmente uma raspadinha: é a minha cartinha ao Pai Natal (e aos outros) com os meus desejos. Se me sair alguma coisa sem ser dinheiro do bolso, finjo que foi a sorte que que pendeu para o meu lado quando, no fundo, sei que foi o Menino Jesus (ou um dos outros). Sim, porque eu, como é costume dizer-se, ainda acredito no Pai Natal. A ver vamos este ano.
Friinho, gripinha, chuvinha, tudo o que é preciso para um Natal tradicional. E temos tido todas, graças a Deus ou ao seu capataz S. Pedro (quanto à gripe: haverá algum santo padroeiro?).
Chegou a hora de fingirmos que somos solidários com os pobrezinhos e outros esquecidos da fortuna, pormos a máscara mais pia que encontrarmos no baú e começarmos a ser bonzinhos com todos, mesmo com aqueles de quem nos vamos esquecer no dia 26, de modo a lavarmos a nossa consciência e aumentar a auto-estima, mostrando mais ou menos ostensivamente o bonzinho que somos e iludir as vistinhas dos outros e as nossas próprias, pois que nisto de enganar somos tão bons que até a nós próprios iludimos. Veja-se o caso de alguns mafiosos (que os há em todo o lado) que vivem à custa da extorsão, do assassínio, do roubo e do tráfico e que lavam a consciência fazendo obras de beneficiência, ajudando os pobres, indo devotadamente à missa, emocionando-se com a desgraça alheia, deitando poeira para os seus próprios olhos.
Já chega de falar de desgraças, aleluia porque é Natal!



23. nov, 2016
 Post 28
 
11h38, 22/11, 3ª feira
Agora o tempo é escasso. Como este ano decidi continuar o meu mestrado em Estudos Comparatistas e Relações interculturais, já não consigo escrever com a regularidade que tinha anteriormente. Embora seja só uma disciplina (Literatura de Viagens), exige-me um esforço que agora é multiplicado pela idade e pelas limitações. Contudo não desisto, aprendo, gosto do que aprendo e oleio a mente. É óptimo aprender coisas insuspeitadas, escondidas “às claras” em textos que nunca lemos, em livros que já lemos com os olhos do corpo mas que só agora compreendemos com os olhos da alma.
Continuo a chorar os 30 anos de incultura consentida (citando a mim próprio) que nunca recuperarei. Nada sei mais do que nada saberia se os não tivesse malbaratado tão inglóriamente, pois como Sócrates (o filósofo, não o político) continuo a saber que nada sei.
Não vale a pena chorar sobre leite derramado porque está impróprio para consumo; há-que obter mais leite e bebê-lo com sabedoria, sede e prazer.
Planos para o futuro: acordar amanhã. À medida que envelhecemos, os nossos planos a longo prazo vão encurtando e chega o dia em que we don’t take for granted o dia seguinte; aliás, nunca o deveríamos ter feito no decurso de toda a nossa passagem terrena. A vida é um bom senhorio mas expulsa-nos a qualquer momento, sem avisar, por razões que a (nossa) razão desconhece.
Claro que estes pensamentos apenas tomam forma no nosso íntimo mais íntimo, exteriormente mantemos (é imprescindível) a nossa teimosa crença de que somos imortais ou quase e que para o ano estamos aqui de novo a fazer planos para o futuro. Afinal é isso que nos mantém vivos: os nossos planos para o futuro. A partir do momento em que não o fazemos, estamos mais que preparados para morrer, para desistir.



14. nov, 2016
Post 27

03h07, 02/11, 4ª feira
Os dias passam por mim e já não me apercebo, será que estou a ficar velho? Se calhar é apenas porque durmo de dia...
Malgré tout, tenho tido dias bastante felizes, quase perfeitos, mas por vezes penso que vivo num paraíso descoordenado, onde os bons acontecimentos são processados incorrectamente, como uma alzheimeridade da percepção. Fico sem saber se é cansaço, malformação da personalidade ou mesmo um desequilíbrio físico ou químico ou ambos, do córtex cerebral.
Contudo resisto bem a essa semi-frustração, ao espicaçar contínuo desses pensamentos críticos cuja principal função é tentar fazer baixar a guarda da nossa firewall mental e instalar a dúvida e os sentimentos de fracasso, responsáveis afinal por todos os males do mundo.
Mens sana in corpore sano
Essa simbiose corpo-mente é essencial, imprescindível.



17. out, 2016
Post 26

3h32, domingo, 15/10
Poder-se-á ser um ghostwriter de si próprio ao escrever o que dita o inconsciente em contradição com tudo o que a personalidade visível, externa, demonstra? Para ser mais explícito, pode alguém que encara aberta e sinceramente a vida pelo seu lado positivo focar-se e escrever sobre o seu próprio lado negro, incarnar como actor, autor e experienciador a carga física e emocional soturna que se acoita nas caves e sub-caves da mente?
A meu ver, sim. Quando vou trabalhar visto uma farda e quando vou para a praia envergo um calção de banho; nestas ou noutras situações semelhantes ou dessemelhantes encarno o meu papel, torno-me actor, invisto-me da minha responsabilidade como autor e assumo as consequências como experienciador.
Fernando Pessoa “vestia-se” também com os seus heterónimos, assumia diferentes modos, diferentes emoções. Também ele era, afinal, um ghostwriter que assumia e vivenciava a sua pluralidade, não deixando de ser ele próprio pois quem o conhecia caracterizava-o por si e não pelos seus alter egos.
Tudo isto a propósito (temo repisar o assunto) da minha propensão, da minha preferência por uma visão gótica da vida, por um romanticismo estereotípico cheio de tuberculosos agonizantes, ruinas sem tempo e dramas insolúveis e onde a razão última da existência é infrutíferamente vivissecada até à sua mais ínfima partícula.
Esse sou eu na sua contraparte oculta, aquela que, tal como espíritos manifestando-se numa tábua Ouija, emerge no que escrevo, assomando fugazmente, acorrentada, no umbral da sua cela esconsa, perdida nas masmorras lúgubres da mente mais profunda, do inconsciente.



6. out, 2016
Post 25

00h44, 5 de Outubro, 4ª feira
Peguei na primeira esferográfica que encontrei, uma azul, para escrever o rascunho desta crónica que, após editada, foi bytificada e virtualizada no computador. Não gosto porém de escrever a azul, parece que escrevo algo diferente do que escreveria se o fizesse a preto, como se a cor modificasse a mensagem que tento transmitir.
Na verdade é diferente: o que escrevo, sendo o mesmo, não é o mesmo, como se a escrita tivesse género e, ao escrever na cor “errada”, estivesse a travesti-la. Não se trata de homofobia ou misoginia – que isso na escrita nem faz sentido aplicar – mas é como se, por qualquer obscura e ignorada razão ou obscuro e ignorado preconceito, a côr azul não se coadunasse com a escrita, a minha escrita. Até que o preto e o azul são cores conotadas com o mesmo género, não obstante neste caso o meu conceito de género seja algo para além de uma dicotomia e se aproxime mais de uma multiplicidade de abordagens onde as noções de masculino e feminino esbatem-se e desdobram-se em outros géneros indefinidos e indefiníveis.
Embora manifestamente dessemelhante, a abstracção mais próxima desta sensação de diferença seria a de escrever a alguém a vermelho. Tal poderia eventualmente ser entendido como uma desconsideração ou mesmo um insulto. Isto, claro, segundo os padrões culturais do período civilizacional com que me identifico.


28. set, 2016
Post 24

28/09, 4ª, cerca das 04h00
Sempre que tomo conhecimento que algum dos “antiguinhos” do meu espaço cronológico vai servir de meio de subsistência aos milhentos e vorazes habitantes das profundezas da terra ou adicionar mais alguns voláteis elementos cancerígenos na atmosfera, perpassa pelo meu subconsciente um desagradável arrepio virtual enquanto o meu consciente lamenta a perda dessa figura de referência (boa ou má) do pequeno universo do qual sou o centro.
Quem conviveu toda a sua vida com figuras míticas, ídolos da juventude (e não só), artistas de cinema, políticos de referência, escritores e outros que deixaram o seu cunho na história, alguém que iluminou ou de algum modo marcou o percurso paralelo de imensos coexistentes temporais anónimos e os vai vendo apagar-se como luzinhas que fundem e não são substituídas por serem únicas e irrepetíveis, começa a sentir-se percorrer um caminho cada vez menos iluminado, cada vez mais escuro e, paralelamente, a tomar consciência de que também é uma dessas luzinhas e que também um dia vai-se apagar. Daí o arrepio, que por ser virtual não se sente físicamente mas no espírito e que agita-nos, incomoda-nos, faz-nos sentir vulneráveis e perecíveis, descartáveis, envolve-nos num fatalismo negro, num medo irracional de caírmos nalgum nada absoluto ou pior: num qualquer desconhecido cenário dantesco, quiçá amplificado por crenças assumidas ou residuais, adormecidas nas profundezas do Id.
A mente tende a considerar imortais todos os pontos de referência que vão surgindo no decorrer da sua vigência e espanta-se, choca-se sempre que um deles deixa de existir e, tal como um gato a que mudaram a mobília, fica temporáriamente desnorteada, confusa, como se o seu mundo pessoal tivesse acabado. Sentimos então o tal frisson desagradável, como se um pouco de nós se tivesse esvaído na não-existência.



28. set, 2016
Post 23

26/09,2ª, durante a madrugada
Quando, às portas da morte, olharmos retrospectivamente a nossa existência terrena, teremos muito provávelmente uma sensação de desapontamento e de mágoa e faremos pender sobre nós próprios uma crítica tão negativa que, se tivéssemos ainda a possibilidade de escolha entre a vida e a morte, certamente escolheríamos a segunda hipótese, tal a vergonha de termos malbaratado tantas oportunidades únicas que se nos proporcionaram “de caras “ao longo da nossa efémera visita por estas terras da Terra, seja por estupidez, por inapetência, ou – em grande percentagem– procrastinação.
Não falo apenas por todos os actos corriqueiros que deixámos espalhados e incompletos no nosso caminho: o parafuso que ficou por apertar, o interruptor partido que amanhã (sempre amanhã) vamos substituir, a chapa solta que nos incomoda quando há vento, o filme interessante que estreou e que queremos ver sem falta há 12 anos, o degrau que range, a mancha no tecto, a visita de cortesia, o jantar com velhos (entretanto já falecidos) amigos. Não foi só isso, não. Foi a nossa própria vida, a nossa alma que protelámos. Onde estão todos aqueles grandes feitos, todos os actos notáveis que nos propusemos fazer no decurso da nossa existência? Projectos inacabados ou nem sequer esboçados que agora, no umbral do eterno, tudo faríamos para concretizar, mesmo vendendo a alma ao diabo, como o Fausto de Goethe.
Tarde demais, deixaremos este mundo por completar, ele também o produto dos sonhos inacabados de todos os procrastinantes que nos precederam.
Que tristeza, que desperdício! Tanto que poderíamos e deveríamos ter feito! Mas deixemos por agora estes pensamentos, reservemo-los para o dia da nossa morte.



24. set, 2016
Post 22

11h20,3ª, 20/09
Faz já muito tempo que não pratico “fisiografia” com alguns singelos apontamentos candidatáveis a uma análise histórico-sociológica em algures no futuro. Não sei até que ponto os documentos escritos no éter electrónico poderão ser recuperados em tempos vindouros, perdidos que estejam num porvir distante. Existirá porventura um registo akáshico electrónico onde permaneçam eternamente todos aqueles testemunhos desaparecidos, enviados um dia para a reciclagem ou extraviados por descuido ou engano? Permanecerão eles num éter ainda desconhecido, numa dimensão ainda por descobrir e explorar, num aterro megabytico, terabytico de pastas, ficheiros, programas, comandos, widgets e apps, um novel tesouro de pesquisa e conhecimento, uma oculta Biblioteca de Alexandria virtual?
A nova escrita, o novo repositório intelectual (e não só) é constituído por bytes, não existe físicamente, o que representa potencialmente maior perigo de destruição de algo até hoje irrecuperável. Esse é o grande risco de uma sociedade rendida à comunicação electrónica, a hipótese sempre provável da perda de conhecimento, do extravio de informação e da consequente estupidificação massiva (embora processo lento) por colapso dos seus emissores/receptores.
A acreditar na existência das míticas civilizações da Antiguidade, como a Terra de Mu ou a Atlântida, estas poderão ter desaparecido rápidamente e sem deixar vestígios devido à perda acelerada do conhecimento “bytico”, porventura provocado por algum cataclismo natural ou mesmo bélico. Vendo-se impedidos de transmitir geracionalmente o conhecimento até então adquirido, por falta de meios, compelidos a recorrer à memória e aos antigos métodos de comunicação escrita, esse saber terá retrogradado e foi em consequência desaparecendo aceleradamente.
Bom, é uma hipótese tão válida como qualquer outra.



14. set, 2016
Post 21

2h57, 4ª feira, 14/9
12 e 13 – dois dias que mudaram o meu mundo. Embora me aperceba todos os dias que, devido à minha condição física, a minha relação com a velhice não será pacífica, o dia 11 foi determinante para a aceitação plena dos acontecimentos do dia seguinte; comecemos pela 2ª feira:
Caí. Não um tombo normal e fortuito, como tantos damos na vida mas uma consequência directa da minha relativa incapacidade muscular do lado inferior direito. Apenas por descer o degrau de um autocarro, estatelei-me no solo, sem hipóteses de o evitar. Esse tombo revelou-me o meu futuro, a curto e a longo prazo. Não que me preocupe sobremaneira o futuro imediato, será mais contusão, menos equimose; o que verdadeiramente me preocupa é o outro futuro, aquele que a idade fragiliza e que está tão perigosamente próximo.
3ª feira vendi a minha scooter, desliguei-me definitivamente de toda e qualquer esperança de reatar aquela saborosa sensação de liberdade que um “duas rodas” dá. Não só, vou vender também o meu velhinho “secador”. A iluminação, a revelação nua e crua que recebi no dia anterior fez-me pôr o coração definitivamente ao largo dessa réstia de esperança na utilização de algo que não seja um carro.
Dei, pois, um passo importante na minha evolução e aprendizagem: take nothing for granted and move on. A vida não acaba aqui, ainda há muito para dar e receber.
Ah, já me esquecia, ontem ainda recebi uma boa notícia: a minha candidatura a mais uma disciplina de mestrado foi aceite e após 4 anos de interregno volto à escolinha. O meu futuro é um projecto sem prazo.



14. set, 2016
 Post 20
 
2h52, 8/9, 5ª feira
De volta à minha amada/odiada noite, após quase 3 meses a fazer pelos outros o que os outros não fazem por mim este ano: as férias. Não faz mal, já tive 2 meses de férias este ano que, embora não remuneradas, tinham todas as despesas pagas, incluindo ginásio e banho personalizados.
As folhas das árvores parecem envolver-se ora em acesas discussões ora em calmos diálogos, em consonância com os ditames do vento, seu instigador. De vez em quando uma delas desprende-se da matriz e em súbitos impulsos ou elaborados arabescos afasta-se como se se entediasse pela companhia e resolvesse partir à aventura. Uma a uma, por vezes com relutância, todas o farão nos próximos meses até que não reste nenhuma. Emigrantes, não voltarão jamais. Na primavera, uma nova geração de filhas da terra recomeçará o ciclo eterno.

Tu, folha, que brotaste tenro, minúsculo e verde rebento
 E com tua sombra abrigaste a tanto viandante sedento
 Mãe serás sem o ser de outras como tu geradas
 Que mães serão de outras que o porvir abriga, que por ele são planeadas.
 À terra de que nasceste vais retornar diferente, metamorfoseada.
 Estarás ocre ou vermelha, castanha, lilás ou pintalgada,
 Rasgada, engelhada, informe e desfeita ou ainda intacta e bela,
 talvez te tornes multicor, talvez fiques rendilhada, negra ou amarela.
 E voltarás ao solo agreste e fértil e poeirento e prenhe de ti
 E um dia, numa radiosa primavera, renascerás num bosque ou jardim algures por aí.


(Um pequeno, modesto e naïf poema que tive que escrever e do qual peço perdão pela fraca qualidade).


6. set, 2016
Post 19

13h56, sábado, 20/08
Esta manhã, enquanto dava um giro pelos passeios circundantes do meu local de trabalho e após ter feito in extremis um desvio centimétrico à sola do meu sapato para evitar pisar uma das milhentas formigas residentes nos jardins, veio-me à ideia a interessante e polémica relação entre a moral e as opções de resposta a esse condicionalismo ético. Tudo por causa dessa formiga, porque não me sinto confortável em lesar um ser vivo que não me fez mal nenhum e do qual posso simplesmente desviar-me; não acho justificável dizer a título de desculpa: “ah, mas estes bichos são horríveis, entram-te em casa e invadem tudo, dão-te cabo da comida ou enchem-te o açucareiro e tens que deitar tudo fora”. Também o filho do meu vizinho pode pegar no açucareiro e deixá-lo cair ao chão, partindo tudo e tenho 2 prejuízos. Não é por isso que vou calcá-lo.
No entanto, esta minha “moralidade” tem 2 faces: se vir em casa uma aranha, uma centopeia, algumas formigas ou uma barata, no mínimo tento envenená-las com insecticida (não gosto de as calcar, enoja-me). É evidente que não farei isso ao filho do vizinho (às vezes talvez apetecesse).
Poderei concluir que a noção de territorialidade é um agente modificador da interpretação moral, que temos 2 pesos e 2 medidas nas nossas relações com o mundo?
Numa escala mais global, num cenário de guerra, será esse o motu que transforma seres pacíficos em máquinas de matar, que legitima o extermínio de formas de vida como se fossem insectos invasores? É talvez a nossa matriz a comandar, a sobrevivência da espécie que se sobrepõe a tudo e a todos, que esquece moral, civilização, democracia, crenças, respeito mútuo, é o atávico espírito da matilha.



18. ago, 2016
Post 18

18h00, 15/08, 2ª feira, feriado
Eis-me de novo a garatujar com pigmento negro um troço plano de celulose processada e, atendendo às circunstâncias, descartável ou pertencente à categoria dos consumíveis para, após efectuada a necessária edição, transcrever o conteúdo em bytes por intermédio do meu processador pessoal (!!!!!). Tudo isto para dizer que estou mais uma vez a rascunhar um texto para, após revisão, guardar no computador. Porque será que há nos seres humanos, nuns mais noutros menos, a tendência para complicar coisas simples? Por que temos de florear, embelezar os textos criando por vezes, é certo, autênticos jardins das delícias literários, retorcidos rabos de porco, gavinhas de videira complicadas e caprichosas?
Lá estou eu a utilizar símbolos e metáforas nestas explicações e considerações!
Será apenas um ego que tenta sobrevalorizar-se perante os olhares críticos ou apreciativos dos outros? Será uma tendência inata nos seres humanos que os leva a apreciar em termos estéticos, artísticos, a beleza de um texto “trabalhado”, tal como aprecia a beleza de um pequeno detrito, uma pequena partícula – em si insignificante e inidentificável – que, pelo labor de uma ostra, transforma-se numa formosa pérola? Será que, tal como a ostra, temos necessidade de transformar os nossos actos insignificantes em pérolas, uma espécie de demanda pela perfeição num esforço artístico que é ao mesmo tempo uma procura platónica pelo nosso eu interno, pela nossa matriz no que tem de mais puro e verdadeiro, a procura incessante de uma realidade apenas conceptualmente acessível?
Como disse em crónicas anteriores, o meu objectivo não é evidenciar-me perante os outros através de proposições altissonantes ou pseudo-cultas; de facto, gosto de usar as palavras, elaborar puzzles, charadas verbais que me dão tanto gozo como certamente terão dado a moldagem do barro e feitura dos tão célebres bonecos à Rosa Ramalho ou ao Bordallo Pinheiro, são o meu barro, são os meus bonecos. Trabalhando-os deleito-me com o resultado, quiçá imperfeito ou naïf mas que me dá total satisfação tal como darão a uma criança os montículos de areia que constrói à beira-mar: para nós serão formas um pouco amorfas, para eles maravilhosos castelos idealizados.
Aproveitando a minha metade possível do feriado – visto que estou a trabalhar desde as 17 h – fui a Arouca com a família para procurar a praia de Canelas, de que muito ouvi falar, e conhecer os quase ex-terraços do Paiva, parcialmente destruídos pelos fogos devastadores que têm atormentado aqueles lugares outrora aprazíveis. Gostei, dentro do possível e devido às circunstâncias, de ambos: a praia é pequena mas razoávelmente bem apetrechada, água pouco fria e límpida, nadadores-salvadores, casas de banho públicas, bar, estacionamento, margens bem areadas, resguardada do vento; quanto aos passadiços, que vi de cima e a média distância, parecem-me agradáveis de percorrer (claro, numa perspectiva desportista e lúdica) embora constituam um escadório com um desnível abrupto que constitui afinal o “encanto da coisa” e dá-lhe uma perspectiva paisagística bastante apelativa.
Quanto a (quase) todo o resto – paisagem negra, vulcânica – lembra o vulcão dos Capelinhos após a erupção de 1959 ou certas paisagens da ilha de Lanzarote. Embora horrível não deixa de ser surpreendente, quase belo, mostra a Natureza geológica na sua face mais crua, como uma Terra pré-vida orgânica numa imagem de há milhões de anos, não fossem as cicatrizes extensas gravadas na sua superfície pelos caminhos de serventia. Traz à memória recordações perdidas, quase inexistentes, meras e quase desvanecidas penumbras gravadas nos arquétipos dos arquétipos dos arquétipos da Humanidade.
A vida é teimosa e em breve, a médio prazo e apesar da incúria dos homens, retomará os seus direitos adquiridos e encobrirá as tragédias do passado.



4. ago, 2016
Post 17

23h27, 04/08, 4ª feira
Relembrando novamente os tempos de infância, repasso as escassas recordações que a minha imatura memória da época abrangia, aliada às lacunas memoriais que a minha idade actual permite.
Por vezes lembro-me do meu cão quando olho para a minha infância: tal como ele, que tudo leva à boca, tudo mastiga e engole, também eu mastigava e engolia papel, cola de madeira, até cola de contacto ou UHU, que era ácida mas agradável. O xarope da tosse que roubava ao meu pai também sabia bem, tinha uma doce acidez. Por sua vez, o remédio para o coração, pastoso e branco como iogurte, da minha avó tinha uma consistência cremosa muito agradável e um sabor que não retive nas papilas. As ervas também não me escapavam, os caules do trevo eram bastante adstringentes e aprendi empíricamente que eram laxantes. Soube há anos que eram tóxicos mas também o eram as colas que mastiguei e, contudo, sobrevivi.
Com a mentira ingénua própria dos meus 5/6 anos tentei convencer a minha tia que o grande buraco que tinha ao nível da barriga na minha camisola de lã em malha de várias cores tinha sido feito pelo puxador da porta que se posicionava ao nível da minha cabeça(!). Na realidade, o buraco tinha sido o resultado de eu ter dado corda ao mecanismo desprotegido de um grande relógio que os meus irmãos tinham trazido para casa e em que eu adorava ver as rodas dentadas a girar em sincronia e a diferentes velocidades. Como é lógico, as rodas engataram na minha camisola e o resto é fácil de prever. Tão intensa é a concentração nestas idades que tudo o que nos rodeia deixa pura e simplesmente de existir.
Ainda hoje estou por perceber porque é que a minha tia não acreditou na minha “lógica” explicação...
Sensivelmente com a mesma idade, mais ano menos ano, tentei trepar a uma pereira (de pera rocha) que existia no quintal, em frente à porta da cozinha, tal como via os meus irmãos mais velhos fazer. Nesse dia concluí que a minha vocação nunca seria o alpinismo: caí, ou melhor, escorreguei esfarrapada e dolorosamente pelo tronco abaixo (nada liso, por sinal), tendo como consequência umas finas cicatrizes que, embora quase imperceptíveis, ainda conservo como recordação. Vejo o meu pai junto a mim, após ter posto mercurocromo nas feridas e vejo os meus irmãos um pouco atrás. Cuspo um vestígio de sangue e ouço o meu pai dizer para tranquilizar-me: “Isso não é nada, foi um bocadinho de mercurocromo que entrou”. Remédio santo, a aterradora hipótese de um escarro de sangue é por mim imediatamente posta de parte por esta explicação tão mais que lógica!
Lembro-me de estar sempre doente e do sacrifício que é para uma criança estar constantemente confinado a uma cama, lembro-me do desconforto, da dor física e dos tratamentos invasivos da época, principalmente das omnipresentes, torturantes e dolorosas injecções, o meu quase pão-nosso-de-cada-dia. Lembro-me das infecções pulmonares, das crises de fígado, dos vómitos violentos que me feriam a garganta e saíam-me pelo nariz, das disenterias, dos furúnculos. E, contudo, vivia num limbo de magia, de novidade, de infeliz felicidade, como qualquer criança que nada mais conhece senão a sua própria existência.
Lembro a minha avó e a sua rigidez mesclada de meiguice, lembro um amor paternal dissimulado que um dia descobri num beijo, quando fingia que estava a dormir e que me marcou para sempre, lembro uma tia que foi minha mãe e de quem (suas palavras) fui o filho que nunca teve.
(Quase) tudo se esvai para lá do horizonte mas fica sempre a recordação saudosa e morna, como cálida e aconchegante é a lembrança do sol após o seu ocaso.


4. ago, 2016
Post 16

23h45, terça, 02/08
Em consequência de um artigo que li há dias num jornal ou numa revista, vieram-me à memória recordações longínquas da minha infância e adolescência precoce sobre algumas histórias, lendas contadas pelos meus ancestrais de há duas gerações (melhor dizendo, a minha ancestral, a minha avó, o único membro da família que conheci dentro da categoria de antepassado). Eram histórias fantásticas, de cariz geralmente religioso ou relacionado, que relatavam episódios e seres demoníacos, histórias mais ou menos de arrepiar, contadas geralmente na 3ª pessoa e ligadas, ou a familiares ou a pessoas a eles chegadas. Verdades, mitos? Histórias transformadas (in)voluntáriamente pelo(a) narrador(a) ou, como se diz, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto?
São histórias sem memória, sem registo escrito, transmitidas oralmente, transformando o que um dia poderá ter tido um fundo de verdade numa fábula, uma ficção, um conto fantástico ou de terror. Ainda me lembro de algumas, ouvidas ainda na idade da inocência:
Um meu antepassado (trisavô, tataravô? Já não me lembro), atravessando de noite e sózinho um carreiro, uma vereda - pois estradas quase ainda não existiam - deparou com um caixão atravessado numa zona onde não era possível contorná-lo. Mantendo o sangue-frio (acredito, os homens de antigamente eram de outra cepa), pensa com os seus botões (o fecho éclair ainda não se usava): “Se volto para trás, dizem que é mau, tenho que avançar”. Se bem o pensou, melhor o fez e, passando o cajado – ferramenta essencial em época de lobos e salteadores – por cima do caixão, toma lanço e salta para o outro lado, dizendo ao mesmo tempo a título de salvaguarda: “Deus te salve e a mim me guarde”, tendo como resposta uma voz surgida de algures, que disse: “Vai, que vais bem guiado”.
Outra:
O “Sr Camilo da Fábrica”, amigo da família e membro da burguesia industrial naqueles idos do 1° e 2° quartéis do século XIX, era uma pessoa excelente, muito amiga dos pobres, a quem ajudava sempre que podia. Só tinha um defeito aos olhos da comunidade, era ateu. Um dia, após sair de uma qualquer reunião de amigos ou de trabalho e notando que estava a trovejar fortemente, fez um comentário jocoso: “A vizinhança lá de cima anda outra vez na arrumação das cadeiras”. Palavras não eram ditas quando um raio lhe caiu aos pés, arrancando-lhe a sola de uma bota. Bastante impressionado pelo sucedido, retira-se para casa, sendo perseguido pelos raios, que não paravam de lhe cair aos pés. Esteve muitas semanas em casa a recuperar de tal experiência e, sempre que lhe era aflorado o assunto, dizia: “Muitas graças a Deus e poucas com Deus”. Foi um cristão fervoroso o resto dos seus dias.
Outra, passada com uma nossa avó de 3ª ou 4ª geração, uma verdadeira pérola de humor satânico:
Estando ela a preparar-se para tomar um banho numa selha ou por qualquer outro método utilizado na época, reparou que no mesmo compartimento encontrava-se um bode. Embora estranhando como o animal teria entrado, continua os preparativos. Não esqueçamos que nas zonas rurais como Oliveira de Azeméis era há quase 200 anos, a presença de animais de criação ou outros dentro de casa não era motivo de espanto. Isso ainda sucede hoje em dia em algumas pequenas e mais primitivas aldeias deste país.
Voltando à história, estava ela já semi-despida e pronta a refrescar-se quando o bode se lhe dirige zombeteiramente, dizendo: “Tiroliro-liro-lu, vi-te aquilo mais o cu”; apercebendo-se estar em presença do próprio Demo, lança imediatamente uma invocação, um conjuro, uma qualquer ladaínha protectora, o que tem como consequência a pronta desaparição da entidade maléfica, envolta numa nuvem de fumo.
Uma última, esta provávelmente mais credível, visto que os conceitos de honra, mesmo entre ladrões, eram para ser estritamente respeitados:
Tendo um nosso, quase de certeza, trisavô tido que deslocar-se ao Porto ou talvez a Coimbra – viagens muito morosas e particularmente perigosas nesse tempo – encontrou numa estalagem do caminho um grupo cuja aparência deixava suspeitar a sua condição de salteadores, quem sabe se um deles não seria até aquele que foi companheiro de prisão de Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação do Porto aquando da sua detenção por adultério? Falo evidentemente do famoso Zé do Telhado.
Temendo pela sua segurança no seguimento da viagem, o nosso trisavô trata de cair nas boas graças do grupo, pagando-lhes uma rodada, o que é muito bem recebido. À despedida, o chefe dos salteadores entrega-lhe um anel como agradecimento, dizendo-lhe que, se porventura for incomodado no caminho, basta apresentar esse anel, que será deixado em paz. Parece que mais tarde isso se lhe revelou bastante útil.
Estas são algumas das “histórias de família” que ouvi e me lembro. Haverá outras que já se perderam nas brumas da minha memória, é pena.
Como surgiram estas narrativas? Terão algumas tido qualquer espécie de existência remota verosímil ou não passarão de invenções, de fábulas utilizadas para entreter e assustar aquelas crianças de outrora que foram os nossos antepassados há muito desaparecidos? Serão cópias, colagens de outros contos ouvidos um dia a alguém ou invenções de mentes férteis, geralmente femininas, dessa nossa sociedade victoriana, prolífica em tais tradições orais? Não sei, só sei que alimentaram a minha imaginação infantil durante muitos anos, como uma espécie de conto de fadas familiar, algo que me inseria, me identificava com o meu mundo genético.
Apercebo-me agora que tudo isto, estas tradições orais são marcadores identitários muito fortes que ajudam a realçar, a fazer sobressair um grupo familiar em relação a outros grupos congéneres e era muito utilizado pelas pequenas ou médias famílias burguesas, fossem elas rurais, comerciais ou industriais, como forma de realçar valores, geralmente religiosos, ou marcar a diferença, a exclusividade, as características únicas do grupo.
Esta é uma teoria como milhentas outras mas não tenho problema em expô-la como verosímil e perfeitamente possível.


28. jul, 2016
Post 15

Poder-se-á dizer que uma água bacteriológicamente pura é inimpotável (duas negativas redundam numa positiva), ou seja, que lhe é inimputável qualquer contaminação?
Apesar da construção gramatical errónea e tautológica, este jogo de palavras não deixa de ser engraçado. Gosto de brincar com as palavras, desconstruí-las, reconstruí-las, iludir ou modificar o seu significado um pouco ao estilo de Marcel Duchamp na obra icónica pela qual é mais conhecido – o mictório. Nela baseia o seu conceito de que tudo pode ser uma obra de arte desde que descontextualizada da sua missão funcional. Embora eu não esteja em absoluto em acordo com ele e também tendo em atenção que as palavras e os conceitos por elas expressos enquanto palavras não são obras de arte mas instrumentos de trabalho e lazer, gosto de subverter ou moldar as ditas aos meus propósitos, transformá-las, kitá-las, mascará-las para servirem os meus intentos expressivos.
Mas não é uma língua uma reinvenção, uma colagem, uma moldagem das palavras para que possam acompanhar a evolução natural da sociedade criando formas que se possam adaptar aos novos conceitos que vão surgindo sem ter necessáriamente que criar palavras de raiz mas utilizando as pré-existentes, modificando-as, se necessário? Afinal é algo que os chineses usam há séculos. Cada caracter é formado por outros caracteres cuja junção lhe confere um novo significado.
Uma palavra só pode pertencer ao universo linguístico em que se insere quando há um número significativo de usuários que justifique a sua inclusão na norma. No entanto há casos particulares (pessoais, familiares ou grupais) que admitem o uso de palavras modificadas ou inexistentes no dito universo linguístico sem que se possam considerar erros grosseiros ou atropelos à língua. Cito o uso familiar das palavras pronunciadas por crianças, que nada têm a ver com o conceito a que se referem (ex.: dindim em vez de leitinho) ou o caso de um comentador desportivo da TSF Jorge Perestrelo, falecido em 2005, que tornou-se célebre nos relatos futebolísticos com a frase ripa na rapaqueca que expressava, salvo erro, a conclusão positiva de uma jogada ou então expressões populares como secador a uma scooter de baixa cilindrada ou as palavras descontextualizadas ou inventadas utilizadas pela maioria das pessoas no seu pequeno mundo linguístico individual. Uma língua é muito mais que a fonética, a semântica, a gramática e a sintaxe, muito mais que os compêndios, os dicionários e as enciclopédias. Uma língua é como um ser vivo, não é mecânica, inventa, renova, transforma, move-se e sendo sempre igual não cessa de ser diferente a cada momento que passa.
Hoje e data e a respectiva informação meteorológica vêm no fim: 27/07, 3h53, 4ª feira, está nevoeiro e um pouco fresco.


22. jul, 2016
Post 14

23h35, 21/07, 6ª feira
Abafado, com uma ligeira aragem que traz consigo uma falsa promessa de frescura. Detesto, sempre detestei este tempo quente/húmido que nos cola desagradávelmente à roupa e provoca um desconforto contínuo. É o preço a pagar por ser do Norte.
Somos um país tão pequenino e temos tantos micro-climas, seja por influência atlântica, continental, mediterrânica ou outras. Eu é que nasci no micro-clima errado.
Fico simultâneamente impressionado e desgostoso quando comparo o meu nível de vida actual com o que possuía há 15 anos, no início do século. Nesse tempo o dinheiro era escasso mas mesmo assim conseguia-se ter uma qualidade de vida relativa. Era necessária uma mobília ou uma máquina de lavar? Comprava-se. A pronto. Férias? Éramos 4 e gozávamo-las durante 3 semanas ou 1 mês (outros tempos), por vezes fora do país. Claro que o dinheiro tinha de ser muito bem gerido, mas dava. Carro? Cheguei a ter 2 em simultâneo, um para cada membro do casal. Tínhamos uma vida sem muitos contratempos, sem ter de prestar muitas “contas à vida”.
Hoje ganho o mesmo que ganhava em 2001 (e era mal pago), o que representa pouco mais que a sobrevivência. Por este andar estou, estamos a caminhar para ter de estender a mão à caridade pública quando nos reformarmos e recebermos a quantia ridículamente simbólica que a Segurança Social atribui a todos aqueles que durante dezenas de anos andaram a engordar o Estado com os seus impostos, ou antes, a alguns dos seus indignos representantes cuja gestão dos dinheiros públicos lhes passou pelos bolsos ou diluiu-se pela sua mais completa incompetência. Esses estão bem, é o nosso dinheiro que sustenta as suas generosas reformas e as suas bem providas contas bancárias.
Nunca fui de esquerda porque não acredito nela. Não posso acreditar em dirigentes partidários que estão tão bem na vida como aqueles a quem criticam as mordomias. Não que tenha inveja dos ricos (que a vida que têm lhes faça bom proveito) mas porque estes dirigentes são aqueles cujo modelo de vida e comportamento seria de seguir mas que afinal apenas passam a vida a alternar entre a utopia e a demagogia (que íntimamente não subscrevem), as quais sempre foram o pão que mitigou as misérias do povo, um alimento que não engorda mas consola, uma espécie de dieta para papalvos.
A tão badalada pobreza miserável dos últimos 2 séculos será assim tão pior que a actual pobreza “assistida” com que deparamos hoje? Nalguns casos morria-se de fome (hoje também) mas se calhar as probabilidades de sobrevivência seriam superiores às actuais: não se pagava água ou electricidade, IMI, havia menos impostos e outras despesas criadas pela vida moderna, praticava-se uma agricultura, pastorícia, caça e pesca de subsistência. Não estou a ser redutor e a afirmar que antigamente é que era bom ser pobre. Apenas digo que estas situações poderiam ser alvo de um estudo comparativo que avaliasse até que ponto a (falta de) qualidade de vida entre os séculos XIX e XX e a actualidade coincidem ou dissemelham-se. Se calhar ficaríamos surpresos. Claro que esse estudo não serviria para nada senão para estatísticas ou teses académicas, os pobres continuariam miserávelmente pobres. Serviria talvez ainda – quem sabe? – para desconstruir ou mesmo destruir alguns mitos e/ou cavalos-de-batalha sócio-políticos.
Sou livre-pensador, por isso não me condenem se os meus desabafos não são “políticamente correctos”. Exponho as minhas ideias que, certas ou erradas, acredito irão contribuir para, no gigantesco oceano das dúvidas humanas, criar as ondas que pouco a pouco erodem os milhentos escolhos existenciais e evolutivos que o povoam, transformando-os lenta e progressivamente em serenas e aprazíveis praias.



Post 13

13/07, 4ª feira, 13H40
Dia d’annos (ao estilo dos meados do séc. XIX) a trabalhar para ser diferente ou, melhor dizendo, para fazer no aniversário o que faz a maioria dos portugueses, exceptuando aqueles que, por idade, desemprego ou doença ou cujo estatuto tal lhes permite e que podem, feliz ou infelizmente, comemorá-lo livres de obrigações laborais.
Não interessa muito, o tempo de dar importância a estes ínfimos pormenores da existência terrena esvai-se a pouco e pouco à medida que o tempo passa. Chega-se a uma altura em que as datas, as comemorações deixam de ocupar espaço útil para dar lugar a novas prioridades trazidas pela sabedoria e experiência da idade (ou pela parvoíce da idade, depende dos casos).
Eu estou para já no meio termo, ainda encaro os aniversários como algo agradável de comemorar, porém cada vez mais dispensável. Esta transição começa a fazer-me meditar sobre se estou a celebrar mais um ano de vida ou a lamentar menos um ano de existência.


12. jul, 2016
Post 12

08h33, 10/07, domingo
Um novo domingo, uma nova sequência na quase estaticidade do percurso (também ele quase circular, vicioso), um suceder ininterrupto de dias da semana e meses em tudo iguais aos dias da semana e meses do nosso recente e longínquo passado. Ruminamos, ruminámos e ruminaremos nos pastos sempre iguais da nossa existência terrena, até que a morte nos separe. É o nosso casamento vacuum com a vida e a natureza.
Não pauto muito por comentários políticamente correctos nas minhas análises e observações, mas também não quero. Prefiro ser eu próprio, comentar com as minhas palavras e não com colagens dos conceitos dos outros, de eufemismos ou chavões. Esta sim, é a minha realidade e não uma realidade genéticamente modificada para parecer literáriamente melhor e saber ao que não sabe. Isso não é a minha literatura, é um sucedâneo. Abaixo as “Monsanto” do pensamento!

Corres lesto e ledo por calçadas e vielas estreitas
 No teu passo firme e duro calcorreias o deserto.
 Pois quê? Nada temes, de nenhum mal suspeitas.
 Porém um dia acordas e o que julgavas perene e certo
 Esvai-se no passado que, embora ido, já viveste
 O qual estará sempre para ti presente e perto.
 Choras, como se o pranto trouxesse o que perdeste
 Como se as lágrimas te curassem as maleitas
 Não o faças! Os corpos partem, morrem, a tudo te sujeitas
 As almas, essas, não morrem, são perfeitas.


Os sonhos, os sonhos perdidos! Perseguimo-los toda a nossa vida e por vezes nem um concretizamos.
Perseguir sonhos é o motor da vida mas é também uma constante frustração: não vivemos sem eles, causam-nos muito frequentemente dor, a dor da impossibilidade, da não compleção, do vazio. Mas, como diz Rómulo de Carvalho (António Gedeão): “O sonho comanda a vida e sempre que o homem sonha, o mundo pula e avança”.
Dormi esta noite como se estivesse drogado mas continuo com sono como no rescaldo de uma bebedeira.



7. jul, 2016
Post 11

Domingo, 3 de Junho, 9h05
O dia promete “tosta”, a avaliar pelo que até agora apresentou.
Já me pus a imaginar que um dia, daqui a muitos anos, o que escrevo poderá servir de referência meteorológica, atendendo à quantidade de vezes que descrevo o estado do tempo. Se tivesse vivido há 160 anos ou mais, estes “boletins meteorológicos” seriam preciosos, uma vez que não existiam à época registos do estado do tempo. Os primeiros registos em continuidade no país apenas começam a ser efectuados em 1853, circunstância que acabou por dar origem à criação do Serviço Meteorológico Nacional em 1946 – quase 100 anos depois. Mas não vou perder mais tempo com o tempo, embora hoje tenha muito tempo para isso.
13h12, está mesmo “tosta”! O que mais me irrita neste dia soalheiro é estar aqui dentro e não ter ideias, não ter argumentos para ocupar o meu desperdiçado tempo em criatividade útil ou, pelo menos, mínimamente produtiva. Esse é um pesadelo recorrente e que faz-me pensar na triste existência daqueles velhotes que ficam a jogar cartas com outros velhotes nos tascos e jardins das cidades, vilas, aldeias e lugarejos espalhados um pouco por toda a parte deste nosso país envelhecido porque não têm mais nada que fazer no resto das suas vidas e acabam por morrer tão pouco ou menos inteligentes do que quando nasceram, porque os seus objectivos já não existem e agora nada passa de um passar o tempo à espera da Grande Ceifeira.
 Continuo como é já costume com pensamentos não necessáriamente alegres ou positivos nas minhas análises do universo circundante. É de certo modo curioso porque, para lá da escrita, no mundo concreto, na realidade do dia-a-dia, não sou assim tão negativo, até encaro a vida, se não pelo seu lado melhor, pelo menos por perspectivas mais “bright”. É como se manifestasse na escrita uma segunda personalidade, uma espécie de dark side ou alter ego do qual só tenho conhecimento e assumo como indissociável de mim quando escrevo. Será o meu subconsciente a manifestar-se? Será essa a minha verdadeira personalidade, a qual tento esconder aos olhos do mundo? Não estou muito interessado em saber, prefiro que, a existir essa tal personalidade oculta, ela seja relegada para segundo plano e continue a aflorar apenas em momentos de expressão literária, sem nunca se tornar dominante; caso contrário, estarei perdido. Absit!


2. jul, 2016
Post 10

00h39, 2 de Junho, 6ª feira
Dia de reflexão. Não sei porquê, acho que todos os dias são ou devem ser de reflexão, seja sobre o que fôr. O que nos falha na nossa vida, na nossa sociedade, é mesmo isso, a capacidade e a lembrança de parar para pensar um pouco em nós, no que nos rodeia, nos outros, no que não nos rodeia, no que nos afecta ou não, directa ou indirectamente. Sim, mesmo o que não nos afecta deve ser lembrado e reflectido, faz parte do nosso mundo, do nosso universo e cedo ou tarde vem-nos bater à porta, ocasionalmente pelas piores razões. Mas isso, embora devesse ser tomado em consideração, passa-nos geralmente ao lado; nesta nossa aldeia global o isolamento, o ensimesmamento aumenta numa escala inversamente proporcional ao aumento populacional que gradualmente nos envolve. É como se nos retraíssemos, nos acanhássemos à medida que as nossas oportunidades de socialização atingem valores cada vez menos abarcáveis. Nessa altura fechamo-nos, protegemos ferozmente a nossa individualidade, a nossa privacidade com um pânico irracional, reservando-nos apenas para os nossos raros eleitos, muitos deles não merecedores de tal distinção. Mas como só vemos os ciscos nos olhos dos outros, podemos não ver os calhaus que tapam os nossos.
Dia de reflexão, dia de upgrade, de actualização interior; se não o fizermos com regularidade começamos a desfasarmo-nos do mundo, a embrutecer a alma e a esclerosar a mente.


27. jun, 2016
Post 9

10h55, domingo, 26 de Junho
Proponho-me fazer uma pequena viagem pelos meandros do raciocínio enquanto pasmo aqui no meu posto e no quarto de dia que ainda me resta cumprir do meu fado laboral.
O dia está óptimo, tem vento mas não em demasia e está quente mas não em excesso, o que permite desfrutar com agrado as benesses de um início de verão que promete melhores dias de prazer e lazer que os dos dois últimos anos. Só tem um senão: estou preso ao meu compromisso social de sobrevivência, ao meu trabalho, e não consigo portanto gozar em pleno esta pequena dádiva da Natureza. Só ao fim da tarde, quando a dita começa a arrumar as botas é que posso aparecer, como um cliente tardio que surge logo antes do fecho da loja.
Somos uns insatisfeitos crónicos que passam a vida a queixar-se que esta não deu, deixou de dar ou deu a outros que não a nós as benesses que reclamamos. Ou então queixamo-nos que ela deu, passou a dar ou deu só a nós e não aos outros os problemas e as más heranças genéticas. Somos egocêntricos e interesseiros, faz parte da nossa natureza essa insatisfação pelo que nos calhou na rifa. O pessimismo e o optimismo defrontam-se na corda bamba e vão adquirindo as suas conquistas, curtas ou longas, pírricas ou, raras vezes, definitivas. As suas armas são os argumentos (verdadeiros ou falaciosos) e as emoções, com que os nossos tropológicos anjos e demónios se digladiam pelo privilégio de segredarem os seus conselhos aos ouvidos crédulos da nossa alma. Infelizmente o nosso lado negro tem propensão para a prevalência e costumamos pagar caro por isso, às vezes com a consequência última da nossa solução de continuidade. Nesses funestos momentos convém ter em mente que por mais escura que esteja a água, os peixes sobrevivem.
15h48, mesmo dia.
Aguardo a minha rendição. Há uma certa ironia nestas palavras; geralmente rendição aplica-se a quem vai preso e não a quem fica livre. É a plasticidade das palavras e a ductilidade dos conceitos a elas associados que permitem estes jogos de significados.
So os advogados fossem também linguistas e filósofos teriam o mundo na mão por via da palavra. Deus nos livre!
A última hora (credo!) é sempre a mais longa, a mais lenta, a mais extenuante. O Tempo gruda-se aos ponteiros num esforço desesperado de não ser relegado para um passado distante e esquecido, mas não há criogenia possível. O tempo estático, congelado, só existe na mente dos poetas e dos amantes, que são também eles, à sua maneira, poetas.
A minha pequena viagem terminou, já não tenho mais tempo.



25. jun, 2016
Post 8

05h38, 2ª feira, 13/06
Não sei verdadeiramente sobre que escrever, peguei na esferográfica por hábito e por gosto. Além do mais, tenho que praticar bastante, a minha caligrafia está muito irregular, o afinamento dos movimentos da mão ainda necessita de muito exercício para voltar (?) ao que era dantes. É extremamente frustrante escrever como se não o soubesse fazer e depois tentar decifrá-lo.
Com a perna o stress é similar, a amplitude dos movimentos e as respostas sincronizadas com a velocidade necessária para uma locomoção eficiente deixam muito a desejar. O joelho e o pé são os principais responsáveis pela resposta ineficiente: o joelho não distende com rapidez e o pé está como que adormecido em determinadas situações. Na verdade essa é a melhor maneira de definir o problema, é como se o pé estivesse adormecido, mas sem os “piquinhos”.
Psicológicamente, a frustração e o stress resultantes são enormes, cada vez que me movimento faço comparações com o passado, “fervo” com o presente e receio e lamento o futuro, um futuro que sei que, por melhor que venha a revelar-se, nunca será como o passado que experienciei.
Onde para a esperança e começa a resignação? Estou como aquelas solteironas que, embora avançando na idade, mantêm uma esperança desesperada de encontrarem o seu mais-que-tudo até que por fim aceitam o seu fado.
Bem, vou esgotar o assunto por aqui, não quero passar todo o tempo a lamentar-me, a ter pena de mim próprio. Outros dias virão, mais luminosos, mais esperançosos.


12. jun, 2016
Post 7

01h17, domingo, 12 de Junho
Tive um bom fim de semana, sem maus augúrios, repousante e energizante. O bom tempo tem destas coisas, enche-nos o cérebro de drogas da felicidade, de endorfinas. Se alguns moralistas sequer suspeitassem que têm andado toda a vida a drogarem-se, matavam-se.
Como ainda estou ressacado das ditas endorfinas que injectei este fim de semana, não me apetece escrever sobre coisas tristes ou negativas (já não era sem tempo!).
Tenho estado a ler a “Trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster; já tinha entrado em contacto com este escritor pós-modernista norte-americano na faculdade e o que li (O Livro das Ilusões) deixou-me bastante insensível aos dotes literários deste autor. O que agora estou a ler é, no fundo, “mais do mesmo”, não vejo muita diversidade de tema.
Paul Auster assemelha-se a J.D. Salinger (The Catcher in the Rye) na sua procura do Inner Self, de um modo marcadamente norte-americano que, na minha leiga opinião, enquadra-se pouco no pensamento europeu. Não será própriamente o tema em si, pois a procura de si próprio faz parte das dúvidas existenciais de qualquer ser humano; o que aqui está em causa é a extrema complexidade com que o tema é vivido e apresentado, num jogo de parábolas e metáforas, de símbolos e subliminaridades extremamente difíceis de descodificar. Ao consultar esse tipo de temática não me admiro que o animal de estimação preferido dos norte-americanos seja, não o cão mas o psiquiatra.
Em minha opinião, esse complexo povo de contrastes é um pouco como os lémures e age similarmente: precipitam-se cíclicamente para o abismo à procura de algo que já não está lá mas que teimam em acreditar que existe. The Quest, the Frontier, fazem parte tão integrante da alma americana que não concebem viver sem elas, procuram sempre para além das fronteiras do senso comum e do impossível.


10. jun, 2016
Post 6

01h12, 5ª feira, 9/6
“Tudo o que é demais é moléstia”, ouvia muitas vezes dizer aos meus antepassados recentes. As suas cordas vocais já não vibram aos meus ouvidos mas as suas palavras fazem finalmente eco no meu raciocínio. Também eles receberam ecos semelhantes muitos anos após o desaparecimento dos seus e também meus antepassados, também eles compreenderam tardiamente (nunca é tarde demais) os múltiplos e avisados recados de sabedoria ancestral. Como há tempos fiz reparo, tal não é por desdém ou estupidez, é por imaturidade; seremos sempre imaturos em algum aspecto, até ao fim dos nossos dias, independentemente da idade.
Mas, voltando à citação da tal sabedoria ancestral de que também um dia faremos parte, reparo (com o temporal atraso cognitivo que referi) que quanto maior é a informação disponível sobre um determinado assunto, menor é o conhecimento que se tem sobre este. O excesso de informação provoca mais ignorância que a escassez de dados. Sabemos menos porque afogamo-nos num oceano de referências, muitas delas duvidosas, hesitando a quais nos agarrarmos.
À semelhança das crianças, deixamos de brincar e de saber brincar quando temos demasiados brinquedos, dispersando-nos no aborrecimento e na ignorância


8. jun, 2016
Post 5

00h09, 4ª feira, 8/6
Estou um pouco preocupado com a minha saúde mental pois esta poderá reflectir-se na sua homóloga fisica. Estes 4 meses pós-trauma deixaram também sequelas, não a nível neuronal mas de pensamento, uma sensação de impotência e de perda irreversível que condiciona sobremaneira a minha forma de estar e agir no mundo. Não posso negar que nos meus momentos de introspecção, nos meus solilóquios, existe um peso difícil de aligeirar, mesmo através da atitude positivista que caracteriza a minha relação com o universo circundante. Sei também que o tempo tudo cura e a aceitação da limitação física acabará cedo ou tarde por sobrepor-se aos pensamentos nebulosos que têm feito parte do meu dia-a-dia.
Laschiate ogni speranza voi ch’entrate, escreve Dante Alighieri nas portas da sua visão do inferno. Contudo, só entraremos no inferno se pagarmos o tributo a Caronte. Eu ainda não paguei.
E pronto, está feito mais um “post de iluminação pública”, ou seja, um post onde ilumino, esclareço o meu ainda subliminar e escasso público sobre a aparição e significado dos turbilhões e outros ventos que me vão perpassando pelo espírito.



8. jun, 2016
Post 4

06h12, 3ª feira, 7/6
Agora que “publiquei” as minhas mexeriquices da alma, sinto-me exposto e isso incomoda-me de algum modo. Enquanto me movia no meu quarto fechado, criando um monólogo que só em mim fazia eco, julgava-me audaz, forte, capaz de analisar e avaliar este mundo e o outro sem medos nem modéstias.
Agora criei um Big Brother espiritual, um buraco de fechadura por onde posso ser observado a qualquer momento, julgado, dissecado, como uma espécie de figura pública do meu minúsculo universo. É também e simultâneamente uma evolução e uma responsabilidade, um sair da casca tímido mas irreversível e a seu modo benéfico, que me arranca da zona de conforto onde me tenho mantido nos últimos 59 anos. Que tenho a temer? Nada neste mundo é relevante, tudo é transitório, efémero e insignificante, portanto não olho para traz, aceito as consequências e... God speed!
O sol radiante que começa a erguer-se prenuncia-me um óptimo dia de sono. Para consolo: a manter os ciclos circadianos assim invertidos, difícilmente padecerei de melanoma.


8. jun, 2016
Post 3 (editado)

02h36, domingo, 05/06
Hoje não estou feliz nem triste, não me sinto especialmente negativista para falar na morte nem optimista para falar da vida, não estou carne nem peixe, ph 5.5, sem estado de espírito delineado. Ora, estando neutro não posso emitir opiniões e não as tendo não tenho assunto sequer sobre que escrever.
Caí em contradição inadvertidamente: não só tenho assunto, visto estar a escrever sobre isso, como estou a formular uma opinião.
Estes círculos viciosos do raciocínio e da linguagem são simultâneamente interessantes e irritantes porque permitem tecer um sem-número de considerações por vezes inesperadas mas também conduzem a um impasse nas conclusões: há assunto quando se escreve sobre nenhum assunto, será o não-assunto um assunto em si mesmo ou escrevendo-se sobre algo que não existe formalmente, não há assunto? Mas se não há assunto, de que é que eu estou a falar?
Chega a altura em que afasto-me deliberadamente do “assunto” antes que comece a tergiversar pois a relativa complexidade do raciocínio propicia erros conceptuais que podem surgir sempre que a abstracção atinja valores que, por demasiado elevados, ultrapassem-me.
E pronto, consegui a geração expontânea, tirar um assunto de um não-assunto, sacar um coelho da cartola com a varinha mágica da filosofia de bolso, tentar, através de palavras não sei se falaciosas, provar o improvável. Mistificação ou realidade? Como tudo na vida, as opiniões dividir-se-ão de acordo com os raciocínios seguidos, criando verdades mentirosas e/ou mentiras verdadeiras.



2. jun, 2016
Post 2

01h16, 4ª feira, 2 de Junho
Agora que iniciei um blog sei que tenho uma responsabilidade acrescida, que é a de escrever o melhor possível. Não que seja obrigatório, não tenho ainda esse dever perante os meus hipotéticos leitores, eles só me leem se quiserem. No entanto e paradoxalmente, sinto-me na obrigação de o fazer por eles e por mim, porque sou um tanto perfeccionista e porque eles, sejam quem forem, merecem a minha preocupação simultâneamente egótica e desinteressada.
Ao escrever sirvo a 2 senhores: ao meu ego, que se alimenta das leituras que os outros fazem de mim e a esses que me leem porque de algum modo transmito-lhes algo que, por pouco que seja, os atrai à minha leitura. Todo aquele que escreve é, afinal, um filantropo egoísta.
Deparo-me também com outro grande problema: antes escrevia por gosto ou desabafo, sem o ónus da leitura por mais ninguém que não eu próprio, hoje faço-o para alguém mais, tenho a consciência que a naïveté de uma escrita até agora inocente e inimputável irá ser mais scaneada e avaliada que um barbudo num aeroporto norte-americano.
Acho que hoje perdi a inocência.
Tomo consciência do meu envelhecimento através de pequenos pormenores que, por insignificantes, passam despercebidos. Só são notados quando faço mentalmente um estudo comparativo dos últimos 10 ou 15 anos, isolando, evidentemente, a minha mais recente aquisição limitatória.
São dentes a avariar, juntas a ranger, visão a piorar, pequenos skills fisicos e mentais que vão-se perdendo e que teimamos por vezes em não reparar, numa negação da antiguidade. É a idade da perda: perdem-se os dentes, perde-se a visão, perdem-se os óculos, a memória, as chaves, a consciência das capacidades, a resistência estomacal ou muscular, os neurónios, por vezes o juízo. O problema é que, ao contrário dos óculos ou das chaves, a grande maioria não é recuperável, estamos a comprar a morte a prestações.
Mas morrer será assim tão trágico? Não passa de uma circunstância que conhecemos desde logo que adquirimos consciência, um contrato que assinamos à nascença e sabemos ter obrigatóriamente que cumprir. Donde vem o espanto?
Procrastinamos o contrato, é lógico, é justo, é expectável, mas um dia teremos que o honrar, há-que tentar estar preparado (acho que nunca estaremos). A única chatice é que o cumprimento do acordo passa muitas das vezes pela alienação do património corporal por processos nem sempre pacíficos.


1. jun, 2016
Post 1

1 de Junho, 3h13, 3ª feira
Dia igual aos outros e diferente dos demais. Cada dia é como um pensamento: irrepetível; é isso que torna a vida suportável e não suicidária, que faz com que cada dia não seja uma cópia do anterior, cada acordar não dê a sensação de que, afinal, alugámos o mesmo filme repetidas vezes.
Hoje não há lobos nem ventos uivantes, apenas a calma quietude de uma madrugada estrelada, onde um pálido luar quarto-minguante não consegue vencer a ofuscante poluição fotónica de uma cidade adormecida.
Frédéric Chopin ressurge dos mortos e toca piano no meu smartphone. Coitados, os mortos célébres não têm sossego, estão sempre a ser invocados algures numa imortalidade que não os deixa gozar o sono da morte. Bem-aventurados os pobres de espírito que têm direito ao eterno descanso.





1. jun, 2016

Ao sabor do vento

 À espera do paraíso (algures em 2012, talvez Setembro)

 Estou sentado no café. Acabei de ler um capítulo de Negras Costas do Tempo, de Javier Marías. É um autor interessante, como todos, à sua maneira, são interessantes. Cada um relata a vida, a história, o conto, como o vê, como o sente, como na sua mente de escritor idealiza, torce, retorce, metaforiza, elide, acrescenta, verte ou vomita a criatividade do seu cérebro. Que faço aqui? Vegeto ou cultivo-me? Já li muitos livros, num esforço heterogéneo de abraçar o mundo (tão cliché!) através dos seus escritores. .....................................................................................................................................................

 Leio muito. Porque leio? Para recuperar o tempo perdido, trinta anos de embrutecimento (in)voluntário, três décadas de falta de investimento cultural, 10956 (ou 58) dias de depressão mental (por purismo, contei os anos bissextos), o que não me alivia de um sentimento de perda, de incapacidade parcial em abarcar todo o conhecimento que poderia ter tido se não tivesse estado emparedado tanto tempo na minha incultura consentida. ..................................................................................................................................................... 

Leio para não morrer estúpido nem de tédio. Tenho 55 anos mas não sou do género de pessoa, como tantos infelizmente que observo, capazes de estar horas num café, sozinhos, em silêncio, em comunhão interna com o seu próprio destino, as suas tristezas, as suas frustrações. Sim, porque quem se comporta assim não está a reviver alegrias e sucessos, está a remoer a porca da vida, um eufemismo pessimista para a existência terrena. Leio porque não tenho nada que fazer, leio porque posso, porque quero e porque acho útil, leio porque tenho oportunidade e para preencher os compartimentos metafóricos que existem metafóricamente na enorme e metafórica mansão que é, metafóricamente, o meu cérebro, a minha mente, a minha alma, o meu espírito ou as mil e uma outras coisas que lhe queiram chamar. 

Não é frustrante? Tenho uma licenciatura em línguas, feita com muito sacrifício quando ainda trabalhava, é certo que é Bolonha, não será tão completa como as antigas, falta-me o mestrado para chegar aos calcanhares das outras, das anteriores ao processo, mas é uma licenciatura. É a prova cabal de que me esforcei por ser algo mais, por saber mais, por sair do marasmo cultural dos tais 30 anos. O que é que eu sou agora? Sou um entregador de refeições licenciado. 

Segunda folha; esta dista 4 horas e meia da outra. Outra disposição, outro estilo. Será que me estou a tornar existencialista? Espero que não, os existencialistas são pessimistas em demasia, não bebem um copo de água sem considerarem as implicações que isso poderá ter na sua saúde, os milhões de micro-organismos assassinados pelos nossos sucos gástricos e aqueles que porventura escaparão e nos poderão prejudicar. A vida não pode ser só considerações sobre a razão da existência, há que vivê-la também com uma certa despreocupação. Quando vamos ao cinema, dar um passeio a um local desconhecido ou visitar um museu, fazemo-lo porque queremos e gostamos e não para questionar a nossa breve passagem no orbe. 

Estou a divagar – apetece-me utilizar uma corruptela que uso muito, de um conhecido ditado: a divagar se vai ao longe. É verdade, vivemos numa divagação constante e duramos, por norma muitos anos. Saí, está frio para andar de mota. Como sofro de uma doença que começou a aparecer pelo mundo há cerca de 40 anos, tenho que ter cuidado, é uma virose, e veio substituir as gripes, constipações, laringites, amigdalites e faringites da minha infância. É uma espécie de genérico, tem características de todas as anteriores, mas não é nenhuma delas, o que facilita sobremaneira o nosso vocabulário médico: “O que é que apanhaste?” “ Uma virose.” Sempre sonhei ser escritor. Claro que em pequeno queria ser montes de coisas, desde médico a...sei lá! Porém, o sonho que nunca me abandonou foi o de ser escritor, fui-me apercebendo ao longo de todos estes meus não muito fáceis anos de vida que ser e querer estão separados por distâncias às vezes impossíveis de percorrer. 

Não desisto, árvores já plantei, filhos já tive, só falta mesmo escrever um livro, seja ele bom ou mau. Seco. Não sêco, séco - de secar, de apanhar seca. Que pena simplificarem a língua, os acentos faziam tanto jeito. Aos menos para os chineses não há ambiguidades, não há duas palavras com o mesmo significado, todas são compostas por outras. Claro que é complicado, mas não é ambíguo. Seco e escrevo, seco e escrevo, já não me apetece ler, pelo menos hoje. ......................................................................................................................................................... 

2ª FEIRA

 É engraçado imaginarmos o nosso corpo como um campo de batalha: um exército de anticorpos a combater várias alianças de inimigos – vírus, bactérias, fungos, toxinas, colesterol ldl, etc. Tudo se passa como se de exércitos não microscópicos se tratasse: há os abastecimentos, os reforços, o recurso às armas (também as há de destruição maciça) como obuses de cápsulas, metralhadoras de comprimidos, o fogo de contenção das drageias e profiláticos, os raides aéreos de injeções de antibióticos, etc. Felizmente não estamos na Idade Média, aí as forças do mal levavam geralmente ou muito frequentemente a melhor sobre os exércitos do Rei Saúde. Também não admira, tratamentos à base de publicidade enganosa e de crendices, falta de higiene e fanatismos, não levavam a lado nenhum. 

Talvez tivesse sido melhor assim, senão teríamos uma terra hipersuperpovoada ou, mais provavelmente, não teríamos quase ninguém, pois a humanidade, em casos de excesso de população, arranja sempre maneira de se auto-exterminar. É fácil falar e ajuizar quando “não estamos nela”, botar faladura e dizer que eram males necessários (as guerras, as pestes, etc.). Pois, era necessário porque não estivemos lá metidos, senão era uma barbárie, uma injustiça, um crime, só coisas lamentáveis. Porém, a história e os seus acontecimentos irreversíveis têm que ser vistos com os olhos da sua própria época, do tempo em que as coisas aconteceram. Criticar a inquisição, as cruzadas, os métodos cruéis de contenção e castigo do povo, do clero, da nobreza, de todos, é demagógico, será sempre demagógico. Nunca poderemos, em consciência, avaliar, ajuizar; imaginar talvez, mas com uma bem atestada margem de erro. .............................................................................................................................................. 

O passado já lá vai, em vez de o utilizarmos como bode expiatório, olhemos por nós abaixo. O meu pai, a minha mãe, o ambiente social, a inquisição, D. Afonso Henriques e Carlos Magno, Mao e Confúcio, todos me afetaram, me pintaram com uma cor. Se não gosto da cor que é produto deste blend, então pinto-me das cores de que gosto, altero-me, modifico-me.

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19H37

 A mesma velha rotina. Estou sentado na mesa que tenho reservada no restaurante, à noite, só a largo se não houver lugar para sentar os clientes. Neste meu canto (é logo a 1ª junto à porta, não é um canto), leio, escrevo, falo pouco. Que pensarão de mim os clientes habituais, diários, a quem já vou cumprimentando, ao observarem aquele gajo de meia-idade – o que leva as refeições – sempre a ler e pouco comunicativo? Sei que não interajo muito, prefiro emmimmesmar-me, sinto-me bem assim. 

Preocupa-me um pouco esta minha atitude, antigamente era muito social, muito dado à conversa, agora só quero o meu cantinho no mundo, onde não me incomodem nem incomode ninguém. Estarei a tornar-me antissocial, esquizofrénico, bipolar ou qualquer outra desordem mental, da qual não me apercebo? Diz-se que os doidos não se vêm como doidos e eu também me considero normal. Normal! O que é isso? Chove bem, um senhor que acabou de entrar e pediu um copo ao balcão: “O senhor desculpe, letras tão pequeninas! Não me leve a mal”. Claro que não, por que o hei-de fazer? Achei piada, se calhar os homens escrevem geralmente com letras maiores, as mulheres não, pelo menos as minhas filhas. Será também uma questão cultural, o senhor parece ter uma escolaridade básica, ou mesmo uma questão sociológica onde o tamanho importa. Não estou a ser freudiano, não me refiro ao tamanho do pénis, não quero ser tão redutor; os homens gostam das coisas grandes, um reflexo talvez do seu ego e do seu espírito competitivo, intrínseco. Vês, sou mais homem que tu, a minha letra é maior… Mariquices (ou marialvices). 

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Estou num daqueles dias em que apetece estar vivo. Este sol outonal, um ligeiro calor excessivo para o pullover e o casaco, um não-sei-quê de nostálgico no ar, como uma despedida de solteiro do Verão que teima em fazer face à chuva e ao frio do seu sucessor, tudo isso de uma alegria triste, uma sensação como que de perda de algo que sabemos voltará. Não é que eu goste do Verão a 100%, detesto muito calor; só gosto dele porque permite praia (não para o bronze, é para estar de molho), ar livre, luz, liberdade de movimentos, eventualmente um passeio até mais longe que o habitual. Olho pela montra, vejo muito trânsito, mais do que imaginava, antes de parar por aqui. Esta Rua de Camões tem um movimento enorme, além do trânsito normal passam imensas ambulâncias, carros de polícia, GNR e até judiciária, é constante. Também nunca vi tanta mota de grande (e pequena) cilindrada como aqui. É a carótida da cidade, diretamente ao coração do Porto. Os mesmos clientes, os mesmos cromos, as mesmas figuras típicas, já quase conheço de cor a sua rotina, como eles conhecem a minha. 

Será que se importam, será que me importo, ou fixamos apenas os automatismos porque é da nossa natureza fixar, memorizar tudo, mesmo aquilo que nada importa? Que lhes interessa, que me interessa o que eu/eles fazem ou faço, desde que não prejudique o curso da minha/sua existência. Às tantas interiorizámos a teoria da borboleta, às tantas já nascemos com ela impressa no nosso ADN, já viemos de fábrica com uma espécie de Windows 8 ou 10 já instalado e que não podemos desinstalar sob pena de ficarmos vazios e inúteis, uma máquina sem alma, sem sentido, sem esperança porque não tem expectativas pré-instaladas. Se nos pudéssemos formatar para retirar esses pequenos vícios, hábitos, atitudes aparentemente inúteis, vãs, retiraríamos também a nossa personalidade-matriz e já não seríamos os mesmos, apenas uma cópia, um clone melhorado mas vazio dos defeitos que nos fazem ser quem somos e nos impedem de viver naquele mundo perfeito, demasiado perfeito, onde a única esperança é o suicídio, o não-ser. 

E quem nos diz que não-seríamos? Provavelmente apenas mudaríamos de estado, seríamos algo mais…quê? Perfeito? Sensível? Consciente? Tudo isso, nada disso? Estou a assustar-me, parece que afinal o existencialismo está a minar a minha mente e eu não quero, quero apreciar a vida, dentro do possível, das minhas limitadas posses. Não me apetece ficar macambúzio, pessimista, descontente. Acho que fico pelo realismo que, embora sendo um pré-existencialismo não sofre de uma depressão tão grave, apenas observa o mundo tal qual ele é sob os nossos olhos e o nosso entendimento. Sempre gostei de filosofia - e de escrever. Agora entendo um Saramago ou um James Joyce, eles não utilizam muito a pontuação, escrevem ao correr da pena como Jack Kerouac, deixam fluir o pensamento sobre o papel, sem o espartilharem com pontos, vírgulas ou parágrafos. O pensamento é rápido demais para a escrita, quando se escreve, o primeiro corre mais e não o apanhamos. As ideias fogem e não se conseguem fixar, a memória é curta e a torrente muito forte e heterogénea, não há uma linha contínua nem um gravador de pensamentos que possamos fazer voltar atrás e, mesmo que o conseguíssemos, o ruído de fundo seria demasiado forte para poder entender o fio condutor, a linguagem da mente é irrepetível, é como escrever numa sopa de letras em ebulição. Esta sopa de letras é um lugar-comum muito engraçado e também fácilmente moldável, com um pouco de criatividade imaginativa, é como plasticina.

 Aliás, um escritor é um arrumador de palavras com talento. Esta aqui, aquela ali, um comboínho com as carruagens certas para cada fim, para cada viagem. Ficção-científica? Pega-se nesta palavra, naquela, duas destas, repete-se a primeira, etc, etc, etc e ponto final. Recomeça-se com outras palavras. Uma tese de mestrado? A fórmula é igual, às vezes quase com as mesmas palavras, mas seguramente com muitas repetições. O que muda é a criatividade, o sentido, a intenção do escritor. Talento? Não só, grandes escritores podem fazer péssimas obras, maus escritores excelentes obras-primas. O momento conta, a ocasião conta, o ambiente conta, o estado de espírito conta, conta tudo, tudo. 

4ª Feira, chove, pouco mas chove. 

Já estou a ser repetitivo como o tempo. Afinal, tudo vem do hábito, acomodamo-nos ao tempo porque ele nos impõe a sua rotina e nós, habituados a ela desde que nascemos, aceitamo-la sem reclamar, isto claro, descontando a nossa eterna insatisfação com o que temos: “Que chatice, está a chover, que frio”; vem calor: “Que chatice, não se pode andar na rua com o calor, fazia falta uma chuvinha… “ Mas se eu for repetitivo, chamam-me chato, que não sei falar de outra coisa, falta de imaginação, uma seca; pois é, não sou o tempo, não nasci no hábito dos outros, sou um corpo estranho que aparece do nada num determinado momento das suas vidas, não me chamaram, apareci sem licença. “Que vem este cá fazer, alterar as nossas rotinas com uma rotina nova, não, não o aceitamos na sua repetitividade, tem que se adaptar a nós e diversificar ou pomo-lo de parte, quem é que ele julga que é, o tempo? Não queremos a sua chuva persistente ou o seu sol que nunca se põe, vá molhar ou secar outros, foge que ele vem aí, finge que não o vês, senão não te larga sempre com a mesma conversa.” O tempo não, aceitamo-lo como ele é, dá-nos as couves e o bronzeado, é bom e não é chato, só às vezes quando não muda de humor e persiste em molhar ou queimar e apanha-nos desprevenidos. E se agora houvesse um terramoto? O pânico, a destruição, o estupor causado por algo invulgar a que não estamos habituados! A terra abre as suas pústulas, treme de frio e nós, os seus ácaros, fugimos, tentamos escapar, morremos esmagados, recomeçamos tudo de novo. Triste vida a de um ácaro, quando não se auto-exterminam, o seu próprio hospedeiro aplica um acaricida. Sim, porque um excesso de ácaros só pode trazer doenças, epidemias, tem que existir um método de regulação populacional. Os anticorpos da terra fazem o seu trabalho, eliminam por reação ao elemento perturbador o excesso de microorganismos que a atacam. 

Pois é, cá estou de novo sentado no café à espera de entregas, a escrever. Afinal o dolce fare niente também custa, é melhor o dolce fare qualche cosa, esse ao menos custa mas é mais útil. Este ciclo que se repete é mais uma aprendizagem na roda da vida, afinal todos os dias se aprende, sem excepção, nos bons e nos maus e os efeitos da fricção entre nós e a dita servem de esfoliante para o cascão de negatividade que nos envolve e do qual nos temos, nesta ou na outra ou noutra, que libertar, é a lei do universo, caminhamos impreterívelmente, inexorávelmente, iniludivelmente e sem apelo nem agravo para uma perfeição longínqua que ainda não vislumbramos e para a qual temos que nos ir, progressiva e lenta, caracolmente, preparando. 

Eu acredito na reencarnação, quem terei sido no passado para que a lei do carma me castigue como só eu sinto, diferente de todos os outros, que também só eles sentem o que sentem e pagam o que têm que pagar. É a lei da causa e efeito, toda a acção tem uma reacção diretamente proporcional, afinal não fui assim tão velhaco, não sofro tanto como vejo muitos sofrerem. Não posso dizer que seja agradável mas não tão é horrível, ao menos. Terei que evoluir muito para poder apreciar a beatitude, a comunhão com o divino propalada por S. João da Cruz ou Santa Teresa pois acho para já que isso é uma grande seca ou uma grande pedrada, onde estás bem, estás no céu ou onde seja, estás em contemplação, não precisas das mãos, pés, olhos, ouvidos, nada, é só mente, ausência de sentidos, morte física. Pode ser muito bom, pode ser o máximo mas para o meu estádio de evolução não vale nada, estou muito apegado à existência física, quero comer, rir, cheirar chorar, doer, defecar, quero sentir-me, só sentir-me e aos outros. Raio de vida que nos vicia, esta droga que nos consome e alimenta desde o primeiro sopro. 

Tenho um pouco a mania de que sou original, digo muitas patacoadas, palavra que, etimologicamente, significa (pausa de alguns minutos, para ver na internet no telemóvel, que está lenta) feito disparatado, impensado ou tolo, asneira, disparate, patetice, tolice, dito cómico ou espirituoso, brincadeira, piada, ostentação ridícula, bazofia, jactância, patarata (Bras.), endromina, pantominice. Ora, aqui está uma palavra que já quase não existe no dicionário interiorizado dos portugueses, caiu em desuso, era muito utilizada no tempo do meu pai, da minha avó. É quase como o porreiro, que foi sendo substituído por bué da fixe e outras e que muitos jovens já nem sabem o que significa. 

A minha avó e mesmo o meu pai e a minha tia, utilizavam termos, expressões, muitas já esqueci, outras, ouço-as de vez em quando e acordam memórias enterradas. Essa minha avó – Ernestina de seu nome, nome fino na época entre os médio-burgueses a que ela pertencia, utilizava muitas vezes quando se irritava com alguém o termo canhão, que só há muito pouco tempo tive a curiosidade de decifrar, e que significa(va) pessoa má, pessoa feia, prostituta e outros nomes igualmente positivos. Há ainda nomes e expressões que perduram na mente coletiva, como anda mouro na costa - velha de séculos – ou coisas do arco da velha, ou qualquer coisa a minha avó torta, ou dar às de Vila Diogo ou chamar o Gregório ou estar no seu estado interessante, ou cair o Carmo e a Trindade. Outras há cujo significado, talvez devido a modismo perdido, caduco, já nada dizem como dar vivas à republica, que eu já nem sei bem o que quer dizer ou armado em Fângio ou à Fângio, assim como o seu equivalente Fittipaldi, que as novas gerações desconhecem. As mais eruditas, essas não se perdem mas estão reservadas para um extrato mais culto: a espada de Dâmocles, a vitória pírrica, o calcanhar de Aquiles, a Odisseia, o Eldorado, o tosão de ouro. Os trabalhos de Hércules, o cavalo de Tróia, a razoira de Occam, a lanterna de Diógenes, etc. Já não chove, a rua quase que secou e eu estou a secar também. 

19h13,

 a minha mesa do café acolheu-me friamente, como em todas as vezes que me sento, aqueço-a com o corpo. Por outro lado, e utilizando uma metáfora, acolheu-me calorosamente, esperando que lhe faça companhia até ao fecho, outra que aceita as rotinas paulatinamente. A nossa tendência de personalizar tudo é engraçada – como o pensativo cigarro de Eça – embora isso constitua uma hipálage: atribuição a um ser ou coisa de uma qualidade ou ação logicamente pertencente a outro ser, muito típico deste escritor, assim como de Latino Coelho. 

Ao fim e ao cabo é uma espécie de personalização, os carros resfolegam, os motores tossem, o giz guincha, as portas fecham-se preguiçosamente ou com urgência, a chuva é impiedosa, o sol é cruel, a lua esconde-se timidamente. Será uma hominização inocente, criada para facilitar a compreensão do mundo ou trata-se apenas de uma classificação redutora, egocêntrica, antropocêntrica, chauvinista e escravizadora do mundo que nos rodeia? Ou ambos? Costumo fazer muitas perguntas a mim próprio (quando não aos outros, embora mais raramente) àcerca da minha pessoa, do que me rodeia, do mundo, dos porquês, do como, das razões. Ainda ontem falei no carma (ou karma, num estrangeirismo mais acentuado), será que abrange tudo, os homens, os animais, as plantas, os minerais, as partículas subatómicas, os seres unicelulares, tudo? Então o carma é o efeito borboleta, tudo tem ligação com tudo, cada gesto, cada pensamento, cada grão microscópico de poeira que cai, cada micróbio que se desloca, cada átomo, provocam uma reação em conformidade. 

Estou então aqui a escrever exatamente isto porque há – usemos números mensuráveis – um bilião de anos e a um trilião de anos-luz uma partícula finíssima de pó caiu em cima de um micro-organismo originando desse modo o término da sua existência como vida ou pré-vida, dando origem a uma sequência infinita e em todas as direcções, de não-acções, as quais teriam sido executadas pelo falecido, o que deu origem a outra sequência de acções que provavelmente não existiriam e que hoje condicionaram aquilo que estou agora a escrever devido a todo este conjunto inimaginável e incomensurável de circunstâncias e não-circunstâncias. Complicado, não é? E ao mesmo tempo tão simples! 

12h30, dia 29, 

as datas não interessam, a escrita é intemporal, a não ser que seja histórica ou jornalística, tudo o mais é ao sabor do escrevente, tanto faz relatar um dado ficcionado, uma história de amor ou mesmo uma vivência hoje ou ontem ou daqui a uma semana. A escrita é o pensamento feito matéria, é o gravador que envia para a posteridade (qualquer momento após um acto é posteridade) as ideias do seu autor, sem o qual este seria mais um anónimo, apagado, no meio de outros incógnitos. O génio está em todos nós, todos somos génios, não o sabemos, não o sabemos expressar, o que distingue os génios conhecidos de nós – génios desconhecidos – é o seu testemunho escrito, o que não pudemos, não podemos, não conseguimos, não sabemos ou não nos damos ou demos ao trabalho de transpor em símbolos, para que os vejamos, para que outros os vejam, para legar ao futuro, qualquer que ele seja, o que pensámos um dia. 

A escrita é como o carimbo numa carta, marca a nossa individualidade, impressa para sempre. Ou até que, como as cartas, alguém um dia a deite fora e destrua essa nossa marca para sempre, nos apague da memória como se de um ficheiro de computador se tratasse. Quando a minha tia adoeceu passei muito tempo com ela, sentado na cama a ver fotos antigas, as tais que ninguém sabia de quem eram, guardadas por quem sabia. Ela - a minha tia - estava com um cancro que sabíamos que a mataria mais tarde ou mais cedo, havia urgência em preservar as suas memórias que eram e são também as nossas. Mostrava-lhe as fotografias e perguntava-lhe quem era, grau de parentesco ou amizade, ligações ainda existentes ou quebras de continuidade e escrevia nas costas das ditas fotos esses dados. Só assim, pela minha previdência, foi possível criar uma cópia de segurança gráfico-fotográfica das memórias que em breve seriam apagadas. Mesmo assim: a tua avó é que sabia quem era, não sei, já não me lembro, era por vezes a resposta. Que pena, informação histórico-genealógica tão importante e tão irremediávelmente perdida! 

Dizem que o universo regista no éter todos os seus acontecimentos, como uma gravação, o registo akáshico. A ser verdade, um dia talvez pudesse rever todos esses dados, encontrar hiperligações e memórias perdidas, mas também estou convencido que, se tal for possível, quando essa altura chegar, evos-luz no futuro, já estarei numa fase de desenvolvimento na qual essas curiosidades serão ninharias, não tal como a primeira camisa que vesti (há quem dê valor a isto) mas como o copo de água que bebi ou o arroto que dei há 37 anos, 3 dias, 17 horas e 23 minutos. Tudo é relativo, cada vez mais e cada vez mais vago, como as tais cartas que deitamos fora ao fim de alguns anos, importantes no momento, diluindo-se no futuro até se tornarem etéreas, esfumando-se na não-importância. 

13H00,6ª FEIRA

 Saudades da infância. Boa ou má, a infância marca, deixa o sabor nostálgico de uma ignorância e irresponsabilidade idílica, de uma descoberta do mundo feita de surpresas, dor, alegria, desengano. As ilusões, o faz­-de-conta, o mundo de fantasia onde um pau ou uma pedra, um insecto, uma semente, um fruto, eram um personagem, um actor no nosso - só nosso - teatro imaginário, feito de histórias sem nexo, sem guião, feito das nossas alegrias, desilusões, ressentimentos, aprendizagens. Locus amoenus, a Arcádia infantil, as histórias de amor e sexo sem amor e sexo, platónicas, irrealidade intensamente vivida e gozada e sofrida. Não há noção do bem e do mal, os insetos são soldados-escravos das nossas guerras, bonecos que desmembramos a nosso bel-prazer, cruelmente, sem crueldade. Pobres insetos que torturei! ..................................................................................................................................................... 

Segunda-feira, 29 de Outubro de 2012

 Ex. mos(as) Senhores(as) Escrevo esta carta para que saibais (que fino!) que estou aqui, estou vivo e de boa (?) saúde. Sou um desempregado, licenciado, aborrecido, pré-deprimido, pré-obeso, hipertenso e hipercolesterólico (é assim que se diz?), mas não farto da vida, esperançado, positivo (às vezes), otimista (às vezes), à procura de um sentido na vida e de um ataque de força de vontade. A Esperança é a minha amante e a minha mulher não se importa, afinal ela (a Esperança) é a amante consentida de toda a gente, é aquela a quem recorremos quando estamos sós no mundo ou sós com outros “sós”. 

O Outono apareceu de mansinho, chove, faz sol, faz calor, está fresco, as folhas vão caindo controladamente, nada de urgências, há muito tempo para hibernar. Nós não hibernamos, por isso não nos despimos progressivamente como as árvores, a nossa hemolinfa, a nossa seiva é quente, podemos congelar. Os animais cobrem-se de pelo, as árvores despem-se de folhas. Há um turbilhão de ideias, de ideias dentro de ideias, de não-ideias, de ideias em germinação e de ideias caducas que me atravessam o compartimento de comando. Se todas fossem viáveis, se todas fossem escrevíveis, decifráveis, passíveis de descodificar, que obra-prima teria pela frente! Seria o escritor dos escritores, o filósofo dos filósofos, um hiper-Platão ou hiper-Confúcio. Os mestres, os génios, existem para se contraporem à mediania, para se destacarem, não de um modo egocêntrico mas altruísta, messénico. Se todos fôssemos génios, qual o sentido da vida?

 O “ignorante” esclarecido absorve, aprende sofregamente os ensinamentos – qual ovelha sôfrega de relva; o mestre, o sábio, saboreia-os lentamente, com paciência e discernimento, pachorrentamente como uma vaca numa pastagem, que rumina o seu pasto. Há pois que dar graças por existirem mais ovinos que bovinos na humanidade. Símbolos, símbolos, símbolos, somos um animal muito complexo que vive de signos, metáforas, parábolas, ditados, projecções e comparações. É bom sinal, não estamos satisfeitos, no bom sentido, com a vida que temos, queremos mais e melhor, queremos chegar ao fundo para saber o que lá se encontra, mais, mais, sempre mais.

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21H15

 Sol de Outono, tempo ameno. O dia promete ser bom. Vejo na rua o movimento dos meus congéneres, é uma lufa-lufa constante, para onde irá, o que irá fazer, quem é o dono deste carro parado nos semáforos? E a senhora que está aqui sentada no café, e a que entrou? Este é pintor ou trolha, nota-se pelas calças, é intervalo do trabalho. Todos passam por mim, ignoram-me, ignoram-se mutuamente, que importa para as suas vidas aquele ou aqueles que passam, desconhecidos, gente sem nome nem profissão, gente que não tem individualidade, é uma massa amorfa, um cacho de uvas feito por muitos bagos anónimos, impessoais, indiferentes. 

Eu sou, eu tenho individualidade. Puro engano, eu sou só para mim, os outros Eus olham-me sem ver, também sou amorfo, indiferente. Só dois opostos nos fazem sair da não-existência: as afinidades e os antagonismos; os primeiros porque tentamos alargar um conjunto de Eus que contam, semelhantes, os outros porque tentamos destruir os estranhos, os diferentes, aqueles que não nos partilham. Causa e efeito. Por vezes admiramo-nos com as pessoas que nos rodeiam e que não conhecemos de parte nenhuma. Claro que as conhecemos da convivência de café e eventualmente começamos a cumprimentar, mas nada mais. 

Ontem, após observação da minha incapacidade física temporária (o joelho inchado - caí) um desses tais anónimos acercou-se de mim e perguntou-me o que se passava, após o que me começou a dar determinados conselhos e indicar produtos para friccionar, como o álcool canforado. Agradeci e, entretanto, ele ausentou-se, voltando alguns minutos depois com um frasco do referido produto, que tinha entretanto ido comprar na farmácia e ofereceu-mo. Esta manhã, outra ilustre desconhecida diária a quem nunca cumprimentei até hoje, liberta a sua até então fechada solidariedade e pergunta-me se estou melhor. Faz-nos sentir bem esta onda de interesse desinteressado pelo nosso estado de saúde e, ao mesmo tempo, permite-nos uma parte de remorso por muitas vezes não sermos capazes de agir do mesmo modo. As situações passam por nós e não agimos, às vezes fazêmo-lo já demasiado tarde ou pensamos que poderíamos ter feito algo mas não fizemos, é uma espécie de desculpa dizermos que estávamos para o fazer mas lembrámo-nos demasiado tarde, é um certo aliviar de consciência dizer a nós próprios que afinal não somos assim tão maus diabos, até estivemos para o fazer. Pois, hipócritas, auto-hipócritas, embora esse termo não exista. 

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Outro dia, outra noite, as minhas conversas com o papel estão a ficar mais espaçadas e curtas. Não é que não queira, às vezes não dá ou estou ocupado com outras pequenas ninharias. No meio de tudo isto, sinto-me feliz porque estou vivo, por ser quem sou, por ter quem tenho, por suportar os meus problemas – o sal da vida, como se diz. Bem, às vezes a vida fica demasiado salgada e isso faz mal ao fígado e à tensão arterial, mas lá se vai conseguindo pôr água na fervura para que o caldo não entorne. Se eu fosse mais novo e sem filhos, correria mundo, tenho pena de ter sido tão trengo, tão provinciano, tão inseguro quando era jovem. Tanto para conhecer e eu metido no meu canto, tentando sentir-me confortável, que tremendo desperdício. 

Agora lamento as oportunidades perdidas, o suor não derramado, o frio não tremido, a dor não sentida, a alegria não experimentada, a vida que nunca vivi e que é já demasiado tarde para que nasça. É a nostalgia das vivências desperdiçadas, a saudade de um tempo que nunca existiu. Experiência é evolução, toda a experimentação, positiva ou negativa, traz consigo um novo passo, um novo degrau para o conhecimento. Lamento. Lamento mas sigo em frente, o leite já está derramado, não presta, não importa, mais à frente há mais leite, há mais oportunidades para beber ou derramar. 

5 de Novembro, um primaveril dia de Outono. 

Está fresco mas o sol brilha, não vai chover hoje. Estou um pouco vazio de pensamentos, de anseios, hoje, e isso preocupa-me. Não ter objetivos é stressante e preocupante, nada se faz sem eles. Falta-me a pica, a força de vontade para prosseguir, estou a seguir ao sabor da maré, assim não vou a lado nenhum. Quem não tem remos, rema com as mãos. Estou mesmo num dia de “guarda para amanhã o que podes fazer hoje”, porém não o vou fazer, tenho que iniciar ou continuar algo para não entrar no marasmo de um dia sem sentido, sem produção, sem nada que o distinga dos outros dias improdutivos e inúteis que ensombram a minha existência, aqueles para os quais olhamos mais tarde e dizemos para nós próprios que foram desperdícios estúpidos e que estamos tão longe dos nossos objetivos ou realizações como se eles nunca tivessem existido. Se eu retirasse todos esses dias “não existentes” da minha vida, teria só 5 ou 7 anos de idade, o resto teria sido uma total inutilidade uma não-existência amorfa, uma dor de alma de esbanjamento de acção. 

Afinal queixamo-nos da vida mas nada fazemos para a melhorar, ou pouco, demasiado pouco. Nem tentamos, limitamo-nos a pensar na dificuldade em atingir os objetivos e concluímos que nem vale a pena tentar ou que é muito moroso ou mesmo penoso prosseguir e então desiste-se antes mesmo de começar. ............................................................................................................................................. 

17 de Outubro, sábado. 

Dia calmo a ameaçar chuva, vento fraco, temperatura amena. Pareço o boletim meteorológico (metriológico, como ouço frequentemente, até na televisão, aquela caixa que deveria educar o mundo). Curiosamente, tudo aquilo que deveria educar o mundo, torná-lo mais “apetecível”, mais próprio para viver, aligeirar a carga pesada que viver representa hoje e sempre, apenas tem utilidade diametralmente oposta, o mundo está cada vez mais burro (que me perdoem estes inteligentes animais), mais cruelmente individualista, um local onde um humanismo podre empurra todos para a sarjeta, tenta rebaixar todos os que não se chamem “eu”, sejam amigos, inimigos, desconhecidos ou familiares, homens, mulheres ou crianças, brancos amarelos, vermelhos ou negros. Num mundo onde mesmo diferentes espécies de animais por vezes se entreajudam, voltámos à lei do mais forte, do mais apto, onde não há lugar para falhas, voltámos à animalidade, à bestialidade dos predadores. 

Desde a Revolução Industrial (desde sempre) o progresso humano visou retirar carga laboral, reduzir a percentagem temporal do esforço e aumentar a sua homóloga do saber, do lazer e da família. Infelizmente, a raça humana destrói o que constrói, não reformula, caotiza, complica, monopoliza o bem-estar em detrimento de todos. A sociedade pré-revolução industrial era má, vivia-se mal, sobrevivia-se mal. Mas, e agora? Será que vivemos melhor? Sim, é certo que vivemos muito melhor, mesmo os pobres. Segundo os nossos padrões, vivemos muito mal, estamos mal habituados, queremos água encanada, eletricidade, telefone, uma casa, dinheiro para esses luxos e para comprar alimentos. 

Há 500 anos nada disto era necessário (nem existia, quase tudo). Cada um construía a sua casa, caçava ou cultivava o que comia, fazia as suas próprias roupas, buscava a água no rio ou ribeiro, alumiava-se com gordura animal ou numa fogueira. Seria esta época assim tão má como a história a pinta ou os relatos desses tempos estão tintados pelos nossos luxos pós-adquiridos, por uma visão moderna de uma vida onde se tinha que trabalhar (no real sentido do termo) para poder sobreviver? Só o registo akáshico o poderia dizer… 

19 de Novembro, céu encoberto. 

No meu canto do café vejo confortavelmente (é pena a cadeira ser tão dura) o movimento da rua. Não se passa nada (em sentido figurado, claro). Caras conhecidas que passam, caras desconhecidas que passam, rotinas repetidas, movimento incessante. Sinal verde, arrancam todos, os raros (?) peões esperam, do outro lado os peões avançam e os carros estão impacientemente em ponto morto. Uma corrida, os veículos já avançam quase ainda no vermelho, parece que estão atrasados e têm que recuperar as centenas de metros que perderam ao esperar um minuto no semáforo. Aceleram… e param logo no próximo sinal vermelho. Há que chegar depressa a esse semáforo fechado para poder stressar com mais tempo ou, quiçá, escrever aquele SMS ou passar os olhos por qualquer literatura, seja jornal ou documento ou perder-se, embrenhar-se nos pensamentos, uma espécie de dormir acordado que o despertador da buzina do carro de trás se encarrega de interromper. 

Pé no pedal, que as nossas cogitações não interessam a ninguém, está a dormir ou quê??, vêm estes nabos para a rua estorvar os outros, se não trabalhas, há quem trabalhe!! E passou. Daqui a segundos já ninguém se lembra que estava irritado com aquele gajo que nos impede de curtir os sinais vermelhos, já passou à história. Se calhar esse que insultámos estará posteriormente sentado à nossa beira ou perante nós, em qualquer negócio, qualquer transacção, a conversar amigávelmente, ambos sem a mínima consciência daqueles insultos trocados ou recebidos entre anónimos automobilísticos.

 Essa selva temática é igual a tantas outras como a política ou o futebol onde, após as mais insultuosas trocas de mimos, tudo está bem, os amigos voltam a ser amigos, nada se passou, ninguém se lembra de nada. O sinal abriu, ruído dos motores, eventualmente pneus a chiar, uma aceleradela para passar o amarelo porque assim conseguimos atingir o próximo vermelho para sentir o nosso stress de estimação. Passar com o verde não tem graça, fica tudo livre e lá se vai o gozo. ..................................................................................................................................................

 Não estou muito inspirado, sinto-me cansado, vazio, esgotado de forças, não sinto grande impulso anímico para escrever ou seja o que for. Não posso, porém, esmorecer, desistir, parar é morrer. Escrevo então para me manter vivo, a mim e às minhas memórias, fruto de outras e raiz de muitas mais. As memórias das minhas filhas passam por mim, há nelas algo do meu passado, algo que lhes leguei, mais que o meu ADN ou talvez parte integrante deste, uma partícula, um micro-chip das memórias da família, da raça, da humanidade, todas as suas experiências, todos os seus medos, todas as suas esperanças e destinos. 

Estou a ler O meu livro secreto de Francesco Petrarca. É um livro interessante, adaptado à leitura moderna, porém num estilo que não aprecio muito. Os ensinamentos são interessantes, muito ao estilo dos diálogos moralistas da época, mas talvez um pouco massudos, por divagarem demasiado. Mesmo assim, vale a pena ler. Ao fim e ao cabo, é um clássico e devemos ler os clássicos, são a base do conhecimento e da literatura moderna, além de que são essenciais para uma boa base de cultura geral (um bocado confuso, mas vou deixar assim). 

Back to life, ou antes, back to creative (?) writing. Eis-me a tentar ser original de novo a tentar fazer valer a tinta com que escrevo. Bem, a caneta foi oferecida, por isso a prosa não deve ter muito valor. Não interessa, como em jovem não consegui pôr em prática o projeto de escrever um diário, processo abortado, agora que estou a caminhar para velho deu-me para isto. Pode ser que após algumas resmas de papel estragado e alguns milhares de quilómetros de tinta gasta, surja algo que valha a pena ter sido escrito. Todas as vezes que escrevo tenho a sensação de que estou a criar algo aproveitável, quando releio apercebo-me que ainda acredito no Pai Natal, mas não desisto, desistir é assumir a derrota e isso nunca se deve fazer, há que ser persistente e lutar por um sonho, seja ele qual for, dentro da normalidade e moralidade, claro. 

O meu sonho é ser escritor e, “c’um raio!”, hei-de conseguir, nem que seja no caixote onde serei confinado para servir de adubo orgânico ou de fertilizante em pó, vulgarmente chamado caixão. Talvez daqui a 500 anos estes desabafos apareçam algures, no meio de umas ruinas e serão tratados por biólogos, químicos, psicólogos, linguistas, arqueólogos, psiquiatras, filósofos, etc., e sejam considerados matéria de estudo, quiçá uma análise sociológica ou até uma obra-prima do período X. O mundo dá muitas voltas e o que hoje não tem valor, amanhã não tem preço. De nada me valerá, porém. A minha memória ou qualquer memória de mim provavelmente já não existirá, será como aquela tal carta que deixa de ter valor, que ninguém sabe de quem é e que vai para a reciclagem ou nem isso, para o oblívio dos cacos velhos, restos de uma bela habitação, demolida e despejada no entulho. Com um pouco de sorte será reciclado e transformado em papel higiénico – o produto final dos livros, dos jornais, das teses, das revistas, das bulas, das embalagens, dos poemas e dos tratados, a suprema igualdade e suprema ironia. Depois junta-se a mim e aos outros antes de mim e àqueles que me sucederão e será de novo árvore e pasta e papel e caderno e livro e lixo e reciclagem e papel higiénico, um ciclo talvez eterno. Ou seguirá o rumo alimentar e será adubo de plantas que alimentarão os homens que alimentarão os animais, que alimentarão outros animais, que alimentarão insetos que adubarão a terra que alimentará as plantas que alimentarão os homens que alimentarão……. O mesmo ciclo, visto de outra perspetiva. 

Para quê escrever, então? Por vaidade? Por gosto? Por necessidade? Porque não tem nada que fazer e há que ocupar os tempos mortos? Por vocação? Será a escrita uma forma de ADN pelo qual tentamos projectar, legar ao futuro os nossos genes feitos símbolos a descodificar pelos vindouros? Talvez nada disso, talvez tudo isso. Meras conjecturas. Pergunta a 10000 pessoas e terás 8743 respostas diferentes, umas parvas, outras originais, possivelmente nenhuma próxima da verdade, se ela existe. Cada cabeça, cada sentença. 

22h11, em breve vou para casa.

 Os últimos minutos são sempre os piores de passar, desdobram-se, triplicam-se, incham, passam a ter 80 ou 90 segundos e, depois do alívio da saída, voltam ao normal ou encolhem, geralmente encolhem. 1

3h15, 21 de Novembro, 

dia solarengo, fresco, com uma frescura a sugerir mais frio. É curioso que, embora o outono esteja nos antípodas da primavera, logo com características meteorológicas similares, também está nos antípodas da nossa perceção mental do fenómeno, ou seja, no outono o frio sugere mais frio, a chuva mais chuva, enquanto na primavera o mesmo frio e a mesma chuva sugerem mais calor e menos precipitação. O frio é o mesmo, a chuva é a mesma, a interpretação da mente é que diverge, como se o seu termómetro e o seu pluviómetro se invertessem. .................................................................................................................................................

 É 2ª feira, 

grande seca, como de costume. Nem uma refeição saiu. Dá-me tempo para pensar na minha vida e tentar dar-lhe um sentido. Não é fácil, o pensamento tende a esvair-se, a deambular por parvoíces sem utilidade, a distrair-se com insignificâncias, sem ir ao âmago das questões, sem realmente analisar e sintetizar, sem decompor e dissecar os problemas e imaginar soluções. A utilidade do pensamento, o pensamento útil é aquele que produz algo, que soluciona, que desenvolve; não é meramente retórico, pensamento mecanicista, pensamento vazio, sem limites, desfocado, inútil, por não dirigido. 

3ª feira, dia neutro e frio. 

Reparei que estou a ficar velho e que já não me importo muito. Há 10 anos fiquei chocado, chocadíssimo, quando, por um acaso e por uma circunstância que não vale a pena expor, me apercebi que estava a protelar o meu envelhecimento. A velhice é como uma doença grave, só acontece aos outros, nós somos sempre jovens. E, um dia, ela dá-nos um grande estaladão e acorda-nos. Dói, magoa bastante, mas passa. O indesejado passa sempre por aquelas três fases: o estupor, a negação, a aceitação ou resignação. Ser velho tem as suas vantagens, as suas constatações, é-se mais sábio, mais ponderado, mais experiente. É também um espelho desfasado onde miramos a nossa imagem do passado e vemos o que deveríamos ter sido e não fomos. Não por estupidez, mas por juventude. Vamos criticar um jovem por ser jovem? Não. É da sua natureza fazer asneiras, perder oportunidades, correr perigos, ser cego e surdo aos conselhos dos mais velhos, desbaratar energias, desperdiçar tempo. Agora roo-me todo ao ver as minhas filhas fazer os disparates que fiz, é natural, sou agora o que todos deveríamos ter sido em novos, lamento o inevitável que faz parte da natureza humana e de todos os animais jovens, em geral. Haverá em tudo isto a sensatez da idade e, quem sabe, uma pontinha de inveja por já não poder fazer o mesmo, por já não poder ser irresponsável, despreocupado, enfim, liberto do peso da gnose que a vida mais longa nos proporcionou. 

Ser jovem é (geralmente) ser livre e ser livre implica riscos elevados que já não quero ou posso correr e que tenho pena de não poder. A minha vida é o que é, foi o que foi, tenho que me contentar e sentir feliz por isso, há muitos que ficaram pelo caminho. 

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A ociosidade traz consigo a falta de tempo, o cansaço, a depressão, a frustração, a obesidade, a doença e muitos outros substantivos preocupantes mas, neste momento, o mais problemático é a proposição substantiva “falta de dinheiro para mandar cantar um cego”. Raiz de todos os problemas do nosso atual estado “civilizacional”, esta premissa tem a cabeça a prémio em quase todas as mentes e, apesar de poucos países adotarem a pena de morte, todos eles louvam o seu assassínio, não importa com que requintes de crueldade. Guantanamo, Carandirú para ela, cremação, extermínio, limpeza étnica, solução final. Seria um bem para todos. Utopias, desabafos de uma mente desocupada, ou talvez não. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce, lá diz o poeta. Se Deus quiser… nesse sentido Deus não quer nada, ele é uma entidade global que corresponde à lei da causa e efeito, do carma.

 Mas, demos voz ao poeta: Se Deus quiser e o homem aspirar fortemente, os resultados aparecem, não rapidamente, como por milagre, mas muito gradualmente, ao sabor da vontade de gerações incontáveis. Os resultados são lentos, lentíssimos para a nossa limitada capacidade de medir o tempo, baseada no nosso próprio tempo médio de vida. Contudo, para o Universo, que não tem tempo nem necessita dele para nada, as coisas surgem num ápice, um estalar de dedos, just like that! A nossa limitação temporal comporta impaciência, vontade de ter e fazer tudo “enquanto o diabo esfrega um olho”. Mas… quanto tempo leva o diabo (se ele existisse, para além de mera metáfora) a esfregar o dito? Como o Universo, o infinito, não tem tempo, não tem essa unidade de medição própria dos seres vivos e consciente apenas (?) para o homem, esse esfregar tanto pode ser considerado algo que antes de ser já era ou um movimento cuja concretização “dure” tanto ou mais que a formação do próprio Universo. E aqui estamos a falar de valores e conceitos muito para além da nossa limitad(íssim)a compreensão. 

Este raciocínio é muito interessantemente frustrante ou muito frustrantemente interessante, ou os dois. Quanto mais se tenta concluir, atingir o mais ínfimo grão de verdade, mais nos afundamos em areias movediças constituídas por um areal infinito de grãos de, cada um, uma verdade possível ou, quem sabe, uma verdade real, incontestável. Chegamos a um ponto em que cada grão que analisamos é uma verdade indiscutível e, ao sê-lo, contrapõe-se, anula todo o vasto areal indiscutível circundante, transformando por oposição todas essas verdades indiscutíveis em mentiras indiscutíveis. 

Onde está a verdade então, se por oposição, é tudo mentira? Vivemos ou não existimos, pensamos ou é tudo pura ilusão? Mas nós sabemos que estamos vivos e que pensamos. Ou não? Será que sonhamos que vivemos? Há quem diga que a vida é um sonho e os que morrem é que acordam para a verdadeira vida. Em que ficamos? Um círculo vicioso do qual não sairemos, a não ser que nos agarremos a uma aresta, uma qualquer, que passará a ser a nossa verdade, a verdade verdadeira. Por isso todos temos a nossa verdade e que difere da verdade dos outros. É uma tábua de salvação a que nos agarramos para sobreviver, para não cairmos num estado vegetativo ou de loucura, produto da incapacidade de escolher uma verdade para seguir. Ou uma mentira. 

Dia seguinte ao dia anterior, 13h11. 

Por vezes penso que o que escrevi numa outra data ou circunstância, à luz dos factos, da minha lógica do momento, não faz muito sentido, é confusa ou um total disparate. Temo reler o que escrevi para não me arrepender de o ter escrito. Será que o meu raciocínio é compreensível para os outros, para mim próprio, ou tudo não passa de um devaneio, de uma loucura ou descarga momentânea, anárquica, irregular, disparatada, de pensamentos sem nexo, cheios de pontas soltas e inconsistências? Voltamos ao velho círculo vicioso de pensamento, onde as certezas são escorraçadas como um cão tinhoso (velha e já pouco usada expressão), local onde a verdade e a mentira, a certeza e a incerteza, o real e o imaginário se confundem. Pois, só nos resta escolher uma verdade (ou mentira) plausível, pelo menos para nós, e seguir em frente com a nossa vida ou não-vida. A existência é uma charada chalada. ....................................................................................................................................................

 Por que escrevemos, que impulso nos leva a transpor para o papel os imperfeitos símbolos que transmitem o que nos vai lá em cima, na sede, na central? Há uma necessidade quase física de testemunhar, de tentar materializar o pensamento em algo não etéreo, palpável, nem que seja para escrever e deitar fora ou guardar bem no fundo de um qualquer esconderijo indetetável, com a certeza de que não nos servirá rigorosamente para nada, nem sequer os iremos reler no futuro. 

Para quê, então? Autoafirmação? Quero, posso e escrevo? Descarregar a estática do espírito, feita escrita? Dizem que gritar alivia tensões, é verdade, sentimo-nos outros quando o fazemos. Vivemos em sociedade, não seria muito prático andarmos aos gritos na rua feitos tolinhos, só para queimar stress. Então a escrita é um grito silencioso que emitimos e que só é ouvido se nós quisermos. Há muitos esconderijos, muitas gavetas cheias de preciosos gritos que ninguém ouvirá e que pena que isso representa. Imensos gritos anónimos em prosa, em poesia, verdadeiros tratados, romances, testemunhos, dramas que nunca verão a luz do dia nem a luz de nenhuns olhos. Gritos inúteis, perda de tempo? Não, cumpriram a sua missão, ajudaram alguém a gerir a sua mansão intelectual e a aliviar a tensão dos alicerces da sua componente física. 

Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, lá dizia Lavoisier. O homem e os seus gritos voltarão ao pó original e de lá reerguer-se-ão incontáveis vezes, enquanto existir o Universo. O pensamento é como a bexiga: quando está cheia, temos que urinar. Uma mente cheia tem que se aliviar de qualquer modo, senão rebenta. Quando está vazia, por mais que se tente, não sai nada. Há às vezes um bloqueio, uma pedra na bexiga que impede a micção. Aí dói e nada sai. Acho que, de vez em quando ou permanentemente, cada um de nós humanos tem a sua pedra na bexiga, que não dói mas pode matar, ou seja, dói, dói uma dor que nos pode levar à loucura e à morte. ...................................................................................................................................................

 O dinheiro, ou antes, a necessidade que criámos dele, origina muitos problemas e, tal como uma droga, provoca ressaca, crime, mal entendidos, ruturas, discussões, zangas, um sem número de males. Ele tolda-nos a visão, faz-nos agressivos, por vezes injustos. Diz-se o que não se quer dizer, faz-se o que não se quer fazer. Que é feito da pureza original, do Éden perdido, da comunhão com a natureza, da partilha, da comunidade? Infelizmente, para o nosso mundo, para o meu mundo circundante, morreu, não volta, não tem condições para voltar, tornou-se um mal necessário para, paradoxalmente, a tentativa de conquista da felicidade ..................................................................................................................................................... 

Como será (a haver, o que acredito) a reencarnação? Alguns apontam para um intervalo médio de cerca de 700 anos, mas eu não creio. A meu ver, a reencarnação ocorre sempre que estejam reunidas as condições mínimas de causa e efeito que constituem a lei do carma; ou seja, sempre que determinado ambiente, determinada família, determinadas circunstâncias físicas e espirituais estejam reunidas, a dita consuma-se. Acredito também que, no interregno, o espírito vestido do corpo etéreo que é a alma, sofre intensamente as consequências dos vícios que adquiriu, por não ter o corpo físico como filtro atenuador. 

Em suma, uma reencarnação é algo extremamente complexo, impensávelmente complexo para nós, apenas concebível e executável pela suprema inteligência que rege o universo. Voltando a uma conversa anterior, esta é a minha verdade, aquilo em que, mais ou menos, acredito e me mantém são de espírito num mar de contradições impossíveis possíveis. Acredito com dúvidas no que afirmo, apresento-o como uma teoria credível e adoptável, pela qual não ponho as mãos no fogo. Será falta de fé, insegurança, inconstância, ou apenas uma visão realista, onde o mundo é visto como algo em que os sentidos não podem confiar, que existe, palpável ou em sonho, mas existe. Se, enquanto sonhamos, sentimos odores, tacto, vemos, ouvimos, pensamos, sentimos dor, alegria ou tristeza, náuseas ou tonturas, medo, desequilíbrio, fé ou insegurança, quem me garante que não estou a sonhar, quem me nega que, como diz Lope de Vega, la vida es sueño

Penso, logo existo – acredito. Mas, penso acordado ou a dormir? Sim, porque, tanto naquilo que consideramos vigília como no que consideramos sonho, nós temos pensamentos. Qual é a diferença? Só porque, quando “acordamos” nos apercebemos de que tudo era irreal e algumas situações eram experienciadas como disparates, não significa que estivéssemos a dormir, pois também quando “sonhamos” a vida física nos parece irreal. E a quem não sucedeu já, saber que está a sonhar? Então, se se sabe que se está a sonhar, isso é sonho? Ou realidade? Confuso, muito confuso. 

Faltam 5 dias para o Natal, não parece. O espírito natalício está ausente, não sei se de mim se de tudo o que me rodeia. É um natal austero a todos os níveis, o meu mundo está a mudar imenso. Já não o reconheço, é triste. Parece que se nota uma certa melancolia no ar, as pessoas andam preocupadas, macambúzias, quase tristes, no mínimo, indiferentes. A quadra já não é uma época de alegria e paz, é uma fonte de preocupações e stress, um período de tensão acumulada onde os sentimentos negativos, sedentos de protagonismo, cevam, ébrios de prazer, o sangue psíquico dos desfavorecidos, banqueteiam-se de dor e desespero, empurrando para o abismo aqueles que se deixam convencer pelos seus argumentos falaciosos. Observo o meu mundo da montra do café, esse meu mundo que é, afinal, o mundo dos outros, onde sou um mero figurante de um palco incomensurável, um grão na praia humana. Eles passam, como formigas, num vai e vem constante, atarefados, transportando as suas larvas, nos seus casulos, levando alimento e materiais para os seus ninhos. Ocasionalmente encontram-se, tocam as antenas, comunicam, recomeçam o ritual, dia após dia, momento após momento. Metáforas, metáforas… 

É noite e chuvisca, uma espécie de solstício de verão, mas invertido, um S João invernal. Estamos a dobrar a fasquia da noite mais pequena do ano, a partir daí os dias crescem de novo e voltamos a caminhar para o verão em contagem decrescente. O que mais gosto nestes momentos de solidão (se é que se pode chamar solidão ao ato de estar sentado num café com gente a entrar e a sair) é a possibilidade de me interpretar, de pensar um pouco na vida, no passado, no futuro, nas pessoas, em tudo. Faz-me ter uma consciência relativa de onde, quem, como, porque sou e, likewise, aonde me insiro, pertenço, interajo. Digamos que me permite ler o manual de instruções que me acompanha a mim e ao mundo e que, tal como todos os manuais de instrução, descuramos, deitamos fora, procurando-o em vão em caso de avaria. Tarde de mais, perdeu-se, reaprendemos ou reescrevemos o manual por empirismo, esbanjamos o nosso pouco e precioso tempo em reconstruções e remendos. Conhece-te a ti mesmo – já diziam os filósofos antigos, a máxima gravada no templo de Delfos. É esse o nosso manual de instruções, aquele que nos faz – e ao mundo – funcionar em pleno é esse o manual que perdemos num passado longínquo (ou que nunca escrevemos) e que temos que elaborar, pedra basilar do conhecimento do Universo. .................................................................................................................................................  

28/12 

Mais 4 dias, já passou o natal, ano novo à vista, bom tempo. A vontade é como as marés, vai e vem, sobe e desce, tem que se aproveitar a maré para mover o moinho de ondas que nos dá energia. Sento-me aqui parado, a vaguear, a tentar engatar um fio de pensamento útil, qualquer coisa válida pela qual valha a pena perder tempo e escrever. Nada, estou vazio, só estática, a estática básica que todos temos diariamente, pensamentos vulgares, fúteis, corriqueiros sobre as coisas vulgares, fúteis, corriqueiras que pensamos diariamente e que compõem mais de 90% da nossa atividade mental, aquela que nos mantém no rebanho de carneiros que somos até termos algo de diferente saído da nossa massa cinzenta, do representante físico do nosso espírito, daquilo que realmente somos e que raramente transparecemos. Ideias, faltam ideias, as originais, aquelas que vale a pena ter, aquelas que nos mudam e ao mundo que nos rodeia. 

O grande problema é pensar, temos que aprender a pensar, é tão difícil, não sabemos como, temos que aprender, a maioria das vezes é empírico, é difícil, custa e por vezes desiste-se. Somos todos poços de sabedoria, arcas, bibliotecas de conhecimento enterrado que esgravatamos com as mãos nuas para pôr a descoberto. Raros são aqueles que usam uma pá e a sabem utilizar, raríssimos os que têm acesso a uma retroescavadora, esses são únicos, verdadeiros sábios, seres extraordinários, raros. A maioria diz que não vale a pena o conhecimento pois nunca conseguiremos amealhar senão uns reles grãos de areia, e desistem, preferem o embrutecimento da ignorância, a sua falsa felicidade. Nunca se aperceberão que não há felicidade sem sede de conhecimento, ser feliz por amealhar outro pequeno grão para construir a nossa pequena praia que, por minúscula que seja, é nossa, pequenas conquistas que nos alegram, nos preenchem. 

Os outros, os ignorantes voluntários, experimentam a felicidade oca, falsa, do seu conhecimento inexistente, da sua existência vegetativa. Muitos desses são os que, quais ervas daninhas, tentam converter os mais esclarecidos à sua ignorância, procuram subverte-los, convertê-los às suas limitações, ao seu vazio. Dia solarengo, apetece ir para a praia, sentar numa esplanada e ver a vida a passar, não no sentido temporal mas no sentido espacial. O mar a espraiar-se no areal ou a bater nos molhes, as pessoas a passar, a correr, a fazer exercício, a passear os cães ou simplesmente a observar, como eu. Locus amoenus, o ideal pastoril versão marítima, não tempus fugit mas tempo parado, contemplativo, beatus ille na esplanada. E à noite? Uma bela noite escura, longe da fotopoluente cidade, local alto, mais perto do céu estrelado, límpido, lua cheia exuberante e bela, um raro meteorito, roupa quente, espreguiçadeira, um telescópio, eventualmente uma bebida reconfortantemente aquecida, o silêncio entrecortado por um ou outro pio de ave noturna ou chamamento de inseto; alguns pirilampos no ar seria o ideal, porém tal só seria possível no verão. Não faz mal, teríamos perante nós um enxame incomensurável de pirilampos brancos no firmamento, tremeluzindo, competindo entre si em beleza, em esplendor. Raros momentos de beleza gratuitos, apenas eventualmente com custos de deslocação, mas que valem a pena pois constituem um relaxante SPA para o espírito. 

Vi agora na rua uma cena que me foi vedada: um encontro entre três gerações, pai, filho e netos. A alegria do reencontro, a harmonia. Nunca tive essa possibilidade, era muito novo quando a minha última ancestral morreu. Quanto a sogros, pior, nem para os próprios filhos. Alegrias desconhecidas, frustrações, importantes frustrações… Adiante. Véspera da véspera de ano novo, café. Aguardo entregas, tem estado muito fraco. Estou com uma virose de todo o tamanho, apetecia-me antes estar em casa do que aqui. Já me perguntei, se eu morresse sem dar a conhecer a ninguém que escrevi estas linhas e mais 29 páginas que já estão no computador? Seria mais um grito silencioso, ouvido por ninguém. 

Eventualmente, um dia, alguém lá de casa abriria o ficheiro por casualidade, só por descargo de consciência, antes de o mandar para a reciclagem e descobriria este testemunho breve de umas memórias, curtas de 55 anos. Sim, porque estas memórias – se assim se podem chamar – apenas se reportam a 3 ou 4 meses, há milhares de páginas de memórias por escrever e que, possivelmente, nunca serão escritas, irão comigo para o oblívio. Mesmo que escrevesse umas memórias, não haveria papel suficiente para transcrever tudo, a vida, o pensamento, a personalidade, os milhares de pequenos episódios que fazem uma existência, que a caracterizam. Isso, só mesmo o pensamento, a memória, o poderia descrever. Cada ser humano é único e a sua vivência é indizível, inenarrável, impossível de copiar. Gostaria de poder narrar a minha história, a minha verdadeira história e a da minha família, sem medo, sem receio de ferir susceptibilidades, isso sim, seria algo que valeria a pena. Porém, a minha visão deles, do seu mundo como eu o vejo, seria muito ofensiva por vezes, só narrável por aqueles que já não existem.

 2 de janeiro, começou com muito nevoeiro, agora está um sol frio, de inverno. 

Reli o que escrevi da última vez e notei que a frase final está pouco ou nada explícita, no mínimo ambígua. Quando digo que a história da família só é narrável pelos que já não existem, quero dizer que, para não ferir susceptibilidades, para não criar uma crise familiar, só seria possível publicar algo do género se eu já estivesse morto, caso contrário seria crucificado em vida pelos visados. Um morto pode bem acarretar com as críticas, os epítetos, a fama de ter sido um ingrato ou um fdp, e ter, ele também, muitas culpas no cartório, mais do que aqueles a quem visou nas suas críticas. É sempre assim, se fosse eu o visado, faria o mesmo, pois é bem sabido que só vemos os ciscos nos olhos dos outros. Sei que tenho imensos defeitos os quais me recuso a ver ou evito pensar, mas os outros também os têm. 

Quando escrevemos (a não ser que sejamos como Jean-Paul Sartre), as nossas críticas recaem sobre os outros, espetamos-lhes na cara, por escrito, o que não podemos ou não temos a coragem de dizer pessoalmente. Geralmente temos razão, por vezes exageramos, eventualmente fazemos juízos erróneos de personalidades e situações. Somos assim, somos humanos, podemos errar. Há muitos mal-entendidos que estragam amizades, que criam tragédias, porém, a atitude contrária de crença ou confiança também faz muitos ou mais estragos. Não nos podemos recriminar muito por errarmos, temos é que evitar fazê-lo e esforçarmo-nos por não fazermos os tais falsos juízos. Tudo o resto é uma questão de bom senso. 

4 de janeiro, estou a curar a minha grande constipação anual. 

Houve um período em que não tive nada, talvez 2 ou 3 ou mesmo 4 anos; o ano passado tudo mudou, por alturas do natal apanhei uma de caixão à cova e passou. Este ano estou com outra. Bem, diz-se que estas doenças, de tempos a tempos, são boas, pois imunizam-nos durante algum tempo, espero que sim. Em criança, perdi um ano por faltas: ia às aulas uma semana, ficava doente na 6ª feira, em casa uma semana, voltava às aulas até 6ª feira, ficava doente… Dá para pensar se não seria psicossomático, possivelmente sim. 

Tive uma infância pouco feliz, uma espécie de neto único, criado no meio de velhos, sem liberdade, sem convivência com a minha faixa etária ou outras, rodeado de paranoias e das suas consequências, quase acreditando, quase me tornando um deles. Foi muito difícil libertar-me do pensamento, das crenças destes perdidos no tempo, fossilizados, de crenças inflexíveis, olhos com palas crescidas pela idade e por um tempo e vivências há muito falecidos e enterrados. Ainda hoje conservo essas marcas, misto do melhor e do pior das gerações que me antecederam. Verdade seja dita: cultos, porém fechados ao raciocínio, à inovação, educadores, porém demasiado rígidos, quase dogmáticos, velhos, velhos demais para uma criança que ficou sem infância, sem culpa deles ou minha. Os ídolos, esses meus ídolos de meninice e juventude, até de idade já bem adulta, começam a esboroar-se, a perder a forma, como as velhas imagens de algumas igrejas, já comidas pelo tempo e que começam, também elas, a tornar-se massas amorfas, sem significado, as quais, perdida a sua forma original, não passam já de pedras deformadas, imperfeitas. 

Os meus ídolos já só existem por hábito, por tradição, por um vago respeito fracamente alicerçado pelas minhas vestigiais crenças, semiapagadas na matriz. Sei que por isso fui moldado imperfeito (como se já não bastasse a intrínseca imperfeição humana) e sei que, por imperfeito, serei tratado do mesmo modo que trato os meus ancestrais. Serei apenas objeto de um respeito tradicional, dissecado, analisado, criticado e rotulado. É isso que eu serei para os que me sobreviverem, uma anotação tendencialmente negativa, uma análise psicossociológica. Cedo ou tarde serei uma peça defeituosa, gerada por peças defeituosas que, a seu tempo, serão também peças defeituosas para os seus descendentes. 

Pois é, passei do existencialismo para a mecânica, já falo de defeitos em peças. Bem, é a minha maneira de ver as coisas num determinado momento, as minhas metáforas, escolhidas dentre um sem número de possibilidades como animais, plantas, deuses do olimpo, citações da bíblia, marés, minerais ou outra coisa qualquer. São uma coisa engraçada estas metáforas, animaizinhos que se escondem sob muitas capas e que surgem à superfície num dado momento, cavalgando contextos ou surgindo despropositadamente do nada. Contudo, nada a apontar, elas simplificam o nosso pensamento, transmitem conceitos que por vezes seria muito difícil traduzir por palavras sem utilizar muitas linhas e muitos parágrafos, são o nosso tradutor Google (mais uma metáfora). Um dia mais na história da humanidade e do universo, um dia mais na minha história de vida, um dia menos na minha vida e na de todos os seres vivos existentes, um dia menos na não-vida de todos os seres que estão para nascer. O que se chama ao período que antecede a vida? Não pode ser morte, pois esse conceito aplica-se por vício, por defeito, por hábito, ao período pós-vida. E antes deste? Que nome pôr? Ante-vida, pré-vida, pré-existência? Ou a vida não existe enquanto não existe, nem que seja num conceito? Quando algo deixa de viver, chama-se morte, algo que já existiu e cessou atividade: Mas algo que ainda não existe não tem nome, é ignorado como inexistente, só se pensa nele depois do início do ato de viver. Mas, pela lógica (um pouco retorcida), se existe vida tem que existir uma pré-vida, assim como existe uma pós-vida. Ao falecimento de uma casa chama-se ruina, derrocada, aluimento, abate; à sua pré-vida chama-se projeto, idealização. O que existiu antes do Big Bang, se é que este existiu? O que formou o universo, se nada existia? A nada haver, nada se pode criar, isso é a negação de toda a lógica, tal como a conhecemos. Porém, ao negar algo, estamos a aceitar a sua (não) existência, a considerar algo como nomeável, substantivável, adjetivável. Como podemos fazê-lo a algo que teimamos que não existe? Se o nada existe, se lhe damos um nome, então é alguma coisa, não pode ser nada. Neste caso, nada é uma forma de existência. Se o conceito de ante-vida é formulável, então existe. 

Se nos debruçarmos sobre os conceitos que regem a nossa vida, reparamos que estes não são tão lineares como aparentam. Tomando como exemplo a saúde e a doença, assumimos automaticamente que saúde é o oposto de doença e que, quando uma existe, a outra deixa temporariamente de existir. Ora, tal não é verdade. Se tivermos um abcesso, à parte a zona afetada, poderemos gozar de uma saúde de ferro. Uma laringite centra-se na laringe, todo o resto do corpo pode estar com saúde. Se tiver uma catarata ou um glaucoma, tenho uma doença ocular, mas não estou doente, pois até poderei estar na posse plena, até excecional, de todo o resto das minhas capacidades, “vender” saúde. Se utilizarmos esta linha de raciocínio em relação à vida, então, por reasonable doubt, poremos em causa o conceito de que, antes da vida, nada existe.

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 11/02 

Vida à minha volta, movimento implica vida, um frenesi de acção, gestos,automatismos biológicos, um incessante vai e vem de fluidos, sangue, linfa, hemolinfa, seiva. Movimentos invisíveis que, se observados a olho nu, assustariam, aterrorizariam, de tão incessantes, anárquicos, catastróficos, numa sucessão de biofagias, autofagias, mortes, nascimentos, hemiparidades, cissiparidades, desenvolvimentos zigóticos, caos assustadoramente ordenado segundo uma lógica que por vezes nos escapa. Tenho agora uma nova visão, um novo entendimento da premissa que sustenta que é feliz quem é ignorante. Sim, porque é poupado ao terror do movimento que não compreende e o assusta. Os gatos são assim; não suportam alterações do seu ritmo, da sua pacatez inata, assustam-se com ninharias que fogem ao seu quotidiano. É certo que evolução é movimento, é vida, é mutação, mas assusta. Muito. 

Sábado fresquinho mas agradável,

 apetece voltar ao passado, ao dolce fare niente de quem era jovem e não tinha muitas preocupações na vida, a não ser meter a semana de trabalho num saco, fechá-lo e curtir um fim-de-semana de lazer, cuja única preocupação era o que fazer para se divertir e passar o tempo. O bem-aventurado, desresponsável, revigorante lazer.

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2ª Feira, nem carne nem peixe, fresco, indeciso. 

A minha disposição está igual (excepto o “fresco”). 3ª Feira, igual. Tenho à minha frente uma folha de papel, esta onde escrevo. É interessante imaginar o que este bocado de papel pode representar na história do mundo. Tanto pode mostrar um desenho pueril como uma obra-prima, tanto um rascunho sem valor como um documento de valor inestimável, um testamento, uma confissão, um desabafo, uma descoberta. Nisto as folhas de papel são como as pessoas: tudo depende do conteúdo, não da qualidade física do papel. Dá para pensar, se eu fosse um documento, o que seria? Ou antes, o que quereria ser? Melhor ainda, ambos, assim saberia o meu valor atual e tentaria transformar-me num testemunho valoroso.

 Não queria ser uma bíblia – demasiado religioso e simbólico para mim. Também não queria ser O Capital de Karl Marx nem o testemunho de um grande guru capitalista, seria demasiado materialista. Os Lusíadas? Não, muito épico e muito sofredor. Nem Saramago. Fernando Pessoa? Demasiado críptico e existencialista. Talvez um Robert Heinlein ou Júlio Verne, uma pitada de Salgari, um pouco de Torga e Agostinho da Silva, a simplicidade inteligente de Alice Vieira, um toque de Italo Calvino. Impossível? Talvez não. A mistura ideal? Nunca, isso retiraria toda a originalidade do meu ser, seria um Frankenstein de personalidades, com pouco ou nenhum espaço para o livre arbítrio, para ser quem realmente sou, com todos os meus defeitos e virtudes, medíocre talvez, mas minimamente feliz por pensar por minha cabeça e não ser ou tentar ser uma colagem de outros. Logicamente, todos tentamos ser ou copiar alguém que nos marque, é bom, é benéfico, faz-nos subir a fasquia do nosso desempenho, mas nada de exageros. Nós somos nós e não Camilo ou Gandhi ou Neruda ou Cristo ou Maquiavel.

 Copiar? Óptimo. Camões e outros grandes poetas copiaram Vergílio mas imprimiram-lhe um cunho pessoal e foi isso que os distinguiu dos demais e os tornou mais ou menos imorredouros. Ciclos, ciclos, ciclos. Infelizmente para nós, estamos no fundo (?) da curva descendente de um deles, levamos com os destroços que nos caem das suas paredes. Quanto mais fundo descemos, mais difícil se torna desviarmo-nos dos calhaus, evitarmos ficar soterrados. Muitos, exaustos, já não acreditam na salvação e resignam-se à sua sorte, deixando-se lapidar; outros, ainda mais assustados, incapazes de lidar com as situações que se lhes deparam, não só desistem como se precipitam para a morte, uma solução (?) que creem rápida e eficaz. É eficaz, é rápida, mas não é solução, é fuga, é negação do instinto básico de sobrevivência da espécie, é dizer ao resto da humanidade que não lute, que não vale a pena, que é mais fácil desistir. Um acto de coragem? De certo modo, não é fácil tomar tal decisão. Um acto de cobardia? Sim, mais forte que o anterior. Tal acto significa trair todas as gerações que, desde os primórdios dos tempos, se esforçaram, lutaram para dar aos seus descendentes algo (quanto mais não seja, a vida) e verem o seu produto (nós) destruido voluntáriamente num acto de desperdício dos seus por vezes heróicos, martirizados esforços para nos legarem a vida, esse bem precioso, passado de pais para filhos. Se um dia o farei? Não conheço o futuro, não posso jurar. Mesmo os heróis acobardam-se por vezes, traem os seus princípios. Correcto, não; possível, sim. ................................................................................................................................................

6ª Feira, tempo incerto; neste momento chove. 

Diz-se que somos um país de brandos costumes, a prova está na paciência com que aturamos toda a carga negativa imposta pela troika e pelo governo. Noutros países, como a Espanha, a reacção popular é muito maior, as acções resultantes são muito mais agressivas. A que ponto essa brandacostumice nos beneficia ou prejudica? Estou em crer que demasiada reacção trará anarquia e a falsa ideia de poder popular se traduzirá em excessos, principalmente das camadas menos esclarecidas da população, acirradas por alguns partidos. 

Por outro lado, demasiada inércia dará aos governos a sensação perigosa de que o povo aguenta tudo. Perigosa para o governo e perigosa para o povo, o primeiro porque um dia, uma gota de água poderá provocar uma catástrofe, um banho de sangue, uma revolução espontânea (ou não) e destrutiva; para o segundo porque será cada vez mais facilmente manipulável por forças políticas que, ou por ânsia de poder ou puro fanatismo, tudo farão para promover levantamentos. Onde está a virtude, onde está o meio? No atual estado de coisas já impera mais a emoção que a razão, o que impele perigosamente à intolerância, aos juízos de valor facciosos, à procura de bodes expiatórios, à criação ampliada de vítimas-heróis e verdugos forjados. Tempos perigosos… Sábado radiante de inverno, frio mas agradável. Apetece nada fazer mas tenho que resistir à tentação. A sensação de optimismo decorrente de um dia assim tem que ser aproveitada, manipulada de modo a fazer com que a sensação de perda de um dia de lazer perdido seja transformada num sentimento de boa disposição, uma pulsão interior que guie a nossa energia para o trabalho e nos dê forças redobradas, positivas, produtivas. Arbeit macht frei – excluindo a negra sombra de Auschwitz, é uma grande verdade. 

Domingo, sol, frio, ponto, parágrafo. 

Apetece dar uma volta de tarde, apetece estar no choco. Dicotomia, antagonismo, paradoxo, indecisão que paira sobre a capacidade de escolha e embota o livre arbítrio. Bom e mau sinal – bom porque evita que sigamos as emoções às cegas, sem ponderação; mau, porque sinaliza uma deficiência de personalidade, onde as decisões são fracas, inconstantes, medrosas, inconvictas. (???!!!) Preso por ter cão e preso por não ter, uma preocupação que nos assalta sempre que surge uma situação similar. Uma chatice

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 4ª FEIRA 

Rios de tinta… Já alguém terá tentado contabilizar o consumo/litro de tinta de um ser humano, ponderando evidentemente o grau de escolaridade, a frequência da escrita, a sua necessidade laboral e cultural, etc.? Lógicamente que um estudo desses seria muito falível, porém abrir-se-ia um leque de possibilidades e implicações desse acto, que passariam pela ecologia, marketing, consumo, literatura, literacia, medicina, sociologia, psicologia, enfim… imensos itens poderiam ser explorados. Dia seguinte, voltando à vaca fria: quais terão sido as implicações ecológicas que o uso e fabrico da tinta terá tido na evolução e/ou alteração genética da vida na terra? Se a tinta – nas suas mais diversificadas vertentes –não tivesse sido inventada, a escrita, tal como a conhecemos, não existiria, o retrocesso seria notório, com o pouco desenvolvimento da inteligência e da tecnologia, da história, das ciências em geral. Ou dar-se-ia o contrário, gerando super-cérebros capazes de memorizar de um modo para nós inconcebível, transformando cada ser humano num génio potencial? Segundo os padrões estabelecidos, a humanidade não poderia ter atingido o nível em que agora se encontra sem o auxílio da escrita. Porém, os padrões poderão estar errados, como essa possibilidade nunca existiu, o conhecimento é empírico, ou antes, nem é empírico pois não se pode ter experiência ou utilizar termos de comparação para algo que nunca existiu. A tendência é chamar impossível ao que, no momento e de acordo com os parâmetros estabelecidos pela nossa mente ou pela sociedade não é viável ou não parece viável. 

No entanto, há pouco mais de 100 anos, os grandes entendidos na matéria, os renomeados físicos, eram categóricos em afirmar que nunca um objeto mais pesado que o ar poderia voar. Esqueceram-se dos pássaros… Há 500 anos a terra era plana e ai de quem dissesse o contrário. Vendo bem as coisas, hoje em dia escreve-se sem tinta, através dos sistemas eletrónicos, o que retira um pouco da utopia a este meu raciocínio.

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13/03 

A fé move montanhas, diz a sabedoria popular; o problema é que, quando atingimos o grau de fé necessário para mover a montanha, já ela entretanto cresceu para além da nossa fé. É como se calcorreássemos uma estrada para atingir o seu fim mas a estrada fosse construída mais depressa do que nós a palmilhamos, o fim da estrada fica cada vez mais longe; a grande dificuldade é apressar o passo. ..................................................................................................................................................... 

Assaltam-me pensamentos de sorna, há dias em que nem me apetece sair da cama, em que o anjo mau da preguiça me segreda ao ouvido o quão maravilhoso seria deixar-me estar na cama, no conforto, no calor. Nessas alturas convoco o anjo bom, aquele chato que nos expõe ao frio e ao trabalho, que não nos deixa um momento de sossego e ele encarrega-se, a custo, de me expulsar sem dó nem piedade, da minha zona de conforto. Porque será que o que é bom é, paradoxalmente, desagradável? Parece que todos somos intrinsecamente masoquistas e incontornavelmente sádicos. ................................................................................................................................................. 

22/05 

Hoje estou muito metafórico, parabólico, simbólico, lírico. Voltou ao de cima o meu velho desejo de escrever um livro, a minha necessidade de extravasar o que sinto ou dizer nem que sejam baboseiras. Escrever liberta, é a homeopatia do espírito e, tal como a homeopatia do corpo, é lenta, demora o seu tempo a fazer efeito mas é muito mais benéfica; em vez de partir alguma coisa, escrevo; em vez de gritar, escrevo, em vez de chorar, escrevo, em vez de tomar atitudes irrefletidas, escrevo, em vez de destruir, escrevo, construo algo, liberto a minha capacidade criativa, faço nascer um testemunho de vida, digo ao mundo que estou cá, que vivo e que deixo a minha pégada. ....................................................................................................................................................

19H20

 Retomei temporáriamente os meus hábitos de leitura, é uma maneira culta de fazer passar o tempo, do mal, o menos. Afinal, a única coisa que me aborrece, que me dói na alma, é ter que morrer sem ter lido todos os quase 4000 livros que possuo ou tenho à minha guarda. Tanta cultura parada, desaproveitada e, infelizmente, sem nenhum descendente interessado, que lhe tire a poeira, que areje as suas folhas com os olhos, que beba as suas letras. Os meus, lá em casa, tratam os livros como os medicamentos: só os usam em caso de necessidade. A minha maior felicidade seria que eles fossem todos hipocondríacos, que os tomassem por tudo e por nada, só pelo prazer de ler e conhecer. É um desgosto que me acompanhará sempre. Sei que sou parcialmente responsável, que não lhes criei hábitos de leitura, que não insisti o suficiente, que não me importei como devia. A sua relativamente pouca cultura é fruto da minha não insistência. Talvez um dia elas me leiam e se choquem e me recriminem e não me perdoem por esta crueza, mas é a verdade, deixemo-nos de eufemismos e de festinhas na cabeça para não ferir ninguém. Chamem-me nomes, já não me importarei, mais vale reconhecerem a realidade e, se não for muito tarde, emendá-la. Ámen. 

5ª Feira, 12h20, óptimo dia, 

bom como o milho, expressão relativamente recente, se fosse no séc. XIV, seria bom como a castanha pois essa era a base de subsistência da época, muito antes da batata, do tomate e do milho. Não sei se o feijão faria parte da dieta mediterrânica, provavelmente sim, então seria uma festa, antes de termos importado o fogo-de-artifício e a pólvora dos chineses, já havia foguetes por estes lados: tanto o feijão como a castanha produzem gases intestinais em quantidade suficiente para propulsar um barco à vela. Não era tão perigoso como os explosivos mas seria decerto explosivamente malcheiroso. Há sempre no ser humano uma tendência estranha, uma coprofonia ou uma coprografia, como é este o caso. É curioso como muitas conversas e considerações terminam em merda e seus derivados. Porquê? Qual o impulso, a pulsão que impele as pessoas a falar em dejectos ou mesmo outros fluidos corporais? Porque é que a grande maioria dos insultos não pornográficos e mesmo alguns deles, se reporta às excreções humanas? Será que é porque se trata de algo que produzimos de desagradável, algo que expelimos por inútil ou sinal de anomalia e que, metafóricamente, identificamos com o objeto da nossa repulsa? É tudo isto então uma forma de homocentrismo, uma focalização egocêntrica, um assumir que tudo o que se passa à nossa volta se foca em nós e só em nós. 

Estranho animal somos, com a mania que tudo gira à nossa volta! Bem, ao fim e ao cabo, nós somos o centro do nosso micro-mundo, o núcleo de um pequeno e insignificante átomo. Mais estressado ou mais calmo, não sei qual das hipóteses hei-de escolher, nestes dois dias de “criação literária”, as ideias surgem mais fluidas, a escrita corre com mais facilidade que em todos os meses anteriores. Estarei mais estressado e, portanto, mais necessitado de extravasar o conteúdo gráfico-mental acumulado após um prolongado jejum ou, pelo contrário, estarei calmo e, como tal, o fluir do pensamento feito grafia é mais escorreito, mais fácil? Ou nem uma coisa nem outra? Talvez esteja mais inteligente ou espírito literário encostado, ou psicografia ou não ter mais nada que fazer senão estragar tinta contra uma superfície celulósica plana e uniforme cujo verso já foi impresso e que, doutro modo, se tornaria inútil e faria parte do lixo, doméstico ou não, ou de reciclagem selectiva.

 Bem, de uma maneira ou de outra, estou a fazer reciclagem ao reaproveitar a folha na sua parte não afectada pela incursão de grafismos que já tiveram a sua importância, o seu tempo de vida e agora jazem, inúteis e indeléveis no seu túmulo branco imaculado, aguardando a solução final, o oblívio, a transformação, a transmutação, fazendo jus a Lavoisier que diz que nada se perde e tudo se transforma. Quem sabe se um dia não veremos algures, num qualquer artefacto reciclado, uma letra, um desses pequenos ossos de escrita, restos de um esqueleto desmembrado feito de caracteres simbólicos que já foram corpo, já deram corpo a um documento, uma fatura, um poema, um devaneio da mente. Nada é perene, tudo é transitório, não há obras imorredoiras, há transmutações, transmigrações, mudanças de forma e utilidade. 5 de junho, abri mais um capítulo de filosofia de café, como já é hábito sempre que venho trabalhar para o restaurante. 

É nesta altura que posso dar largas, fazer fluir a minha linha de pensamento enquanto trabalho, pois é sentado no café sem fazer nada que eu trabalho quando cá estou. Agora compreendo os escritores, só através do ócio é possível criar, só assim podem nascer obras literárias. A inacção cria, do nada nasce obra, a inércia é acção, é trabalho, é criação. Curiosamente, até para nada fazer é necessário algo que nos obrigue, que nos force. Se eu quisesse manter-me inactivo por desporto, por vontade própria, escrever por querer escrever, não o conseguiria ou não seria fácil. Neste momento escrevo porque sou obrigado a estar parado, acto involuntário que me faz criar. Para mim, criação é obrigação, não é lazer ou prazer, ou antes, é prazer mas nascido por obrigação. 

Conceito curioso este, ter prazer por obrigação. Não deixa de ser agradável e apesar de forçado é igualmente gratificante ou até talvez mais do que se fosse voluntário, é lógico mas paradoxal. Li há tempos que o mínimo de esforço provoca o máximo de resultados, que a concretização de pequenas ações redunda numa maior produtividade. É verdade, dezenas de pequenas coisas que protelamos e são fáceis de fazer representam, globalmente, uma enorme produção. Em contrapartida, há outras acções de maior envergadura que ocupam imenso tempo e nada de útil trazem. Resultado: trabalha-se muito para nada fazer e trabalha-se pouco para apresentar obra.

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28/06

 Escrevo o meu “esporário” (diário escrito esporádicamente) para não perder o hábito e para não perder a serenidade mental, não quero acabar os meus dias a olhar estupidificado para um écran de tv para viver a vida dos outros e meter-me na pele e/ou as aventuras dos heróis de Hollywood ou similares. Estupidificante, puramente estupidificante. Não é que não goste de ver de vez em quando, não quero é ficar addict, a pior coisa que pode suceder a qualquer um. Prefiro ser um book addict a um tv addict; no segundo escolho o que tenho, no primeiro, escolho o que EU quero. ............................................................................................................................................... 

23H47 DEPOIS 

Acho que o Alzheimer é uma tendinite cerebral, o cérebro não está habituado a pensar ou pensa sempre de um modo muito limitado e o que é a tendinite senão uma limitação de movimentos a um determinado padrão? É possível, mas nunca ouvi falar de um escritor ou cientista ou estudioso com Alzheimer, será um caso raro. Não sei, não tenho conhecimentos suficientes, ou por outra, nunca tive curiosidade em aprofundar a relação entre esta doença e a bagagem cultural, ou pelo menos, a actividade cerebral das pessoas, mas a única pessoa fora da média de que ouvi dizer que morreu com Alzheimer foi o Ronald Reagan. Não sei até que ponto, lá por ter sido um presidente da república, teria sido inteligente. Sempre ouvi dizer que foi um actor medíocre e um presidente pouco melhor.

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07/09DOM Domingo, hora de almoço. 

É impressionante o que a ausência de um hábito regular de escrita pode causar ao próprio acto, ou seja, a que ponto a inércia, a inacção do ato de escrever produz uma corrosão, um embotamento na capacidade criativa, na fluidez, no próprio correr dos pensamentos que o acto de escrita pressupõe. Estas paragens cárdio-escrito-criativas, produzem danos cerebrais muito significativos. 

A escrita, a criatividade, a alma (o coração) que apomos nas nossas manifestações literárias, sofrem baques tremendos, embotam as nossas capacidades de transposição dos pensamentos através do grafismo simples das apenas 26 letras do alfabeto, tão poucas e tão produtivas. O nosso mundo está nesses 26 caracteres que aprendemos em pequeninos e que nos permitem descrevê-lo em pormenor. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras mas acho que há palavras ou conjuntos de palavras que valem mais que mil imagens. A imagem capta o momento, a intenção, o significado, mas a palavra agarra o espírito, algo que a visão dificilmente absorve. E, contudo, escrever é tanto mais difícil como pintar: as palavras certas são como as cores certas, o pincel e a caneta partilham o mesmo drama, encontrar a nuance, o arabesco, o tom perfeito. 

Escrever é como andar de bicicleta? Talvez, porém sei por experiência própria que andar de bicicleta também esquece, apenas fica o básico. Andar sem mãos requer treino e muito, escrever bem é semelhante, brincar com as palavras é muito custoso, exige muito esforço. Há muitos meses atrás escrevi algo como “tempo fresco que sugere primavera”, ou semelhante, neste momento digo o mesmo, mas ao contrário, tempo fresco que sugere outono, um dia que prenuncia o frio que há-de vir em breve. Pena, o verão não prestou e os poucos dias que tive disponíveis, estive ocupado. Agora que estou mais livre, está mais frio. 

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 5ª FEIRA

 Carros e pessoas, carros e pessoas e, contudo, consigo encontrar alguma paz nesta esplanada a 3 metros da rua, tudo vem do hábito. Da mesma maneira que, quem nasceu na cidade não suporta o barulho do silêncio da aldeia, quem veio da aldeia dificilmente suporta o silêncio barulhento da cidade. Eu sou híbrido, ou antes, plástico, adapto-me bem a ambas as situações, embora cada vez mais aprecie a quietude do deserto, seja ele verde ou de outra cor, é a idade, fecha-nos os sentidos e abre-nos a vida interior, a inércia do corpo e a agilidade do espírito. Tenho que escrever mais vezes, a minha mente está obesa, a criar barriga de inacção, não quero ter Alzheimer quando for velho. Quero deixar um testemunho de mim para os vindouros, quero ser imortal pelas minhas acções, pelas minhas obras. Agora que estou a acordar para a vida é que a vida está a adormecer para mim. É sempre assim, quando estamos preparados, já é tarde para começar, ficamos com os leftover na nossa passagem pelo mundo.

 Muitas vezes penso: “ah, se eu fosse jovem de novo e soubesse o que sei hoje, tudo seria diferente!” Mentira! Refinada e descarada mentira! Faria exactamente ou quase igual! Erro grosseiro de todos os que querem re-viver o passado, re-fazer o futuro! Não temos emenda, não aprendemos com os erros e, se o fizermos, é residual, de boas intenções está o mundo cheio. Tempus fugit nos locus civitas amoenus, há-que carpe diem porque a mors propínqua est. Que culto! Que profundo, fica bem na fotografia! Só é pena que a ligação das alocuções seja em português… ................................................................................................................................... 

6ª feira,

 pulcritude, vi esta palavra no “diário XII” de Miguel Torga e, embora não me fosse totalmente estranha, não me recordava do seu significado, significa beleza física. Que nome tão feio para algo tão belo, tão agradável! Faz, por similitude fonética, lembrar podridão, sugere algo negativo, mau: “Ele exalava pulcritude por todos os poros” ou “a sua pulcritude incomodava os menos dotados”. Há palavras que soam mal, como putativo ou outras quejandas. Mais um dia maravilhoso, nem frio nem calor, uterino, amniótico. Olho pachorrentamente à minha volta, como uma vaca que se deita após comer o pasto para fazer o repasto (um trocadilho), para ruminar. Seria prático, até útil e saudável para nós se fôssemos como esses bovídeos. Ao menos nunca nos queixaríamos de digestões mal feitas, é certo que em detrimento da estética e das boas maneiras, pois passaríamos a vida a ruminar, no trabalho, na cama, na rua, em qualquer lugar. 

Claro que se fôssemos assim, os conceitos de estética e de boas maneiras seriam diferentes, ruminar seria tão natural como piscar os olhos ou sorrir. Fecho os olhos de sono, não sei porquê se dormi bem. Escrevo então para despertar, a carne e o espírito. Gosto de jogar com as palavras, os conceitos, as parábolas, os símbolos, os aforismos, as metáforas. Ache que reside aí muito de um escritor, do que ele tem a dizer, do que ele pode dizer, são as suas muletas, sem elas não pode andar, arrasta-se no meio das palavras, dos verbos, substantivos, adjetivos, numerais e pronomes, das partículas e dos advérbios, das orações e das alocuções, da gramática e do dicionário. Os grandes aliados de um homem de letras são os processos pelos quais ele diz o que não escreve, transmite por implícito o que o leitor não lê, abre o espírito por alusões obscuras e ambiguidades consentidas. Escrever é um jogo do qual, sem o saber, sabemos o desfecho, onde o leitor, o nosso oponente, perde sempre. Nós ganhamos, estamos sempre um passo à frente dele, o epílogo é o xeque-mate. Nós temos o segredo, nós ditamos as regras do jogo, ele perde sempre. No dia em que o leitor nos ganhar, deixaremos para sempre de ser escritores. Já me estou a assumir como escritor, o que está muito longe da verdade, porém é necessário ter altos sonhos para poder ter altos voos. Assumir o futuro é torná-lo real.

 Estou feliz hoje, à minha nostálgica maneira estou feliz. A felicidade é como o vinho: não é o mais caro o melhor, é aquele que nos sabe bem. Não há medida para a felicidade de cada um, pode-se ser feliz na miséria ou na solidão, o que não é certamente o conceito da maioria. Para o paciente de uma mialgia grave, felicidade é não ter dores, para o membro de uma família problemática é todos se darem harmoniosamente, tudo é relativo e muito, muito pessoal. Pedras no caminho? Guardo-as todas, um dia vou construir um castelo. Para Fernando Pessoa, não é também o somatório de dificuldades uma forma de pré-felicidade, uma antevisão do gozo que será construir algo no futuro? Pois é, uma felicidade einsteiniana. 

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24/09

 Procrastinação, outra palavra esquisita com uma aparência muito negativa. Não é bem negativa afinal, é neutra para o negativo e apenas significa protelar indefinidamente e é o que quase todo o comum dos mortais faz. Já li há meses um artigo sobre isso com umas boas dicas sobre como não procrastinar, simples, fácil de pôr em prática, simplesmente tenho procrastinado a sua execução. Baseia-se em fazer primeiro as coisas pequenas, se calhar mais importantes e que tomam muito pouco tempo e deixar os grandes projetos, aqueles que nunca passarão do papel, para segundo, terceiro plano, ou adiá-los tácitamente ad eternum

Os grandes sonhos impraticáveis consomem-nos a maior parte do tempo útil, stressam-nos, fazem-nos sentir incapazes e esgotam a nossa força anímica. Quando toca a fazer algo mínimo, como aquele parafuso que falta numa dobradiça há 2 anos, o buraquinho na parede que é preciso tapar ou a tábua solta que há meses queremos pregar, já a vontade se dilui, a energia desapareceu, a preguiça e a tal procrastinação estragaram irremediavelmente o pequeno contributo para melhorar a nossa qualidade de vida e, inconscientemente, baixaram sobremaneira o nosso amor-próprio. Será que um pintor de paredes se poderá transformar num pintor de quadros, será que um escritor de pichagens poderá evoluir para um nível superior, para o ato de verdadeira escrita, onde o espírito e não a tinta saem do bico da caneta? Ninguém nasce ensinado, tudo tem que ser aprendido e nunca é tarde, pode-se ser um génio apenas aos 90 anos, a realização pessoal é que conta. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. O Supremo Arquiteto que é a junção de todas as acções do universo, não tem pressa, será quando tiver que ser e será para todos, cada um a seu tempo. A obra, o rasgo, o génio, tocam a todos, hoje ou daqui a um milhão de anos, a pressa é inimiga da perfeição. O homem de hoje é a amiba do passado, a amiba de hoje será o homem de amanhã, ou qualquer outra forma evolutiva similar ou não. 

Fim do dia “en attendant Godot” ou que me chamem para uma entrega. Não descansei nada, estive a mandar o cimento (não o barro) à parede exterior do meu quarto para ver se deixa de entrar humidade quando chove. Contudo, parece que me fez melhor do que se tivesse descansado pois sinto-me mais energético do que se tivesse sornado a tarde toda. Todos os dias luto com 2 sentimentos antagónicos (direi antes, sensações): por um lado custa-me estar parado sem fazer nada porque sinto como que raiva pelo tempo perdido e desaproveitado, por outro lado a mesma sensação por ter perdido um precioso tempo de descanso. Isto é quase como o vício de fumar: por um lado sentimos raiva por não termos força de vontade suficiente para deixar de fumar, por outro sentimo-nos frustrados por não sorvermos uma unidade desse voluptuoso e cancerígeno produto da combustão das folhas de tabaco, que, mal inalamos, sabe-nos mal! Preso por ter cão e preso por não ter, lá diz o velho e desusado ditado.

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3ª FEIRA 

Sou por tendência, por natureza, reservado ou a vida ter-me-á tornado assim? Tenho a impressão, mas não a certeza, de que há uns 20 ou 30 anos a minha maneira de ser era mais aberta, mais terra-a-terra, mais social. O que me terá feito mudar? Os problemas com que me deparei ao longo destes anos, uma transformação natural, ambos, outra coisa qualquer? Não posso dizer que me sinto mal assim, a maior parte das vezes até prefiro que não me passem cartão ou não passar cartão a ninguém, estou só mas não me sinto só, sinto-me bem. Um lone ranger, um solitário que faz do mundo o seu canto reservado onde, rodeado, está feliz porque está sozinho. A chatice é quando ele se apercebe que está sozinho e aí a solidão dói-lhe. 

O seu isolamento não passa afinal de um grito silencioso de socialização, uma ânsia de partilha de quem, um dia no passado, perdeu da memória como se partilham os sentimentos e se criam amizades. Culpa minha? Talvez, agora já não dói tanto. Há vantagens, os solilóquios, as introspecções, o dissecar narcisista dos sentidos, não se perdem na troca vã de conversa de chacha que representa 80 ou 90% da conversação social. Eu não me digo que o tempo está bom ou que vai chover amanhã nem discuto comigo próprio se o jogador A ou B foi um nabo e podia ter marcado aquele golo. As minhas considerações do mundo são mais sartrianas, mais existencialistas, menos falsas e superficiais. Chamo-me burro, insulto-me com razão, elogio-me sem pudor, adulo-me sem vergonha, posso fazê-lo sem cortar relações comigo próprio nem pensar que, ao tecer-me loas, o faço com segundos sentidos. Não tenho que me esconder de mim, sei quem sou e dispo-me, revelo-me a mim sem preconceitos. Sou o meu réu, o meu juiz e os meus jurados, condeno-me ou absolvo-me sem problemas de consciência. Contudo, os amigos fazem falta, falsos ou verdadeiros, puros ou interesseiros eles aligeiram o peso na consciência que nos auto-infligimos, a consciência de não sermos perfeitos. As suas perfeições e imperfeições espicaçam e acalmam a nossa auto-estima, balsamizam a dor de estar vivo. 

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4ª, 25/09

 E ela segue feliz, despreocupada, vai para a escola. Na sua pré-adolescencia não há lugar para tristezas, segue o seu instinto de animal jovem, sem responsabilidades e sem lugar para as ter. Claro que há obrigações impostas pelos pais, os representantes da sociedade e essas, aos poucos, roubar-lhe-ão a inocência; claro que há aversões, antipatias de colegas, grandes dramas de amor que se curam em 2 dias. No geral, é feliz.Aprende todos os dias, não a instrução que lhe é imposta mas a outra, a da vida. Tabula rasa onde se insere o futuro. Dói aprender, dói adquirir experiência, dói existir. Também dói dar à luz mas esse é o primeiro passo para a felicidade de ver uma pequena criatura que vai seguir os mesmos passos que nós demos e sentir os mesmos bofetões que sentimos na procura da felicidade. Ser feliz dói..  

É estranho, quando estou só – só, mesmo só, o fio dos pensamentos como que emperra, não flui como quando estou só no meio da multidão, como se me alimentasse deles, dos seus pensamentos fugidios, efémeros, casuais, como uma galena capta as ondas de rádio que lhe estão próximas. Haverá alguma espécie de simbiose entre os humanos, um intercâmbio de pensamentos, um facebook etéreo, mental, cheio de likes e partilhas no qual participamos quando estamos em proximidade? ................................................................................................................................................

 30/09

 Acho piada, ainda agora entrou aqui uma senhora a perguntar sobre o guarda-chuva de que se tinha esquecido e aproveitou para desfiar o seu rosário de maleitas: esta noite não consegui dormir, tinha a perna cheia de dores, como se interessasse a alguém as doenças que a senhora tinha. Mas nós somos todos, uns mais outros menos, assim, gostamos, dá-nos satisfação, prazer, alívio, partilhar as nossas desgraças com os outros, como uma espécie de heróis, mártires que devem ser recordados como tal e vêem os outros como uma espécie de periódico onde são postadas as notícias, boas e más, da nossa existência e da dos outros. Assumimos o papel de repórteres e imprimimos nas colunas sociais (os nossos concidadãos) as crónicas das nossas doenças crónicas ou dos nossos sucessos, esperando que sejam difundidos para o público em geral que nos apontará a dedo nas nossas costas e comentará o sortudo que nós somos ou a vítima que mete dó. São os nossos pequenos minutos de fama, aqueles que criamos nós próprios para colmatar a frustração de não sermos famosos, de não necessitarmos de criar condições para que falem de nós porque somos colunáveis. Bem ou mal, falem de mim – já dizia Henry B. King. 

5 de outubro, ex-feriado, dia de sol. 

Tirando um ou outro cliente ocasional, eis-me aqui a pensar na morte da bezerra. E entretanto questiono-me: será que esta inércia forçada é, em certa maneira, benéfica para mim, ajudar-me-á a exercitar, muscular o meu cérebro, dando-me novos horizontes de pensamento? Será que estas introspecções forçadas permitem-me expandir o raciocínio, entrar num círculo vicioso de auto-didatismo mental que mantém o meu sótão conservado, limpo e arrumado? Inércia cria inércia, movimento cria movimento, inércia mental é estupidificação, movimento é desenvolvimento, progresso, inteligência.

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 E assim, questiono-me: será que esta inércia forçada é, em certa maneira, benéfica para mim, ajudar-me-á a exercitar, muscular o meu cérebro, dando-me novos horizontes de pensamento? Será que estas introspeções forçadas me permitem expandir o raciocínio, entrar num círculo vicioso de autodidatismo mental que mantém o meu sótão conservado, limpo e arrumado? Inércia cria inércia, movimento cria movimento, inércia mental é estupidificação, movimento é desenvolvimento, progresso, inteligência. 

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 7 de outubro, solzinho, um certo calor abafado, céu limpo sem vento.

 Conversa de velhas, 72 degraus, diabetes, faz bem, faz mal, já tive isto, tenho aquilo. Qualquer dia, quando der conta, estou como elas, passo a vida no Sickbook. Kant! Eu e ele nunca tivemos uma boa relação, foi por causa dele que chumbei no 11º ano. Dele e não só, mas isso são outros factos, outras histórias, outros caminhos da história… Pois é, passaram-se quase 40 anos e eu ainda não consigo engoli-lo completamente, há muito da sua filosofia que me deixa confuso. Contudo estou a lê-lo, fiz a mim próprio a promessa de ler toda a coleção dos grandes filósofos que tenho em casa. 

E ele deambulava pelas ruas, triste como a noite. O acidente fora inesperado, apanhara-o de surpresa. Já se sabe que, cedo ou tarde, poderia acontecer mas pensamos que isso só sucede aos outros, nós não podemos pertencer a esse grupo, a probabilidade é infinitesimal. Porém, esse infinitesimal calhou-lhe na rifa, colheu-o de chofre, esmagou-o com a sua crueza, pô-lo de rastos. Raciocinando com frieza, nada dura para sempre, tal desfecho é inevitável, as feridas hão-de curar lentamente, é a vida. Porém, ainda é cedo para tais pensamentos, neste momento soam a egoísmo, a traição, a insensibilidade, há que fazer o luto, a perda é grande. “Há nele um pouco de mim que se perdeu e que nunca conseguirei recuperar”.Ao fim e ao cabo depositara neste smartphone 36 Gb de informações e nem um backup fizera! 

Paz ao seu hardware.   De vez em quando faço pequenas histórias naïf para treinar, para desenvolver a capacidade de me iniciar na escrita criativa. É um sonho que tenho, difícil ainda de concretizar. Um dos meus maiores problemas é a sensação de urgência que tenho em todos os meus actos, parece que me falta o tempo para fazer o que quer que esteja a fazer. Mais uma vez me proponho: será defeito meu ou inculcado pelas minhas anteriores atividades laborais? Não quero arranjar desculpas, apenas pretendo verdadeiramente saber a causa de tal problema. Depressa e bem há pouco quem e isso reflete-se em tudo, mesmo na criatividade. Afinal não consegui aguentar Kant, não é possível. Mudei para Leibniz. 

Dia de apetecer viajar. Dinheiro, boa disposição, tempo, companhia e relaxamento, que conjunção ideal para que tal sucedesse! Tal como as conjunções planetárias, tal é raríssimo, limito-me a ficar sentado no café. 


A terra estava árida, difícil de escavar. Assomar à superfície era um risco tremendo, o buraco denunciar-me-ia, expondo-me aos mais temíveis predadores. Aliás, não era lá que conseguiria encontrar alimento, aqui por baixo sempre existem raízes comestíveis, esperemos que este verão invulgarmente quente não tenha morto tudo, seria o fim.

Subitamente apanho uma zona mais húmida, a esperança renasce, o meu corpo ressequido, faminto, estremece, ainda há esperança.Ao cabo de alguns minutos de um escavar frenético, estaco abruptamente, há movimento a poucos centímetros da minha cabeça. Sinto suores frios por baixo do meu revestimento de pele, não vejo mas sinto a proximidade, só me resta manter-me imóvel, petrificado.

Senti-lhe o cheiro antes de ele me tocar, é um verme enorme, sai lentamente do túnel que escavou. Respiro de alívio. Aguardo mais uns momentos e ataco-o, mais de metade do seu corpo já deslizou para fora, não pode escapar. 

Estou salvo.Cravo-lhe os dentes e começo lentamente a comê-lo, a saboreá-lo. Um manjar como este, qualquer toupeira que se preze, como eu, não pode perder.   


Outra pequena história naïf para praticar. Agora que estou a ler Leibnitz, pergunto-me se ele não terá razão, se não seremos todos farinha do mesmo saco, ou seja, provindos de uma alma mater comum. Deste modo poder-se-ia explicar porque é que, mesmo em atrasados mentais há rasgos de génio e vice-versa; afinal o conhecimento ou a falta dele proviriam de uma mesma origem, explicando esses paradoxos aparentes: o “nabo” e o “alho” alimentar-se-iam da mesma terra, dos mesmos nutrientes, da mesma matriz. Não há nada como ler filosofia adoptamos o ponto de vista daqueles a quem estudamos. 

6ª feira 


Sou um pombo, não me lembro onde nasci nem como sobrevivi à infância.

Vivo na cidade, um oásis de comida, nunca passei fome. Como não há bela sem senão, vivo também rodeado de perigos: gatos, automóveis, redes de pesca à beira do rio. Sim, porque as redes estendidas são um perigo, enleiam-se nas patas e, por vezes, só a amputação voluntária nos livra da morte por inacção ou pelos predadores. Os gatos também são perigosos, mas os automóveis….! Esses são o verdadeiro perigo, quase não há rua em que não se veja um congénere meu esmagado. Alguns humanos, os condutores dessas máquinas, são “humanos” e travam ou desviam-se para nos permitir escapar, postos em perigo pela nossa distração ou erro de cálculo, outros ignoram-nos, são menos “humanos”, não pesamos na sua moral, somos bichos, nojentos, dispensáveis ou indiferentes.

Por que me tratam assim? Sou tímido, afável. Por isso me escolheram para símbolo da paz.

Sou um pombo. 

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Sábado, tempo encoberto, fresco. 

Seguindo à beira da estrada, é o mote de hoje. Nada me ocorre que permita desenvolver este tema, não sou nenhum Rodrigues Lobo ou Luís de Camões para o desenvolver cabalmente.

 Seguindo à beira da estrada

Ao início da alvorada,

Vai tenaz e decidido.

Às costas leva a sacola,

Um guarda-chuva de mola,

Que o tempo está muito incerto;

Nos bolsos um canivete, sabão e uma Gillette,

Um livro p’rás horas vagas.

Evita fendas e fragas,

Seguindo à beira da estrada

De noite, pela calada.

Não está longe nem está perto,

Não tem pr’onde ir, decerto,

Limita-se a caminhar.

Passam-se meses e anos,

Vê países, oceanos,

Desertos e estepes sem fim.

Cansado já da viagem

Faz derradeira paragem,

É tempo de descansar.

Tornou à terra natal,

A volta ao mundo, afinal

Transporta-o de volta ao lar.

Seguindo à beira da estrada

Ao início da alvorada,

Para de caminhar. 

Cumpre-se o destino assim. 

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2ª à NOITE 

Ele era bom no que fazia, era um mentiroso compulsivo, mentia tão bem que até a si próprio enganava. 

3ª feira

 Veio-me à ideia Italo Calvino, um escritor realista-surrealista. Acho os livros dele extraordinários, com uma riqueza imaginativa fora do normal. Há 2 dias que não faço os meus exercícios de escrita criativa, circunstâncias alheias à minha vontade têem-me impedido de o fazer. O mote é o mote (como é que eu vou sair desta?) 


Vazio de ideias, possivelmente em estado de pré-depressão, esforçou-se por espremer da sua mente enfraquecida algo que lhe permitisse desenvolver um tema.

Nada, rigorosamente nada. Pequenas, ínfimas sequências de ideias assomaram-lhe ao espírito, como uma perceção impercetível de uma trovoada longínqua, para lá do horizonte. Tão fugazes que duvidava que sequer tivessem existido. Talvez pensasse que tinha pensado, que houvera uma ínfima centelha, mas insuficiente para constituir sequer uma faísca iniciadora.Nada! 

É desesperante, sente-se frustrado, como um doido consciente da sua loucura. E contudo sabe que é uma reacção natural, que nem sempre a mente está aberta a devaneios, passeios, viagens, excursões pelo mundo. Por vezes caseira, introvertida, aninha-se na sua não-existência física, deixa-se adormecer. Noutras ocasiões salta, estrebucha, ferve de actividade.

A mente tem múltiplas personalidades, imprevisíveis, contraditórias, convergentes, é bipolar, esquizofrénica, coerente e incoerente, única. 


  Ora aqui está um mote sem mote, um tergiversar, um subterfúgio, um volte-face da produção do espírito para justificar a ausência de atividade criadora, gerando uma atividade criadora substituta, um mote sobre o mote que responde não respondendo ao exercício mental requerido. Confuso? Não na minha mente. 

Quando a vontade acontece

A alma exprime-se e bem,

A imaginação surge e cresce ,

A criação aparece... 

Nasceu a obra de alguém. 


Pobres versos naïf, ingénuos (tautologia), pobre métrica, pobre conteúdo. Não interessa, estou na 1ª classe, tal como as crianças, a aprender as 1ªs letras também eu titubeio, claudico, tropeço e levanto-me de novo. Dou tempo ao tempo, um dia serei um escritor. .................................................................................................................................................. 

6ª FEIRA 

Esta manhã reparei que a minha rua está extremamente envelhecida, parece um lar de idosos. A começar pela minha mãe e vizinhos, deparo-me com muletas, cabelos brancos, cansaço e sofrimento. Quando me olho ao espelho vejo o futuro e não me agrada. Vejo os meus familiares seniores e os meus vizinhos, a degenerescência, antes um ponto imperceptível no horizonte, a tomar forma, a ganhar contornos definidos, demasiado definidos para o meu gosto. E, por detrás desta, uma avantesma vestida em negro e com uma foice, tentando passar despercebida na penumbra e pronta a atacar sem aviso, visão pouco agradável que tentamos erradicar, trancar nos recônditos da nossa mente sem muito sucesso. 

Não fora essas imagens tétricas, o futuro não apresentaria uma visão negativista tão latente e tão patente. O nosso grande problema é a aceitação, a transmutação do horrível em belo, em pacífico, em natural, a satisfação de uma vida vivida em pleno e não o desgosto de uma vida que começamos a perder. Há que largar mão, quando damos algo, por muito que gostemos, o coração põe-se naturalmente ao largo, sem remorso, sem pena. Morrer é como dar (filosofia barata, quero ver quando chegar a minha vez). 


A vida é apenas morte lenta:

Um mal de nascença que não tem cura.

A vida é uma fruta sumarenta

Que esprememos sedentos até à sepultura.

A vida tem-nos (ou somos nós quem a segura?)

Por mais que bebamos dela, é pouca, não chega,

Esvai-se lentamente como que em transpiração.

Mirramos, definhamos, a morte avança cega,

Perdemos a vida por desidratação. 


Tétrico, gótico, gosto.

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 SABADO

 Sou prisioneiro do meu tempo,

Clausura imaterial e indissociável de mim.

Sonho com a liberdade, 

fugir do abraço sufocante de Cronos, 

o meu assassino.

Haverá alma?

Pois se houver, anseio despi-la das roupagens carnais

E escravizar o meu algoz para sempre.

Só morto serei livre. 


 A acreditar na reencarnação e atendendo à produção literária apresentada, devo ter vivido na 2ª metade do séc. XIX, no período romântico. Só assim explico esta fixação pelo gótico, pela morte, pela saudade, nostalgia, revivalismo. Não que eu subscreva totalmente, em termos de crença, os ensaios que apresento, porém sinto-me bem, confortável a criá-los. 

Defendo que se podem criar obras que reflitam uma determinada tendência que não necessáriamente aquela em que acreditamos, ou seja, pode-se, por exemplo, escrever ficção científica sem crer que as situações relatadas venham a existir, ou uma obra de cariz religioso, sendo ateu. Sou romântico sem realmente o ser ou existencialista, realista, gótico, saudosista ou outras tendências que não subscrevo. Faço o papel de advogado do diabo literário, assumo a tendência sobre a qual escrevo no momento. 

São 22h05, não fiz a ponta de um corno.

 Limitei-me a vegetar no balcão do restaurante por não me sentir à vontade para escrever estando rodeado de gente com olhos curiosos. Os olhos humanos são como os de um gato, sempre atentos ao mínimo pormenor, ao mínimo movimento; com a diferença de que os gatos fixam-se no que, de alguma maneira, poderá afectar a sua vida, seja positivamente (comida, conforto) ou negativamente (perigos vários) ou ainda pelo seu instinto de caça, enquanto os humanos o fazem, não só pelas mesmas razões mas também por inveja, cupidez, estupidez ou simples curiosidade mórbida. Mas isso é intrínseco, pavloviano (dêem-me algo para onde olhar e eu coscuvilharei descaradamente, esquecendo a noção das conveniências). O homem é o único animal que espia sem justificação, sem uma razão para espiar. 

2ª feira, tempo incerto, muito vento. 

Por vezes fico embasbacado com as apreciações de obras literárias feitas por críticos: a maioria das vezes encontram numa obra um sem fim de ilacções que até o próprio autor desconhece. É caso para pensar se toda a apreciação literária feita por críticos não passa de uma grande mentira, uma convenção unilateral que somos (ou não) obrigados a engolir. Tenho visto apreciações críticas que conseguem encontrar num simples texto complexidades monstruosas, conclusões rebuscadas, tendências insuspeitadas. Se eu fosse escritor preferiria consultar um crítico a um psicólogo; os primeiros dissecam-nos sem levar dinheiro, ficamos a conhecer coisas insuspeitadas sobre a nossa personalidade. Um crítico tanto pode construir-nos como destruir-nos. A caneta de um crítico mata mais escritores que o bisturi de um cirurgião. Está-se a preparar uma noite tempestuosa, pelo menos aparenta. 


A chuva bate lenta, compassada,

Escorregando suave na superfície negra e rugosa de uma estrada

Mas o vento, ciumento, arrebata a chuva num ápice, num momento.

E o que era uma chuva lenta, ordenada

Assusta-se, cavalga selvagem pela estrada.

O vento acalma, a chuva volta lenta, compassada

Caindo mansa na beira de cimento

Como se o vento violento não tivesse enviado uma rajada… 


Descalça vai para a fonte
 Lianor pela verdura; 
Vai fermosa, e não segura.   
Leva na cabeça o pote, 
O testo nas mãos de prata, 
Cinta de fina escarlata, 
Sainho de chamelote; 
Traz a vasquinha de cote, 
Mais branca que a neve pura. 
Vai fermosa e não segura.   
Descobre a touca a garganta, 
Cabelos de ouro entrançado 
Fita de cor de encarnado, 
Tão linda que o mundo espanta. 
Chove nela graça tanta, 
Que dá graça à fermosura. 
Vai fermosa e não segura.  

 De calças vai para a noite

Leonor pela frescura;

Cheira a fritos, a gordura. 

Vai com um grande decote,

Anéis nos dedos, de prata,

Cinto com chapas de lata

Tamanquinhos de taxote;

Vai branca, não tem pintura. 

Cheira a fritos, a gordura. 

Vê-se o sarro na garganta,

Tem cabelo emaranhado.

Dá o braço ao namorado,

Nunca vi sujeira tanta.

Obesa, uma elefanta,

Das calças rompe a costura.

Cheira a fritos, a gordura. 


(Coitados do Camões e do Rodrigues Lobo, se fossem vivos, matavam-me.) Tanta conversa de chacha, tanto cortar na casaca, tanta vaidade egocêntrica! Nós, humanos, àparte as relações laborais (e mesmo nessas) só estamos bem a falar mal dos outros ou a falar dos outros ou a pintar o retrato maravilhoso de nós próprios. Nesse aspecto somos bons, melhores que os retratistas da Idade Média e mesmo dos posteriores que, ou escondiam os defeitos físicos dos seus modelos, ou revestiam-nos de uma pulcritude (!!) que eles nunca possuíram. 

Em suma, somos uns falsos, por hipocrisia, por piedade e mesmo (principalmente) por interesse. Só ouço: fulano fez, fulana é assim, beltrano é assado, eu fiz isto (de bom), eu sou assim (positivo). Estou a criticar mas não escapo à crítica, enfio bem o barrete como quase todos, é a nossa natureza. 4ª feira, dia assim-assim, pelo menos ainda não chove. Vejo milhares de pessoas todos os dias sem sequer me aperceber da enormidade do número, a cidade é um formigueiro humano sempre em movimento. 

Noite, prepara-se borrasca, alerta laranja (até no mau tempo o PSD tem culpa).

 Muita gente na rua, muitos carros, vai tudo para casa descansar, uma lufa-lufa constante, o último stress do dia (com sorte). Às vezes há mais stress em casa, há tempo para fazer contas à vida e olhar para as mãos vazias, pelo menos no trabalho não há tempo para isso. 

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5ª feira,

 folga de manhã, formação de tarde, restaurante à noite. Estou com mais sono que um bebé recém-nascido. Cair nos braços de Morfeu, não haverá outra expressão, outra divindade onírica? Soa um bocado gay, eu que sou hétero ou tomo-me como tal, sinto-me um pouco constrangido cair nos braços de um deus masculino; há a morfina mas além de ser uma droga, não é deusa nenhuma e não se cai nos braços dela, apanha-se uma pedrada. É interessante conhecer os recursos que os antigos utilizavam para explicar, justificar a vida, com as suas benesses e os seus problemas: os deuses. A mitologia grega, não fosse a Grécia considerada o berço da civilização ocidental, é riquíssima em deuses e explicações das suas funções, como se interligam, os seus ódios, os seus amores, as suas ligações com os humanos, os semideuses, a gestão do universo. 

Explicação histórico-religiosa completíssima, onde nada é deixado ao acaso. Tal feito exige inteligência e imaginação. Olimpo, Hades; Caronte, Zeus, Hércules, Minotauro, Hidra, Medusa, Neptuno, Úrano, Mercúrio, Vénus, Marte, a Terra de quem somos os ácaros, os parasitas, Saturno e tantos outros que conheço desde a minha meninice. Felizmente nasci, não num berço de ouro mas num berço de papel encadernado, sempre convivi com livros, com as mais variadas espécies de literatura, congratulo-me por ter uma cultura geral lgeiramente acima da média (sem falsas modéstias), não uma cultura da política ou do futebol ou do cinema ou da televisão, mas aquela que se obtém da leitura heterogénea, do prazer de ler por ler, por gosto. 

Felizmente deu-me uma guinada em 2007 e comecei uma licenciatura, estava a ficar com a mente esclerosada e os olhos enferrujados por falta de leitura, estava imperceptivalmente a embrutecer. O drama é que as pessoas embrutecem sem dar conta, vão-se afundando na incultura, vão perdendo o que tantos anos lhes custou a aprender, só lhes restando no fim ir jogar cartas com os velhotes no tasco ou no jardim ou agarrar-se a um computador, jogando jogos inúteis, estupidificantes ou ver novelas e outros programas estúpidos, descendo cada vez mais de nível ao longo dos anos até à cave, até à cova. 

É horrível nascer-se estúpido e morrer-se estúpido, é horrível perder pelo caminho o pouco que se consegue aprender nesta vida. Um burro carregado de livros é um doutor, lá diz o ditado, mas só é burro se alombar com eles sem os ler, pois todos os burros podem e devem ser doutores. 

6ª feira, pelo menos não chove nem está frio. 

Como sempre, no café com as gossip old ladies. Falam umas com as outras a 3 mesas de distância e falam ao telemóvel como se os interlocutores fossem surdos e como se toda a gente quisesse saber da vida delas. Mal uma sai, tem início uma vivissecção, diária e impiedosa, a vítima é estraçalhada, esquartejada e posta no caixote do lixo. Fora isso, amigas de peito. 

Ainda há pouco passei pelo liceu Filipa de Vilhena e pelo António Nobre; vi dezenas de jovens e perguntei-me quantos terminarão tragicamente, quantos terão sucesso, quantos viverão só mais um ano e quantos viverão mais 70 ou mesmo 80. É triste olhar para eles e ver tantas vidas goradas, tantas expectativas fracassadas, tantos sonhos desfeitos. Mete pena. Para consolo, sei que haverá longevos, homens e mulheres de sucesso, criaturas felizes que nunca chamarão a vida de madrasta. Mas o que é a felicidade e o sucesso, a mediania ou a pobreza e a infelicidade? 

Há dias li uma reportagem ou um artigo em que o autor ou autores encontraram pessoas felizes no meio da maior miséria, neste caso nas camadas inferiores da sociedade indiana, onde se sabe que os párias são, para as outras castas, seres intocáveis e com um estatuto pouco diferente do de um animal. Aliás, há zonas na Índia onde animais como a vaca ou o macaco são idolatrados ou os insetos são respeitados como uma manifestação de vida. Será isto atraso cultural? Se sim, o que dizer da burka ou do chador, do desrespeito cultural e religioso pelas mulheres na maioria das grandes civilizações? Que dizer do celibato religioso ou da exploração sexual, das penas de morte para homossexuais em certos países muçulmanos, nos quais ter sexo com jovens machos até à idade púbere é aceite? Que dizer da excisão, que dizer da escravatura, que dizer da exploração capitalista ou da democratização falsa de alguns países socialistas onde a palavra exploração é substituída por igualitarismo? Que dizer de uma sociedade que trata os animais como objecto ou como lixo, que os adopta e abandona a seu bel-prazer? Que dizer de uma sociedade que confina galinhas em espaços diminutos quase desde o nascimento para usufruir dos seus ovos? Que dizer de uma sociedade que mata por prazer ou por desporto? 

Quem é atrasado afinal, são só os indianos? Quem é que faz ou fez limpezas étnicas – índios, judeus, incas, aztecas, maias, albaneses, Checoslováquia, China, Irão, Uganda? Tem que se criticar e condenar mas, atentando ao atrás exposto, que moral temos para o fazer? Quem estiver isento de pecado que atire a primeira pedra, foi alegadamente dito por Jesus Cristo.

 Mas voltemos à vaca fria, o que é a felicidade? É a prova de que Einstein tem razão, tudo é relativo. Não é o dinheiro que dá a felicidade, não é a miséria, não é a saúde ou a doença, é o modo como encaramos a vida que nos dá o dom de sermos felizes, em graus, intensidades muito pessoais, feitas como que por um alfaiate à nossa e só nossa medida. 

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21/10 3ª feira, muito sol, algum frio. 

As velhas do Restelo estão aqui ao meu lado, tesouras afiadas para cortar na casaca, olhos e ouvidos atentos, língua oleada, relatório em execução, o equivalente de bairro do crítico literário, só que este é social. Também, o que seria dos momentos de ócio sem a má-língua? Pedaços sensaborões de existência sem nenhuma gratificação sensorial ou espiritual. Bem-aventuradas as más-línguas, poderoso destressante gerontológico. Como serei – se for vivo – daqui a 20 anos? Serei como estas velhotas, passarei a vida a falar dos outros ou farei algo mais construtivo? Serei um chato, ranzinza, monolítico, esclerosado, turrão, ou uma mente aberta, pronto a aceitar as diferenças e as opiniões dos outros? Por mais aberto que seja, sei que a idade me condicionará a flexibilidade de pensamento, terei algumas ideias fixas, não serei tão permeável às inovações dos mais diversos níveis. 

Que havemos que fazer, querer ser diferente é contrariar um pouco a ordem natural das coisas, as pessoas de idade são uma tabula rasa muito gasta, os carateres já não se apagam com facilidade. A história repete-se, a vida repete-se, o que hoje criticamos aos nossos velhos, amanhã o faremos ou pior, este atrito mútuo é eterno e inaprendível por ser sempre novo. 

4ª feira, 30 de outubro. 

Mais uma vez o concílio das velhas, faz lembrar as bruxas de Macbeth mas sem a componente malvada: ”quando é que nós as 3 nos encontraremos outra vez?”. 

6ª feira, 1 de novembro, dia de fiéis defuntos e de todos os santos. 

Tradição católica, dia laicizado e troikizado, retirado dos feriados a que o país estava habituado. Tal como aquilo que representa, o dia está triste, melancólico, cinzento, com uma chuvinha fraca como se a natureza se juntasse aos sentimentos de quem neste dia faz a visita de cortesia aos seus defuntos. Não que eles queiram saber, já ultrapassaram todas essas veleidades terrenas, mas os que cá vão ficando, não. Para esses, as visitas fúnebres representam uma homenagem, um agradecimento, uma saudade mais presente ou mais residual que perdura geralmente enquanto eles mesmos não vão engrossar o rol dos homenageados. Para outros, o medo da crítica, o ver e ser visto, o apego às tradições despidas de significado ditam estas visitas hipócritas. Contudo, não se pode criticar quem pertence a este último grupo; todos nós – todos (quem disser o contrário mente, mesmo que não saiba) – acabamos por ser também um bocadinho hipócritas a respeito dos nossos ex-viventes. O medo da crítica, o pensar o que os outros poderão pensar, o sentimento de culpa por abandonarmos um espaço onde estão depositados os resíduos sólidos ou nem por isso dos nossos antepassados ou contemporâneos, motiva-nos a visitar e cuidar da nossa sucata, do armazém onde se encontram os resíduos não perecíveis do material genético que utilizámos enquanto funcionávamos e que agora são refugo inútil que teimamos em armazenar como se viesse a ter um dia alguma utilidade. Se calhar ainda à espera do juízo final, onde os mortos se levantarão de novo para serem julgados. 

Como se fizesse sentido, na religião católica há muitas discrepâncias, muitas contradições, muitas ambiguidades. Então se quando as pessoas morrem vão logo para o céu ou para o inferno, para que é que vão ser julgados outra vez no fim dos tempos? É alguma espécie de supremo tribunal a que se apela para ver se a sentença é comutada ou, pelo contrário, agravada? Um Julgamento!? Então isso pressupõe que Deus pode enganar-se, se calhar fomos para o inferno durante uma eternidade e afinal estávamos inocentes? Vamos então ser indemnizados? E os que foram para o céu sem merecerem, não podem ser castigados mais que os outros, uma eternidade é uma eternidade. Isto além do conceito pouco abonatório para a religião de que um deus pode ser falível. 

Deixemo-nos de parvoíces o homem criou um deus à sua imagem e semelhança e não ao contrário, Deus existe e comporta-se de acordo com a cultura e os dogmas de um povo. Que ele exista, não o nego, tem que existir algo que imponha ordem ou seria um caos, uma desorganização total e essa ordem teve que ser criada, não surgiu do nada, espontâneamente. No entanto, o conceito hominizado de deus não corresponde em nada â complexidade da sua existência. 

As 3 perguntas primordiais mantêm-se: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Todo o resto são subcapítulos ou subsecções desta incógnita. Eu não sei quem sou e muito menos quem fui, ainda menos (se tal é possível) quem virei a ser, qual o papel que desempenho na engrenagem do universo e para quê. Não faz sentido um deus criar seres extraídos de si próprio, refiná-los ao longo de incontáveis reencarnações ou outros processos, para fazê-los voltar a si, à unidade. Qual o propósito? 

A religião diz que é o amor infinito de deus que faz com que todas as criaturas voltem ao seu seio. Se já pertenciam ao seu seio, para que as criou ou transformou para sofrerem, de modo a poderem sublimar-se e voltar ao seu seio? Soa a sadismo despropositado e, ao mesmo tempo, a masoquismo. É como se cortássemos um dedo, que é parte de nós e o cozêssemos de volta porque lhe temos amor e assim sofremos todas as dores inerentes ao processo para que volte para nós, para a unidade, algo que já era nosso. Totalmente despropositado, louco! Há algo que nos escapa mas não são estas explicações simplistas, fruto de um antropocentrismo descarado que me vão satisfazer. 

Talvez nunca saiba, nunca saberei, decerto, neste estágio evolutivo, mas um dia, um metafórico dia, tudo será de novo metafóricamente claro como água. Sábado, afinal hoje é que é o dia de fiéis e eu andei enganado durante 56 anos. Ainda chove mais que ontem. 

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DOMINGO, 4/1, PARIS

 Curiosos estes franceses, passam a vida a cumprimentar-se, mesmo que já tenham estado juntos há 10 minutos. Bonjour, bonne journée – geralmente os 2 juntos, agora nos primeiros dias do ano: bonne année, meilheures voeux, bonne santé.

Por outro lado o Carlos disse-me que aqui os bretões, ao contrário dos americanos, vêem com maus olhos quem está melhor do que eles, são invejosos. Ao contrário dos primeiros, que sonham ser como os mais bafejados pela sorte com quem eventualmente se cruzam, os franceses têem inveja, não podem suportar alguém que esteja financeiramente melhor; enquanto os americanos exibem o seu exito, os franceses escondem-no para evitar os ciúmes dos seus conterrâneos. 

O Carlos disse-me que não leva o carro novo para o trabalho para evitar perder clientes. Pelo que vejo, estou numa zona em que é preciso desconfiar de quase tudo e de quase todos, árabes, negros, judeus, chineses e outros orientais, até mesmo portugueses. É uma espécie de “Bairro do Cerco” francês. 

Claro que, em similaridade, há bons árabes, negros, judeus, chineses e outros orientais, até mesmo portugueses, muito boa gente mesmo. Estranho país este onde as pessoas passam a vida a cumprimentar-se e a invejar-se, a dar um caloroso aperto de mão a quem abominam, país onde a normalidade está tão diversificada que quase se perde a identidade nacional. Será correcto, será aceitável, será benéfico a longo ou curto prazo ou apenas servirá, não para eliminar as diferenças mas para exacerbá-las? 

Sou muito versátil, muito dúctil mas esta miscelânea racial ainda não beneficia disso, a minha personalidade, a minha normalidade, estão ainda hirtas, não aqueceram o suficiente para poder ultrapassar o choque cultural implícito. ................................................................................................................................................... 

20/02 

Que acho “destes “ franceses, destes que conheço, os de bairro, miscelânea de raças, “Bairro do Cerco” do Porto misturado seguramente com o “Bairro de Chelas” de Lisboa? Bem, há de tudo como no meu país, mas a maneira de pensar é seguramente diferente.

 Acima de tudo está o dinheiro e a inveja do dinheiro dos outros, o teu cliente que te trata e tratas por tu e te dá umas pancadinhas nas costas é o mesmo que se esquece de te devolver o dinheiro que recebeu a mais ou que tenta “esquecer-se” das despesas que fez. É um país onde toda a gente tem dinheiro de plástico e onde todos, todos, usam cheques para pagar nem que sejam 8 ou 10 euros. 

É um país onde dizem bonjour, bom soir, bonne soirée, bonne journée, bom courage, à tout(e), merci (isso 3 ou 4 vezes numa frase) a toda a hora e momento e daqui a 5 minutos quando se reencontram de novo e à tarde e à noite, um país onde putain e merde se dizem tão vulgarmente como os americanos dizem fuck, onde se fala em bordel para significar confusão, onde toda a gente tem razão de queixa de tudo.

 Li há dias na FNAC um pouco de um escritor inglês que vive ou viveu na França. No seu livro ele diz que a greve é o segundo desporto nacional entre os franceses. Acredito. .............................................................................................................................................. 

Torcy, 23 de março de 2014

 Estou sentado à beira do lago, são 14h00, está um pouco fresco, contudo agradável. Um abelhão francês paira à minha beira à procura de não sei o quê, uma galinhola nada despreocupada à minha frente, um homem passeia o cão, um rapaz de cor passa com uma mochila às costas, duas outras mulheres também passeiam um cão e conversam, um outro homem passa e a carrinha da manutenção aparece. Dois patos desavindos (mais tarde aperecebi-me que eram galinholas), ouvem-se alguns carros no meio das árvores, do outro lado do lago um verde imenso, mais homens, mais cães, mais crianças, patos na água., insectos a esvoaçar. 

É um sossego barulhento, apetece dormir, embalado pelo grasnar, pelo piar, pelo ruido longínquo de um jato ou o rodar abafado de uma autoestrada próxima. Sornas perigosas ao sol de Primavera! Este ambiente neo-bucólico convida ao repouso, à meditação, à introspecção. 

Estou sonolento; Morfeu, esse meu melhor/pior amigo/inimigo, não me larga há 4 meses. Mesmo quando aceito de bom grado a sua agradável e revigorante companhia, ele, ciumento, não me quer largar, chega a ser obssessivo. 

Não estou muito motivado para escrever, para isso necessito de tempo para me espraiar pelas praias da mente e esse (tempo) é pouco.. Noutro dia, mais programado, darei asas à minha tentaviva gráfica de expressão e criação. Hoje é um deambuleio, uma lixadela na mente enferrujada, uma preparação para melhores dias, mais produtivos, menos espartilhados por Cronos ou Morfeu. 

Por hoje chega, é um começo. Torcy, 31 de Março de 2014 Continuo a achar esta gente muito estranha. Será por ser um bairro ou os comportamentos com que deparo são o reflexo de um país, talvez um pouco mais ampliado, devido ao extracto dominante? Há coisas que me deixam perplexo. Por exemplo, os selos, vermelhos, azuis ou castanhos e têm traço simples, monocromático. As pessoas preferem-nos aos selos comemorativos ou temáticos que também recebemos, encaram-nos com estranheza. Outro dia dei um a uma jovem e ela perguntou-me: “isto é um selo?” e preferiu o outro. Internet? Serve para jogar ou para as redes sociais, os pagamentos de multas ou impostos são feitos, ou directamente ou aqui. 

Via Verde? Sem aderência. Cheque? Para tudo. Cartão bancário? Para tudo. Não sei como conseguem controlar as contas bancárias, ou seja, sei: Geralmente, quando o cartão não dá, é sinal de que não se tem dinheiro ou de que se ultrapassou o plafond de levantamentos para esse dia (aqui o plafond diário é de 100€, não sei quanto é o total nas caixas automáticas). Tenho a impressão de que o jogo e o tabaco estão acima das compras básicas, como comida. Tenho também a impressão de que, aqui as pessoas funcionam a crédito, a pedir emprestado. 

No tabac não é o caso; se fosse, a caixa fecharia todos os dias com saldo negativo. Há gente honesta, muito honesta, que te aparece uma semana depois com um cêntimo que te devia mas há também gente que só não atrofia se não pode e que se enganares num troco a favor deles, não o desfaz, mas se for contra, fala logo, isso já eu sofri na pele. Quanto ao resto, bons dias, tardes, noites, força aí, tudo bem, até logo, até à vista, obrigado, re-obrigado, tri-obrigado, etc, não faltam, até chateia. 

Outra coisa que me causa uma certa impressão: num país supostamente dos mais igualitários da Europa, as mulheres estão sempre à espera de elogios, seja pelo que for. Ou se a comida está boa – se não o dissermos, elas perguntam – ou por outra razão qualquer. Eu pertenço a um país onde, se está bom, está bom, não é necessário dizê-lo, ou diz-se apenas uma vez, faz parte da normalidade, não necessita de elogios contínuos. Aqui, caso nada se diga, é notado. Se chamarmos a atenção para esse facto (o de gabar), dizem logo que é uma questão de cavalheirismo. Ah, então aquela coisa de igualdade é só para outros casos! Completamente assincrónico! ................................................................................................................................................. 

4/5 

O que são saudades? Nada mais que a ausência dos nossos hábitos e das nossas paisagens, mas só daquilo de que gostamos, a nossa dopamina que cedo é saciada. Saudades são a nossa ressaca, a síndrome de privação daquilo a que estávamos habituados. 

Quando saí de Portugal no dia 26, para lá da fronteira, já em Espanha, olhei pelo retrovisor e vi o crepúsculo já avançado, uma metáfora perfeita, a representação visual e nostálgica do sentimento de alguém que abandona tudo e se dirige para o estranho, o não usual, o “estrangeiro”. ..................................................................................................................................................... 

18/5 

As minhas visitas a Paris já ultrapassaram (por hábito) o adjectivo “maravilhoso” e passaram a ser “muito interessantes”: quem come sempre aquilo que adora, passa ao fim de algum tempo a classificá-lo como “bom”, é perfeitamente normal. 

Por vezes temo ser demasiado crítico para com uma sociedade que me acolheu mas, por outro lado, sinto que tenho razão, que esta sociedade merece ser criticada da mesma maneira que, se tivessemos sido criados por alguém que nos dava de comer mas que também nos espancava sem razão, não poderìamos ter contemplações emocionais. 

Aqui há 2 maneiras de ganhar dinheiro: ou trabalhar no duro, (arriscando tornarmo-nos capitalistas sem mesmo darmos conta) ou a “trabalhar” para descobrir processos de sacar dinheiro ao Estado sem fazerem nenhum e esse foi o mal do Estado francês : baixaram, a pretexto do bem publico, as calças até aos tornozelos e agora o mal habituado povo e mal habituados emigrantes não o deixam subi-las. 

A França vive um clima perigoso: educou mal os seus filhos e enteados e agora não lhes tem mão. Um dia serão eles a bater na mãe, o que trará funestas consequencias. .............................................................................................................................................. 

8/6 Parque de la Vilette. 

Isto aqui é para os parisienses o que Matosinhos e Madalena são para o Porto, ou seja, o equivalente a uma praia. Como não há praia senão a 400km daqui, toda a gente aproveita para ir para os parques, jardins, praças e outras zonas verdes, onde se “espraiam”, ou antes, “esrelvam-se” com prazer. Eu é que tenho sede de ver, de conhecer o máximo, senão faria o mesmo. 

Além disso tenho receio de adormecer e pôr-me a roncar no meio de toda aquela gente. 

19H40

 Está passar aqui em frente uma familia de pai e três filhos que parece que se passeiam em pijama, devem ser do Sudão. Continuo a achar interessante as expressões culturais dos povos que aqui habitam: os negros são os mais típicos, os mais espalhafatosos; os árabes figuram a seguir , com os seus djbellah, os marroquinos com o fez, as muçulmanas com o chador e os vestidos até aos pés, até por vezes as mãos tapadas,os judeus com a quipa. Os chineses e asiáticos em geral são os mais ocidentalizados, raramente se vêem trajos étnicos, embora os hajam. Depois há as outras minorias, como os romenos, mas esses também os temos em Portugal e sabemos que se vestem “à antiga portuguesa”(quase). Paris, uma cidade de misturas étnicas, onde não há muitas “misturas”. .............................................................................................................................................

 Paris (where else?), 

Les Halles, mais concretamente Bistrot du Centre, em frente ao Centro Georges Pompidou; que acabei de visitar, 19H36, está a dar na TV a copa do mundo, Suiça – Equador (1-1). Comecei a minha visita pelo Chatelet em cujo pátio interior se encontra a Sainte – Chapelle, mandada construir pelo rei S Luis em 1242, cujos vitrais são espantosos. Daí rumei então ao Centro já referido, visitar a sua colecção de arte moderna e outras pontuais que aí se encontravam. Factor para mim significativo: nem negros nem árabes ou asiáticos, só japoneses. Evidentemente, muitos estrangeiros (àparte os referidos japoneses), ingleses, alemães, italianos, espanhois. 

Pena que os interesses de algumas etnias se resuma ao jogo e a alguns negócios menos claros (e não me estou a referir à cor da pele). Para quem quiser, Paris é cultura, é conhecimento (tautológico), é historia. Viver em Paris é mergulhar em cultura, porém há quem opte por usar um escafandro para não se molhar (quem quiser que entenda a metáfora). 

A Suiça marcou um golo no ultimo minuto. So é pena que a cultura aqui (e em qualquer outro lado) paga-se caro, gastei 13€ no Centro e 8.50€ na capela (+ café, + cerveja,+ MacDonalds – o mais barato, são quase 40€, não dá para fazer todos os fins de semana. 

Paris, perto do Boulevard St Denis, 16h20, 22 de Junho.

 Acabei de assistir ao inicio de uma procissão que vai contornar o bairro. Mal ouvi o refrão do cântico que a acompanhava vieram-me logo à ideia as tipicas procissões irlandesas a St Patrick: “Je suis chrétien...” – uma espécie de desafio num bairro onde se encontra a principal mesquita de Paris e o Instituto do Mundo Árabe. É como um reforçar de identidade religiosa, uma afirmação amedrontada de uma sociedade que teme o recrudescimento de religiões que lhe são estranhas, provocando-lhe um sentimento de perda de identidade, de crença. 

Digamos que é o gesto desesperado, o apelo por uma Joana D’Arc, equivalente ao nosso mito do sebastianismo. Para mim, o único problema é que esse esforço existencial , esse grito de identidade, soa a provocação, tal como no Ulster ou, pelo menos, poderá assim ser entendido pelas outras comunidades, principalmente a muçulmana. Não que eles tenham o direito de se queixar, ao fim e ao cabo estão numa sociedade maioritáriamente cristã que os acolheu e devem estar agradecidos por isso. No entanto, da mesma maneira que aceitamos os africanos não lhes chamando pretos de caras, também não devemos aceitar que acolhamos outras religiões e lhes esfreguemos a nossa nas trombas. .................................................................................................................................................... 

29/6 8 h menos 25,

 sinto-me bem, bebi 2 cervejas, estou naquele estado de paz de alma que um (pequeno) toque de álcool dá. Estou calmo, não direi feliz mas melancólicamente contente, homesick mas conformado, lonely mas ao mesmo tempo free, aquele estado de espirito que necessita, ou de uma boa soneca ou de uma alma, gémea ou não, que nos ouça e que dialogue conosco.

 É dificil ser estrangeiro, é dificil estar sozinho, é ainda mais dificil sê-lo na meia-idade, é-se menos dúctil, menos adaptável, sente-se mais o choque. Estou vivo, isso importa, Bem, se estivesse morto estava-me marimbando mas, tal como estou, sofro sem sofrer, pelo menos. Será que um dia, quando (se) lerem estas linhas, compreenderão o que quero dizer ou apenas eu o poderei realmente interpretar? O meu grito existencial terá eco ou diluir-se-á no vazio da não-compreensão? Adoraria ser lido e compreendido, embora se já estiver morto não queira saber disso para nada (julgo). Sou afinal tão egoista como um (qualquer) escritor: quero ser lido em vida.Não se trata de ser reconhecido, trata-se de fazer-se ouvir (ler); Quem escreve é como um cão: mija na esquina para marcar a sua presença, a sua existência. ...................................................................................................................................................

 Como há dias disse, preocupa-me um pouco a interpretação que um dia, eventualmente, poderão dar ao que escrevo. Não sou culto por aí além mas gosto imenso de fazer locubrações cultas e não é por vaidade, é mesmo por gosto. Para quem não sabe, certas frases, certas observações poderão parecer devaneios, mesmo delírios de linguagem, abstrações ou exercícios estéreis de semântica sem significação plausível ou intilegível. 

Não, geralmente escrevo coisas inteligíveis, por vezes crípticas mas decifráveis para quem tem um conhecimento médio da lingua, literatura, história, cultura geral, enfim.

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Saí de casa às 11h00, fui para Clichy, atravessei o Sena para Asnières; visitei o cemitério dos cães (e gatos e cavalos) ,atravessei de novo o Sena na ponte de Asnières, metro na porta de Levalois, saí em Jussig e dirigi-me ao Panteão Nacional, uma igreja dessacralizada, temporalizada. 

Para quem foi educado na religião católica, soa quase a blasfémia, são velhos hábitos, velhas maneiras de pensar que eu, inconscientemente, mantive, apesar de ser ateu ou agnóstico, nem sei bem, há mais de 3 décadas. 

Muito curiosamente, quando entrei no cemitério dos cães, assolou-me uma tristeza enorme, como se aqueles animais todos tivessem sido meus e me fossem queridos, comovia-me cada lápida que encontrava, cada manifestação de saudade, de amor, gravados na pedra. Como era um local pouco frequentado, sublimei o que sentia, chorei um pouco por eles e por mim, para aliviar tensões acumuladas; Foi bom, foi calmante mas foi triste, muito triste, como se naquele lugar pairasse a tristeza materializada.

 Panteão: fiquei desiludido pois esperava ver o pendulo de Foucauld; foi retirado para obras na cúpuia e só volta daqui a 3 anos. No entanto, a visita foi interessante, “vi” algumas figuras importantes de França, vi generais com túmulos sumptuosos, cheios de lápidas, palmas e flores em bronze, faixas tricolores, e vi os verdadeiros grandes de França – os grandes escritores do país e do mundo – com túmulos singelos, apenas o nome e as datas. 

Que ironia! 

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Paris, 2 de Agosto de 2014, 17H58,

 esplanada de um bistrot mesmo em frente aos Invalides. Acabei de visitar o nosso invasor de há mais de 200 anos e os seus sucessores. 

O que aos olhos da época era um invasor impiedoso e cruel, hoje em dia é visto como um grande homem – e foi-o, não se pode negar. Usurpador de nacionalidades? Sim, mas quem não o era na época, desde que tivesse poderio militar? Visitei também o museu militar que lhe está adstrito, onde encontrei uma coleção bélica referente em especial aos sec. XVI e XVII, impressionante. Gostei imenso. Começaram as férias dos franceses, li ontem no jornal que se formaram bichas nas estradas que atingiram 975 km. O Carlos disse-me que é a mania tipica dos franceses: vão de férias todos ao mesmo tempo e para os mesmos sítios, como carneiros.

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Versailles, jardins do chateau, 24/08/2014, 14H00 (vive la diférence, de nouveau!)

, um mundo de gente, quase tudo estrangeiro como eu. Está bom tempo, embora um pouco fresco. Tenho algumas saudades do tempo bom português. Desde que entrei aqui puz-me a pensar qual seria a reacção, qual seria o choque se Luis XIV estivesse vivo e visse isto tudo, este mar de plebe e de estrangeiros a invadir os seus ex-dominios. Seria algo tão insólito como depararmos nos nossos dias com uma vaga de extraterrestres a visitar o nosso património, um estilo men in black! Algo mesmo impensável! Acresce o facto de o sentimento por parte dele de invasão, de intrusão, de abuso vindo de uma plebe interdita de por os pés num solo de propriedade real, ainda para mais não franceses. Penso que morreria de desgosto e de raiva. Eu não sou ninguém (àparte a minha propria individualidade), ou seja, não sou socialmente ninguém, ou seja, pertenço à massa amorfa da sociedade anónima; mesmo assim, indignar-me-ia se visse os meus espaços privados, os meus pertences, a minha vida devassada por estranhos sem nenhuma ligação comigo, movidos apenas pela curiosidade.

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Tenho estado a ler o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, aproxima-se muito da minha maneira de pensar e dizer as coisas, embora muito mais elaborado, evidentemente. Como ele, penso por exemplos, por metáforas, por símbolos e comparações; como ele utilizo um certo existencialismo obscuro, um misto de pessimismo depressivo e de, quase tautológicamente, uma visão da vida pelo seu lado menos bom, mais cru. ................................................................................................................................................. 

Rua do Paraíso, 19H05, 9 de setembro, waiting for Godot ou quase.

 Está tudo igual, as árvores, as pessoas, as ambulâncias que passam de vez em quando, tudo. Eu mudei. Sinto um misto de satisfação e de perda, uma quase vergonha de ter voltado, um certo bem-estar por pisar de novo solo conhecido embora pouco promissor. Contudo, estes nove meses em que estive ausente trouxeram um alento novo à sociedade, nota-se ou eu noto. 

Mais pedidos de emprego nos jornais, menos insatisfação (resignação?) generalizada. Será um retorno económico, será o começo de uma nova curva ascendente, será apenas uma ilusão, um engano? Não sei, voltei há uma semana, é talvez demasiado cedo para fazer um juízo de valor. ................................................................................................................................................ 

Tenho medo de estar vivo. 

Tenho medo de ser quem sou se o meu ser for diferente de quem era, 

Tenho medo de fugir à normalidade anormal de quem está habituado a pensar diferente 

Tenho medo de que um dia deixe de pensar como penso e passe a pensar como receio 

Tenho medo, muito medo. 

Tenho medo de me tornar insano ou vago, de retornar a uma infância indesejada, 

Tenho medo da dependência mais que da morte 

Tenho medo da dormência cerebral, da letargia semiconsciente, torturante, da senilidade. 

Tenho muito, muito medo. 

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19H20, Paraíso a ameaçar chuva. 

Esta ideia de paraíso a ameaçar chuva é engraçada, primeiro pela humanização que lhe é conotada, segundo porque uma ameaça não se coaduna muito bem com a ideia que temos de paraíso .

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 Fim de verão triste. Mas são os fins de verão tristes? Mais provávelmente somos nos quem os faz tristes, quem conota conota os outonos e os invernos com a tristeza. Paraíso (já ia escrever Créteil ou Paris), 13H30, sábado, 14/9

. Interrompi ontem bruscamente a minha linha de pensamento... (de novo interrompi para uma entrega). 

Pois dizia eu que as estações do ano são tintadas com a nossa visão do mundo. A não ser assim, teria muita pena dos Inuit ou outras tribos dos circulos polares pois para elas a vida resume-se a um interminável inverno rasgado de quando em quando por um arremedo de primavera pálida e fria. Eles, à sua maneira, são felizes assim. Nós, os bafejados pela sorte de ter 4 estações bem diferenciadas, damo-nos ao luxo de as criticar, de as estigmatizar, de lhes pôr defeitos. Mal sabemos o quanto devemos agradecer à Mãe Natureza por tamanha benesse. Mas somos uns mal-agradecidos (eu incluído), não sabemos apreciar as nuances positivas de cada estação, as suas belezas e vantagens. Somos assim... 

Paraiso de novo, 14h40, 14 de setembro. 

Tenho muita pena mas tenho que me isolar neste local. As conversas que me rodeiam, ou estou muito enganado ou pioraram de qualidade; só se fala de futebol e/ou outros assuntos “de trolha” (refiro-me à maneira como os assuntos são tratados, não ao futebol em si). Não quero ser redutor mas “conversa de trolha”, salvo raras e honrosas excepções, é básica, totalmente desprovida de conteudo ou, a existir, representa o bê-a-ba do pensamento. Muito bairrismo, muito clubismo, muita conversa parva, muita observação ou anedota baixa, nenhuma intelectualidade. Não preconizo Sénecas ou Confúcios nem mesmo Judites de Sousa ou Josés Eduardos dos Santos mas adoraria que as conversas que atualmente me ferem os ouvidos (bem alto) tivessem mais nível, do género de conversas que nos fazem parar o que estamos a fazer para ouvir ou mesmo contribuir com a nossa opinião. Muito infelizmente essas conversas apenas nos fazem interromper o que estamos a fazer devido ao ruído mental e sonoro que provocam. 

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 É curioso analizar como um narrador, um cronista, vê o mundo. Pega no seu pequeno pedaço de mundo e expande-o, agarra a sua ínfima experiência pessoa e enfatiza-a, fá-la inchar, aumenta-a a uma escala planetária ou, no mínimo, nacional ou regional. O escritor vê o que os outros não vêem, o seu microcosmos retrata o macrocosmos, amplia-o e generaliza-o, fá-lo caber, moldar-se ao mundo dos seus leitores ou, por vezes, molda os seus leitores para caberem no seu mundo. O grande desafio é partilhar as experiências, a visão, identificar-se com um mundo em particular e torná-lo inteligível, fazer dos outros o que sente, fazer de si o que os outros sentem. 

Escrever é criar mas é também e principalmente traduzir. Um escritor é um intermediário que descodifica o mundo aos seus leitores através do seu proprio código pessoal. Por isso cada um interpreta o mundo à sua maneira porque o seu código é diferente do dos outros, tão diferente como uma impressão digital. Uma escrita universal é tão impossivel como uma política universal ou uma religião universal. Daí o seu carisma, a sua identificação com este ou aquele, a sua rejeição ou abominação.

 Criar é perder-se

 É ser sem ser 

É traduzir sem realmente perceber

 É sofrer por não ser perfeito 

É a alegria de descobrir o que nunca esteve encoberto 

É dar aos outros o que nunca foi nosso nem de ninguém 

É iludir também 

É vestir a realidade com um manto colorido que a tranforma e mitifica

 É fazer parecer que é o que jamais foi 

É criar sem criação, brincar aos deuses 

Criar é encontrar-se num sonho real 


Somos íncubos da imaginação, 

geramos o ovo do sonho e chocamos a ideia criadora. 

Só depende de nos sermos a galinha dos ovos de ouro.


 Porto, 25 de setembro, 12H35 (you know where).

 É verdade que ninguém está bem com a vida que tem, neste momento estou com certas saudades de Torcy, do trabalho que tinha, mas julgo, tenho a certeza que é um vicio psicológico como o da privação do tabaco, deseja-se aquilo que, ao fim e ao cabo, não se deseja. Quando me ponho a pensar no sacrificio de levantar às 5H50 e trabalhar todo o dia até às 20/21H, aturar idiotas e ignorantes e descansar quando me deixam, reparo que o meu trabalho actual nem é assim tão mau, deixa-me a maior parte do dia livre, não é muito stressante, não exige skills especiais e apenas cansa em momentos de inactividade. 

Não há bela sem senão, chuva ou sol, canícula ou tempestade, há-que estar operacional. Ganhando como ganho 62% do que auferia lá e trabalhando só ao almoço e jantar, é assim tão mau? Comparativamente, estou muito bem pago. O meu vício psicológico prende-se mais com a liberdade, com a cultura, com a novidade de um país, de uma cidade mítica que nos agarra pelos neurónios, cola-se ao nosso intelecto, entranha-se na nossa alma. 

Está um dia típico (finalmente, depois de tanta chuva) de princípio de outono: um agradável quente/fresco, prenúncio do inverno que se aproxima. Permite-nos fazer o luto de um verão que não foi e prepararmo-nos para entrar nas estações chuvosas que tememos cada vez mais, por violentas e inconstantes.

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29/9 

A dúvida assalta-me 

A incerteza apodera-se do meu espirito 

Assola-me uma aflição de alma

Percorro agitado os recônditos da minha mente 

Abro um a um os seus compartimentos escusos 

Vasculho com ansiedade os arquivos da memória

Pesquiso incessantemente os arquivos neuronais 

Revejo, comparo, analizo 

Eu estou cá, eu existo, eu tenho consciência de mim

 Mas será que estou todo, integral, em consciência plena?


  Dia seguinte, 14H25

 Dia de filosofar. Não me apetece ser descritivo, relatar o que me rodeia como uma revista cor de rosa que publica o que os pobres de espirito querem ouvir (ler). Nem literatura de cordel se lhe pode chamar, será antes literatura(?) de linha podre, sem ponta por onde se lhe pegue. Que interessa se o(a) famoso(a) A ou B se magoou ao bater com o joelho no corrimão ou partiu o salto do sapato ou arrotou em público ou comeu arroz de legumes no restaurante X? Que porcaria é esta que tem cada vez mais adeptos de leitura? 

Tal hábito reflete-se bem no nível cultural do pais, não direi do mundo porque não vivo no seu resto. Embora o acesso à instrução seja cada vez mais alargado, dá a impressão que esta não tem nada a ver com a cultura e educação, devia potenciá-las mas paradoxalmente está a ter o efeito contrário. Cada vez se vêem mais burros instruidos, mais bestas quadradas com canudo. Em termos culturais parece que há uma inversão de valores, quanto maior é o grau de instrução, maior é o grau de ignorancia e menor é o grau de educação. Extemista, preconceituoso, esclerosado mental? Talvez. Ou talvez não.  

12H40, 31 de setembro, ou seja, 1 de outubro (deixei-me influenciar pela data do meu relógio), dia de sol, sem nuvens, muito agradável. 

Se fôssemos aranhas e deixássemos atrás de nós um fio de seda, a Terra estaria coberta em espessura por quilómetros de tecido impossível de desfazer, tal a complexidade de voltas que cada um faz durante o dia, acrescido das centenas, milhares de pessoas que se lhes sobrepõem. Inimaginável! Haverá talvez algo que se lhe assemelhe, a nossa rede neuronal, onde as sinapses que os intercomunicam são também assombrosamente complexas. Comparável? Superior? Inferior? Não sei, talvez alguém que não eu.

 Outro fator deveras impressionante é a nossa capacidade, no fundo a de todos os animais, mamiferos, aves, peixes, batráquios, ciclóstomos, répteis, insetos, de respirarem e/ou outras inerentes a um ser vivo, de maneira + ou – automática e de se moverem ou locomoverem pelo simples acto de pensar, como se de um rolamento bem oleado se tratasse. É tão suave, tão “natural” que nem nos apercebemos do esforço, se é que ele existe. Mesmo outras funções mais complexas como o acto que agora pratico (escrever), são simples, fluídas, só eventualmente travadas por alguma deficiência ou malformação óssea, muscular ou outra. 

Dos animais e insetos não sei, fala-se de uma alma-grupo, uma entidade colectiva que rege os comportamentos e reacções de toda uma espécie ou grupo, como um enorme cérebro cujos neurónios, à semelhança do cérebro humano,fossem responsáveis por esta ou aquela função, neste caso, esta ou aquela espécie. 

Do mesmo modo que o nosso cérebro comanda, com cada região cerebral, os pulmões, o fígado, a circulação sanguinea, a produção glandular, a função digestiva ou a propria acção consciente, também este cérebro colectivo comandaria as diferentes espécies, de acordo com a sua função no universo. 

Certas correntes filosófico-religiosas defendem mesmo que até as plantas ou os minerais têem vida semi-consciente ou inconsciente e vão evoluindo lentamente ao longo de milhares ou milhões de anos até atingirem eventualmente um estado de consciência quiçá semelhante ao estágio em que agora nos encontramos ou superior, do mesmo modo que nós também evoluiremos até outras formas ou não-formas, outros conceitos de vida ( ou não-vida) para nós ainda inconcebíveis. Atendendo ao estágio evolutivo em que nos encontramos e comparando-o com as primeiras manifestações humanas conhecidas, há alguns milhares de anos, não é de descartar totalmente esta hipótese. Talvez não a aceitemos na íntegra mas temos que, pelo menos, dar-lhe algum crédito. 

Que nos reservará o futuro? Não falo do futuro próximo, dos próximos milhares ou mesmo milhões de anos, falo do Futuro, da nossa razão última, do objetivo do universo. O que seremos? Como seremos? Seremos? Ou não seremos? Ou ambos? Ou nada? A felicidade é uma mentira descarada que a vida nos impinge e na qual parvamente acreditamos. Tanto a ignorância como o conhecimento trazem sofrimento. Só quem (ou o que) é uno com o indizível é feliz ou, por outra, não é nada, porque a felicidade implica a existência da infelicidade e na unidade não há dualidade, portanto nada existe que tenha o seu oposto. 

Enquanto existir mais que uma opção, viveremos a mentira da felicidade; quando a pluralidade se unir na unidade, tudo isso desaparecerá e seremos apenas. Mesmo o proprio verbo ser implica pluralidade, se somos, existem outras coisas que não são ou que são algo diferente. Assim, se dissermos “eu sou” para exprimir a unidade que nos consideramos,estamos apenas a cair num logro de palavras. O numero 1 existe porque temos o 2 e o 10 e o 125443, etc. Não há palavras para exprimir esse estado, por isso na Bíblia se diz que Deus não tem nome, é indizível , pois que ao pronunciarmos algo estamos a pressupor a existência de algo mais. É um conceito impossível de descrever por palavras ou mesmo pensamentos, pois a nossa mente está condicionada pelos conceitos de pluralidade.

 02/10/2014, 

mesmo num diário a hora é, teóricamente, irrelevante, a não ser que sirva para delimitar específicamente um evento em particular. Gostaria de me transportar no tempo a este mesmo lugar no sec XVIII com, evidentemente, todas as garantias de segurança que tal obrigaria a tomar.

Não me quereria envolvido em qualquer espécie de suspeição, a qual seria bastanta danosa para, pelo menos, a minha integridade física pois poderia, por não me saber comportar como um autóctone histórico, criar situações delicadas como ser acusado de heresia e entregue à inquisição ou acusado de espionagem ou, pura e simplesmente, agredido ou assassinado devido a algum mal-entendido ou para me roubarem. 

Após todo este rol de situações que mais parecem pertencentes a uma apólice de seguros, retomo o fio original dos meus pensamentos. Seria extraordinário poder constatar in loco e in tempore como seria a urbe portuense há 200 ou 250 anos. Depararia seguramente com a ausência de casario em certos lugares, a existência de terras de lavradio onde actualmente existem prédios de 5 ou mais andares, a pacatez de uma vida notóriamente provinciana a que já não estamos habituados. Vejo neste momento a igreja da Lapa entre o casario da Rua do Paraíso, veria eventualmente, sentado nalguma rocha, a mesma igreja parcialmente encoberta por alguns carvalhos ou castanheiros, uma elevação rochosa, uma eventual casa de lavoura, um ou dois caminhos entre a vegetação, galinhas, bois, um ou outro cavalo. Diferenças abismais.

 Àparte a inexistência de electricidade, água canalizada, veículos motorizados, estradas dignas do nome e outras comodiodades a que estamos por vezes mal habituados, seria tão mau viver naquela época? 

Ao fim e ao cabo só sente a falta das comodidades quem as já teve, não quem nem sabe o que são. E o pensamento, a filosofia? Aí seria porventura mais complicado um entendimento comum. Mesmo as mentes esclarecidas da época entrariam em conflito com a forma de pensar do sec XXI, não só devido ao avanço filosófico de 250 anos mas também ao condicionalismo historico-filosófico-religioso natural de cada época. A ruptura com os valores estabelecidos é que provoca o avanço, o desenvolvimento das mentalidades e essa ruptura deve-se a pequenos rasgos de génio de alguém que resolve pensar diferente dos da sua época e essa clivagem, por pequena que seja, por poucos seguidores que tenha, faz sempre diferença. Um dia alguém repara nessa nova maneira de pensar mais ou menos desprezada por diferente e torna-a algo inovador, reformulado, rejuvenescido, transformado. 

É assim que nascem os grandes ideais, os grandes pensadores, as grandes filosofias, nada mais que o aproveitamento de ideias desaproveitadas, a reciclagem de pensamentos alheios em latência. Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma e este é um bom exemplo. 

Criação? Não existe verdadeiramente, existe, transformação, reformulação, reciclagem. Sábado, 3 de Outubro, de ontem para hoje arrefeceu bastante, embora esteja ainda sofrívelmente agradável. Cheguei já passa de um mês e ainda não vi o mar, o que perfaz 10 meses ou um ano, desde a última vez. Ponho-me frequentemente a pensar na transitoriedade da vida, recordo o que vi numa velha igreja em Paris, uma (imensas!) placa de mármore com um agradecimento à divindade pelo sucesso num exame. Qual prova não interessa, muito menos agora e certamente nunca se saberá. O que me chamou a atenção foi algo que me pôs no meu lugar como elemento perecível, descartável, insignificante, a data: 1883 – há 132 anos. Foi seguramente um jovem na casa dos 20 anos quem encomendou e mandou colocar a placa marmórea gravada, um jovem cheio de sonhos, com a vida pela frente.

 Hoje, os únicos vestigios, a existirem, serão os restos de um esqueleto ressequido. Terá morrido há quanto? 70, 90 anos? Na mais positiva das hipóteses, considerando-o um longevo, um centenário, terá finado os seus dias há 50 anos. Avô, bisavô, trisavô, tataravô de quem? Já não tem importância, é um antepassado de alguém(s), quem sabe se de mim próprio. Daqui a 100 anos serei também um antepassado, um esqueleto ressequido, se ainda existirem os ossos, um nome perdido nalguns papéis de um arquivo distrital ou da torre do Tombo, uma referência genealógica para algum descendente curioso ( o meu trisavô chamava-se José, não o conheci, não sei o resto do nome). 

Serei uma foto perdida, descolorida pelo tempo num álbum de familia, um desconhecido familiar ou um familiar desconhecido. Pensar nisto é um pouco deprimente, queremos viver para sempre e, por extensão, vivermos na memória dos nossos futuros descendentes. Puro engano, seremos esquecidos com brevidade, o nosso nome acabará apagado da memória colectiva familiar e da memória colectiva do resto do nosso pequeno mundo, recordação ínfima de um ínfimo ser que veio do nada e ao nada retorna. Fim do dia, ao rever o que escrevi esta tarde fico abismado com a insignificância humana, com a minha insignificância. 

Não posso avaliar os outros, apenas eu poderei servir de padrão, sinto-me pequenino perante o mundo que foi e o mundo que há-de ser. Quão infindável é o tempo passado, quão incomensurável o tempo futuro e nós nem um ponto, uma linha significamos nesta sequência. 

Nada sou, nada fui, nada serei 

Cronos não me dá tréguas,  

Não me permite aperceber-me de mim. 

Sou nada e nada passarei a ser quando saír da cena onde nunca entrei. 

Perpassa-me pela mente a sensação de existência:

 É falsa, nem mente tenho! 

A minha não-existência engana-me, sugere-me que existo. 

Não passo de um esboço imaterial, 

Fruto de um sonho do Tempo. 


12H47, 

o pano de fundo é o mesmo de ontem, a igreja da Lapa ou antes, parte da sua fracção lateral posterior direita. De certeza que passa mais gente aqui que o somatório que toda a população da cidade no referido século. 

Não corre uma nuvem, apenas gaivotas e pombas, eventualmente algum avião que passe. O sossego do céu faz apetecer saber e poder voar que não em sonhos ou imaginação. Qual a sensação de uma asa delta, um planador ou um salto de paraquedas? Há quem diga que todo o ser humano possui um corpo astral, uma espécie de corpo (que não a alma) aprisionado no estado consciente do corpo ou, por outras palavras, no corpo enquanto estado consciente. Por outras palavras ainda, poucos têem a capacidade de libertar o astral em estado de consciência. O corpo astral liberta-se do seu invólucro físico fora do estado de vigília e viaja, voa. Com treino dizem que se consegue fazer isso. 

Escrevo, escrevo mesmo sem inspiração. Tenho que treinar a minha capacidade criativa, fazer ressurgir o clique, o fogo de entre as brasas semi-apagadas da fogueira interna onde são gerados e materializados os sonhos. 

Há anos na faculdade, num trabalho de inglês, escrevi que realizar um sonho é matá-lo. Ao criar, matamos sonhos, destruímos construindo. São frases soltas as que escrevo, tenho que as dizer senão perdem-se na não-existencia, desaparecem para nunca mais voltar e serem esquecidas. Quando pensamos algo e não o escrevemos é como se olhassemos para uma pedra ou um bocado de pão, uma árvore, uma nuvem e vissemos uma cara ou objecto ou outra coisa qualquer. Quando fixamos de novo o olhar já não vemos a mesma representação imaginada, as coordenadas mudaram, os olhos e a mente vêem já outra coisa apenas similar porque nos esforçamos por rever o que temos residualmente na memória. Nunca mais veremos o mesmo, será sempre algo diferente, irrepetível. 

Do mesmo modo os pensamentos, as ideias transportadas para o papel não são as mesmas do após-escrita ou após-pensamento, mudam de forma como as águas do mar, que é contudo a mesma mas não é a mesma, é outra, é diferente, são outras águas da mesma água. Nada é, tudo foi.

 Porto, 2ª, 5/10, tempo fresco e mentiroso, ameaça chuva mas não vai chover.

 Sinto-me bem disposto, melancólico mas bem disposto.

 A tinta da minha caneta está ansiosa por sair, a minha mão segredou-lhe maravilhas, histórias emocionantes, relatos envolventes que a libertarão da sua clausura material sobre a alvura do papel aonde escrevo. 

Por vezes a minha mão também mente, também promete o que não é capaz de cumprir ou que não lhe é permitido concretizar por força das circunstâncias. E a tinta aguarda pacientemente a sua libertação, o cumprir do seu destino. 

Neutra, tanto representa obras maravilhosas como disparates ou simples rabiscos, a pulsão do pensamento que guia a mão que escreve dita o desfecho da libertação criadora. E o pequeno rio que flui, aduba, irriga, cria vida na aridez celulósica, faz germinar simples arbustos ou gloriosas sequóias, robustos carvalhos ou frutíferas nogueiras, ervas daninhas ou delicadas flores. A mão que semeia tem o poder, o rio de tinta é o seu instrumento, a sua força criadora. 


Escrevo porque escrevo, porque quero

Quero ser pai de filhos legíveis 

E que serão mais filhos que os meus filhos.

Aqueles, produto de duas gerações,

Estes, só meus, os meus genes, cópias fiéis de mim.

Amo mais os meus meio-filhos

Mas assumo na íntegra os meus mais verdadeiros. 


06/10, tempo fresco, vai chover esta noite.

 O mundo está a mudar muito, as minhas referências de adolescência estão a desaparecer. É normal, as actuais referências de adolescência são para outros adolescentes que não eu, que já não o sou. 

O velho eléctrico 7 ( Pereiró-Batalha) que eu apanhava quando estudava em Cedofeita há mais de 45 anos, o autocarro 1 ou 112 (mais tarde) Carmo-Batalha, a transição do comboio a vapor para o diesel e depois para o eléctrico, os troleicarros, os cabeças de giz, as carrinhas Nívea, os míticos cafés Magestic, Paládio, 1111, Tremendão, o Rentini, a marginal (antiga) do Castelo do Queijo, tudo isso desapareceu e não regressa. Ainda subsistem algumas referências, geralmente cafés, da era colonial: Bié, Macau, Timor, Goa, Damão, Diu, Casa Africana, A Pérola de Angola, etc. Saudosismo ou hábito? O que é o saudosismo senão o hábito de quem viveu uma época e acostumou-se a ter pontos de referência, nomes, maneiras de ser e de pensar, objectos e transportes do seu quotidiano? Pode-se mudar para melhor mas o ambiente em que fomos criados marcam indelévelmente os hábitos e a personalidade de cada um. 

Também os jovens de hoje terão o seu saudosismo num futuro mais próximo do que imaginam, o tempo voa, tanto mais rápido quanto mais avançada for a idade de um individuo. 

O Séc. XX, para mim, foi um século de viragem, não só na maneira de pensar mas também e muito principalmente em termos tecnológicos. Durante toda a Idade Média e mesmo a Idade Moderna, a revolução mais flagrante foi a do pensamento humano, o resto sofreu grandes modificações, é certo, mas foram lentas, “caracolentas”. A partir do início, direi antes, do meio do 20° século, o desenvolvimento foi assombroso. Dir-se-ia que estivemos em incubação e de repente eclodimos, temos veiculos motorizados há cerca de 130 anos, voamos há 100 anos, energia nuclear há 80, iluminação, exploração de outros planetas, descobertas da física, da química, da medicina, tudo explodiu no século XX. 

4ª feira, esta tarde vai chover a potes, a cisternas. 

Felizmente não chove agora, estou com um principio de constipação, quero evitar que se desenvolva mais. Neste momento, como seria de esperar, a minha disposição não é das melhores, o estado de espírito acompanha as maleitas do corpo e tenta minar-me com pessimismo, auto-comiseração e outras sensações pouco edificantes para o meu amor-próprio. Como sei que as doenças são mais “doentes” porque a moral está em baixo, tento levantá-la (à moral) pois o 1° passo para a cura, além do reconhecimento da doença, como soi dizer-se, é uma atitude positiva, alegre se possível, activa. Nem sempre é fácil, a tendência é para a prostração e o negativismo mas consegue-se com algum esforço. 


Estou doente,

Sinto o que não sinto

Porque doente sinto

E, como doente, minto 

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25 de novembro, 

há muito tempo que não escrevo. A minha inspiração tem estado como o tempo atmosférico e o tempo cronólogico: incerta e insuficiente. Felizmente tenho-me estado a inspirar numa fonte, numa das fontes do surrealismo e da introspecção metafórica - Fernando Pessoa. Com ele tenho aprendido a ser ambíguo no bom sentido, ou seja, defender pontos de vista antagónicos, dependendo do estado de espirito e do fluir do pensamento. Aprendi a não ortodoxia do pensamento criativo, a ductilidade da escrita, a flexibilidade da defesa de teses. Sei que posso escrever, emitir juízos sem , necessáriamente, comprometer-me com eles, como um advogado defende causas nas quais não necessita forçosamente de acreditar. 

Há uma tendência natural para conotar um autor com as suas obras, eu faria o mesmo. Porém, nem tudo o que se escreve ou se produz pode ou deve comprometer o seu criador, tudo depende do seu estado de espírito no momento da criação. Quando o nosso metafórico deus criou metafóricamente o mundo, fê-lo à sua imagem e semelhança, segundo diz a Bíblia e os cânones, os dogmas do cristianismo e do judaísmo. Então deus tem olhos, nariz, boca ouvidos, braços e pernas como nós. Para quê? Só se lhe apeteceu nesse dia estar assim, ainda bem, a esta hora podíamos ser todos polvos ou lagartas. 

Serve o exemplo anterior apenas para provar o que disse préviamente, tudo depende do estado de espírito no momento do acto criador. Lógicamente que uma entidade deítica, a existir, terá um plano estabelecido, uma harmonia que permita concretizar uma obra em permanente evolução e não se deixará levar por caprichos ou devaneios do momento. Por que não há-de um ateu defender deus ou um marxista louvar o trabalho de Hitler? Tudo deverá seguir um raciocínio lógico, sem extremismos nem fantasias. A não ser que seja uma obra de ficção. 

Bem, toda a obra é uma ficção, não é real é, no máximo, uma cópia da realidade. Porém, dentro da ficção própriamente dita podemos ficcionar, criar uma irrealidade, uma incoerência lógica que satisfaça, que preencha a estrada criada pela nossa corrente de pensamento. Um vulcão, quando extravasa o seu magma, cria não um a mas várias torrentes de lava em diferentes direções. Por que não há-de o pensamento racional fazer o mesmo? Continua a ser ele próprio, criando em vários sentidos. A lava não deixa de ser lava só porque se divide para a esquerda e para a direita, os seus efeitos são idênticos. 

15 de dezembro, 13h23, sol e frio, contudo agradável. 

Enquanto houver sol é sabido que as endomorfinas, morfinas e as suas primas mantêem-se em alta e expulsam a má disposição de ao pé da porta. É estranho pensar em nós próprios como um dispositivo mecano-bioquímico mas nós – corpo físico - não passamos disso. Vendo as coisas por este prisma, até parecemos saídos de um romance de ficção científica e o que são eles senão um reflexo da realidade? O drama, a ficção, o romance, o teatro, a poesia, apenas relatam uma caricatura, uma aproximação da realidade, uma cópia, fotocópia, ecografia ou TAC do espírito reflectido no corpo. 

O que serei daqui a 20 anos, um velho ou um morto? E no caso da primeira hipótese, será a melhor opção? Ou mais valerá ter morrido antes e deixar a longevidade para outra encarnação mais capaz, física ou psíquicamente? Para se ser macróbio há-que ser saudável e/ou lúcido, pelo menos lúcido, caso contrario será tortura, tormento, infelicidade. Se já em vida vemo-nos e desejamo-nos para ser ou tentar ser felizes, em velhos a ausência de saúde ou integridade mental é um verdadeiro inferno. 18/12, 22H20, falta 1 semana para o Natal, frio q.b., não chove. .................................................................................................................................................. 

2/1 

Passarem 57 anos desde que nasci, 37 desde que comecei a namorar, 32 desde que casei, 30 desde que a Sofia nasceu, 21 desde que a Cristina nasceu. Memórias do passado feitas presente, lembro-me de ter ficado interiormente escandalizado com a idade que teria no ano 2000, com uma antecedência de 22 anos e com a sensação de que ainda faltava uma eternidade para essa data. Tudo passou. Estou no limiar da velhice, um ápice. 

Adio a morte todos os dias até me decidir morrer, um dia apercebo-me que já não existo e fico muito admirado com isso, eu, pequena gota de vida que passa despercebida no mar da mesma. Em breve (tudo é relativo) serei um folículo, uma folha seca sorvida por um bueiro numa tarde de chuva, uma partícula insignificante e anónima, um resto do que foi, uma promessa de nada. Insignificância, efemeridade, vivemos rodeados por uma redoma espelhada por dentro que nos limita a visão e confere-nos a falsa vaidade de quem toda a vida se vê ao espelho. ................................................................................................................................................... 

15/1

 Novo ano, novos planos, novas esperanças. Há 2 artigos que li e não me saem da cabeça: o primeiro diz respeito ao facto de que desperdiçamos quase todo o nosso tempo em coisas trabalhosas e demoradas que, ao fim e ao cabo, não oferecem nenhum retorno satisfatório enquanto, em contrapartida, menosprezamos pequenos actos, pequenas obras que, no seu conjunto, seriam mais úteis e proporcionariam maior satisfação, se concluídas. 

O segundo facto refere-se (e está intimamente ligado ao primeiro) ao nefasto costume de tomar como certo o dia de amanhã, a próxima hora, a crença de que, embora não sejamos eternos, não vamos morrer tão cedo que não possamos concretizar tudo o que temos em mente. A falsa crença de que só morreremos amanhã e que se repete no dia seguinte e nos subsequentes (quando ou se lá chegarmos). 

Não posso deixar de filosofar sobre a morte; aliás, este o meu tema recorrente, desde que comecei estas linhas, há cerca de 2 anos e 100 páginas atrás. Dou muita importância a essas elocubrações, não querendo dizer com isso que lhe tenho medo mas também não querendo dizer que não tenho. Sinto-me num limbo, num local ou estado de espirito onde não sei se temo ou não temo este tema (sic para mim). Para mim, o medo da morte só existe ou não quando eu e ela chegarmos a vias de facto. Dizer que temos medo é ou pode ser falacioso, assim como os actos de coragem ou cobardia. 

Já tive reacções corajosas (felizmente) que a mim próprio espantaram. Como poderei então ser juiz em tal sentimento? Nem eu nem ninguém. Defendi há muito tempo nestas linhas que o suicídio é um acto de coragem ou cobardia que eu condeno mas que não estou livre de praticar. Encarar a morte representa igualmente um acto de coragem ou cobardia que eu não posso assumir em consciência. Só o futuro, como soi dizer-se, o dirá. Até lá, vivamos o melhor que pudermos ou nos deixarem. Como diz Michel de Montaigne, o acto de nascer abre-nos a porta à vida e à morte (paráfrase). ................................................................................................................................................... 

26/1 Casa, 23 de fevereiro, 23h37 

Estou na cama, cheio de frio mas não com febre. Usando as velhas expressões populares dos meus tempos de criança, estou com uma gripe de caixão à cova e tosse até ver os padeiros. Há já muito tempo que não ouço isto, era o meu falecido pai quem dizia; expressões de outras épocas que hoje em dia não fazem muito sentido e estão práticamente esquecidas: chorar como uma perdida ou como uma Madalena, rir a bandeiras despregadas, dar às de Viladiogo, chamar o Gregório, comer as papas na cabeça e tantas outras que até esqueci. Já não se usam, já não se ouvem, passaram ao esquecimento. Os tempos são outros, as referências são outras, as mentalidades são outras, as expressões caem em desuso e são substituidas. Sim, não faria sentido ouvir expressões tipo T’arrenego, Satanás!, são arcaicas e completamente desajustadas da nossa época. 

Tenho uma certa pena da minha infância; não que fosse grande coisa, até não foi muito feliz mas quem vive uma infância não tem termo de comparação, nunca teve {pelo menos nesta encarnação (para quem acredita)} outra na sua vida. Portanto, tudo o que vem à rede é peixe, há-que viver o que se consegue obter. Exactamente nesse sentido, nessa cândida ignorância do que é uma infância, é que falo. Ter quem nos mime (comigo, muito raro), ter quem tome conta de nós, ter quem nos cuide na doença, ter cama, mesa e roupa lavada, ter descobertas, ter sustos, ter medos, ter desilusões e castigos, ter sofrimento e uma mão que nos trata, ter quem (veladamente) se preocupe conosco. Lembro-me de brincar sozinho, ter por companheiros e cobaias plantas e insectos, inventar guerras com pauzinhos, imaginar casas com pedras e ramos, lembro-me de me aprontar para sair com o meu pai, única hipotese de aventura exploratóoria para além do meu infantário-prisão. 

Lembro-me que uma saída da minha tia e da minha avó para irem ao médico (era sempre um oftalmologista) equivalia a uma viagem de sonho pela Europa, visitar paises mágicos e desconhecidos. Lembro-me de ter ido a lisboa há 47 anos, para um encontro com um advogado do Brasil e lembro-me do fato que vestia – em quadrados pequeninos pretos e brancos, gravata azul de elástico, cabelo risca ao lado. Lembro-me dos cheiros, da descoberta, da magia de tudo isso. Se me dessem a escolher voltar ao passado sem as memórias do futuro, acho que voltaria, voltaria a sentir as mesmas alegrias, as mesmas dores, as mesmas mágoas, voltaria a experimentar tudo de novo. E voltaria a tomar as mesmas decisões, os mesmos sucessos e as mesmas asneiras. E voltaria a estudar e a namorar e a casar e a escrever estas linhas aqui deitado na minha cama. E voltaria a morrer quando morrer e a ser esquecido quando fôr. Sim, acho que voltaria. 

5/2, 19h55, Frio....20h15, continua frio. 

Estou no rescaldo da minha gripe(?), é uma espécie de prazer fazer a convalescença. É um pouco estranho dizer isto mas na verdade, o fim de uma doença, bem vistas as coisas, transforma-se numa especie de gozo, uma satisfação por largar o estado de doença, uma satisfação por recuperar o bem estar físico, um positivismo que, ele próprio, permite recuperar a saúde mais rápidamente, numa espécie de círculo vicioso: Quem está doente afunda-se num estado proximo da depressão ou até mesmo depressivo, quem retorna à saude reveste-se de uma vitalidade benéfica que ajuda à cura. 

6ª, 6, 13h41 

Continua um frio polar, não sentia frio assim há muitos anos. Geralmente, quando analizamos um espaço e um tempo, dizemos que, se fôr a curto ou médio prazo, está tudo na mesma, as mesmas caras, as mesmas casas, as mesmas velhas situações. Se fôr a longo prazo, dizemos que está tudo mudado, irreconhecível, já não é ou está nada como antigamente. A curto/médio prazo, a nossa noção de mudança, de transformação, é falseada pela passagem do tempo, a nossa mente não se apercebe das mudanças porque elas são quase imperceptíveis. 

Porém, se nos dermos ao trabalho de analizar o que nos rodeia, dia a dia, frame a frame, apercebemo-nos dessas pequenas alterações: alguém que faleceu, o vizinho ou vizinha mudou de penteado, este comprou um cão, o do outro já morreu, há um carro novo na rua, a janela do 1° andar foi pintada, consertaram o passeio, a mercearia da esquina foi substituida por um cabeleireiro. Pequenas mudanças que no cômputo geral mal se notam mas que fazem a grande diferença. O ambiente que nos rodeia é como a nossa cara, o nosso corpo: vai mudando e só reparamos nisso quando paramos para pensar e observar-nos. A mutação é constante. 

10 de fevereiro, 13h27 

Por uma associação de ideias que agora não interessa explanar, veio-me à mente a questão do ensino, como era, como é e como foi praticado atravéz dos tempos. Lembro-me de ver gravuras sobre o ensino universitário na Idade Média, onde os estudantes eram “ensinados” a chicote, látego, cavalo-marinho ou outros eufemismos e outros processos mais ou menos “suaves” para a nossa mentalidade séculovintiúnica.

 Lembro-me da “menina dos 5 olhos” (vulgo palmatoria) do meu tempo e das bofetadas dos professores de antanho, embora comigo isso só tenha sucedido pontualmente. Feliz ou infelizmente apanhei já a transição do rigor do Estado Novo para o progressivo e pretensamente progressista sistema pós 25 de abril - início do fim da autoridade professoral, para mal dos nossos pecados. 

Que tenham havido abusos por parte de alguns professores, sem dúvida. Eram aqueles quem, por herança ou mesmo por prepotência, excediam os limites das suas competências: por herança devido ao sistema porventura ainda mais duro em que teriam sido educados, por prepotência devido à consciência do poder que tinham sobre os alunos e seus perceptores (pais ou outros). 

Sei que os tempos não são os mesmos mas de um modo geral o papel dos professores na formação das crianças e jovens foi e continuaria a ser (se deixassem) um marco fundamental da sua formação moral e cívica. O professor de há mais de 50 anos preocupava-se mais com os alunos e aos mais diversos niveis. Eram os educadores que eles não tinham em casa, os orientadores dos estudos, os conselheiros morais. Muitos jovens do que agora se chamam famílias desestruturadas foram salvos da miséria física e moral por força de mestres que os apoiaram, que substituiram os pais, que lhes incutiram valores, que puniram falhas. 

Que autoridade temos nós para denegrir esses professores do passado? Somos porventura melhores do que eles? Damos melhor educação aos nossos filhos ou permitimos que dêem se tal, por qualquer circunstância alheia ou por culpa nossa, não podemos assumir? Infelizmente a sociedade, de um modo cada vez mais generalizado, protege os seus rebentos em demasia, protege-os da “mania de autoridade” dos professores mas, internamente e de uma maneira de que ela própria não se apercebe, exibe um facilitismo, uma anarquia educacional enorme. A Lei e as mais modernas análises psicológicas transformaram e transformam a sociedade num eunuco moral cujos rebentos, por falta de poda, crescem indiscriminada e anárquicamente, gerando poucos ou nenhuns frutos sãos. ................................................................................................................................................. 

13h55, 23/02/15, já choveu, agora está sol. 

É curioso este meu hábito de iniciar um escrito com o tempo meteorológico, tornou-se recorrente há muito tempo. Digamos que é uma demarcação física, como uma crónica ou um conto, onde o narrador (re)cria um determinado ambiente para dar inicio ao seu relato. Penso que todos temos um pouco de poético, de teatral, criamos uma mise-en–scéne para cada momento, para cada relato, cada representação da nossa realidade. Não há laconismo na transmissão escrita do nosso pensamento, existe sempre um floreado, uma pincelada informativamente supérflua mas que confere ao texto o tempero emotivo próprio da maioria dos seres humanos. 

Não escrevemos por telegramas, comunicamos por metafóricas poesias, crónicas, contos. Há sempre um arabesco, uma flor inserida na nossa comunicação, seja ela a mais simples, como um trevo, mais pormenorizada como uma gipsofila, mais rica como uma rosa, mais estilizada como uma estrelícia ou mais refinada como uma orquiídia. E tal como as flores, inserimos nos nossos escritos emoções. Desde o branco puro, inocente, virginal, até ao negro mais profundo, passando por todas as cores e nuances do arco-íris. 

Somos assim, transpiramos emoção por todos os poros, faz parte da natureza humana. Transportamos, transportámos para o papel (papiro, pedra, madeira) há já milhares de anos as emoções que os outros animais transmitem pela expressão corporal. O papel é o teatro onde representamos a vida, mais ou menos convincentemente, tudo depende do actor. 

19h20, 25/02/15 

Todos apressados no regresso a casa, o ultimo stress para destressar. Em vez de calma e paciencia há pressa e irritabilidade. É errado mas perfeitamente normal, até eu caio nessa asneira, todos caímos. Julgo que quanto mais avançada, mais industrializada uma civilização maior é a carga de urgência e de impaciência no regresso a casa. Não estou a ver na Idade Média, na Renascença ou mesmo no industrializado século XIX a carga de tensão que se verifica hoje e cada vez mais. 

Veio-me à ideia a apresentação dos desenhos animados The Simpson e julgo que é o que mais se aproxima ( e de um modo assaz inteligente) a essa corrida pelo descanso, suposto descanso. Tudo para quê? Para nos colocarmos defronte de uma televisão ou similar ou a dormir. Não será porventura o processo mais relaxante de terminar um dia, acaba por ser frustrante quando nos apercebemos da inutilidade consentida. Já não sabemos recuperar forças de uma maneira criativa, estamos tão mal habituados que nada mais nos ocorre para fazer. Leitura, passeios à noite, um joguito de cartas, uma conversa amena em família ou com amigos, tudo isso desapareceu, faz parte de um saudoso passado que, por nossa falta de vontade, torna-se impossível fazer reviver. E porquê? Porque dá muito trabalho e porque já nos desabituámos por completo desses salutares hábitos de convívio.

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16/3 

Acho interessante a moda, feita de reinvenções, de arcaicas ideias inovadoras, de irreverências gastas. Tudo ou quase tudo o que a moda dita já foi usado, reusado, triusado, agora, ontem, há 10 anos, há 10 séculos. 

Veio-me isto à ideia ao ver uma jovem atravessar a rua com uns sapatões tipo escafandrista: solas de meio metro de espessura que em caso de tropeção (quiçá provocado por vertigens) causarão sérias lesões devido à queda de tão grande altura. Pois é, a moda é assim, aproveita-se dos fracos recursos da memória do género humano para revender modelos velhos por novos: Sandálias romanas, botins da Idade Média, chapéus dos anos 20 , túnicas, saias, blusas, tudo. À ausencia de ideias novas no vestuário, usam-se ideias novas(?) na pele, sob a forma de tatuagens. Grande asneira! Essa moda é permanente, não se pode despir! Nada mais romântico, por exemplo, que casar com alguém que tem o nome do(a) ex-namorado(a) tatuado num braço ou qualquer outra parte do corpo, ou desenhar suásticas ou tatuar a cara(não é baton, nem pó de arroz ou rimmel!). Acredito que tem que existir abertura para esse tipo de expressões pessoais mas não estou ainda a prever aceitação a curto/médio prazo para um padre com tatuagens maoris na cara ou um primeiro-ministro com uma caveira desenhada no pescoço. Aliás julgo (minha opinião apenas) que essas expressões artísticas, muitas delas de grande qualidade, aplicam-se mais num contexto tribal do qual seria suposto já nos termos libertado para relações sociais algo superiores, do que numa sociedade teóricamente evoluida, como a nossa. 

Infelizmente parece que estamos a regredir. Os ídolos da sociedade, aqueles que ela copia, são jogadores de futebol ou artistas de cinema, por vezes até delinquentes. Há uma crise de valores na sociedade atual. Tampouco será de admirar, não existem modelos que valham a pena copiar. 

O tempo dos grandes homens terminou. Bem, eles existem mas são cada vez mais raros ou escondem-se para não serem perseguidos. Nunca foi tão verdade a citação bíblica: “bem aventurados os pobres de espírito porque deles será o reino dos céus”.

 Evidentemente, o sentido foi adulterado e o reino dos céus confundido com o reino da terra o os pobres de espirito (os humildes) confundidos com os idiotas, mas quando toca a deturpar – toca a deturpar, o que interessa é o resultado final. ................................................................................................................................................ 

5 de abril, 5h45, 2 horas para o fim do meu turno.

 Estas 9 horas de permanência aqui provocam-me sentimentos controversos: por um lado, e agora que estou só comigo mesmo, a sensação de que a minha mente é um quarto muito desarrumado onde custa entrar devido ao amontoado de coisas em que tropeço mal se abre a Porta; a desarrumação é tal que as 1001 ninharias com que deparo a meus pés e nas quais tropeço não me deixam abarcar, ter um vislumbre nítido da dimensão do quarto e do seu conteúdo. 

Por outro lado sinto-me também como se entrasse num compartimento cheio de tesouros, peças de valor inestimável que não compreendo ou não sei usar, o que me d á à uma sensação desagradável de impotência e desperdício. Por outro lado ainda, sinto-me perdido como uma criança rodeada de brinquedos e que não se consegue decidir qual pegar. É frustrante ver estas preciosas horas escoarem-se como se todo o tempo do mundo fosse insuficiente para por em prática seja o que for. 

Sei que o que estou a escrever é uma visão negativista da minha vida e das novas oportunidades que tenho pela frente mas é a minha visão do momento, uma nostalgia de um tempo feliz que nunca tive e gostaria de ter tido. Deixaria de ser nostalgia e passaria a ser feliz recordação. 

Não viverei o suficiente para ter um passado feliz, o tempo mata-me os sonhos. Em parte é culpa minha por não ter o quarto arrumado, talvez porque nunca tenha aprendido a arrumá-lo, talvez porque nunca tenha podido arrumá-lo. A que(m) devo isso? Aos meus educadores, aos meus pais, aos meus genes, ao meu signo, às circunstâncias e lugares em que fui criado, às oportunidades que tive ou perdi, ao meu sexo, ao karma, a Deus ou simplesmente a mim? Como sempre nesta vida, faça-se a pergunta a 30 “especialistas” e obter-se-ão 30 respostas diferentes, sejam do ramo científico, religioso, psicológico ou outros. 

Facto incontestável: tenho que viver com o que sou e a mim e só a mim cabe alterar-me, se possível. Enfim, o tempo está a passar, em breve vou sair, mais uma noite de solilóquio que sinto vazia de conteúdo. 

Mas será? Uma vez li que não existem maus livros porque mesmo nesses que julgamos negativamente há sempre algo de aproveitável. Assim sendo, a minha noite ensinou-me algo, por pequeno que seja e que eu não me tenha apercebido.

 Dia seguinte ao dia anterior, 3h27. 

Sinto-me muito cansado, talvez devido aos incontornáveis excessos típicos das épocas festivas. Está na hora de repensar (+ uma vez) o estilo de vida e torná-lo saudável (grande anedota, de boas intenções está o inferno cheio). 

What really pisses me off, como dizem os americanos, é não saber o que estou a retirar desta vida, as lições e que proveitos advém da minha efémera passagem pela história da Humanidade. Sei que a longo prazo, pelo efeito borboleta, serei de extrema importância para o bem e/ou para o mal, mas agora qual é o sumo que poderei retirar do fruto da árvore da vida? Voltamos ao velho problema existencial: o que faço aqui? Qual a pegada que deixarei no trilho da Humanidade, devo ter orgulho na minha participação? Ou tudo não passa de uma vida vazia de significado? Quando assim pensamos evocamos inexorávelmente a nossa morte, o nosso desaparecimento da superfície da Terra para cairmos sem apelo nem agravo no oblívio total. Breve seremos tão lembrados como os primeiros homens a pisar o nosso planeta, fossem eles produtos da evolução darwiniana ou extraterrestres. O que sobra? Nada! Então o que viemos cá fazer? Passear? Sofrer? Vegetar? 

Certo é que o ser humano tem a satisfação de deixar a sua semente. Nos também já fomos semente, já deixámos semente que deixará semente, que deixará semente, que deixará semente... Para quê?? Convenhamos que, sem uma explicação mínimamente válida, não passa de uma tarefa um tanto ou quanto aborrecida. E a vida, o que é a vida? Uma simbiose em que todos os seres vivos têem o seu papel, seja passivo ou ativo, predador ou presa, alimentador ou alimentado, tudo faz parte da mesma cadeia. Mais uma vez: para quê? Evolução? Activos ou passivos, predadores ou presas, alimentadores ou alimentados mais evoluidos? E depois? Será uma evolução autofágica em que no fim restará apenas um ser, produto de um numero N elevado a N de refinamentos, afinações, assimilações, extermínios e criações? E esse ser ultimo, a existir, será quê, Deus? Todo esse trabalho para ser Deus? E parou a evolução? E voltamos ao princípio porque Deus não evolui mais, é o topo da evolução e é chato ficar assim para todo o sempre e fica-se um deus deprimido que nem se pode suicidar porque é imortal. E então volta-se a sofrer, a amar, a dar semente, um círculo vicioso eterno onde depois do objectivo supremo volta-se a fazer tudo de novo ad eternum. Sem mais palavras.

 8 de abril, 2h50

 No silencio que me envolve há a inspiração dos grandes momentos. O acto criativo é um acto silencioso, assim como solitário. Silencioso, porque precisa de concentração, solitário porque criar é algo individual. Não existe criação colectiva, no máximo um conjunto de pequenas criações ou mesmo micro-criações que se aglutinam para formar uma criação maior, mais visível. Isto de criação não é democracia, não é colectivismo, não é partilha, é um acto individualista. Não é egótico porque transcende a moral, transcende a própria individualidade, se a considerarmos para além de uma mera actividade subjugada aos ditames das emoções humanas. É o que de mais puro podemos extraír de nós, assim como um óvulo ou um espermatozóide são o que de mais parecido conosco podemos produzir. Mais além, entram outros contributos, acabou a individualidade. 

Sei que por vezes escrevo coisas estranhas, coisas que temo só eu poder decifrar, quase esquizofrénicas mas por vezes essa semi-loucura é a unica possibilidade de expressar o que nos vem na alma, o que a mente tem para dizer ao mundo. São os tais gritos silenciosos de que há muitas folhas atrás falei, os gritos libertadores do Ego, aqueles que, mesmo que ninguém os ouça, mesmo que ninguém os leia, cumpriram a sua missão destressante e libertadora. 


Leio e releio os meus pensamentos e tento acreditar que não estou louco. 

Meus dedos transmitem à tinta com que escrevo emoções irreprodutíveis

E na alvura do papel surgem incoerências e verdades perdidas.

Ouso pensar. 

Escrevo palavras que custam mas não doem,

Retiradas a ferros, tímidas que fogem da luz e que busco no mais íntimo de mim.

São fósseis vivos que nunca viveram fora do seu casulo

E vêem agora inexorávelmente morrer na areia da praia

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O tempo passa devagar.

Não se vê, não se sente mas,

Gota a gota,

Insinua-se na vida e encharca-a de velhice.


5h20, sábado, 12 de abril, Matosinhos

 Ponho-me a observar os meus “guardados”, a tentar perceber o seu estilo de vida, a sua índole, enfim, tudo o que me permita entender onde eles estão na vida, onde eu estou. Tudo numa perspectiva tendente a analizar onde falhei. Mas será que falhei? A sociedade necessita de todos, tanto de médicos, economistas ou engenheiros como de lavradores, empregados comerciais ou serventes. 

Provávelmente estarei a reclamar à vida um papel que não me pertence, se calhar fui fadado para ser simplesmente quem sou e nada mais, por karma ou destino ou o que se quiser chamar. Julgo que é salutar querer-se ser mais do que o que se é, ter a ambição de ser algo mais. Porém há uma linha muito ténue entre a ambição e a inveja, entre a ambição e a frustração e é disso que eu tenho medo. 

Onde acaba uma e começam as outras? Onde acaba o querer ardentemente ser algo mais e começa a cobiça do que não nos pertence ou a mortificação mórbida de não conseguirmos singrar na vida? Sensações potencialmente perigosas e destrutivas! 

Neste momento e com a honestidade possível de um ser humano que tenta ser isento nas suas auto-avaliações mas que, como humano que é, torna-se indulgente consigo próprio, penso que tenho, não o que mereço mas o que fiz por merecer. Digamos que perdi oportunidades toda a minha vida por burrice ou simples e ingénua ignorância (pois considero-me bastante ingénuo). Poderei também em consciência e não como uma desculpa, apontar o dedo à minha educação. Apesar de ter vivido a minha infância num ambiente propicio à cultura, não fui necessáriamente cultivado, fui educado um pouco com a maré. O meu pai, meu ídolo de infância (quem não idolatra os pais, até filhos de assassinos ou ladrões!) acabou por desiludir-me de um modo que marcou-me profundamente e por toda a vida. Apesar de – honra lhe seja feita – dotar-me com uma instrução mais ou menos sólida e noções de honestidade bem fortes, falhou na construção do carácter. Essa falha, aliada à clausura forçada de uma criança educada em casa, sem amigos, sem convivência com outros da mesma idade, redundou em insegurança, timidez, impreparação geral para a vida, para a sociedade. Como resultado: uma vida sem apegos fortes , sem decisões suficientemente bem ponderadas, sem sucesso. 

A falha é minha também, só não sei até que ponto. Parece haver uma predisposição nas pessoas para o sucesso ou o fracasso. Mozart não era filho de uma prostituta e de um bêbado? No entanto há pessoas de sucesso com descendentes totalmente apagados ou mesmo degenerados. No meio disto tudo tento remar contra a maré. Pode não dar resultado mas pelo menos cria muscúlo. 

Dia seguinte, 1h07 

Que sentido dar à vida, à nossa passagem aqui pela terra? Nunca nos debruçamos sobre isto com olhos de ver, limitamo-nos a contemplar esta incógnita com uma fugaz passagem mental sem aprofundamento, sem o aprofundamento que merece. Estar na vida é como estar num emprego: ou empenhamo-nos a sério naquilo que fazemos ou andamos cá para ver passar os comboios. Que feedback temos da nossa permanência aqui? Claro que podemos pegar no item das mais variadas maneiras mas, condensando, o que extraímos de tudo isto? 

As minhas abordagens sobre o conceito que tenho de mim e do que me rodeia e do meu papel no universo têem sido muito dispares, muito focadas nos pequenos pormenores desta curta viagem. Não tenho ainda (se calhar nunca terei) uma visão global do que represento e do que o que me é externo representa para mim. Sinto-me uma letra, uma simples letra do Grande Livro da Vida e, fazendo parte dele, não consigo ter perspectiva para abarcar o seu mínimo significado. Não sei que palavra constituo, a que frase, que parágrafo, que capítulo pertenço e qual a sua interpretação. Para mim, os sábios da Terra são aqueles que conhecem apenas a palavra da qual fazem parte, nada mais. Numa doutrina panteísta poder-se-ia dizer que os espíritos da terra conhecem as frases, os Lares os parágrafos, os deuses os capítulos e o seu comandante – Júpiter, O Criador, O Ser supremo, Jeová, Alah ou Deus – conhece todo o livro. 

Será assim tão complexamente simples? Ou estamos todos, toda a Humanidade, com as suas mais sóbrias ou mais mirabolantes teorias, errada? O mais frustrante de tudo isto é que existem mil e uma razões, mil e uma soluções e não sabemos em qual acreditar. 

Devemos sempre ter uma crença, é a nossa âncora no mundo. Mesmo que esteja errada, o que não sabemos, ela serve de guia, de livro de instruções. Sem ela, vivemos de modo empírico e isso dói. Infelizmente não tenho crenças muito sólidas, vivo mais nesta última opção, a que faz doer. Dói por estar vivo, porque experimentamos a vida sem ponto de partida, sem base de sustentação, aprendemos da maneira mais difícil. E, no fim, a dúvida: terá valido a pena ou teria sido preferível adoptar um dos multiplos status quo da imensidade disponível? Por vezes apetece não estar vivo! 

3h30, sábado, 18 de abril 

Como há dias disse, a noite é rica. Não em conteúdo mas na falta dele e aí está a sua riqueza, é uma tabula rasa onde podemos escrever a nosso bel-prazer, onde podemos gravar a letras de ouro o nosso legado literário, as nossas ideias mais brilhantes, as nossas resoluções mais significativas. 

Noite e solidão. Menciono solidão como a propriedade de estar sózinho, não como o sentimento com o mesmo nome, há uma grande diferença. A primeira é necessária de quando em vez para que se possa fazer uma introspecção, meditar, criar, encontrar soluções ou simplesmente desenjoar da sociedade; a segunda é mais negativa, implica emoções, implica a sensação real ou imaginária de se encontrar só no mundo, sem almas gémeas ou simplesmente aparentadas, sem quem nos compreenda ou apoie. É um sentimento muito perigoso pois pode conduzir à depressão e, no limite, à morte . Os pensamentos são como as conversas corriqueiras que temos todos os dias: começamos a cumprimentar alguém, agarramos o preço dos transportes, transportamo-nos para o da electricidade, chocamo-nos com o da água, nadamos num mar de críticas ao governo, ditamos leis sobre o que se deveria fazer à greve dos pilotos, voamos para uma das nossas últimas viagens de férias, daí falamos do tempo que faz, que fez ou que irá fazer, mencionamos a necessidade de fazer obras no telhado porque chove lá em casa, perguntamos bisbilhoteiramente pelo marido (ou mulher) e pelas crianças, se as houver e acabamos ao fim de um período de tempo variável que pode ir desde minutos a horas, alegando que é preciso fazer o jantar ou que temos de ir trabalhar ou que a mercearia está a atingir a hora de encerramento ou um qualquer compromisso de que nos lembrámos de repente para acabar com a conversa que dura há demasiado tempo e de que já estamos fartos ou porque o interlocutor é “cola” e temos que safar-nos airosamente sem darmos a entender que estamos a despachá-lo.

 O pensamento é um rio cujas águas renovam-se contínuamente numa sucessão não repetitiva, tudo isto para dizer que divaguei em relação ao tema proposto inicialmente. Não me importo de divagar, prefiro deixar fluir o pensamento e escrever o que me vem à cabeça, ao estilo de Jack Kerouac. Não que me possa comparar com ele, nem de longe, embora com muita pena, no sentido em que ele conseguiu escrever um livro trabalhando ininterrúptamente até o finalizar. Mesmo que eu não escrevesse ininterrúptamente, mesmo que demorasse semanas ou meses ou anos a escrever algo; gostaria de ter a mesma capacidade criativa ou similar deste escritor. 

Contudo, infinitamente inferior, liberto-me dos meus arquivos temporários reciclando-os no papel. Acho que é mesmo essa a função da escrita: reciclar, sublimar, catalizar, transformar o pensamento em palavra, a emoção em mensagem, a dor em alívio, o caos em ordem. 

Escrever é como pintar, é como esculpir, é mais do que isso. Enquanto as duas últimas acções expõem o pensamento de quem as utiliza, a primeira expõe e explica, fornece-nos o livro de instruções para a sua interpretação.

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3h00, 21 de abril 

Estou cheio de sono, sinto a falta da minha querida cama que imagino estar a esta hora chorosa, a chamar por mim. À semelhança de Ricardo III, apetece-me dizer: uma cama, o meu reino por uma cama! 

Como se faz um escritor? Donde lhe vem a capacidade criativa, a imaginação para escrever histórias ficcionais mas cheias de lógica, sequência, tudo o que permite que uma história, um romance, seja coeso, credível? Isso aprende-se ou é inato? 

Sempre quiz escrever, criar uma qualquer obra literária, uma dinastia livresca de que me pudesse orgulhar. Não faço ideia se os meus esforços serão coroados de exito ou se não passarei nunca de um medíocre escrevinhador cujos únicos louros serão eventualmente algumas frases felizes. 


Toda a minha vida sonhei ser escritor, 

Dar a minha alma ao papel

Pedindo em troca apenas a satisfação de um reconhecimento,

O orgulho de um pai por um bom filho. 


Esforço-me por escrever e, nos breves momentos de lazer, exercito no papel o esforço de quem não quer abandonar esta vida sem um legado palpável, bem ao inverso do que até aqui tem sucedido. Dou por mim a pensar muito subliminarmente que afinal estou-me a enganar, nada deixarei de valor, tudo não passa de mera presunção de quem, à força de desejar, vê obra onde ela não existe. 

Onde pára a realidade e começa a ficção ou onde pára a ficção e começa a realidade? Fracasso ou legado? Continuo a escrever na esperança de que o tempo e a experiência aprimorem, enriqueçam, envolvam os meus pensamentos num manto daquela originalidade coerente que constitui os sonhos feitos papel. 

Reparo que continuo a pensar de um modo existencialista que não é mais do que uma espécie de pessimismo lógico, uma depressão sem depressão, uma realidade não cozinhada, crua. .

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25/5 2h00, o vento amainou, a chuva desapareceu, o céu está estrelado.

 Estou a pensar como transpôr para o papel as minhas vivências, os meus pensamentos, tudo aquilo que gostaria de escrever, de descrever. É difícil, só com muito treino ou uma aptidão inata; a escolha dos símbolos, transformados em palavras e frases, é muito penosa, exige um esforço muito grande para ser inteligível e ainda maior para ser literáriamente harmoniosa e coerente. 

Curiosa esta ideia de harmonia e coerência e como ela varia de acordo com as épocas. Senão, vejamos: Camões, aquele que é considerado o expoente máximo da literatura portuguesa, é para mim completamente maçudo, anacrónico. Exceptuando algumas rimas muito boas, tudo o resto está totalmente ultrapassado, não se edapta mínimamente aos nossos gostos alterados, refinados, transformados, evoluídos. O que foi bom no seu tempo não significa necessáriamente que seja bom agora. No tempo de Camões só tinha valor quem imitasse Petrarca e a capacidade do autor em, imitando, inovar, é que conferia os louros literários e o apreço dos seus conterrâneos e seus pares.

 Os tempos mudaram, hoje em dia copiar é plágio e punido por lei. O grande Camões hoje seria um escroque, um impostor. Não tiro o valor ao poeta mas acho que já seria altura de mudar de campeão e pôr de parte a hipocrisia de continuar a considerá-lo o melhor. Já foi. Agora há ou houve outros que o suplantaram e dentre esses deveria ser escolhido o novo paladino da literatura nacional. Sei bem que é complicado, polémico fazer essa substituição mas os símbolos têem que cumprir a missão para que foram destinados. 

Quando o símbolo deixa de fazer sentido, quando a mensagem começa a desvanecer-se, tem que ser substituido. Não será uma simbologia flutuante, que muda com a maré, mas antes um marco que, por erodido na memória colectiva de um povo, tem necessáriamente de ser renovado, substituido. Camões foi detestado por gerações de estudantes, forçados a estudá-lo, a tentar compreender formas de expressão e pensamento medievais que nada lhes diziam.

 Eu fui um desses. Embora ainda aprecie parcialmente Camões, outros haverá que nem podem ouvir falar dele. Como pode então o poeta simbolizar a alma portuguesa? Será masoquismo. Seria de pensar submeter esta proposta a votação. Não uma votação popular, seria um disparate, haveria muitos que em vez de votar em Saramago ou Pessoa votariam em Margarida Rebelo Pinto ou na revista Maria. Aqui não há, não pode haver democracia. A democracia é a pomadinha com que se besuntam os olhos ao povo: enquanto se besunta, este mantém-nos fechados. 

Não, tal votação só será possivel, só fará sentido se for feita por um colégio de eruditos, pessoas cuja idoneidade e reconhecimento universal seja perfeitamente aceitável, uma elite. Não me considero, totalitarista, fascista ou retrógado, apenas vejo as coisas com olhos de ver. O povo, esse acredita que é ele quem manda. Por detrás dele há, tem sempre que haver elites que possam escolher, tutores dessa massa amorfa, heterogénea que, globalmente, não sabe o que quer nem para onde ou como ir. 

Com isto não quero dizer que as escolhas dos caminhos sejam as melhores, a maior parte das vezes são medíocres ou manifestamente más. Isso só significa que a elite dominante necessita de ser purificada, refinada. Para mal de todos, os partidos estão acima das capacidades, os cargos são políiticos e não por mérito. Enquanto tal estado de coisas existir, não sairemos da cepa torta.

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3h38, 28/05/15 

Retomo as minhas escritas para não (re)perder o hábito. O ler a obra D. João II, de Elaine Sanceau pensei nesses homens de há 500 anos, desde o rei Afonso V até ao mais simples marinheiro ou camponês. Imaginei a sua vida e a sua morte e questionei-me sobre o legado de cada um deles. Todos deram o seu contributo ao futuro, uns mais outros menos. 

Possívelmente, por vias e travessas, um qualquer campónio tenha contribuido mais para o mundo tal como o conhecemos do que o próprio rei. Na importância para o desenvolvimento ou não desenvolvimento do mundo não conta o extracto social ou o destaque social de quem existe ou existiu, conta o legado voluntário ou involuntário que, ou por força das circunstâncias, por mero acaso ou por vontade próopria, sobrevive num dado futuro. 

Aqui, tem particular importância o efeito borboleta, onde um simples cão, um rato ou um insecto poderão ter mais relevo do que um rei no desenrolar dos acontecimentos. Seguindo esta linha de pensamento, um mosquito ou uma abelha, por terem picado ou importunado alguém há centenas ou milhares de anos, poderá ter provocado uma reacção de dor ou defesa que, embora pequena, condicionou um determinado movimento ou determinada acção que por sua vez desencadeou outras dezenas, milhares ou milhões de pequenas ou grandes reacções que hoje em dia estão-nos a influenciar e continuarão a influenciar a humanidade e o próprio universo até ,ao seu fim, se existir. Assim sendo, somos todos consequência de ínfimas acções de um passado longínquo e suas consequências temporais e físicas, assim como somos responsáveis por tudo o que sucederá no futuro mais longínquo, numa escala tanto maior quanto maior for o nosso distanciamento temporal. Somos portanto o produto de circunstâncias fortuitas que escaparam ao controle dos seus autores. 

Contudo e como acredito que o Universo é fruto de um plano programado e controlado – senão descambaria num caos total e eventual destruição - essas tais circunstâncias fortuitas são de algum modo controladas, programadas para que as suas consequências não extravazem os parâmetros de uma (des)ordem estabelecida. Chega-se assim à conclusão de que, embora sejamos donos e senhores do nosso futuro, embora o possamos programar dentro dos limites do possível, também não somos perdidos nem achados na sua concretização pois ela depende dos nossos actos e dos actos mais ou menos involuntários e mais ou menos conscientes de gerações e gerações de antepassados, de animais, insectos, plantas ou mesmo minerais. Em suma e aproveitando o exemplo da democracia que expuz há dias, iludimo-nos com a ideia de que somos e seremos o que quisermos de acordo com os nossos actos quando somos afinal o produto de um desenvolvimento sobre o qual apenas temos um poder muito residual. 

4h00, dia seguinte 

As minhas abordagens ao universo metafísico podem por vezes parecer pueris ou incoerentes mas representam para mim algo de muito importante. Nelas extravazo as minhas dúvidas existenciais, as frustrações e anseios de quem não sabe de onde vem nem para onde vai e qual o seu papel no plano, se existirem um ou outro. Não sou pessoa que se limite a viver só porque respira, tenho que procurar uma razão lógica para isso. Se tal atitude é existencialismo, então sê-lo-ei toda a vida e serei também um pouco infeliz toda a vida porque procurarei sempre algo inatingível, a razão última da existência. 

Penso muito na morte. Quer dizer, não passo a vida nisso mas sempre que converso comigo esse tema vem à baila. Imagino que dentro de 20, o máximo 30 anos estarei morto e isso assusta-me um pouco. Não que tenha medo de morrer, tenho é medo do desconhecido, tenho medo que todas as incontáveis teorias sobre a continuidade da vida estejam erradas e eu deixe de existir. Seria a frustração máxima. É evidente que se tal suceder não ficarei contente nem triste porque o que desaparece definitivamente, o que não deixa nenhuma presença também não sente, não tem consciência da não existência. Não, a frustração está aqui, enquanto for vivo. A frustração é a consciência da possibilidade de frustração e essa assusta-me constantemente. A maior percentagem do sofrimento é a antevisão do proprio sofrimento. A morte em si, independentemente da sua causa, não dói; o que dói é saber que vamos morrer.

 Evidentemente que há outros factores pelos quais não desejamos desaparecer da face da Terra: o apego material ou espiritual, a família, os amigos, os projectos incompletos ou o sucesso que se deixa para trás. Sim, há quem morra com desapego total mas para isso é preciso ter uma fé qualquer numa after life, uma existência para além da vida. Esses morrem felizes, acreditam que vão para um mundo melhor. 


Nascer é morrer

E essa certeza ensombra toda a nossa curta existência.

Todos os dias olhamos por cima do ombro com medo que a morte nos persiga

Mas ela, misericordiosa, esconde-se para que não a pressintamos.

E um dia... 

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7/6

 Estou agora rodeado de um silêncio quase opressivo, parece que o mundo parou ou que fiquei surdo. Só quando passa um carro na Circunvalação ou quando ouço o restolhar da mão e da caneta sobre o papel é que me apercebo que o mundo continua a existir e que não estou surdo. 

Noutras ocasiões este silêncio seria bem vindo, uma espécie de pacificador, de relaxante do espírito mas neste momento é apenas um prolongador do trabalho, um intensificador do tempo que falta para sair, a pequena tortura das horas com 120 minutos ou mais. O sono, esse alia-se ao tempo e inferniza-me a vigília a que estou obrigado por contrato. Vendo o meu sono, vendo o meu descanso por uma quantia irrisória, sacrifico a homeostasia por 30 reles dinheiros. 

Mundo de merda onde os aproveitadores sem ou com poucos escrúpulos encarnam os modernos alquimistas que transformam o suor e o sono em ouro. Vendemo-nos para sobreviver, prostituimos os nossos princípios, os principios básicos mínimamente decentes do ser humano para, em dependência voluntária de alguém não dependermos involuntáriamente de ninguém. 

Dou por mim de olhos fechados, os sentidos perdidos, ausentes em casa de Morfeu, embalado por coisa nenhuma. Morfeu, esse deus que dá para os dois lados, pedófilo, gerontófilo e zoófilo. Toda a gente cai nos seus braços indiscriminadamente e ele acolhe-os e embala-os com igual desvelo, com igual indiferença, com interesse e desinteresse, apenas pelo prazer de embalar. Felizmente tenho um despertador natural programado com roncos ou outros ruidos igualmente melodiosos que proporcionam-me um acordar rápido antes de os níveis de “mais para lá do que para cá” atinjam valores preocupantes. 

2ª , 8 de junho, 20h45 

Quase 12 horas de “pastação” à minha espera. Mas serão mesmo 12 horas? Quem me garante que não estarei morto no próximo minuto, no próximo segundo, no decorrer de qualquer momento do meu turno? A incerteza do futuro... 

Congratulo-me por ter conseguido (sobre)viver quase 58 anos, muitos outros ficaram pelo caminho. Nós, cada um dos sobreviventes, somos milagres, dádivas dos deuses ou da natureza ou como queiramos chamar. Menosprezamos o facto de estarmos vivos como uma coisa natural, como algo que nos é devido, como a imposição da nossa individualidade, da nossa condição de seres especiais, fora do resto dos nossos congéneres humanos. Esses, a nosso ver, vivem e morrem de acordo com outras leis, outros parâmetros. Nós não, somos únicos e não morremos assim como quem bebe água, somos diferentes e a nossa passagem para o além não é para já, perde-se na bruma do futuro, lá muito ao fundo, tão longe que nem sequer nos damos ao trabalho de pensar nela, a não ser numa perspectiva filosófica. E, quando nos damos conta (regra geral não damos), estamos mortos e enterrados ou incinerados ou desaparecidos. 

Curioso o facto de que pensamos em nós como aquela massa informe de vísceras, ossos e músculos, líiquidos e matérias de aspecto e cheiro duvidosos que, a não existir o invólucro exterior, o papel de embrulho + ou – bonito, seria bastante desagradável de ver e considerar como sendo a nossa pessoa. Correcção: nós não nos pensamos assim, , pensamos apenas no papel de embrulho e assumimo-lo como a nossa identidade.

 Pois é, aquela avaria funcional irreversível do corpo que demonizámos atravéz das eras, a figura negra, alta, esfarrapada, de feições caveirais semi-escondidas por um capuz sombrio e brandindo uma enorme foice, a que chamamos morte, produto estereotipado e estilizado do século do romantismo (julgo), não passa de um acidente de percurso inevitável e imprevisível, tal como uma avaria num carro ou um furo num pneu o é.

 Desdemonizar a morte (não tem a ver com Desdémona mas com o retirar da demonização) é difícil. Desde crianças que convivemos com ela mas também com os conceitos, símbolos, convicções, medos e mitos legados pelos nossos antepassados e inscritos nos nossos genes, na nossa memória colectiva. Por mais que nos desmarquemos desse legado, dessa herança, ela está lá, lá no fundo a condicionar-nos subliminarmente. Felizmente, e geralmente para aqueles que já viveram muito, a experiência, o contacto com ela vulgariza-a, retira-lhe a capa espectral e sinistra que a envolve, humaniza-a, desmistifica-a, sociabiliza-a. Para esses a morte é como o fim de umas férias demasiado longas, tão longas que tornam-se maçadoras, aborrecidas e cujo fim é aguardado com ansiedade e alegria, por vezes com alívio. Complicado é quando somos mais novos e queremos continuar a ter férias. ... 

5h12. Ah! Porque é que Deus fez as horas de trabalho maiores que as de lazer? 

3h55, 9 de junho. 

Iniciei estas linhas sem projecto definido, sem saber o que ou de que vou escrever. Talvez desista ao fim de 2 ou 3 linhas. Talvez não. Gostaria de ser como um Jack Kerouac, escrever ao sabor das ideias, deixá-las fluir e compôr o texto. Mas não tenho muitas ilusões, o Kerouac, Pessoa, Camões, London ou Verne, Salgari ou Auster, a existirem, estarão soterrados por baixo de camadas de neurónios do meu cérebro. Não é impossível mas é muito improvável que consigam libertar-se e dizerem de sua justiça, continuarei a ser um escritor potencial mas sem potencial. Infelizmente. Para mim e para o mundo. Escrevinho, limito-me a assentar pequenos e esparsos flocos do meu pensamento, do meu cérebro, da minha alma. Pequenos folículos de caspa mental que talvez alguém um dia leia e, quem sabe, dê algum valor (continuo a duvidar). 

Sempre tive vontade de escrever as minhas memórias, não estes bocaditos, destroços do dia a dia mas memórias a sério, daquelas em que nos despimos totalmente sem rebuço, sem medo de chocar. Mas essas ficarão por escrever, são demasiado íntimas, são pornográficamente nuas e cruas demais para expôr, mesmo a mim próprio pois podem-se revelar demasiado reais e descubram o que não quero descobrir, revelem o que não quero revelar, aquela minha faceta que envergonhadamente escondo, que cobardemente tapo dos meus próprios olhares. Nascemos hipócritas, mentimos a nós proprios por piedade ou por medo, quebramos todos os nossos espelhos para podermos olhar só os outros e descobrir neles o nosso próprio íntimo, criticar neles a nossa própria imperfeição, apedrejar com ódio o que odiamos em nós. 

11 de junho, 0h25 

 Mais um solilóquio, um diálogo mudo com as solas dos meus sapatos (nesta altura convém pôr um “ah ah ah” para que os espíritos mais distraídos se apercebam que se trata de uma piada). Mais um silêncio sepulcral apenas cortado pelos meus ruídos mastigatórios (uma sande – ou sandes, como há quem diga), pode não ser música para os meus ouvidos mas é pelo menos um consolo para o meu estômago. Estou a ler “Rienzi, o último dos tribunos”, de Bulwer Lytton, um romance baseado em factos históricos, muito à moda de Sir Walter Scott mas que a mim lembram um pouco Ponson du Terrail pelo seu estilo. Contudo, embora de fácil leitura, já não me seduz muito. Nos meus tempos de infância e juventude adorava histórias do género, fui apaixonado por Rocambole, de Ponson du Terrail mas, embora não lhe tenha posto os olhos em cima há dezenas de anos, estou em crer que é um género de literatura que ultrapassei, parti para outros voos. 

Sim, porque nisto de leitura o cérebro, o intelecto também tem as suas modas, a sua evolução natural. À medida que se envelhece, embora o padrão, a matriz se mantenha, as exigências intelectuais modificam-se, refinam-se, especializam-se. É uma eterna apredizagem por etapas. Caio de novo em mim e reapercebo-me do silêncio. Não é um silêncio silencioso, há ,nele pequenos ruídos imperceptíveis que impedem que ele se torne insuportável. Quanto mais não seja aquele zumbido constante que sentimos dentro do cérebro, comparável àquele zunido apenas detectável que fazem alguns aparelhos eléctricos. Deve ser horrível para um surdo – não o que nasceu surdo mas o que ensurdeceu – não sentir a omnipresença desse barulhinho do silêncio. 

Julgo que não se poderá imaginar o dramatismo da questão do mesmo modo que não se poderá imaginar a cegueira para aquele que vê. Eu sei porque já passei por isso, sei porque já fiquei sem ver de um olho em consequência de um acidente isquémico transitório. Não é agradável. É sabermos que estamos a olhar para algo e nada receber em troca, nenhuma sensação, um vazio total. Quem tenta imaginar fechando os olhos vê tudo escuro, mas vê. Quem deixa de ver, nem vê escuro nem vê nada. A não-visão não é uma ausência de luz e cor, é uma ausência de sentido, uma inexistência de sensação. Inimaginável. 

Escrevo mas não o faço com soltura, não estou totalmente à vontade, estou condicionado pelo meu trabalho. Para uma escrita verdadeiramente intimista, verdadeiramente livre e desinibida não se podem acumular funções, não se pode trabalhar e escrever. Parte do meu cérebro está ocupada naquilo para que sou pago, a preocupação de zelar pelo bem-estar daqueles a quem guardo a morada. Deste modo, a capacidade criativa está tensa pois não pode absorver todo o potencial de que necessita para exprimir-se. 

2ª, 15/6, 0h52 

Música de fundo: Chopin. Lá fora a natureza e a obra do Homem permanecem estáticas, não há chuva, não há ponta de vento, a paisagem como que posou para a posteridade. Continuo a temer que as minhas metáforas e todas as outras figuras de estilo que, voluntária ou involuntáriamente uso (mesmo sem lhes saber o nome ou até sem me aperceber que as uso), não sejam compreendidas pelos meus hipotéticos futuros leitores. 

Acho que há em todos nós uma preocupação pelo póstumo, um receio de que o que fazemos ou escrevemos seja mal compreendido ou ignorado e que todos os nossos grandes ou pequenos esforços nesse sentido acabem por ser inglórios, tempo perdido.

 Em tempos escrevi um pequeno poema onde dizia que os nossos verdadeiros filhos são as nossas obras, os outros são-no apenas a 50% porque são o produto, o contributo de 2 seres. Assim sendo, o desejo de reconhecimento, o orgulho na obra, são perfeitamente justificáveis pois se desejamos um bom futuro para os filhos biológicos – nossas meias criações – mais o desejaremos aos nossos herdeiros intelectuais. Acho que estou a ir muito à frente nos conceitos abstractos, agora estou mesmo convencido que é difícil entender o meu raciocínio, entrar na minha “onda”. Transitoriedade! Num futuro não muito distante nada mais terá importância, ela terminará com o último vislumbre da minha consciência terrena, o meu último sopro de materialidade. 

15/06, 22h30

 Envolto no meu brumoso e já conhecido silêncio, ouso escrever. O ruído, esse adormece aos poucos, à medida em que os seus autores o fazem também (não o ruído mas o adormecimento). Chegou a vez dos noctívagos, sejam eles trabalhadores ou boémios, a noite é pródiga em contrastes.  

A vida é bela; pena é que, por vezes, somos cegos. 

O existencialismo é uma seca, faz-nos ver a vida tintada de cores escuras; mas é também ele que nos dá o sal da vida pois a perfeição é aliada da insipidez. O branco angelical, perfeito, imaculado, é um mito, uma criação conceptual utópica, de uma neutralidade que até dói. 

A imperfeição, essa faz-nos desejar a utopia, exorta-nos a trabalhar, a esforçarmo-nos pela consecução do inatingível, pelo engano dos sentidos, pela mistificação da realidade. O existencialismo, nesse sentido, atravéz de uma angústia, de uma incessante demanda do Graal, de uma insatisfação da satisfação, proporciona-nos a felicidade possível, o sentido da vida. É um paradoxo mas é, ao fim e ao cabo, a compleção pela negação do objectivo. Esta luta constante transporta consigo os alvores da felicidade. Quem está bem com a vida que tem não é feliz, mente-se apenas. Ou está louco. Ou senil. 

16/06, 1h30 

Retomo a minha crónica habitual com as últimas novidades neuronais da minha pessoa, que isto de neurónios tem que se lhe diga. Ainda estou para saber se a perda de neurónios influencia o desempenho intelectual e como. Li que perdemos alguns milhares por dia e que é algo que temos que evitar a todo o custo porque são células que não se renovam. 

Até aí tudo bem; Porém, por mais cuidado que tenhamos perdemos sempre essas células preciosas ao longo de toda a nossa existência. No entanto, à medida que vamos envelhecendo e perdendo os inestimáveis, a nossa produção mental tende a melhorar, o raciocínio aclara-se, acelera, é mais fluído. Há vários factores envolvidos, entre eles a experiência e a instrução, a cultura e o meio ambiente (estritamente ligado à experiencia) e, contudo, os neurónios vão falecendo. Que é que sucede então? Os remanescentes ficam fortalecidos, acumulam funções e tornam-se mais cultos. Pode existir uma explicação científica para o assunto mas isso desconheço; por tal facto é que me ponho estas questões que julgo prementes. 

Entretanto há dias li que uma investigadora que escreveu um livro sobre os intestinos e o seu funcionamento afirmou que os neurónios do intestino são muito importantes. Nunca me tinha apercebido que neurónios não significa única e exclusivamente cérebro mas todo o sistema nervoso central. Está explicado, deve ser com eles (os do intestino) que às vezes temos pensamentos de merda. Adiante. 

Nos últimos dias reatei o exercício físico que tinha iniciado em dezembro e que mantive religiosamente até ao dia 22 ou 23 desse mês. A quebra provocada pelo Natal nunca mais foi recuperada, a vontade esmoreceu e o exercício parou. Fruto de uma mentalização aliada à proximidade do parque da cidade (do outro lado da rua) retomei a manutenção fisica interrompida. Está a ser um pouco difícil pois estive inactivo durante mais de 5 meses. Quero ver se consigo que o meu médico de familia me passe requisições para exames físicos de rotina e alguns mais específicos para avaliar a minha capacidade para desenvolver determinado tipo de actividades pois tenho notado algumas anomalias (...) Não que eu seja hipocondríaco, por vezes até descuido a minha saúde, mas convém estar prevenido cada vez mais à medida que a idade aumenta e as defesas naturalmente diminuem. 

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 25/06, 1h10 

A propósito de um artigo que li no Observador e que não importa estar a citar pois serviu apenas para espoletar as sequências de pensamento e subsequente encadeamento de raciocínios, lembrei-me de me propor uma questão que não tem nada de transcendente e cuja discussão é puramente académica. A sua resolução não aquece nem arrefece ninguém, as conclusões podem ser múltiplas, não passa tudo de um exercício mental e de retórica. É como discutir o sexo dos anjos: não tem aplicação prática nenhuma, a única vantagem que poderá advir deste debate a solo será para mim a maior ou menor satisfação que poderei experimentar em termos de consecução argumentativa do tema que me propus. É sempre gratificante conseguir-se de maneira + ou – clara e objectiva a explanação de um tema ou a sua exposição. Algumas raras vezes consegui chegar ao fim de um escrito e, ao relê-lo, sentir uma vaidade, um orgulho, a satisfação de um objectivo cumprido. 

Mas voltemos ao tema que me propuz escrever, deixando de alongar-me em explicações e prólogos: considerando 2 doenças, 2 terrores do homem actual, qual delas é a mais dramática, qual é a que, para um observador externo, é a mais dolorosa, a mais incapacitante, a mais terrível de ser sofrida. Evidentemente, falo de casos terminais: cancro ou Alzheimer? Como se vê, volto ao meu hobby predilecto, ao meu tema gótico de estimação – a morte. Neste caso com uma nuance muito importante que é o sofrimento que a precede. Não apenas o sofrimento físico mas o psicológico, as implicações profundas que tem para todos os intervenientes, sejam eles o próprio, a família ou os amigos. 

Considerando ambas as doenças como irreversíveis – e digo isto porque a primeira pode por vezes ser reversível, imaginando um cancro grau IV (com metásteses) e Alzheimer (este sim, é irreversível), qual será a pior morte, o pior sofrimento? Um cancro dá-nos um panorama de sofrimento físico, de dor e desconforto cada vez maiores, de incerteza quanto ao dia de amanhã, de não sabermos quanto viveremos, de apercebermo-nos que a morte aproxima-se a passos largos ou mesmo a correr e com tudo isso, aliado à dor física, a sensação horrível de que o destino já nos anunciou a muito em breve passagem para o além. Alzheimer é mais psicológica, é a consciência de que em relativamente curto espaço de tempo tornar-nos-emos cada vez mais senis e dependentes. Físicamente é menos marcante pois quando ela nos afectar as funções vitais básicas encontrar-nos-emos já em morte intelectual há muito ou perto disso. O sofrimento aqui é igualmente forte, apenas processa-se a nível mental. É termos a consciência (cada vez menor) de que enlouquecemos e ficarmos loucos com esse pensamento. É uma tortura mental, é apercebermo-nos da nossa progressiva incapacidade de lidar com as coisas mais simples, o tomarmos consciência do peso que representamos para toda a gente, a família em particular. Das 2 doenças, qual a maior sevicía? Venha o diabo e escolha! Porque estão os seres vivos tão ligados à dor? Porque é que não há vida sem dor? A dor necessita de nós para exprimir-se mas precisaremos dela para sermos expressos? Sim. Porquê, não sei. 

Silêncio total, o tal silêncio com zumbido para indicar-nos que estamos vivos e não estamos surdos. Apanhei agora um pensamento que ia a passar, transportado por uma associação de ideias e que, por sinal, não tem nada a ver com nada daquilo que eu estive até agora a escrever. Aqui vai: Por que é que Morfeu não tem nada a ver com morfologia, morfos, morfar ou morfes? Pronto, já deixei o pensamento seguir viagem, sabe-se lá para onde, cavalgando a sua associação de ideias. Acho que eles viajam eternamente, como as ondas de rádio, a luz ou similares. Se pudessemos viajar no futuro, no espaço e no tempo, encontrá-los-iamos de novo algures, misturados com um numero incomensurável de “colegas” das mais díspares proveniências. Ainda bem que vivemos num universo onde as ondas propagam-se, expandem-se, senão estariamos agora tão saturados de pensamentos à nossa volta que seria impossíivel pensar mais; tal como a água deixa de aceitar os sais quando satura, assim seria com os pensamentos e então o universo como o concebemos, desapareceria, deixaria de existir pois só existiria se houvessem pensamentos que o abarcassem, que o compreendessem, de acordo com a teoria de que algo só existe a partir do momento em que existe um observador. 

Mas como os pensamentos seriam impossíveis, não existiriam teorias, observadores ou acontecimentos. Não havendo pensamento nada existiria e eu não estaria aqui a escrever os meus pensamentos. Amen.

 29 de Junho, 21h00, domingo. 

Tenho pela frente 11 h de trabalho, uma seca. Passo e repasso mentalmente a minha vida nestes momentos em que estou sózinho, os únicos momentos em que, físicamente, não tenho contacto com a minha vida, não me sinto ligado a qualquer necessidade de agir ou interagir com o universo que criei desde o meu nascimento. Estou só, estou só com o meu espírito, com o meu intelecto.Tudo o que é acção motora só se processa ao nível de projecto no meu cérebro. Poderei resumir este momento como o único em que o esboço, por impossibilidade da acção, revela ou deve revelar todo o seu potencial. Não é facil pôr em pratica o conceito porque a dispersão criada por uma mente não treinada (a minha, neste caso) é enorme, a estática é por vezes superior à capacidade de concentração. Muitos pensamentos geram pouco ou nada, muita parra, pouca uva. 

Estou em dia-não. Não que esteja particularmente deprimido ou cansado, que o dia tenha-me trazido dissabores, nada disso. Estou, simplesmente estou. Passa-me pela cabeça um vislumbre de compreensão, um fugaz e densamente brumoso entendimento das razões porque Camilo, Cobain, Van Gogh e tantos outros ao longo das épocas fizeram o que fizeram, apesar do seu sucesso. 

Longe de mim imitá-los, para já estou muito bem como estou. O que interessa é que estou (em dia-não). Mas também já estou habituado, os meus pensamentos últimamente não têem sido muito positivos, se é que alguma vez o foram. Há em mim uma tendência para o existencialismo, para observar a vida pelo seu lado mais negro; não que considere isso mau, até dá uma certa resistência às adversidades da vida, ajuda-me a ver o mundo não como uma catástrofe irreparável e insuportável mas como algo que temos que aturar e contra o que temos que lutar, talvez nunca para vencer mas pelo menos ajuda-nos a menter uma certa serenidade, um certo equilíbrio mental. 

Porém, um pouco de positivismo seria bem vindo, ele é também necessario, ele também contribui para o tal equilíbrio, quanto mais não seja para pintar de cores pastel o inferno da existência em vez do vermelho e negro convencionalmente aceites. Sabemos que é falso mas no fundo, no fundo, dispõe-nos melhor. 

São 4h45,

 tento mais um pouco de “desnudamento de alma” atravéz da palavra escrita, não é fácil, o cansaço quase permanente a que actualmente encontro-me sujeito como que embota-me a capacidade de expôr os meus pensamentos. Cá em cima fervilham ideias, pedaços muito bons de pensamento que simplesmente não consigo fazer sair. A minha mente é como uma úbere bem cheia, não de leite mas de raciocinios. O problema é que não a consigo ordenhar convenientemente. Já tenho pensado em iniciar um pequeno conto, uma ficção experimental para ver como me safo. Ainda não a comecei, tenho-a vindo a protelar porque acho que tenho medo de falhar redondamente, tenho medo da vergonha que terei de mim proprio. É um disparate, se não conseguir algo mínimamente digno, basta-me apenas rasgá-lo e não pensar mais no assunto. Contudo tenho receio de saber a verdade, receio deitar por terra todas as minhas expectativas, traumatizar-me a ponto de deixar de escrever. Por vezes o nosso pior crítico somos nós mesmos. Mas vou correr esse risco, tenho curiosidade de conhecer o meu estilo, saber até que ponto a minha prosa é válida, testar a minha imaginação, coordenação e outras capacidades associadas que fazem uma boa obra e um bom escritor.  

Saio de casa contrariado, não quero ir trabalhar, é longe e mal pago. Antes, revejo a minha mochila: 2 sandes (que hoje vou trabalhar 12 horas), uma garrafinha com café, um iogurte, uma banana, um par de meias, uma camisa lavada, a carteira e um livro; um canivete que anda sempre comigo não sei para quê porque é raro usá-lo. Telemóvel – este sim, o meu canivete suíço que aligeira-me a noite com filmes gravados, ligação à internet, e-books, jogos e outras facilidades, Está tudo, cá vou. Tiro a scooter para a rua, últimamente não tenho conseguido pô-la a trabalhar com o starter, tem que ser com o “kicks”. Arranco na esgalha (60/65 km no máximo), já vou como de costume em cima da hora. Se tudo correr bem estarei lá em 15/18 minutos.

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Cheguei. Recebo do colega as últimas novidades, o que realmente importa saber sobre o que se passa ou virá a passar no prédio e que possa directa ou indirectamente afectar-me ou necessitar da minha colaboração. Geralmente é tudo para o pessoal de dia.Sento-me na cadeira e aguardo. Ainda é muito cedo para fazer uma ronda, só lá para as 23h ou ½ noite. Leio ou, mais raramente a esta hora, escrevo De longe a longe aparece um residente, boa tarde, boa noite e pouco mais, eles mal me conhecem e eu mal os conheço.O tempo passa muito devagar, quase não passa. Começo a ser estremecido por pequenos acordares de pequenos adormeceres imperceptíveis, impercebidos. Levanto-me e vou fazer uma ronda, saio à rua para verificar se as portas exteriores estão bem fechadas e para expulsar o sono mas ele agarra-se-me com unhas e dentes, não consigo. Aí está ele outra vez a envolver-me , é o meu pior pesadelo. Amanhece, são 5 horas, o fim do pesadelo, parece que já custa menos aceitar o meu destino. Ei-lo que chega, são 8 menos 10. A sua prisão é a minha libertação, que aceito aliviado. Daqui a pouco estou no parque da cidade a mortificar o corpo, o exercicio custa mas é necessário, há- que contrabalançar a semi inacção do dia-a-dia ( ou do noite-a-noite).Também chego a casa contrariado porque só venho cá preparar o jantar(??) e hibernar. Mesmo assim hiberno muito pouco, os ciclos circadianos estão trocadissimos, durmo muito mal. A família agora é u m fugaz episódio da minha vida, estou quando eles não estão, estão quando não estou. Saio de casa contrariado, não quero trabalhar, é longe e mal pago. Antes, revejo a minha mochila. 

29/6, 11h40, nevoeiro cerrado, uma característica curiosa desta terra de Matosinhos. Pouco sono dormido, muito sono em dívida. 

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 Herberto era jovem, um pouco mais velho que o seu nome; os pais só lho puzeram passados 3 dias, fora uma decisão dificil. A mãe teimara sempre em chamá-lo Teodósio enquanto o pai queria o nome do avô: Albertino.Após aturadas discussões e os mais rebuscados argumentos de parte a parte e porque o tempo para registá-lo no Civil escasseava e teriam depois que pagar uma multa, concordaram em deixar os padrinhos escolher. Ficou Herberto por escolha da madrinha, sabe-se lá porquê.Cresceu Berto porque era mais facil. Poucos sabiam o seu verdadeiro nome de baptismo, apenas os mais chegados e mesmo esses raramente chamavam-no assim.Apesar de pouco vulgar, Herberto gostava do seu nome e fazia questão que lho chamassem, mas era dificil, ninguém atinava. Ficou sempre Berto para todos.Terminada a escola, não encontrou muitas opções na vida, nos anos 70 os horizontes do país não eram os mais apetecíveis. Emigrou, primeiro para França mas não se deu muito bem, embora tivesse lá ficado 2 anos. Mudou de país, foi para a Alemanha onde entretanto um cunhado arranjara-lhe emprego na construção civil. A vida acabou por sorrir-lhe, o trabalho era bem pago, foi promovido a encarregado e mais tarde criou a sua própria empresa.Por lá ficou 30 anos até que reformou-se e voltou à terra, sempre tivera saudades. Voltou a ser o Berto.Apesar ne nada lha faltar e ter uma boa reforma, fruto do seu trabalho, ser feliz , ao fim e ao cabo, apenas uma coisa lhe dera pena ao deixar a Alemanha. É que lá todos o trataram sempre pelo seu nome, o verdadeiro, o de baptismo: Chamavam-lhe Herr Berto.  


Domingo, 5/7, 2h03

 Mais uma palestra homem-papel para não perder o hábito. O que seria do ser humano sem a possibilidade de escrever, sem o apoio dos livros? Seria um retorno à Idade Média ou pior? É certo que hoje em dia saber ler e escrever faz parte do que se espera de um país civilizado mas não faz necessáriamente um homem sábio. Há seres muito inteligentes que vivem num estado muito primitivo, seja na Amazonia, em África ou na Índia. Porém, para que sejam criadas todas as condições possíveis para o seu surgimento, para que os mitos abandonem o seu estado de latência e desenvolvam todo o seu potencial, a alfabetização com todos os componentes físicos que permitem a sua eficaz e completa consecussão é essencial, indispensável. Sem os instrumentos da leitura e da escrita, sem os livros, o papel e a caneta ou similares, não há catalizador, o desabrochar do espirito torna-se muito mais difícil. Prova disso é a Idade Média de que falei: não só é inadmissível acreditar que era tudo uma cambada de burros como os poucos letrados existentes eram-no quase apenas porque sabiam ler e escrever e mal. 

Por outras palavras, 90 e tal % da população não tinha acesso ao catalizador, não tendo portanto apredido nem tendo tido possibilidades de aprender. Dos ínfimos restantes apenas talvez 1% ou menos destacava-se na erudição. Eram portanto raros mas geralmente muito bons. Antes disso, na Idade Antiga, era ainda mais difícil, o conhecimento era transmitido por via oral, só os melhores dentre os melhores destacavam-se. A escrita permite que o espírito viaje, é um veiculo importantíssimo de desenvolvimento, tanto para quem lê como para quem escreve. Aliás, os dois actos estão íntimamente ligados, são inseparáveis. Não saber ou não poder escrever é como cortar as pernas à alma, se ela as tivesse. 

5/7, 23h17 

Como será o futuro? De um modo simplista e evidentemente tintado pela nossa propria época, pela evolução palpável e galopante dos progressos tecnológicos, pelas nossas proprias crenças e vivências, diria que os meios de transporte deixariam de existir segundo os padrões actuais, talvez utilizemos o teletransporte ou formas físicas que utilizem energias de alto rendimento, não poluentes e baratas. A sociedade terá evoluido para atitudes mais racionais, mais humanas de gestão de massas, haverá menos ou mesmo desaparecerá a fome devido a uma distribuição equitativa de recursos, etc,etc,etc. E se esta visão pré-idílica da sociedade humana fôr um logro? E se tudo aquilo por que lutamos, por que ansiamos não fôr mais que um lindo conto de fadas que não passará de o ser? 

A humanidade luta por estes ideais há centenas, se não milhares de anos com versões mais ou menos universalistas consoante as épocas e a sua maneira de encarar a felicidade, o mundo e quem faz parte desse círculo de abrangência. Quero com isto dizer que através dos séculos o conceito de igualdade, democracia, justiça, etc, não se aplicava sempre a todos. Umas vezes eram os inimigos do grupo postos de fora ou as mulheres ou os escravos ou quaisquer outros humanos que não correspondessem ao círculo convencionado pelos ditames e pensamento da época. Estou convencido que o futuro( pelo menos nas proximas 2 ou 3 centenas de anos) apenas trará mais do mesmo; haverão sempre grupos excluidos ou discriminados. Tudo isto tem a ver com a própria evolução da mente: o que hoje é, amanhã deixa de o ser , o pensamento passou para outro estado, levando de arrasto as crenças do momento. Tal como muitos políticos que em jovens eram de extrema esquerda, tal como muitos pacifistas que hoje vendem armas ou vivem de algum modo à custa das guerras, tal como muitos revolucionários que hoje são capitalistas, a humanidade em geral, passada a fase do idealismo e do igualitarismo muda, transforma-se gradualmente, egotiza-se, radicaliza-se e esquece tudo, pensando apenas no seu bem-estar. Isso sucede a todos ou quase todos, uns mais outros menos. Nesta perspectiva, velha de milhares de anos, desde que o homem foi progressivamente abandonando (embora não totalmente) a fase instintiva em benefício do racionalismo, acredito que pouco mudará. Quanto à vertente tecnológica, aí teremos enormes mudanças, incomensuráveis e espantosas mudanças, das quais só podemos conjecturar, sob pena de avaliação ingénua como ingénuos eram os romances de ficção científica dos anos 60 ou mesmo posteriores, mesmo que escritos por renomados cientistas da época. Aguardemos para ver. Termino por agora, estou a ser muito adjectivo e pouco objectivo, quase esquizofrénico, vivendo uma realidade que só eu compreendo, são efeitos do cansaço.

 2h13, sabado, 11 de Julho 

Véspera da véspera do meu aniversário, ou seja antevéspera, para não complicar. Farei então 58 anos, se a esse dia chegar. Premonição ou hipótese? Quando lá chegar saberei. Ou então não. A nossa jornada terrena é equiparável a um escritor que tem pela sua frente uma resma de papel. Ele escreve, escreve e nunca sabe quando vai parar, quando a inspiração lhe vai falhar, quando falha a sua veia alimentadora. Tal como ele, a nossa linha do horizonte é uma meta a atingir. Porém, ao contrário do escritor, o nosso horizonte será sempre uma linha ténue lá muito ao fundo e que sabemos nunca iremos atingir, será sempre uma linha no horizonte, o pote de ouro no fim da curva do arco-iris. Contudo persistimos embora saibamos que nunca terminaremos o que começámos. Somos todos Gaudí e a vida é a nossa Sagrada Familia. Seremos todos fruto do azar, do acaso? Estaremos aqui porque calhou ou porque existe um plano? Nascemos, crescemos, morremos, casamos, temos filhos, fazemos ou não fazemos isto ou aquilo, temos ou não sucesso, somos ou não felizes apenas por uma coincidência num universo de probabilidades? No fundo acredito que haja um plano, que nada existe por acaso. Mas isso pressupõe um plano impossível de abarcar pelas nossas mentes limitadas, um plano tão incomensurável, tão ininteligível como o próprio universo a que pertence ou que lhe pertence. 

Quem o fez, como o fez, porque o fez, são as perguntas angustiosas com que me questiono, as mesmas que um numero desconhecido de outros seres pensantes como eu formulará, formula e formulou desde que o mundo é mundo e nele existem seres com capacidade para não se limitarem apenas a viver, a vegetar. Dizem que nada é impossiível. Não, Então alguém que me responda. 

2h05, 2ª feira, 13 de Julho.

 Afinal cheguei, já tenho 58 anos. 6h50 Ainda estou vivo. 

18h07, 23h55

 Escrever, escrever, escrever, deveria escrever ininterruptamente para gravar vivências, para que os que me são chegados e os que não querem saber de mim para nada soubessem o que eu faço, o que fiz e o que conto fazer, tirassem o meu perfil psicológico e o deitassem às couves porque não sou famoso, não sou relevante e aquilo que penso ou deixo de pensar não interessa nem ao Menino Jesus. Só talvez esse, de acordo com a tradição cristã, se interessasse mínimamente por mim e mesmo assim só numa perspectiva evangélica, de salvação das almas. 

O meu valor, o meu verdadeiro valor neste orbe é zero ou menos, sou apenas mais um zero no meio de outros que tais e, possívelmente, alguns uns ou até dois. Será possivel avaliar o valor de alguém de uma forma isenta, classificá-lo como a um sabor ou um cheiro, apreciá-lo como a um livro? A valoração de um ser humano depende da sociedade, ela é que o gradua em bom ou mau, presta ou não presta e nós mesmos fazemos parte dessa avaliação que apenas depende do estado de humor, da simpatia ou antipatia, do julgamento moral imposto uns aos outros, colectiva ou individualmente. É-se santo ou uma merda consoante o nosso julgamento e/ou o dos outros. E contudo somos uma peça essencial no universo, do universo. Sem nós, esse desmoronar-se-ia pois a sua essência baseia-se na unidade, na unicidade e não a pode haver se faltar algo, por mais ínfimo que seja. Logo, somos importantíssimos, somos uma pedra basilar do universo, ele sem nós ou outro qualquer, não existiria pois seria a negação de si próprio. Convençamo-nos portanto que o nosso valor é inestimável, que sem nós nada existiria, que não somos o que os outros pensam de nós. Já escrevi. Pensamentos baratos, de um euro, com pouca elevação literária mas com muito valor pessoal. Por pior que seja a prosa, por mais confusa a exposição, são os meus miolos, a minha personalidade a ser dissecada, vivissecada. Pode não ter valor para ninguém mas para mim que falo comigo mesmo é muito importante, serve de guia para compreender-me e, ao fazê-lo, compreender melhor os outros. 

22h05, 21 de Julho 

Ainda hoje (nem sei porque falo nisto, é uma coisa sem importância) lembrei-me da relatividade. Nem a associei a Einstein, não me passou pela cabeça nem tampouco a encarei como uma lei da física e não só. Lembrei-me apenas ao cruzar-me... Não, não me cruzei, iamos no mesmo sentido. Dizia eu, à passagem de uma scooter daquelas às quais pode-se chamar scooter e não uma 50CC como a minha, a que vulgarmente chamam “secador”. Olhei para ela de modo admirativo, quiçá invejoso, como uma criança pequena olha para qualquer coisa com motor a que possa chamar mota (a minha incluida, as crianças nesse aspecto não são muito selectivas). Isso é relatividade. Do mesmo modo que o 50CC olha para o 125CC com a sobredita admiração, talvez inveja, o 125 olha para o 600 e este para o 1000 ou 1200 com o mesmo tipo de sentimentos. Isto foi uma divagação, um floreado, um pensamento rocaille, banal, que veio-me à cabeça. Não que não tenha importância, todos os pensamentos importam, todos condicionam o nosso futuro e o dos outros, do universo, afinal; é o efeito borboleta. Mas no cômputo geral, na mediania do pensamento humano, não tem expressividade relevante, não merece geralmente ser citado. 

2h35, 28 de Julho 

Tenho um sono do tamanho do mundo! Neste momento escrevo para espalhar mas não parece que tenha muito sucesso. Se não fosse esta sensação de adormecimento eminente omnipresente e constante, estaria óptimo. É que da maneira como as coisas estão a processar-se, os meus pensamentos como que adormecem antes de saírem da cabeça, ou seja, nem saem. É muito curioso observar, analisar como por vezes somos aldrabões conosco próprios, como tentamos dar-nos a volta para ficarmos bem na selfie (mais um neologismo, sinal dos tempos e da influência dos media. Que a lingua portuguesa me perdoe). Tenho feito muito pouco exercício, cada vez menos, por montes de razões, todas elas legítimas, explendidos alibis, óptima poeira para os olhos: ou porque estou esgotado, cheio de sono e chego a casa e só durmo passadas 3 ou 4 horas (isto porque entretanto espalhei o sono) ou porque tenho algo importante ou urgente para fazer de manhã e não o faço ou poderia tê-lo feito depois ou porque montes de outras coisas. Que aldrabice, que falta de vergonha! Quantas desculpas esfarrapadas! Ainda por cima, como sou juiz de mim próprio, quando confrontado com estes dislates ainda deito água na fervura e, embora admitindo a culpa, ainda absolvo ou mesmo beneficio o réu, deixo-me subornar, auto-subornando-me! 

Mas tudo isto faz parte da natureza humana, não é? As dietistas, as que fazem dieta, até comem um docinho de vez em quando porque merecem, os jogadores até fazem um mau desempenho mas a culpa é do árbitro ou do anti-desportivismo da outra equipa, os cozinheiros falham porque os produtos são de má qualidade, os alunos porque os professores não prestam, os professores porque os alunos não prestam. Todos nós procuramos justificações para os nossos falhanços, para os nossos defeitos, as nossas falhas, está-nos nos genes. 

Queremos ser bons, os melhores, mostrar ao mundo que somos modelos para tudo o que é bom. Não passamos de hipócritas com subterfúgios melhor ou pior sucedidos, que dão por vezes mais valor à justificação do que à acção, à desculpa que à performance, à retórica que à verdade. E por aqui me fico. 

02/08, 0h15, domingo

 Passei um bom fim de semana...reparo que acabei de escrever um semi-disparate, o fim de semana só agora começou, para mim isso representa 5ª ou 6ª feira, os dias da minha folga. Fora este àparte, foi bom, descansei medianamente, não houve muitos stresses, foi bom.

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21h03, 11 de Agosto 

Estranho tempo, nem parece verão. Misty and cool. Pois hoje sinto-me como se fizesse parte da Amnistia Internacional das Tintas de Escrever Oprimidas e Aprisionadas do Mundo, vou libertar algumas. Infelizmente é uma libertação falsa, tendenciosa; a hipotética libertação não passa de uma mudança de estado, de cárcere. Ao libertar a tinta da sua prisão condeno-a a outra ainda maior – o papel – de onde nunca mais sairá. É o destino. 

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Criar é uma responsabilidade enorme e nada tem a ver com o resto da nossa vida. Podemos ser uns bêbados, uns ladrões, pedófilos ou assassinos, egoístas ou magnânimos, nada tem a ver com a criação, com a genialidade. Há tantas pessoas socialmente, moralmente reprováveis, mesmo abjectas, cuja genialidade ultrapassa em muito algo que alguma vez o mundo tenha presenciado. É evidente que os seus actos perante o universo não permitem que a nossa consciência os recompense, os endeuse com o nosso reconhecimento expresso. Tal não invalida que o nosso intelecto o não faça, são coisas diferentes. Um assassino, um torturador pode ser um Adónis: moral e socialmente abjecto, artísticamente belo. 

As opiniões são como a religião ou a política: aceites incondicionalmente por uns, rejeitadas liminarmente por outros. O que escrevi nas linhas acima pode fazer sentido para alguns e ser um completo disparate para outros; o mesmo passa-se com todo o resto da nossa vida, actos e pensamentos e a vida, actos e pensamentos de toda a restante humanidade, tudo depende do ângulo do prisma atravéz do qual observamos o mundo. E o mundo pessoal de cada um é tão limitado! 

Sinto-me nada. Mas, revendo-me nos outros, Sinto-me tudo. 

12/08, 22h03 

Ontem iniciei a crónica sem muito espírito, sem nenhuma musa inspiradora. Aos poucos alguma foi-se aproximando e deu-me umas dicas, pouca coisa. A minha veia literária é ainda um capilar, nada de transcendente, tem pouca importância, pouca visibilidade. Gostaria imenso que ela se tranformasse numa artéria pois já não tenho ilusões que ela algum dia seja um coração, isso está reservado para os grandes génios, não para mim. A não ser que um dia leve uma pancada na cabeça que liberte a minha intelectualidade mais inacessível, aquela que está profundamente enterrada no inconsciente e que só poucos conseguem trazer à superfície. Acho que é mais dificil do que ganhar no euromilhões. No entanto e talvez para sempre limito-me a pensar para o papel o que me vem à cabeça, essa folha, essa tabula rasa à qual toda a estupidez é bem vinda. Não que seja tudo parvoíce, sei que há coisas que escrevo com algum valor, sem falsas modéstias.


 Engravidei-a, que vou fazer? Estou em pânico, não contava com isto, vou ter que assumir uma vida que não quero, que não desejei.Ela está feliz, é o primeiro...mas nem sequer fui consultado, ninguém me perguntou nada!Jà tentei o aborto mas ela está sempre atenta, não deixa, não permite. Agora, durante 9 meses é a expectativa, talvez algo corra mal, pode ser que ela mude de ideias, uma doença, sei lá. Caso contrário não tenho alternativa, é o nascimento. Mas eu não quero nascer! 


Tétrico, alanpoeano! Gosto destas histórias góticas, vitorianas! Ontem terminei de ler com gosto o livro Emigrantes, de Ferreira de Castro. Fiquei satisfeito e surpreendido, não contava com uma obra tão agradável de ler, tão bucólica mas actual, tão subreptíciamente, psico-sociológicamente analítica, tão socialmente crítica sem ser sartriana. Pensava no autor como um escritor de certo modo romântico, ficcional, cuja escrita relataria situações neutras, sem muita riqueza de conteúdo ético e moral, histórias para entreter. Fiquei especialmente agradado pelo que li e anseio por brevemente ler outras obras dele, foi uma revelação. 

01h32, 16 de agosto

 Bem, imaginemos que falamos de coisas mais sérias e aqui volto à baila com um dos meus temas preferidos: o que andamos todos a fazer neste mundo, estamos a evoluir como espécie viva e pensante para quê? Que beneficio traz a vida para qualquer um de nós, simples obreiros num formigueiro imenso a que chamamos humanidade e que pouco tem daquilo que se convencionou chamar de humano? Bem vistas as coisas, parece tudo muito sem sentido, lutamos algumas dezenas de anos com a certeza de que vamos desaparecer a qualquer momento indefinido após muitos e longos períodos de sofrimento e poucos e breves lampejos de alegria a que eufemísticamente chamamos de felicidade. Em suma, andamo-nos a enganar a nós próprios e sabemo-lo e consentimo-lo e ignoramo-lo. Vendemos a nossa vida ao destino(?) a troco de endorfinas, drogamo-nos com hormonas do prazer, não passamos de drogados, de junkies dos sentidos e, tal como os outros, aqueles a que chamamos drogados, abdicamos de tudo menos do prazer do viver, dos tais breves lampejos de sensações tidas por agradáveis. 

Tal como os junkies quimicos também sofremos síndromes de privação, ressacas monumentais mas não queremos saber, queremos continuar viciados até ao momento da verdade, que não sabemos qual é nem quando surge. Diria que somos dignos de pena, mas quem teria pena de nós senão nós próprios? Assim, cá continuo a penar, a sacrificar-me, a sofrer privações do sono; e tudo para quê? Para adquirir bens que dão-me prazer e para tentar facilitar o caminho desta droga aos meus descendentes e seus hipotéticos descendentes ad eternum. Vejo na humanidade o que observo num formigueiro: há milhares de anos que se reproduzem para construir novos formigueiros em tudo iguais aos anteriores, perpetuando assim o ciclo de nascimento e morte sem nenhuma razão, sem nenhuma explicação plausível aparente. 


Vivo ou morto, que importa? 

A existencia, vã e amorfa, faz-me querer ser. 

Mas ser o quê, para quê?

 Iludo-me tão sómente com uma imagem reflectida no espelho.


 10h43, 18 de agosto 

Cheguei à hora possivel da escrita, não se escreve quando se quer mas quando se pode. Ainda hoje tive ideias muito interessantes para depositar neste cofre do tempo que é a escrita: tudo perdi, não tenho a minima noção do que pensei, do que projectei escrever. A oportunidade perdeu-se, mesmo que me venha a lembrar nunca mais terei a chispa que me animava no momento, todo o desenvolvimento será diferente, menos vivo, a ideia ter-se-á desvanecido, enfraquecida a sequência única de pensamentos que a criou. Mas o que é a vida senão, em parte, um desfiar de oportunidades perdidas, de recursos desperdiçados, independentemente da voluntariedade ou involuntariedade da culpa? 

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3h30, 2 de setembro/15 

Apetece-me escrever. Ou antes, não me apetece escrever mas quero deixar escrito as minhas preocupações, as relevâncias e ninharias dos meus dia-a-dia. Neste momento sinto-me bem. Curiosamente, esta é uma etapa da minha vida em que não estou muito bem, há demasiado trabalho, mil e uma preocupações, pouco descanso. Mas é talvez por tudo isso que me sinto bem, que me vejo a superar lentamente as dificuldades, o gozo que isso provoca, a (relativa) felicidade na adversidade, a satisfação das metas sendo milímetro a milímetro superadas. Contudo, reside aqui mesmo, em co-habitação, a ameaça sempre presente de um volte-face, a possibilidade de, de um momento para o outro, tudo se desmoronar, o avanço obtido com denodo ser destruido por algum hipotético revés da vida. Por tendência desconfia-se sempre das benesses da existência, suspeita-se que por detrás do sucesso, da bem-aventurança, há sempre um avoengo à espreita, ansioso pela oportunidade de destruir a esperança com todo o seu séquito de acções e sentimentos positivos. 

Quem nunca teve ou já perdeu a sorte na vida, teme sempre, quase espera os golpes destruidores, como uma consequência cármica de ter sequer ousado tentar ser feliz. É disparate, eu sei, é cisma fatalista estúpida que apenas atrai más influências mas, por contumácia, é imensamente difícil de erradicar. 

Em novo, cria na minha boa estrela e acreditava num anjo da guarda que velava pela minha felicidade e tudo fazia para facilitar-me a vida. Ao crer, criava um escudo protector à minha volta, uma couraça que resistia às adversidades.E funcionava! Bastava crer! Com o tempo, com a falsa experiência que a vida nos dá, que a vida nos faz crer que dá, nas dúvidas que transformam-se em dogmas, nas suspeitas não confirmadas que viram certezas, na perda de fé em nós e no mundo, o anjo, triste, afasta-se. Não nos volta as costas, limita-se a não interferir, a respeitar a nossa descrença, pronto a intervir mal o chamemos. 

Na maior parte dos casos morremos sem jamais o chamarmos novamente, sem saber a sua presença ao pé de nós, sem sequer nos lembrarmos que o rechaçámos há muitos anos como um devaneio, uma crendice, uma ilusão da juventude. E afinal, apenas basta chamá-lo... Vivamos a vida dia a dia, não há planos para o futuro, não há certezas. Por isso, de que vale afligirmo-nos? A única certeza que temos é a de iremos morrer nesse futuro, não sabemos quando. E acabam as fúteis preocupações a que demos tanta importância. Carpe diem.

 00h01, 6 de setembro

 Após um bom fim de semana, apenas ensombrado por situações pontuais ( o que não significa que sejam de somenos importância), eis-me de volta ao trabalho. Bem dormido, roupa lavada, não me posso queixar. Vejo o futuro, se ele me existir, com bons olhos e a vida corre-me, milímetro a milímetro, de feição. Como disse recentemente, não posso pensar nos volte-face do futuro porque só o presente conta e é só esse que vivemos, que temos que viver.

 Não há futuro, há um presente que, hipotéticamente, há-de vir e que deve ser idealizado, nunca como um pesadelo mas como um conto de fadas. Esse sonho é que protege o nosso presente futuro das intempéries da vida. Estarei a ser demasiado abstracto? Será que um dia alguém ao ler-me, ao ler estas linhas, vai conseguir entender ou pelo menos ter um vislumbre do meu pensamento, compreender as sinopses que utilizo, as metáforas, toda a linguagem figurativa na qual baseio a minha escrita? Se sim, óptimo; se não, passará a ser mais um documento criptografado a juntar aos milhões espalhados pelo mundo, uns fruto da loucura, outros a aguardar descodificação. Isto traz à baila outra questão: como saber que não estou louco? Um doido por vezes não sabe que está doido, age com a convicção que os seus actos são perfeitamente normais, vive num mundo um tanto ou quanto paralelo onde tudo o que pensa ou faz é aceitável, normal. 

Então como podemos saber se vivemos ou não nesse mundo paralelo de anormalidade transvestida? Não podemos, não sabemos, do mesmo modo que vivemos um sonho sem sabermos que estamos a dormir, salvo algumas raras excepções. Tive sonhos em que sabia que estava a sonhar e que iria acordar, mas isso é muito raro. Na maior parte dos casos vivemos os nossos sonhos como se de realidade se tratasse. Aqui está um paralelo: sonho e loucura. São realidades alternativas das quais a vivência não é totalmente consciente, a única diferença é o tempo de duração; os sonhos são relativamente curtos com um retorno final à realidade enquanto a loucura pode durar por toda a existência fisica (será que o espirito pode apresentar loucura?). Há contudo ainda outra situação ambígua: um doido pode sonhar; será que um sonho pode ser louco? Há alturas em que experimentamos sonhos totalmente anómalos e que vivenciamos enquanto sonhamos como a coisa mais normal deste mundo e fazem, dentro da lógica distorcida dos sonhos, sentido. E eles, os chamados mentalmente instáveis, podem ter sonhos que, na nossa lógica dita normal, sejam normais? E como é que eles os encaram? Como sonhos normais ou sonhos anómalos? Quais serão os seus critérios? Doido ou são, o que é que sou? Poderei ser doido para os outros e agir com normalidade para mim próprio ou ser louco para mim e agir normalmente para com os outros? Uma depressão não é, ao fim e ao cabo, sermos doidos de nós proprios a ponto de, em casos extremos, nos suicidarmos? E o resto do mundo pode nem se aperceber, sermos para eles perfeitamente normais. E o fanatismo, não é ele também uma forma de loucura da qual não nos apercebemos e em que somos loucos dos outros? 

07/09, 00h10 

 História! O que é a história? Nada mais do que um esforço para que as gerações da antiguidade e do presente levem as vindouras a aperceber-se que são o produto transitório de uma sucessão de ondas de acontecimentos evolutivos, cataclísmicos, algo que transforma-se, sublima-se, contamina-se, reconstrói-se no crisol do tempo e do espaço. Todos nós fazemos a história, por mais ínfima que seja a nossa contribuição. Somos os seus cães, marcamos o seu curso como aqueles marcam as árvores e as esquinas, imprimimos nelas a nossa passagem fugaz tentando, como os primeiros, que o nosso odor fique gravado indelévelmente. 

A história é uma marca colectiva feita com intenções individualistas; quem o faz, fá-lo com o objectivo de tornar-se notado, sobressair da massa amorfa da humanidade. Ao elevar-se ou afundar-se leva consigo um grupo , um pais, uma raça que será execrada ou glorificada por um acto, uma intenção singular que afecta inevitávelmente tudo ao seu redor. Com a história aprendemos o passado mas não do passado, repetimos sempre os seus erros, somos um pouco como a história da loura que, vendo no seu caminho uma casca de banana, pensa: “lá vou eu cair outra vez!

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09/09, 23h47 

Continuo a sentir-me naquele limbo de semi-felicidade que tenho últimamente experimentado. Digamos que é um estado de manutenção do status quo como forma de equilíbrio, um “quando mal, nunca pior”. Do mesmo modo que um doente crónico ou terminal sente-se feliz quando não tem dores, assim é a nossa vida: somos felizes quando não há revezes mesmo que não haja progresso, é um positivismo negativo(ou um negativismo positivo). 

O tempo é como um gás, comprime-se e expande-se consoante as pressões a que o sujeitarmos: ora nunca temos tempo para nada ou temos todo o tempo do mundo, é uma questão essencialmente mental. Por essa razão há pessoas (como eu) que nunca têm tempo para nada e por isso têm sempre a sua vida incompleta, inacabada e outras a quem parece que o tempo se expande, há sempre oportunidade para fazer algo mais. Estes últimos conseguem coordenar o trabalho com estudo, lazer, voluntariado, sei lá! Os primeiros, como eu, nunca têm tempo para nada, deixam tudo inacabado, os dias deveriam ter 48 horas e, e...! Já me apercebi disso e tento inverter a situação com um sucesso relativo; antes só fazia part time e não sobrava tempo, agora tenho um part time, um full time e já consigo obter algum tempo para as obras de casa, pequenos hobbies e um pequeno pouco de lazer. É uma gestão deficiente, tardia, mas é alguma coisa.

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19/9 

Voltando ao tema da loucura, onde está a normalidade? Esses desvarios momentâneos, essas irritações, crises de ira ou pânico ou tristeza ou euforia, não são elas também um reflexo de irracionalidade mental, não são também um indício de loucura, embora momentânea ou de curta duração? Então não podemos confiar nunca na nossa caixa de circuitos, os fusíveis podem a qualquer momento fundir remediável ou irremediávelmente. Haverá loucos felizes ou será que aqueles que aparentam felicidade sentem lá no fundo da sua mente que algo não está bem e que estão-se a enganar a eles próprios, numa auto-ilusão? Essa angústia estará lá a borrar a parede do quarto dos fundos dos seus pensamentos, numa mancha que fingem não ver? 

Sou doido de mim ou dos outros? 

Tapo os ouvidos às evidências que me gritam, 

Nego o que vêem os olhos da alma, 

Finjo-me insensível aos horrores que tacteio, 

Recuso o sabor do medo,

Não inalo o odor do fracasso.

Mas, acima de tudo,

Não intuo a insanidade que me consome.

Estou irremediávelmente perdido. 

 

2h24, 20/09, domingo

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 Não poder eu estar sempre online com a minha escrita, não poder eu ter sempre rasgos de criatividade literária, não poder eu debitar obras-primas como quem queima calorias! Limito-me a pequenos esboços, pequenas incursões pelo universo da escrita mais parecidas com uma ida à mercearia da esquina do que com uma aventura no sertão africano ou nas estepes da China. 

Contudo não desisto; bom ou mau, pichagem ou obra-prima, escrevo. Ao menos quando escrevo sou mais eu, sou mais sincero, não estou contaminado pelo medo das aparências ou pela sombra do políticamente correcto. Quando escrevo digo o que penso sem medo de juizos de valor; esses virão talvez um dia, quando já não tiver importância, quando já tiver partido para a grande viagem. Nessa altura serei um génio ou um tosco, I don’t give a damn

Quem escreve, não o faz com medo de ser lido ou então não escreve (a não ser que envolva terceiros). O que para nos é banal para outros pode ser esclarecedor, o que consideramos baboseiras podem ser lições de vida, uma bugiganga pode-se transformar numa jóia de valor incalculável. Não me arrependo do que escrevo, tenho é pena de não saber escrever melhor, de não conseguir transmitir o meu espírito sem a eterna estática que o rodeia, não a saber coar, filtrar, depurar. 

Ah, pudesse eu transformar o chumbo das letras no ouro das obras, ser um alquimista da alma! 

Por hoje chega, estou a ficar demasiado piegas, daqui a pouco estou a chorar. 

00h12, 4ª feira, 23/09

Hoje debruço-me de novo sobre o acto criativo, sobre a constância ou inconstância do mesmo. Segundo um princípio de inconstância que criei à sombra dele próprio (daí a inconstância do acto, que permite criar do nada), a criação é, à luz do espírito, aleatóriamente positiva ou negativa, bipolar mesmo, o que permite que o acto criativo possa ser visto hoje como uma benesse dos deuses e posteriormente como um tormento do Hades, alternando sem padrão visívelmente definido. A criação, como obra de carácter positivo ou negativo, é fruto do mero acaso, tudo depende do estado de espírito do criador. A arte é neutra ou mesmo dual. No Jardim das Delícias, de Jeronimous Bosch, o belo e o horrível mesclam-se por vezes de uma maneira bastante ambígua. A criação é um acidente de percurso, uma anomalia da normalidade. Criar nem sempre é partir do nada para algo, por vezes é recriar ou até modificar: Dalí recriou Marilyn nuns lábios, Warhol modificou-a com novas cores (pessoalmente não gosto de Warhol, foge bastante ao meu conceito de artista, de criador). Na Alta Idade Média fazer poesia usando Petrarca como molde era imprescindível, tudo o que fugisse a este padrão era mal visto, criticado. A criatividade era a paráfrase, não a obra de raíz. Aliás, parece que toda a Idade Média era uma cópia de si mesma ou da Antiguidade Clássica, a inovação era rejeitada por rude ou petulante, um insulto à sabedoria dos antigos. Não foi uma época de inovação, foi de renovação, um caiar das paredes da cultura e das artes, um “mais do mesmo” mas com iluminuras. 

9 de outubro, 14h25, Paraiso 

Estou no Paraíso mas não estou no paraíso. Tenho uma virose (ex constipação), tenho sono, tenho cansaço, tenho problemas mas também tenho trabalho, tenho positivismo(algum), tenho alguns objectivos concretizados, tenho esperança num futuro melhor embora não tenha, pelas leis da natureza, muito mais futuro. E, fora a virose, tenho saude. 1 a 0, ganha o optimismo; não é propriamente o paraíso mas pelo menos não estou a caminhar para o inferno, já é bom. 

Como não existe a felicidade absoluta também não existe o paraíso absoluto (a culpa de tudo isto é do Einstein, Hitler tinha razão). Eh!, não sou anti-semita, it’s just a joke! Só há racismo quando se acredita no que se diz, com intenção, com maldade. Senão, sempre que contássemos anedotas de louras estaríamos a ser misóginos ou, no mínimo, a discriminar entre estas e as morenas. Ora, na vida real tal não sucede, falamos com as mulheres e avaliamo-las sem atentar se são louras ou morenas ou ruivas ou albinas ou se têm alopécia. 

A humanidade sempre se riu de si própria, das suas diferenças. Essa crítica, essa descriminação acaba por vezes por ser positiva. Quantas vezes não nos rimos de nós próprios? Quantas vezes não nos chamámos burros, tolos ou estúpidos? De acordo com os critérios chamados normais pela sociedade, não deveríamos ser penalizados por isso? Se o suicídio é moralmente condenável , não o deveria ser também a auto-crítica negativa? Mas isto são só suposições, são só desabafos.... 

4h24, 22 de outubro

 Mais uma vez vejo-me confrontado com o dilema de ter na mão uma caneta e à frente um pedaço de papel. Nunca sei o que vou escrever ou mesmo se irei escrever nem se o que eventualmente escreva valerá a pena os micro-litros de tinta que, embora gratuitos ( a caneta não é minha), gastarei. 

O meu já referido amado/odiado silêncio rodeia-me, envolve-me como algo líquido onde me encontro mergulhado. So não me afogo porque é um líquido metafórico e, também metafóricamente, o silêncio também se respira na literatura e na poesia. Aliás, a ausência de ruído não é silencio, a mente continua a ouvir os pensamentos, os barulhos imaginados ou recordados constantemente. Por isso é tão dificil meditar. Bem, dizem que meditar não é silencio, não é esvaziar a mente porque é impossível fazê-lo, é canalizar, controlar os pensamentos e as sensações do que nos rodeia. Talvez,nunca tive a coragem suficiente para meditar, nunca me decidi a fazê-lo. Dizem que é muito bom, que liberta, acalma, faz-nos mais responsáveis e conscientes. Eu, como tantos outros, talvez a grande maioria, tenho optado pela solução mais simples e mais prejudicial que é não o fazer. Porquê? Nem eu sei e arranjo todas as desculpas possíveis, desde falta de tempo(???) até falta de paciência (!!!), com nuances intermédias cujo leque de variantes é infinito. O bem-estar ou, pelo menos, a sua tentativa, dá trabalho, mais vale não fazer nenhum do que tentar melhorar um pouco a nossa miserável vida. Acho que somos (quase) todos um pouco assim: como o trabalho dá trabalho, não se faz. 

13h46, Restaurante Paraiso, 23 de outubro

 Bem, estou aqui na mesa da esplanada do café a observar o movimento da rua como um papagaio numa varanda, sem nenhum interesse em especial, mero espectador da vida que passa, a minha realidade exterior ao meu corpo. Além desta, paralelamente, desenvolvem-se a minha realidade externa e a minha realidade interior; a primeira processa-se a nível mental e quase totalmente consciente: os meus pensamentos, as minhas resoluções, anseios, medos, fobias, emoções; a segunda é quase inconsciente ou subconsciente: são as minhas funções fisiológicas básicas, a respiração, circulação, funções endócrinas, a função excretora, a digestão. Já nem falo na função reprodutora, que isso na minha idade quase nem existe ou é residual, sejamos sinceros. Sou uma máquina que trabalha , um computador que processa dados e exerce funções de um modo semi-automático e semi-consciente, trabalho para um objectivo que, no fundo, não sei qual é. Até ser desligado. Aí só restará a minha memoria RAM. 

00h29, domingo, 25/10/15 

Dormi bem mas tenho um sono do tamanho do meu pequeno mundo, felizmente hoje é dia de mudança de hora e vou ter que trabalhar mais 60 minutos, o que é bastante motivador. Os cães vão passeando os donos enquanto as casas preparam-se para apagar a luz depois de porem os moradores na cama. O mundo abranda, este pequenos mundo individual que nos rodeia e nos diz directamente respeito ou que indirectamente nos influencia. É a altura em que o João Pestana começa a pendurar-se nas pálpebras forçando-as a fecharem-se ou, se preferirmos uma explicação mais “científica”, é a altura em que a gravidade lunar influencia as arcadas supraciliares onde se encontram concentrações de ferro, chumbo e outros metais mais ou menos pesados, libertando-os e fazendo com que as pálpebras, por acumulação dos acima citados, tornem-se difíceis de abrir enquanto paralelamente comprime determinadas glândulas cuja função é excretar “sonotonina” que relaxa os musculos ópticos e força o desligar progressivo da consciência. Dito desta maneira até parece uma verdade científica, é assim que se enganam muitos papalvos. 

Há dias falei em meditação; qual melhor altura que esta para meditar, tenho uma noite pela frente, nada me distrai ou quase nada, por que não tentar? Aliás devo dizer “por que não fazer?” pois tentar pressupõe a aceitação implícita do falhanço e quando queremos fazer algo não tentamos, limitamo-nos a assumir a sua concretização. Pois vou tentar e é já. Já tentei, é dificil tornar isto fácil mas, segundo dizem, após alguns dias torna-se um automatismo. Entretanto vou aguardar um pouco mais enquanto o prédio põe toda a gente na cama.

 00h16, 3ª, 26/10 

Chove e faz lua, início de outono, prenúncio do que nos espera durante pelo menos 6 meses. Bem, da maneira que isto anda, com tantas alterações climáticas que descaracterizam totalmente as estações do ano, não sei se será assim. 

Outro dia puz-me a pensar no tempo, mas no cronológico e na sua ductilidade, a sua capacidade de torcer-se, acelerando ou retardando consoante as situações e, muito especialmente, consoante as idades. Quando somos jovens o tempo parece que não passa, que nunca mais somos mais velhos, que após a infância e inicio da adolescência quase pára. 

Por outro lado, tudo o que é bom, tudo o que é novo e agradável, passa demasiado rápido. Quando atingimos a idade adulta o tempo tem uma paragem, gozamos a vida mas é uma sensação que dura pouco tempo, poucos anos. Logo a seguir somos atormentados, embora de uma maneira ainda suave, pelo espectro da velhice, que é vista como algo preocupante mas ainda muito longínquo. Sem nos darmos conta atingimos os 40 e começamos a interiorizar a retumbante e chocante realidade de que estamos a envelhecer num ritmo aparentemente cada vez mais rápido. Até aos 60 engulimos essa realidade e acostumamo-nos a ela, conformamo-nos. A partir dessa idade não sei, ainda lá não cheguei, estou no limiar. Julgo que aí o tempo começa a parar, começamo-nos a sincronizar finalmente com ele, a acompanhá-lo passo a passo como um velho cão que segue as passadas do seu idoso dono. Depois...intemporalidade, o nosso Cronos pessoal, esse pequeno deus tirano que nos aprisiona para a vida morre conosco, liberta-nos do seu jugo. Tudo se passa na mente, 60 minutos são 80 quando fazemos o que não nos dá prazer, são 20 quando nos envolvemos em algo agradável. Se cada um de nós se sincronizasse com o tempo, se cada um de nós o acompanhasse em harmonia perfeita, a vida que tivemos, temos e a que nos resta seria muito mais agradável e o seu término não seria tão amargo, seria talvez até aceitável, seria decidirmos que um dia deixaríamos de dar corda ao nosso relogio, deixá-lo parar naturalmente, sem luta, com a plena consciência de que o tinhamos feito, sem remorsos, sem mágoas, em paz. 

01H45, 03/11, 3ª Feira

 Sentado a engordar o hall de entrada do prédio que vigio, teço considerações sobre a síndrome do sofá e concluo que esta é uma forma light desta doença: a síndrome da cadeira estofada. Ao contrário da primeira, que é uma doença caseira, esta é uma doença predominantemente profissional, esbora também se possa encontrar mais raramente noutros estágios. Claro, estou a divagar. Acabei de ler uma definição de leucoencefalopatia isquémica microangiopática e, claro, o meu estilo de escrita descambou para as definições médicas. É sempre bom saber algumas definições de problemas que poderão afectar-nos no decurso da nossa vida e muito especialmente do nosso declínio, que é um nome menos bonito para dar ao envelhecimento. E pronto, saí enriquecido com mais uma definição de uma possível forma de morte a juntar à trombose cerebral, suicídio, AVC, atropelamento e milhentas de outras. De uma coisa tenho eu a certeza a 100%: morrerei (e todos nós) de uma delas, já é um consolo. 

00h02, 4ª feira, 04/11

 Sempre que entro num elevador e olho-me ao espelho, vejo um velho. Não bem um velho mas um aspirante a velho. E admiro-me. Não que tenha que admirar-me, é um processo normal a que todos os que vivem o suficiente estão sujeitos. Porém, a simples consciência do facto provoca-me admiração. E pena. Apercebo-me da transitoriedade da vida, da minha vida em especial pois é nela que coloco a minha atenção, é o centro da minha atenção. E admiro-me, ainda estou na fase de transição entre a negação e a aceitação, é um facto a consumar-se com uma aceitação a consumar-se. 

Resignação, a sabedoria vista como um fardo, a experiência conotada com a decrepitude. É uma transição que acorda o cérebro e adormece o corpo, era de maratonas do espírito e repouso do físico. Esse é o consolo da velhice, a abertura da alma às pradarias extensas do pensamento. 

03h36, 10 de outubro

 Porque é que sempre que tenho ideias, sempre que há algo com o mínimo de substância para escrever, não tenho hipótese de o fazer ou de tomar nota das ideias que gostaria de desenvolver? É frustrante, tantas ideias perdidas, tantos pensamentos deitados ao lixo! Não vale a pena chorar sobre leite derramado; primeiro porque é um disparate, a fazê-lo seria sobre uma almofada ou sobre um ombro amigo, segundo porque uma pessoa pode até ser alérgica à lactose e não se chora sobre o que nos faz mal. Nada como um pouco de humor para apimentarmos a vida (como se o humor fosse uma especiaria!). 

Curiosamente, a vida de cada um, da humanidade, passa sempre pela boca: há determinadas coisas que são o sal da vida, outras fazem-nos crescer água na boca, algumas deixam-nos um sabor amargo, há palavras doces como o mel, frases açucaradas, discursos com sabor a falso, atitudes que caem mal, pessoas que destilam o seu fel, lutas intestinas, oportunidades de lamber os beiços, há o dar de beber à dor e o engulir de sapos vivos, quem tenha necessidades como de pão para a boca embora nem só de pão viva o homem; momentos deliciosos e frases azedas, o pão que o diabo amassou e o dar o arroz a alguém, ter a paparoca feita ou comer as papas em cima da cabeça. Até para ter sexo é preciso comer alguém! Tudo, mas tudo, gira à volta da alimentação e, por extensão, da boca, ela é o mote, o objectivo, a razão última de tudo. É por ela que se faz a guerra e se faz a paz, por ela fazem-se fortunas ou morre-se na miséria, por causa dela há tantas desigualdades no mundo. O que seria da humanidade sem uma boca para alimentar? Provávelmente nem existiria como tal, provávelmente vegetaríamos, seriamos menos que isso ainda pois mesmo as plantas lutam para comer. Seríamos minerais, sem anseios, sem vontade, sem evolução pois nada nos puxaria para sairmos da inércia, nada por que lutar, sem individualidade mínimamente definida. A necessidade de comer, de nos alimentarmos, traz consigo a guerra, a fome, a miséria, a infelicidade, a morte; traz-nos também a paz, a fartura, a riqueza, a felicidade, a vida. Tudo e nada, trabalho e ócio, atrazo e desenvolvimento, civilização e anarquia. 

23/11, 2ª, 01h10 

O frio parece que aumenta a negrura e o silencio da noite, parece transformá-la em algo mais estático, como uma fotografia. Lembra-me aqueles postais que recebíamos em casa por esta altura, não só dos amigos e conhecidos mas também e especialmente de uma associação que ajudava pintores sem mãos que pintavam com a boca e/ou com o pé.

 A estaticidade mágica desses postais de natal que retratavam uma época festiva e a estação do ano a ele associada, as imagens paradas, congeladas no tempo e no espaço e na minha memória da infância, trazem-me uma certa nostalgia, uma sensação triste/feliz de algo perdido no passado mas ainda e melancólicamente presente na minha alma. 

São as tais recordações “peterpanianas” de um passado que, embora real, estava intrínsecamente ligado ao imaginário infantil, àquele mundo fantástico de faz de conta, onde e realidade adquiria cores de arco-íris e formas de rococó, um mundo verdadeiro e onírico, vivido e imaginado, puro e extasiante...Quem não tem saudades desse tempo da infância? Pode-se ter tido uma infância problemática, infeliz, traumática, mas num cantinho da nossa mente esse mundo existe e foi vivido. Pois é, esquecemo-nos. Ficamos mais velhos, começamos a ganhar responsabilidades e a perder a magia, a alegria, não de viver mas da propria vida. Ainda me lembro de quando ainda não tinha rugas, não as de velhice mas as de expressão, aquelas que começam a aparecer quando nos preocupamos. Cada ruga é um sonho que se deixa de sonhar. O drama, o nosso drama começa quando principiamos a ter insónias... 

Voltando ao tema inicial e fazendo uma breve análise naturalista, a estaticidade da noite, da paisagem nocturna, julgo dever-se à limpidez, à secura do ar que, isento da refractabilidade provocada pele humidade, permite ver os objectos, as imagens mais perfeitamente delineadas, dando aquela sensação de fotografia. Seja como for, é belo. 

A mais corriqueira paisagem faz-nos sentir gratos pela capacidade da visão, tenha ela sido concedida por Deus ou pela evolução ou ambos, se existirem. A visão dá-nos poemas maravilhosos em imagens, coisas que só podem ser percebidas, sentidas assim, sem palavras. Esse é o Poema, o êxtase, o indizível.

 5H54, 4a feira, 25/11/15 

Pouco a pouco, lentamente, a vida retoma o seu ciclo de vigília. Isto não é a Big Apple, a cidade que nunca dorme, o ciclo circadiano das nossas cidades, da nossa vida normal, acompanha os nossos hábitos ancestrais. O movimento nas ruas intensifica-se, a princípio imperceptívelmente, depois, gradualmente, a um ritmo cada vez mais acelerado. É como se o aproximar, o despontar da aurora, criasse vida todos os dias. Afinal ela (a vida) está apenas adormecida. 

2H52, domingo, 29/11/15 

É frustrante quando os pensamentos se nos escapam, quando queremos imprimir as nossas sensações, o nosso fluir temático, fruto de um momento ou conjunto de momentos únicos e irrepetíveis, quando adregamos ter nas nossas mãos as ferramentas para o fazer, já eles, qual areia imaterial, fogem-nos por entre os dedos que seguram a caneta e retornam ao areal de origem, de onde talvez nunca mais retornem. Por vezes sinto que tenho em mim, na minha mente, um livro sem letras que não consigo copiar. Ele está lá ou esteve lá num dado momento mas a matéria com que ele é escrito – o pensamento – não permite copiá-lo em tempo útil, com a instantaneidade necessária e a quase totalidade perde-se na brumosa realidade do espírito. Seria maravilhoso se o conseguissemos imobilizar, congelar para, frame a frame, lê-lo e traduzi-lo em toda a sua pureza e significação, sem filtros, sem barreiras. 

Nunca tal será possível, eu sei. Seria como tentar imprimir caracteres a 3 dimensões num pedaço de papel mas na nossa imaginação tudo é possível e sabe bem saborear (passo a expressão) essa possibilidade utópica. O conhecimento é uma coisa maravilhosa e, como todas as coisas maravilhosas, faz-nos felizes e entristece-nos; felizes porque sabemos, tristes porque sabemos tão pouco, ainda mais tristes por vermos aqueles que sabem menos e totalmente infelizes por ver que há quem não queira saber. 

A alegria de quem sabe não é só o ensinar aos outros, é também e em grande escala partilhar com os seus iguais em erudição, por mais pequena que ela seja, debater em igualdade de circunstâncias o seu conhecimento, exprimir e receber opiniões, trocar mútuos pormenores onde dá e recebe informações novas sobre o que sabe e não sabe. Defendo acérrimamente a cultura geral, que infelizmente deve ter ido de férias prolongadas, ela é a base de uma sociedade mais equilibrada. Não bastam as especializações, ser médico ou engenheiro ou arquitecto, há que saber de tudo um pouco. Nada mais triste seria se qualquer um deles não soubesse que a Terra é redonda ou quem é Camões ou onde fica o Brasil, mas por vezes pouco falta. Antigamente tínhamos erudição e ignorância social; agora temos consciência social e ignorância. Enquanto não conseguirmos ter as 2 coisas (erudiçao e consciência social, bem entendido) ao mesmo tempo, não vamos a lado nenhum. 

1h23, 17 de dezembro 

Como ja mencionei há uns tempos, algumas alocubrações atrás, tenho notado que (e por falar em homeostasia) o meu índice satisfacional com a vida em geral está em ascendência não me sinto tão deprimido e frustrado como desde há largo tempo, que não posso precisar, tenho-me sentido. Nada realmente palpável, uma modificação tão gradual, tão ténue que quase nem me apercebo. Mas está lá! Good for me, estava mesmo a precisar destas injecções de positivismo. 

Sem me querer contradizer a este respeito, volto ao meu tema de eleição: a vida e a morte, as suas inter-relações intrínsecas e complicadas, o seu entrelaçar de estados, as dúvidas existenciais, a observação temporal das suas causas e consequências. Desde que me conheço que, como toda a gente, convivi com a morte e com a vida. Desta última e até bem tarde, ao fim da minha adolescência, pouco tenho a dizer. Limitava-me a experienciá-la, semi-inconsciente ou mesmo inconsciente da sua existência, vivia com a mesma falta de percepção com que naturalmente respirava. Quanto à primeira, a minha estreia também foi tardia: a morte da minha avó quando tinha 17 anos recém-estreados. 

Foi um choque brutal que afectou-me fortemente durante meses. Mesmo assim e possívelmente devido à minha fresca idade, não a encarei por nenhuma perspectiva para além da existência dela como um facto consumado, como um seixo que atiramos ao mar e sabemos por antecipação que está perdido para sempre, nunca mais veremos. 

O existencialismo não faz parte da vida das crianças, para elas é tudo muito linear: é, é, foi, foi, está dito. A partir daí e muito lentamente, a tomada de consciência de que há uma vida e de que há uma morte foi-se insinuando no meu espirito jovem e inexperiente. Contudo, a morte ocupa sempre um lugar de destaque na vida de cada um. Um nascimento é um acto de alegria, uma manifestação de continuidade, uma promessa do advir, mas não passa disso. A alegria e a esperança tomam corpo neste acto mas tudo não passa de mero projecto. 

Uma morte é uma descontinuidade brutal, mesmo sendo esperada, neutraliza toda uma presença física e espiritual que influenciou a humanidade, num sentido mais ou menos lauto do significado, , durante anos, décadas, gerações ou eras, é irreparável. Encaro a morte – a dos outros ou a minha própria – como um desperdício de experiências, como o atirar para um abismo de uma caixa cheia de tesouros únicos e, por serem muito pessoais, irreparáveis e irrecuperáveis. As ciências biológicas e mentais ensinaram-me que as experiências individuais reflectem-se no desenvolvimento e comportamento das espécies; mas o material perdido, os conhecimentos adquiridos, toda a experimentação acumulada em décadas por um processo único e pessoal é imensamente superior ao acúmulo residual de informações da mente colectiva. 

A minha percepção sabe que é assim, que tem que ser assim, que o acúmulo de conhecimentos na alma mater tem que ser lento e selectivo senão a evolução entraria em colapso, comprometendo o futuro das espécies, eliminando-as até. Sei que almejar a preservação total dos conhecimentos individuais da humanidade, seja pelo arquivo da informação ou pela perenidade dos seus emissores é impossível, utópica. 

Mas, não vivemos nós de utopia? Não almejamos sempre o impossível, mesmo reconhecendo-o como tal? Parece ser o nosso lema de vida, a nossa torre de Babel que construimos para tentar chegar ao céu, atingir o inatingível. Tenho a impressão de que não viverei muito mais. Poderá ser mera percepção hipocondríaca ou fatalismo, não sei. Contudo é uma convicção, não uma cisma. Se assim for, partirei com mágoa por não ter podido fazer tanta coisa, por ter deixado tanto por terminar, seja por impossibilidade monetária, técnica ou temporal ou por culpa própria, por procrastinação. Hades ou Olimpo? Partirei também com esse medo, não religioso mas do desconhecido, de não saber se tudo acaba, se continua, se é um intervalo ou se nada disto. Mero sonho do qual vou acordar ou início de um longo sonho do qual um dia ou nunca acordarei? 

01h58, domingo, 16/12 

Jantar de Natal. Não sou muito sociável ou, por outras e melhores palavras, sou sociável mas a curto prazo, não gosto muito de longos encontros, fico impaciente, mortinho por ter um pretexto para ir embora. Não tenho bem a certeza mas julgo que ha 20 ou 25 anos não era assim, tinha uma abertura muito maior com as pessoas, socializava mais. Sendo assim, o que mudou, o que fez-me mudar? A idade ou os problemas (enormes) que me assombraram durante essas 2 décadas? Sei que neste momento socializo pouco, prefiro “fechar-me” com a família mais chegada ou fechar-me mesmo comigo próprio, não como eremita mas como solitário, se me faço entender. ............................................................................................................................................... 

2ª feira, 28/12/15, 5h04 

Hoje só me resta mesmo escrever: o meu telemóvel descarregou totalmente e o carregador não funciona, esqueci-me de pôr o computador à carga e não trouxe nenhum livro. Portanto, só me resta morrer de estupidez ou escrever. Prefiro escrever. O silêncio habitual não existe hoje, uma forte ventania envolve-me nos seus silvos e uivos, lembra-me noites tempestuosas de historias trágico-maritimas, as tundras geladas de Miguel Strogoff ou do Cão dos Baskerville, as histórias de Jack London ou de Charles Dickens, recheios de mistério, crime, drama e aventura. São histórias que li na minha infante juventude e que me marcaram com os seus imaginados. Acho que as primeiras leituras marcam indelévelmente no nosso imaginário sons, cheiros, associações de sentidos ou sentimentos, tal como associamos uma tia a arroz doce ou o aroma do fumo de cachimbo a um pai ou pó de arroz a uma avó. 

Tabula rasa, começa aqui a gravação do resto das nossas vidas e das suas simpatias e antipatias, das recordações doces e melancólicas e das fobias não explicadas. Cada pequeno bocadinho de nós, da nossa personalidade, das nossas emoções, é construido e desconstruido aqui, na infância. Penso que o meu desejo, o meu conforto com a solidão tem aqui as suas raizes, é o meu pequeno quarto de refúgio onde sinto-me seguro, protegido. Daí talvez o meu relativo individualismo, uma certa aversão ou direi timidez com o trabalho de grupo. Por isso estou tão à vontade com o trabalho nocturno onde ninguém me chateia, onde posso metafóricamente reviver o meu quarto privado da infância. Conjecturas apenas, não sou psicólogo para poder analizar tudo isto em detalhe mas ao mesmo tempo serei a pessoa mais indicada para o fazer, do mesmo modo que um escritor, ao escrever, sabe o que quer transmitir. 

Aqui, um psicólogo equipara-se a um crítico literário: ambos fazem interpretações à sua maneira, ambos retiram de premissas certas conclusões erradas, quantas vezes rebuscadas, sentidos e intenções que nunca nos passam pela cabeça e que geralmente sabemos serem totalmente erróneas. Quando se evoca um cheiro, uma côr, um pôr do sol ou um som, eles geralmente existiram algures no passado e marcaram-nos de alguma maneira, boa ou má. É nessa ex-realidade longínqua que reside a nossa alegria e a nossa tristeza, a vida só existe atravéz das recordações, sem memória não há vida.

 O vento continua lá fora a uivar recordações de lobos da estepe e de imensidões geladas dos círculos polares. E eu continuo a senti-las, a vaga e melancólicamente, vivê-las. Aflige-me um pouco o passar do tempo, ver crianças que em tempos conheci já com filhos, que têm a idade das crianças que conheci. Ver velhos que eram jovens, ver túmulos que eram velhos, ver recordações que já nem túmulos são, ver fotografias de pessoas que agora não passam de meras nuances de tom e côr impressas num papel, apenas isso. Impressões em papel. Incomoda ver essas impressões em papel olharem para nós, sorrirem-nos, posarem para nós, para um futuro que já é passado e saber que também não passaremos de meras impressões no papel, copiando as que vimos no passado, a serem observadas pelo futuro, um futuro que, a acontecer, já será também ele passado, um ciclo vicioso sem fim visível e sem sentido. Eu não estou a distorcer a realidade, estou simplesmente a vê-la com os meus olhos neste particular momento; outros terão outras visões, outras interpretações. Por isso ser-se humano é tão complicado, 7 biliões de pessoas têm 7 biliões de modos diferentes de ver as coisas, não há observações iguais do mesmo modo que não há impressões digitais iguais. À vista desarmada há correspondências, mas uma análise mais profunda revela por vezes assincronias enormes.   


A tormenta brame ameaçadora, 

Como lobos invisíveis que vagueiam por entre os carros parados,

 Percorrem becos e abrigam-se detrás das moitas. 

Vejo a neve imaginada subir em volutas, em torvelinhos furiosos, 

Misturando-se com as folhas mortas pelo outono; 

Sinto o vento esgueirar-se dorido entre as frinchas das portas, 

Bater furiosamente nos postes e nas árvores , 

Ora num grito contínuo e pungente, ora em soluços irregulares, 

Queixumes com a idade do mundo. 

Sinto-o dentro do prédio e de mim, 

Levantando a poeira do chão e das memórias

 E trazendo sussuros ancestrais, suspiros que penetram a roupa e a carne, 

Que arrepiam o corpo e remexem o âmago do espírito. 


30/12/15, 01h34, 4ª feira 

Noite calma, fresca, nada comparada a anteontem. Os lobos recolheram aos covis, o vento já não uiva. Volta o silêncio hibernante e frio característico do dia-a-dia ou, direi antes, do noite-a-noite. Afinal enganei-me, há vento; não uiva, eleva-se apenas por vezes num lamento, num lânguido queixume arrastado e longínquo. Eolo, o deus dos ventos, está calmo e os seus súbditos aguardam pacientemente o seu comando.


 02/01/16, 2h54, Sabado

 Ainda hoje (ontem) puz-me a pensar em elites e na aversão que nós, povo não-rico ou a elas não pertencente, temos por elas. Quando se lê um artigo ou fala-se sobre um colégio (alemão, militar, St John’s), um Cristiano Ronaldo ou Jerónimo Martins, fulano ou cicrano, Ateneu, clube tal ou tal, vem-nos ao de cima um sentimento de desdém, de repulsa, de menosprezo por todos eles, uns mais que outros.

 Porquê? Porque uns são uns “meninos bonitos” ou porque essas outras instituições são para uma elite restrita que arroga-se superior? Ou será que temos dor de cotovelo por não pertencermos a essa elite ou não sermos como essas pessoas? Do mesmo modo que o analfabeto escarnece do letrado e o trolha ridiculariza o doutor, também nós esforçamo-nos por minimizar o mais possivel quem, por qualquer circunstância, nos é superior, seja social, cultural ou económicamente. 

E criticamos. E criticamos as instituições. No fundo, os podres, se existirem, tanto dos individuos como das entidades, são os mesmos que encontramos no meio de nós, das “nossas” entidades, de tudo o que está ao mesmo nível que nós. Do mesmo modo, aqueles que nos são “inferiores” são ferozes críticos dos nossos hábitos, dos nossos costumes, das nossas instituições porque, da mesma maneira que temos inveja dos que nos superam (nem que seja apenas nominalmente) no nosso pequeno e limitado mundo, também eles não suportam que os superemos no seu ainda mais pequeno e limitado mundo. Já me deparei a “odiar” pessoas e a criticá-las por tudo aquilo que vejo e não vejo. Já me deparei a menosprezar instituições de renome porque delas não fiz parte, porque não tive o privilégio de as frequentar. Quem desdenha quer comprar, é bem verdadeiro o ditado. Odiamos tudo o que nos supera mas por que ansiamos. Acho que grande parte dos males da humanidade provém desse ódio, dessa inveja, desse complexo de superioridade dos inferiores. 

Não estarei a ser políticamente correcto ao afirmar o que abaixo escrevo mas estou-me borrifando para isso, so é políticamente correcto quem tem medo das consequências e isso já não me preocupa. As elites são necessárias, são ilhas que sobressaem do mar do povo amorfo, são refinamentos evolucionantes. Lógicamente, estou a generalizar, a evocá-las como um todo. Não vou dizer: “Ah, mas aqueles ali são uns inúteis”; talvez até sejam mas são casos particulares, não globais e eu estou a encarar o item como uma regra, não como uma excepção. O mesmo sucede com as pessoas, se muitos chegaram onde chegaram, foi muitas vezes por mérito proprio, não por corrupção ou por negócios escuros. É claro que há que rebaixá-las dizendo que são uns patifes, que o têm à custa doutros, que não merecem, que são uns exploradores. E nós, o que seríamos se estivessemos no mesmo patamar? Irrepreensíveis? Só se fosse para nós próprios.

. 04h53, 2ª feira, 18/01/16 

Há algum tempo que não escrevo, não se me tem proporcionado. É também certo que não tenho tido muita inspiração, muito assunto para escrever, talvez devido ao cansaço, talvez não, nem sei. Embora calmo à superficie, o mar dos meus pensamentos tem andado bastante revolto, há correntes submarinas bem fortes e turbulentas, redemoinhos perigosos, sorvedouros de energia que tiram-me a vontade e desorientam-me. Luto por manter-me à superfíicie e faço-o com algum esforço, porém com a funesta consequência de esgotar-me o alento. Sinto-me por vezes como estando na foz de um rio sujo e caudaloso, lutando no meio da sua miscigenação com o mar encapelado, forças fracturantes que desgastam a alma. É isto a vida , a foz de um rio sujo e caudaloso em luta com o mar em fúria. Para uns mais que para outros mas sempre conflituoso este encontro. Serei pessimista por natureza ou todos passamos por semelhantes urdiduras da mente? Para além da minha, nunca sondei suficientemente a alma humana para perceber a que ponto tais reflexões são correntes ou normais, a que distância me encontro da média de sanidade de espírito da humanidade. ............................................................................................................................................................. 

O meu fio de pensamento partiu-se porque comi uma laranja. Não porque a laranja possua qualidades mágicas ou sobrenaturais para o fazer, não porque contenha algum químico, alguma propriedade que redunde nessa solução de continuidade do dito frágil cordelzinho; apenas distraí-me e já não encontro a ponta solta, fico por aqui. 

13h50, 19 de janeiro, 3ª feira

 Dormi pouco. Estou aqui no balcão do restaurante a tentar não adormecer. Para isso, escrevo; não por pulsão, não por inspiração mas por necessidade. Deste modo, espremo os meus miolos a ver o que sai, as ideias que tenho, a originalidade ou a falta dela que o deslizar da esfera do bolígrafo transmite ao quadrado branco celulósico que tenho à minha frente. Antes de mais, sou o crítico mais crítico da grafia que se desenrola, que aparece perante os meus olhos, saída da pena estilizada e irreconhecível em que se transformou o instrumento da escrita nascido há milhares de anos do desejo de comunicação (quiçá inconsciente) de um protótipo da nossa humanidade actual.

 Como auto-crítico sou extremamente exigente, cruel até, mas sou também extremamente indulgente, mesmo escandalosamente benévolo. Digamos que sou um crítico sado-masoquista. Mas é perfeitamente normal: quem não se epiteta de estupido, correndo imediatamente a desculpar-se, a salvar a cara de si próprio, criticando-se até por não ter tomado em devida consideração todas as atenuantes? 

00H03, 20 de janeiro, 4ª feira

 O que é que eu posso dizer que não tenha já sido dito? Todos os meus problemas, todas as minhas alegrias e angústias, todas as incertezas e decisões já foram sobejamente dissecadas através da escrita ou mesmo oralmente desde talvez antes do alvorecer do que chamamos civilização, como diferentes edições do mesmo livro, talvez apenas com prefácios, comentários, notas de rodapé e epílogos diferentes, mas o mesmo livro, parafraseado. Somos como que petrarquistas da vida, escrevemos o mesmo, copiamos o mesmo modelo mas com as nossas próprias forças, a nossa propria vivência. O que é a vida, afinal? Um livro eterno em constante elaboração, escrito por todos os seres vivos e permanentemente parafraseado ao estilo petrarquista, ad infinitum

Rebuscado? Sim e não. Tento dar às observações o meu cunho pessoal, o meu modo de ver as coisas. Se por vezes utilizo clichés é porque talvez eles sejam, à falta de palavras, o melhor recurso para expor a minha visão da vida, versão essa que modifica dia-a-dia num fluir e refluir de pensamentos e sentimentos evolutivos e involutivos; o que hoje é, amanhã pode não ser e voltar a ser no dia seguinte ou nunca mais. É empirismo puro, é encarar a existência consoante ela se nos apresenta e nós a ela. Confuso? Sim e não. O que nos parece evidente e claro como água, pode não o ser para os outros, tudo depende do modo como o explicamos. De uma coisa tenho a certeza: para mim é claro como águas turvas, a única certeza que tenho é que não tenho a certeza de nada ou, como dizia Sócrates ( o filósofo): Eu só sei que nada sei. 

02h50, 3ª feira, 26 de janeiro 

Pois é, o meu tempo relativo assombra-me. Não no sentido de assombração, de perseguição paranormal mas no sentido de assombrar, causar admiração ou espanto. E porque digo isto? Porque o Natal foi ontem e o carnaval é já amanhã, porque os ventos “crónicos” (estou-me a referir a Cronos, o guardião do tempo e não à situação repetitiva e inelutável, como é o caso de algumas doenças) empurram, parece que mais rápidamente, o passado para o passado e o presente para o futuro. Sei que não passa de uma sensação muito minha, muito pessoal, isto de dizer que o tempo voa; ele não voa, ele segue o seu curso naturalmente, sem pressas nem vagares, nós é que o observamos com os olhos distorcentes da mente e afigura-se-nos voar. 

Diz-se que os velhos vêm a vida escoar-se mais rápido, mas não necessáriamente. Há idosos para quem a vida passa como algo quase eterno, como algo parado no tempo. Do mesmo modo com as crianças ou outras faixas etárias, não há um padrão definido de passagem do tempo, essa passagem passa-se (passo a expressão) na mente; é a nossa mente quem põe o disco a 45 ou 90 rpm de um modo que por vezes, a maioria das vezes, escapa ao nosso controlo. Aqui deparamos com situações paradoxais: se por um lado queremos que aquele dia enfadonho passe depressa, por outro lado admiramo-nos ou exasperamo-nos porque o dia passou muito depressa e não tivemos tempo para nada, para os objectivos (reais ou figurados) que tínhamos em mente concluir. Para nós, um dia ou qualquer outra compartimentação temporal é algo eterno-efémero, como um sabor ou um cheiro. 

05h18, 4ª feira, 27/01 

Sempre que escrevo tento analizar o meu pequeno mundo, o meu minúsculo universo circundante e directa ou indirectamente observável por mim. Tento dissecar, vivissecar esta esfera da qual sou o centro e que fervilha de vida, de pensamentos, de acções e reacções, de inércias e movimentos, de pazes e conflitos. Disseco-me também, analizo-me também ao pormenor para tentar compreender o todo pelo estudo das partes, sabendo que nunca o conseguirei fazer, que morrerei tentando infrutíferamente ou quase espremer uma gota que seja, do conhecimento de mim e do meu mundo. Este desejo infinito de abarcar o infinito é inato e frustrante, faz-nos perseguir o horizonte, procurar o pote de ouro no fim do arco-íris mas é tão automático (poder-se-á dizer) como a salivação de um cão ao ver alimento. A diferença é que um cão sacia-se enquanto que nós nem o sabor da demanda quase conseguimos sentir. 

Porquê essa busca pelo conhecimento? O que nos faz procurar a razão das coisas? Não são necessidades básicas de que precisemos para viver, não há aqui preservação ou conservação da espécie, apenas curiosidade. Para nós, tudo na vida ou mesmo fora dela vem com pontos de interrogação de oferta e não há ninguém, por mais básico que seja, que não use alguns na sua existência terrena. 

14h27, mesmo dia 

Vou recomeçar com as minhas meditações escritas. Como o serviço tem estado parado vou aproveitar para dar vida útil aos espaços mortos inúteis que pontilham os meus estados de vigília diários. Reforço as minhas defesas mentais contra o envelhecimento cerebral, exponho os meus pontos de vista, desemaranho o complicado novelo mental que é o meu cérebro humano e, ao mesmo tempo, ajudo a economia nacional e mundial ao gastar papel e tinta de escrever (em formato esferográfica) e ao desgastar os bancos e mesas onde me sento, acelerando a necessidade da sua substituição, o que permite a sustentabilidade dos estabelecimentos que os vendem e das fábricas que os produzem. Paralelamente, cumpro o meu papel no efeito borboleta, permitindo que o destino siga o seu curso natural. Embora não nos apercebamos está nas nossas mãos, nos nossos actos ou não-actos o futuro do universo. Somos directa e indirectamente responsáveis por tudo o que sucede ou virá a suceder no mundo em que vivemos. Sem nós o mundo não seria igual, sem nós o mundo será indubitávelmente diferente, a nossa vida e a nossa morte modificarão indelévelmente todo o universo conhecido para sempre. 

05h18, 5ª feira, 28/01 

Chove calma e implacávelmente; espero que às 8 horas estie, detesto andar com fato de chuva. Tenho a cabeça cheia de planos para amanhã que sei que amanhã não porei em prática. Vou simplesmente viver o dia como ele se me apresenta, nada mais. Quanto a tudo o resto... veremos se os augures serão favoraveis. Tenho a cabeça cheia de pensamentos rápidos, instantâneos, fugazes. Não se deixam agarrar, não me permitem analizá-los, explorá-los, desenvolvê-los. Estão todos desagarrados de qualquer fio condutor, não consigo enquadrá-los em nenhum desenvolvimento de pensamento lógico ( acho que chama-se a isto falta de inspiração). So me resta parar por aqui senão começo a escrever disparates só para encher papel e isso não é nada, é desperdicio de tempo e material. 

05H00, 31 de janeiro, domingo 

Comemoram-se hoje os 124 anos da revolta republicana gorada de 1891. Vem-me sempre à memória aquela célebre e batida fotografia das trincheiras cavadas no cimo da rua 31 de janeiro, na altura chamada de Sto António. A minha avó paterna teria então 6 anos e o meu avô 4 (ele era mais novo 2 anos, se bem me recordo). Crianças que na altura desconheceram totalmente a existência de uma revolução e nem sequer lhes teria feito qualquer sentido, se lhes dissessem. Só 20 anos depois nasceria o meu pai e 66 anos após vingaria o projecto que está agora a escrever estas linhas. É impressionante conceber a ideia de que a minha avó, que morreu em 1974 (Setembro), passou por 2 revoluções republicanas (a acima citada e a implantação da república, em 5 de outubro de 1910), o assassinato de um rei e seu primogénito, assim como a subida ao trono de um novo e impreparado rei que não era suposto sê-lo, dezenas de revoluçõezecas republicanas e efémeras ditaduras, um estado novo também ditatorial, uma guerra colonial, ou antes, várias, que ditaram o fim da presença portuguesa por esse mundo fora e uma revolução dita democrática em 1974. Que vida tão agitada, tão rica de peripécias, embora nenhuma particularmente feliz! Nós, os actuais vivos residentes do planeta, mais específicamente deste país, não tivemos até agora experiências tão marcantes. Embora o mundo esteja em transformações violentas, não o sentimos tanto na pele como as nossas 2 gerações anteriores. Deo Gratiae. 03h11, 2ª feira, 1 de fevereiro À medida que envelhecemos começamos a ruminar cada vez mais o conhecimento, a dar muito mais atenção aos pequenos pormenores que, enquanto novos (ou menos velhos) deixávamos passar por irrelevantes ou “mais tarde vejo isso”. Ressalve-se aqui que utilizo o verbo ruminar no sentido de mastigar, digerir com mais atenção, cuidadosamente. Não tem nada a ver com vacas, embora elas também façam parte do nosso conhecimento do mundo.

 Falo por mim, tenho-me debruçado muito sobre história, linguística, humanísticas em geral. Não que não deite de vez em quando os olhinhos às ciências ditas exactas, mas não me prendem, é uma questão de tendência, de vocação. A única coisa que agora faz-me imensa falta é um émulo, uma alma gémea, alguém com quem possa livremente e em pé de igualdade debater, trocar impressões e conhecimentos do que sei, do que gosto, do que desconheço e quero saber. Infelizmente estou numa situação que, por profissão e directamente consequente isolamento, não me permite usufruir dessa benesse. O meu “ouro sobre azul” não existe e penso que não existirá no resto da minha vida porque não tenho condições para dele usufruir. (Se) quando chegar a minha idade da reforma, (se) quando não puder mais trabalhar, talvez surja alguma oportunidade de dar um gostinho ao dedo intelectual, comungar com os meus pares. Não estou a pôr-me em nenhum pedestal do conhecimento, não quero arrogar-me o estatuto de intelectual ou sequer elitizar-me, apenas pretendo trocar impressões com quem me possa compreender na minha complexidade relativa e a quem eu também tente retribuir na mesma moeda. 

A falta de alguém que nos iguale pode-se transformar , tanto em infelicidade como em complexo de superioridade, depende de como gerimos as situações, de como sublimamos todo o processo de canalização do conhecimento adquirido. Estou em querer que todos os que passam por semelhante situação acabam, cedo ou tarde, com maior ou menor intensidade, por atravessar ambos os processos. Há quem cristalize, quem se apegue a um deles e o interiorize, o faça parte da sua personalidade, o que, em ambos os casos, é péssimo para si próprio e para os outros. Por mim, julgo ter ultrapassado essas situações sem muitos apegos ou influências, limito-me a encarar os factos com naturalidade, sem muito stress nem muita presunção. 

22h27, mesmo dia 

Somos intrínsecamente maus ou intrínsecamente bons? Se, após o nascimento, fôssemos criados de uma forma amoral, qual das tendências venceria? É evidente, pelo menos para mim, que a amoralidade pura não existe. Há sempre, por mais isentos que tentemos ser, uns pózinhos da nossa propria criação, do modo como fomos educados. Mas imaginemos que um ser humano podia ser criado de uma forma totalmente isenta de conceitos ou preconceitos de qualquer espécie, qual seria o dominante? Estou em crer que tudo dependeria, não da essência de pertencer à raça humana mas de todo um background genético, arquetípico, quiçá ambiental, racial e/ou outros factores, muitos deles fortuitos, fruto de acasos biológicos ou mentais. 

Estou plenamente convencido que as características convencionadas de bondade ou maldade dependem da predisposição de cada um e ainda – muito importante – dos conceitos morais existentes na sociedade onde um indivíduo nasceu ou está inserido. Tomemos como exemplo casos, condenáveis ou criticáveis para a nossa sociedade, de outras culturas: entre os esquimós, honrar um hóspede é pô-lo na cama com a mulher do hospedeiro e considerar uma afronta qualquer recusa. Entre os tibetanos, uma forma de selecção natural num ambiente inóspito que não permite membros fracos sob pena de enorme sobrecarga social num povo que tem que viver sob condições extremamente adversas é deixar um recém-nascido algum tempo sob a intempérie, sob temperaturas geralmente negativas para avaliar da sua capacidade de sobrevivência. Outra ainda será expôr os cadáveres aos abutres para que eles comam toda a carne, deixando só os ossos. 

Tantos outros casos cuja avaliação ética depende da formação moral de quem observa: as mulheres, consideradas inferiores entre os árabes, não podendo mostrar mínimamente o corpo, a existência de poligamia, tribos cujos elementos não podem mostrar as mãos por serem tabu, arrotar nalgumas culturas ser um sinal de educação, ao provir de um hóspede ou convidado, etc, etc, etc. Onde está o bem, onde está o mal, onde está a moralidade, o correcto ou incorrecto? Nos olhos de quem vê e julga, pois não há um conceito comum a todas as sociedades. São temas muito complexos onde, a meu ver, a melhor opção será avaliá-las caso a caso de acordo com o nosso próprio conceito de moralidade, não esquecendo porém que a avaliação deve ser conotada por alguma tolerância pois não somos os únicos detentores da verdade da moral. 

2h44, 5ª feira, 4 de fevereiro

 Dei uma vista de olhos pelo jornal El Mundo, que veio-me parar às mãos. Data de 30 de janeiro. Três coisas chamaram-me a atenção: Andrés Trapiello, o gato de Schröedinger e o adjectivo “pulcro”. Começando pelo último, achei interessante a diferença conceptual deste adjectivo entre o português e o espanhol; no primeiro, pulcro significa belo, bonito enquanto no segundo significa limpo, asseado. A raiz latina é a mesma, existirá certamente uma razão para que, provávelmente na Idade Média, paises com uma base linguística comum tenham divergido na significação desta palavra. Ainda tentei uma pesquisa light na internet mas não encontrei nada que me pudesse elucidar. Passando ao gato de Schröedinger, já tinha lido uma explicação sobre a experiência virtual mas tinha-a relegado para o arquivo morto da minha memória. 

É um exercicio mental interessante que abre perspectivas filosóficas e quânticas muito originais. Não vou aqui explicar, a resposta encontra-se fácilmente na internet e será certamente mais elucidativa do que qualquer exposição que eu tivesse a veleidade de escrever aqui. Finalmente Andrés Trapiello, escritor leonês que tem uma característica interessante: escreve crónicas do seu dia-a-dia, da sua experiência de vida ao longo de 25 anos, com mais de 19 volumes. Não se lhe poderá chamar um diário nem sequer (como eu faço) um devezemquandário porque o autor mistura realidade com ficção, junta episódios reais da sua vida com situações fictícias porém perfeitamente plausíveis, o que torna a sua classificação como género literário um pouco confusa. 

Não faz verdadeiramente crónicas da vida real mas também não faz crónicas de ficção, é um meio termo para o qual ainda não encontrei nome. Ficção real, realidade ficcionada ou ficcio-realidade. Será talvez mais parecido com ficção histórica embora enquadrado noutro género literário. Gostei do que li, da explicação do autor àcerca do que escreve. Para mim ainda é dificil aceitar escrever algo do género, ainda não consigo amalgamar os dois estilos sem ferir os meus conceitos ou preconceitos sobre o que e como se deve escrever. Não que eu tenha problemas em escrever a realidade ou a ficção, não; o meu problema preende-se com inserir irrealidades dentro da realidade, mesclar verdadeiro e falso. Não estou mentalmente preparado para apresentar escritos cujos leitores não saibam se estou a falar verdade ou a inventar, a mentir. Para mim, ficção é ficção, não é mentira. A mentira só existe quando pretendemos fazer crer que estamos a dizer a verdade. 

17/2, 8h17, 4ª feira

 AVC. O tão temido e (in)esperado voltou a atacar e desta vez deixou marcas. São daquelas coisas que,embora saibamos possível ou mesmo provável, ficamos incrédulos quando aparece. Escrevo agora com a mão esquerda, virginal, intocada. Mas canso-me.

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3h30, 7 de Abril 

De volta ao meu amado/odiado silêncio. Do meu posto vejo um troço de paisagem que não fica verdadeiramente a dever nada à beleza, na verdade não fica a dever nada a nada: prédios, veiculos estacionados, um lote de terreno vedado para construção, as trazeiras de um posto de abastecimento da Repsol, a parte lateral da refinaria, tudo pontilhado por candeeiros de iluminação pública e tendo como moldura as paredes interiores do prédio onde me encontro. Convenhamos que não estou a ver nenhuma Gioconda nem o tecto da Capela Sistina! 

Paisagem fria como o silêncio que enregela os ouvidos, estática, inerte, cadavérica, uma moderna natureza morta. Ao contrário dessas pinturas tão comuns desde o fim da Idade Média, a beleza é-lhe arredia, talvez reproduzida em tela se tornasse interessante. As frutas e as peças de caça retratadas adquirem uma beleza e vitalidade que os originais não têm, numa espécie de versão artistica equiparável ao seu simbólico émulo literário: O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Quem sabe se a minha paisagem ganharia vida... Finalizo, a minha mão pede-me descanso urgente. 

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 3H35, 2ª feira, 11/04 

Inicio esta crónica sem ter verdadeiramente um motivo, um tema para o fazer. Limito-me a deixar correr o pensamento e o que eu penso é que nesta vida moderna, no momento que actualmente vivemos, deparamos com crises imensas a todos os níveis, desde o plano político, passando pelo económico, o religioso, o de valores, de emprego, enfim... A humanidade, tanto individualmente como no seu todo,está a sofrer talvez a maior crise existencial da sua história. Eu sinto-a, julgo que todos a sentimos, todos questionam o seu lugar e o seu futuro no mundo, num mundo que parece não ter futuro. E contudo tem-no. Já tivemos milhares de crises no passado, experienciámos as suas frequentemente graves consequências e contudo estamos aqui, para lavar e durar. No entanto a erosão é enorme, desgasta-nos, envelhece-nos prematuramente embora também nos endureça, vacina-nos, torna-nos mais resistentes. Qual dos factores devemos valorizar mais: o desgaste ou a imunização? Acho que nem um nem outro,devemos simplesmente aceitá-los como uma parte natural e importante do nosso processo evolutivo. Com isto não estou a dizer que abaixemos a cabeça aos revezes da vida, devemos combatê-los, é a nossa obrigação como seres pensantes e em desenvolvimento constante. Digo – isso sim – que devemos encarar todo o processo com abertura suficiente para conhecermos as nossas limitações e reconhecermos as consequências da lei da causa e efeito. 

00h16, 16 de Abril 

Estou muito cansado. Não que tenha trabalhado muito, nada ainda fiz, o meu “dia” só começou agora. Estou cansado porque dormi pouco, tive uma consulta de manhã e terapia ocupacional à tarde, o que fragmentou e reduziu substancialmente o meu descanso. Relembro agora, contudo vagamente, o estado de prostração extrema que senti durante semanas no meu primeiro AVC, há 24 anos. Agora pesa mais: sou mais velho, sinto mais o cansaço, preocupo-me mais, aguento menos, vai ser uma longa recuperação. 

Vou mudar de assunto porque a linha entre a preocupação legítima e a hipocondria é muito ténue. Faz já muito tempo que não tenho escrito nada que se assemelhe às velhas reflexões que esporádicamente fazia. Sinto falta delas, desse raciocínio analítico, por vezes experimental,das cavalgadas em hipóteses surreais, da exploração de devaneios oníricos. Não querendo voltar a pegar no assunto, atribuo contudo este estado, esta ausência de fluir criativo, ao estado de fadiga acima descrito, pois ele não é só físico mas também mental, nada que um descanso bem aplicado não cure a longo prazo. Continuo e continuarei a questionar o meu lugar no mundo, uma engrenagem que funciona sem que se lhe vislumbre utilidade, como um relógio que trabalha sem ponteiros. Afinal, viver para quê? Para que possamos tentar obter alguns nano-momentos de felicidade e para que tragamos à existência outros pobres seres a quem enganamos, a quem vendemos o logro em que caímos, enganamo-os com o mito da procura do que eles nunca verdadeiramente acharão. A vida é uma prova de maratona sem vencedores: vai-se sempre passando o testemunho mas todos morrem sem vislumbrar a meta, que está para lá do horizonte.

 01H14,3ª feira, 19 de Abril 

Estive há pouco a ler um artigo sobre mindfulness e gostei do que li. Chamou-me a atenção o quão stressante é a maneira de estar no mundo de, possívelmente, a grande maioria das pessoas, como se desperdiça energia ao pensar demasiado no “mau” passado e no “potencialmente mau” futuro, passando evidentemente num pretenso “mau” presente, como nos atormentamos com tudo isto, como entramos em piloto-automático e como isso faz-nos viver um sucedâneo de vida onde as acções que desempenhamos naturalmente no dia-a-dia são obscurecidas, escondidas por um tapume que até a nós próprios deixa de fora. Não nos apercebemos do que fazemos, mecanizamo-nos sem raciocinar, não monitorizamos in loco e insitu a nossa própria existência, tratando-a levianamente “abaixo de cão” (com o devido e merecido respeito por esses canídeos a que considero muito).

 Pois segundo me apercebi, o mindfulness é uma variante moderna, uma adaptação do budismo ou fortemente influenciado por ele, embora deixando mais de parte o componente espiritual mas não o excluindo. Trata-se de agir escutando-nos, desenvolver as nossas actividades diárias com a plena consciência do que estamos a fazer, parar e interiorizarmo-nos, fazer com que cada acto, cada pensamento se desautomatize, torne-se uma acção individualizada, consciente e irrepetível, numa visão zen do célebre anúncio da margarina: “Há-que parar, escutar o coração e usar Becel”. Para a minha mente essa leitura agiu como uma barrela, um descascar de um certo, não direi negativismo mas fatalismo que me caracteriza e a que chamo realismo existencialista (acho que é um eufemismo para o meu pensamento pró-pessimista). Sei que, infelizmente, dentro de dias os efeitos dessa lavagem desaparecerão e retornarei à linha de raciocínio original. Não quer dizer que terei pensamentos sujos, não no sentido em que geralmente este conceito é conotado, claro; o que pretendo dizer é que as asas do meu pensamento normal voltarão a ganhar a poeira fatalista e acre que o caracteriza. Contudo a semente fica, todo e qualquer conceito válido que se insinue no nosso raciocínio tem, por esse mesmo motivo,base para germinar, por vezes em circunstâncias inesperadas. O que faz-nos por vezes rechaçar essa germinação positiva é exactamente essa mente divagante que dispara pensamentos à toa em todos os sentidos, não se conseguindo fixar, concentrar-se em algo tão exasperantemente disperso e heterogénio. 

01h59,24/4 

O que serei para os outros, o que são os outros para mim? É uma questão que se calhar alguém raramente se perguntou e que tem uma importância enorme nos intercâmbios sociais. A consciência do “eu” e do “outro” dita a nossa relação com o mundo, a simbiose ou a mera condição de predador ou presa. É um processo predominantemente mental e que rege todo o desenvolvimento evolutivo, não só da espécie humana mas de todo o seu círculo de influência. Lógico será que no mundo circundante essa importância esbate-se aos nossos olhos por não lhe darmos a importância efectiva que nos merece a própria espécie. Mas mais importante ainda é a pergunta que inicialmente não referi: o que sou para mim própro, como me avalio? Se as primeiras questões são subjectivas, esta ainda o é mais. 

Quando avaliamos alguém, entra em linha de conta tudo aquilo que somos, tudo em que acreditamos, os nossos ideais. Porém, quando fazemos uma auto-avaliação,todos esses factores esbatem-se, por vezes quase desaparecem ou, pelo contrário, atingem as proporções agigantadas de um zelo egótico. Não vale a pena enganarmo-nos,sejamos honestos e imparciais, somos assim. É mais fácil condenar que condenar-se mas é também comum desculpar acusando-nos injustamente. “Conhece-te a ti mesmo”,é um aforismo inscrito na entrada do templo de Delfos; e só através da sua consecução se poderá responder com justeza às 3 perguntas formuladas. Claro que isto não passa de uma ilusão bem-intencionada.

 01h33, 28/04 

Hoje sinto-me vazio, sem ideias, sem objectivos. Imagino-me na pele e no corpo daqueles velhos sentados num banco de jardim a ver passar uma vida que já não lhes pertence, que já não lhes diz nada e da qual são agora meros observadores passivos. Sinto-me hoje como se estivesse na ante-câmara desse jardim a aguardar a minha vez de sentar no banco. Pergunto-me como seria investir-me do seu espírito e sentir o que eles sentem, não no corpo mas na mente. O que será existir sem objectivos, viver das memórias do passado com os olhos postos num presente sem horizonte, aguardando um futuro previsível que pode estar à distância de apenas alguns segundos? Quais os seus sentimentos: receio, ressentimento, resignação,desengano, esperança ou apenas nada? Não digo que não vou ser assim mas farei todos os possíveis para que isso não suceda. Apenas estou a passar por um período relativamente mau mas previsível de recusa/aceitação da minha nova condição de físicamente limitado. Embora seja ainda cedo para assumir as actuais limitações como definitivas, sei que não ficarei a 100%. O stress reside todo na percepção da extensão final da minha deficiência e do receio de ver chegar o dia a partir do qual deixarei de ter esperança de mais recuperação. 

00h40, 6ª, 29/04 

Após uma leitura da versão online do Observador onde se falava da origem dos “ovos Benedict”, encontrei uma referência curiosa às alocuções gregas oi polloi (os muitos, a maioria) e oi poligoi (os poucos, a minoria). São termos agora pouco usados, mais referenciados no século XIX e princípios do século XX, embora sempre num contexto erudito pois as citações gregas não são tão vulgarmente utilizadas como as latinas. Essas, mesmo hoje em dia, qualquer gato ou cão com o mínimo de pedigree consegue usá-las. Tenho alguma pena que o ensino, num contexto de cultura geral, tenha práticamente abolido as referências filosóficas e literárias da antiguidade grega pois estas agiam como um argot culto que, pelo seu uso, incentivava o desenvolvimento cultural dos seus utilizadores. Note-se que refiro desenvolvimento cultural e não vaidade culltural; esta última fica reservada àqueles que alimentam o seu ego com a admiração dos que possuem instrução inferior. 

Esses são os que atiram o seu saber ou pseudo-saber aos olhos dos outros como quem atira moedas aos pobres, apenas com o intuito de serem admirados. O argot deve ser utilizado com quem também o utiliza, com quem dá prazer falar a mesma língua e não como arma de arremesso, a linguagem deve ser adaptada às circunstâncias e ao interlocutor. Não dizemos “tacho” e “conduto” numa recepção diplomática nem referimos “degustação” e “iguarias” num contexto rural, haja bom-senso. É evidente que por vezes somos obrigados a baixar ou subir a fasquia para não sermos desagradávelmente importunados mas isso será num contexto meramente defensivo, uma excepção que confirma a regra. Não pretendo com esta linha de pensamento elitizar num sentido segregacionista. No fundo, todos utilizamos um argot, uma linguagem cabalística que só os do nosso meio conhecem ou poucos mais. 

A espirometria dos médicos, o estruturalismo dos linguistas, o ponto de estrada dos doceiros ou a redução dos cozinheiros, a derrama dos economistas ou a talocha dos trolhas são formas de comunicação restritas entre os membros da mesma comunidade, do mesmo ofício, da mesma elite e os seus membros têem consciente ou inconscientemente prazer em falar com os seus iguais uma língua comum. Por tudo isto sinto satisfação em alargar a minha cultura geral pois essa expansão poderá permitir-me, não só compreender os conceitos por detrás dos símbolos como também ao introduzir-me entre aqueles com quem ambiciono aprender algo, alargar os meus horizontes. O saber não ocupa lugar. A despropósito, o pessimismo patente na minha última crónica está dormir, é de novo a esperança quem está de serviço (só espero que ela não se importe de fazer horas extras). 

03h42, 10 de Maio, 3ª feira 

Cá estou eu de novo a confessar ao papel a ínfima parte dos meus pensamentos. Não que, na maioria das vezes, eles tenham alguma importância transcendente, geralmente são tão ou menos importantes que um monólogo de bêbado mas sempre vão servindo para aliviar o espírito e roubar espaço na memória do computador. Há sempre a possibilidade (não de todo desprezível) de que tudo o que escrevi e venha eventualmente a escrever até ao fim dos meus dias (e noites) ou à perda das minhas capacidades físicas ou mentais, fique para sempre sepultado electrónicamente no segredo inviolável de uma cloud, até ao apocalipse internético. 

Nesse caso, o meu legado ao mundo, a minha pegada na existência acabará por ser inglóriamente apagada, como palavras escritas num areal à beira-mar. Não importa, os meus pensamentos gráficos cumpriram a sua missão, independentemente de terem ou não sido lidos. A sua função foi, como escrevi acima, a de confessar o meu íntimo, aliviá-lo de tensões e causar-me prazer no meio das agruras da vida. Claro que lerem-me será sempre uma ressurreição fugaz e satisfatória; ao “ler” alguém, mesmo que tenha desaparecido há evos, estamos a fazê-lo reviver na nossa leitura, na nossa memória e no nosso tempo, estamos a fazer Lázaro voltar à vida, por mais ínfimo que seja esse momento. É assim que os autores das grandes obras tornam-se imortais: estando a ser constantemente chamados à actualidade, estando a ser lidos a todo o momento um pouco por todo o mundo, são imorredouros e universais, como uma espécie de deus menor. Os outros, esses diluem-se no espaço, no tempo e na memória, acabando por não restar deles nem o pó em que se tranformaram. 

03h45, 11/5, 3ª feira 

Por três vezes bati no molho e outras tantas quatro exagerei no tempero. Só me restava mudar os 4 pneus ao tacho para que a sopa com puré não derrapasse e se espetasse nalguma árvore com um prego ou uma sandes de papel vegetal. Como mesmo assim não chovia, dei com o martelo nas núvens de pó e mordi a cauda do Tempo, que estava a abanar como um terremoto. Elas disseram “ai” e caíram desamparadas em cima do desmaio. 

Foi assim que eu soube que fazia anos todos os anos no dia do meu aniversário e não fazia anos nos outros dias, embora ainda não saiba se faço anos durante as noites. Adormeci então para ver com os olhos fechados os sonhos de olhos abertos mas tropecei no primeiro ronco e acordei a pensar que estava na banheira, o que faria com que os meus pensamentos fossem limpos mas desbotados por causa da lixívia que puz no leite. Nessa altura já chovia a potes mas não consegui guardar nenhum porque eles partiam-se todos quando batiam no chão as claras em castelo para o bolo de bexigas doidas por assistir ao concerto do pavimento de terra batida que estava todo calcado pelos pés das baleias. 

As formigas também comiam o mel que as abelhas deitaram fora no fim do prazo de validade mas eram intolerantes ao açúcar e fugiam a sete pés porque usavam bengalas e não podiam correr muito. Dois anos depois suicidei os ratos que habitavam num duplex para onde tinham mudado depois de um naufrágio nas ilhas desertas que com o desgosto ficaram habitadas por homens sem cauda que só comiam quando não tinham fome. Nesse dia dormi sem pensar e só quando despertei é que reparei que estava acordado. 


Não, não estou doido nem o AVC afectou-me os centros de fala ou de comunicação escrita, apenas estou a mergulhar um pouco (porque ainda não sei nadar) na esteira de Lewis Carrols, dos Monty Pyton e, muito especialmente em Dylan Thomas e no surrealismo inglês. Sabe bem fugir à normalidade de vez em quando. 23h50, sábado, 21 de Maio De novo escrevo, ultimamente com dificuldade devido à espasticidade provocada pelo meu ainda recente AVC. Por esse estranho nome entenda-se o excesso,o défice do tónus muscular decorrente da morte de células cerebrais cuja função era esse controlo e que por qualquer razão não puderam ser substituidas.

 Entenda-se ainda por tónus muscular o estado natural de tensão muscular mínima que permite que estes não estejam flácidos ou demasiado tensos, num meio termo entre a acção e a inércia. Digamos que é o equivalente a ter um carro ligado mas em ponto morto. Pois bem, esta doença e consequente desabilitação motora tiveram como consequência um curso acelerado de psicologia e fisiologia geriártrica, uma espécie de mestrado em introdução à idade sénior. Enquanto passamos pela vida sem mossas de maior importância, os mais idosos passam-nos quase despercebidos, não atentamos verdadeiramente às suas dificuldades, não nos apercebemos do preço a pagar pelo declínio. 

Agora que experiencio certas situações típicas de um estágio de idade mais avançado, começo a tomar consciência das dificuldades a ele inerentes. É muito frustrante mas, como somos um animal de hábitos,acostumamo-nos e acabamos por esquecer a frustração, encarando a nova realidade como algo inevitável e natural. Na verdade, não me sinto velho, embora físicamente limitado. Dizem e com razão que ser velho ou sentir-se velho é um caso meramente psicológico; só somos velhos quando nos deixamos subjugar pelo conceito ou preconceito da idade, quando acreditamos que o somos e não damos luta; ser velho é desistir de viver, aceitar incondicionalmente a perda, natural ou não, de capacidades e sentarmo-nos a chorá-las. No fundo, ser velho é querer apenas ser novo, é querer ser o que fomos sem aceitar o que somos. 

00h54, 2ª, 30/05/16 

Como sempre, quando pego na caneta para escrever já aquela ideia que tinha para expôr desapareceu ou, pura e simplesmente tornou-se estéril, foi chão que deu uvas, perdeu aquele momento certo para manifestar-se. As ideias são como as respostas, perdem a oportunidade se demoram muito a ser utilizadas. Infelizmente, como tantas coisas na vida, elas surgem muitas das vezes nas piores alturas: quando conduzimos ou quando não temos forma de as anotar, no meio de uma conversa ou no banho. Mais tarde, quando nos lembramos e se nos lembrarmos, perdem a força, o fio condutor ou a importância inicial, desvanecem-se, insignificantizam-se, tornam-se um vago esqueleto do corpo original ou mesmo apenas pó, meros pensamentos cristalizados, diluídos pela chuva do tempo. 

Por que será que a solidão e o silêncio fascinam-nme e, simultâneamente, metem-me medo? Gosto da solidão, gosto de sentir-me deserto e surdo, de ser eu comigo, em monólogo e introspecção. Não quero ser incomodado, dividido por presenças ou sons que me desconfortem e no entanto essa ausência sensorial assusta-me, talvez mesmo pelo medo de assustar-me, não com essas presenças e sons mas porque confrontado comigo mesmo poderei expôr a minha alma à minha alma e conhecer o que não desejo. O sentimento de culpa é o pior dos castigos.

  • Porto, Portugal
5. abr, 2016
Citação
"A vida já é complicada e cheia de contratempos. Conservar o bom humor é um segredo de sobrevivência."
"

24. nov, 2016
Citação
"A política foi primeiro a arte de impedir as pessoas de se intrometerem naquilo que lhes diz respeito. Em época posterior, acrescentaram-lhe a arte de forçar as pessoas a decidir sobre o que não entendem.
Paul Valéry"

24. nov, 2016
Citação
"Todo o escritor tem uma vocação demiúrgica: aspira a ser um pequeno deus que cria mundos.
Fernando Aínsa"

5. abr, 2017
Poema
Porque o Melhor, Enfim

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!
_ Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. _
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva
Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos

Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.
Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício
Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...
Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,
Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranqüilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra

6. set, 2017
Citação
"A fantasia, semelhante a uma febre cujos germens são trazidos de longe, toma posse da nossa vida e instala-se nela cada vez mais profunda e ardentemente. No fim, só a imaginação nos parece a única realidade e a vida de todos os dias um sonho em que nos mexemos preguiçosos, como um actor perturbado pelo seu papel".

Ernst Jüngen"

6. set, 2017
Citação
"Raciocinar é um puro conciliar de visões irracionais.

Ortega y Gasset"

6. set, 2017
Citação
"Sempre imaginei que o Paraíso seria uma espécie de biblioteca.

José Luís Borges"

6. set, 2017
Citação
"Somos a nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos quebrados.

José Luís Borges"

17. jan, 2018
Citação
"Casi siempre se tienen demasiadas razones para esperar que nuestra existencia pase lo más rapidamente posible, que el presente se convierta lo más deprisa posible en futuro, que el mañana llegue cuanto antes, porque se espera con ansia el diagnóstico del médico, el comienzo de las vacaciones, la ultimación de un libro,el resultado de una actividad o de una iniciativa, y así se vive no por vivir, sino para haber vivido ya, para estar más cerca de la muerte, para morir.

Claudio Magris in El infinito viajar"

17. jan, 2018
Citação
"
"¿ Dónde está la frontera?", pregunta Saramago en el confín entre España y Portugal a los peces que, en el mismo río, según se deslicen por una orilla u otra nadan ora en el Duero ora en el Douro.

Claudio Magris in El infinito viajar"

21. jan, 2018
Citação
"Lerás bem quando leres o que não existe entre uma página e outra da mesma folha.

Agostinho da Silva"

5. fev, 2018
Citação
"A cada duas ou três gerações, quando a memória se desvanece e as derradeiras testemunhas dos massacres precedentes desaparecem, a razão eclipsa-se e os homens voltam a propagar o mal.

Olivier Guez"

11. mar, 2018
Citação
"Não ha modo de mandar, ou ensinar, mais forte e suave que o exemplo: persuade sem retórica, reduz sem porfia, convence sem debate, todas as dúvidas desata e corta caladamente todas as desculpas. pelo contrário, fazer uma cousa e mandar ou aconselhar outra, é querer endireitar a sombra de uma vara torcida.

Manuel Bernardes 1644-1710"

29. mar, 2018
Citação
"O monocentrismo é posto em prática quando confundimos uma ideia com a única ideia, em vez de reconhecermos que uma ideia na história é uma entre muitas

Edward W. Said"

19. abr, 2018
Citação
"O mundo está cheio de livros fantásticos que ninguém lê.

Umberto Eco"

19. abr, 2018
Citação
"Pela grossura da camada de pó que cobre a lombada dos livros de uma biblioteca pública pode medir-se a cultura de um povo.
John Steinbeck"

19. abr, 2018
Citação
"O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive.

Padre António Vieira"

14. mai, 2018
Citação
"Se toda a propaganda governamental inculcada nas salas de aula conseguir criar raízes dentro das crianças à medida que elas crescem e se tornam adultas, estas crianças não serão nenhuma ameaça ao aparato estatal. Elas mesmas irão prender os grilhões aos seus próprios tornozelos.

Lew Rockwell

28. jun, 2018
Citação
"Primeiramente uma nova teoria é atacada porque é absurda; depois admite-se que ela é verdadeira, mas óbvia e insignificante; finalmente ela é considerada tão importante que os seus adversários reclamam que foram eles próprios que a descobriram.

William James, 1907

25. fev, 2019
Citação
"Se a palavra impressa foi em tempos uma raridade em comparação com todas as palavras escritas em forma de manuscrito por alguém, hoje quase todas as palavras que são escritas em qualquer lado encontram-se disponíveis algures online. O que é raro, e portanto vale dinheiro, não são as palavras impressas mas as frações da nossa atenção.

In Revista do Expresso, 09/02/19
2019 David Samuels
Originalmente publicado na revista Wind
Tradução de Luís M. Faria"

8. ago, 2019
Citação
"Historically the word humanitas has had two clearly distinguishable meanings, the first arising from a contrast between man and what is less than man; the second, between man and what is more. In the first case humanitas mean a value, in the second a limitation.
[…] It is from the ambivalent conception of humanitas that humanism was born. It is not so much a movement as an attitude which can be defined as the conviction of the dignity of man, based on both the insistence of human values (rationality and freedom) and the acceptance of human limitations (fallibility and frailty) ; from these two postulates result – responsibility and tolerance.
PANOFSKY, Erwin (1955), Meaning in the Visual Arts, New York, Doubleday & Company, Inc. (pp 1-2)
"

23. out, 2019
Citação
"Sentir é sempre sentir-se sentir.

Jean-Luc Nancy (1994), Les Muses, Paris, Galilé, (p. 171).
[traduzido do francês]"

22. dez, 2019
Soneto


Pára-me de repente o Pensamento ...
- Como que de repente refreado
Na Douda Correria em que levado ...
- Anda em busca da paz, do esquecimento...

Pára Surpreso... Escrutador... Atento
Como pára... um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...
Pára... e Fica... e Demora-se um Momento...

Vem trazido na Douda Correria
Pára à beira do Abismo e se demora

E Mergulha na Noite, Escura e Fria
Um olhar d'Aço que na Noute explora...

- Mas a Espora da dor seu flanco estria...

- E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!


"Poesias Completas, Assírio e Alvim, 1991, p. 55
Ângelo de Lima

6. jan, 2020
Três sonetos

O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado
Onde co vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

- Ondas – dezia – antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Luís de Camões

6. jan, 2020
Poema

Se às vezes digo que as flores sorriem

E se eu disser que os rios cantam,

Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores

E cantos no correr dos rios...

É porque assim faço mais sentir aos homens falsos

A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.


Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes

À sua estupidez de sentidos...

Não concordo comigo mas absolvo-me,

Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,

Porque há homens que não percebem a sua linguagem,

Por ela não ser linguagem nenhuma.


"O Guardador de Rebanhos" in Poemas de Alberto Caeiro - Fernando Pessoa

7. jan, 2020
in Segundo Excurso
"Pelo que toca à realidade em que vivo, não quero chamar pelo nome aos seus objectos, mas apenas não os deixar ficar impensáveis.

Alberto Pimenta (1978), O Silêncio dos Poetas, Lisboa, Cotovia: 194."

7. jan, 2020
In Segundo Excurso
"Reconheço (ou creio reconhecer) que o velho modelo fundamental da língua: sujeito- objecto - predicado já não se aguenta mais. Ainda o usamos. Mas já está petrificado. Tem o ar gasto, começa a esboroar, corroído pelo tempo. O próprio sistema começa a tornar-se "clássico" no sentido dos conservadores. E onde os conservadores põem a mão há que contar com um cadáver.

Alberto Pimenta (1978), O Silêncio dos Poetas, Lisboa, cotovia: 194."

3. mar, 2020
Citação
"É tão agradável recordarmo-nos, vaidosos, de certos obstáculos que muitas vezes, com um sentimento penoso, considerámos como intransponíveis, e compararmos aquilo que somos agora, já desenvolvidos, com o que éramos então, ainda por desenvolver.

Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister"

3. mar, 2020
Citação
"Nascer, viver, morrer são verdades universais e sequência natural. Se
quisermos transformá-las em verdade pessoal e em sequência cultural,
teremos de escrever muito mais do que os três verbos por aquela ordem
dispostos, e admitir que […] o viver possa conter alguns nascimentos
e mortes, não apenas os alheios que de algum modo nos toquem ou
firam, mas outros nossos: tal como a cobra, largamos a pele quando nela
não cabemos, ou então vêm a faltar-nos as forças e atrofiamos dentro
dela, e isto só acontece aos humanos. […] Ainda seguro restos de pele
antiga, mas sobre as fibras […] uma rede frágil se estende já, primeira
metamorfose do meu bicho-da-seda pessoal que dentro do casulo suponho
terá vida sucessiva e não morte. Não me parece estimável o estado
de crisálida: a sua inviabilidade como tal contradiz o contínuo que é,
para mim, o fluxo vivo. (E, no entanto, a crisálida vive.) Uma porta é,
ao mesmo tempo, uma abertura e aquilo que a fecha.

José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia,"

9. jun, 2020
Citação
 "The main facts in human life are five: birth, food, sleep, love and death.
[…] To consider the two strangest first: birth and death; strange because they are at the same time expériences and not experiences. We only know of them by report. We were all born, but we cannot remember what it was like. And death is coming even
as birth has come, but, similarly, we do not know what it is like. Our final experience, like our first, is conjectural. We move between two darknesses.
[…] So let us think of people as starting life with an experience they forget and ending it with one which they anticipate but cannot understand.

FORSTER, E. M. (s/d), Aspects of the Novel, San Diego, New York, London.
A Harvest Book - Harcourt, Inc.


(In)Vulgaridades image
NEFELIBATA
(grego neféle, -es, nuvem + -bata) <categoria_ext_aao>adjectivo de dois géneros e substantivo de dois géneros
1. Que ou pessoa que anda ou vive nas nuvens.
2. Que ou quem é muito distraído.
3. [Depreciativo] Diz-se de ou escritor, geralmente excêntrico, que faz prosa ou
versos que se afastam dos processos literários mais comuns.

"nefelibata", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/nefelibata [consultado em 05-02-2018].


PULCRO
(latim pulcher, -chra, -chrum)<categoria_ext_aao>adjectivo
1. [Linguagem poética] Que possui grande beleza (ex.: pulcra donzela). = BELO, FORMOSO
2. [Linguagem poética] Que possui delicadeza, graciosidade (ex.: manto pulcro). = DELICADO, GRACIOSO, MIMOSO

"pulcro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/pulcro [consultado em 06-02-2018].


RESILIÊNCIA
(inglês resilience, do latim resilio, -ire, saltar para trás, voltar para trás, reduzir-se, afastar-se, ressaltar, brotar)
substantivo feminino
1. [<dominio_ext_aao>Física] Propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação.
2. [Figurado] Capacidade de superar, de recuperar de adversidades.

"resiliência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/resili%C3%AAncia [consultado em 06-02-2018].


PROLEGÓMENOS
(grego prolegómenai, noções preliminares, de prolégô, escolher, preferir, predizer,
dizer antes, proclamar)
substantivo masculino plural
1. Introdução circunstanciada que precede uma obra.
2. Conjunto das noções preliminares de uma ciência.

"prolegómenos", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/proleg%C3%B3menos [consultado em 25-02-2018].


ÍNSITO
(latim insitus, -a, -um)
<categoria_ext_aao>adjectivo
1. Inserido.
2. Implantado.
3. Que é inerente ou está presente desde o nascimento. = CONGÉNITO, INATO
4. Intimamente impresso no ânimo.

"ínsito", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/%C3%ADnsito [consultado em 16-03-2018].


NÚMENO
(grego nooumenon, sentido, significado, de noeô, aperceber-se, perceber, ver, apreender, conceber, pensar, compreender)
substantivo masculino
1. [<dominio_ext_aao>Filosofia] Objecto de intuição intelectual desprovido de todo o atributo fenomenal.
2. [<dominio_ext_aao>Filosofia] Pura ideia a que não corresponde nenhum objecto material.
3. [<dominio_ext_aao>Filosofia] A coisa em si, por oposição ao fenómeno, que é a coisa como ela é apreendida por sentidos.

"númeno", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/n%C3%BAmeno [consultado em 29-03-2018].


HIPOTIPOSE
substantivo feminino
Descrição viva e animada (de um objecto ou de uma acção).

"hipotipose", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/hipotipose [consultado em 30-08-2018].

ÉCFRASE
(grego ekfrásis, -eos, descrição)
substantivo feminino
[<dominio_ext_aao>Retórica] Descrição pormenorizada.

"écfrase", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/%C3%A9cfrase [consultado em 30-08-2018].


OUROBORO
A Ouroboros ou Oroboro é uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Muitas vezes, esse símbolo antigo está associado à criação do Universo.
Origem
O significado da palavra ouroboros, de origem grega, é “devorador de cauda”. O mesmo resulta da junção das palavras oura, que significa “cauda”, e boros, que significa “comer” ou “devorar”.


DÍADE
dí·a·de
(latim dyas, -adis, do grego duás, -ados, dois)
substantivo feminino
Grupo de dois. = DÍADA, PAR, PARELHA

"díade", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/d%C3%ADade [consultado em 04-12-2018].


ESTOCÁSTICO
(grego stochastikós, -ê, -ón, hábil, sagaz)
<categoria_ext_aao>adjectivo
1. [<dominio_ext_aao>Matemática] Relativo a estocástica.
2. Diz-se dos processos que não estão submetidos senão a leis do acaso.

"estocástico", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/estoc%C3%A1stico [consultado em 19-02-2019].


APOTROPAICO
(grego apotrópaios, -on, que evita o mal, que protege, expiatório + -ico)
<categoria_ext_aao>adjectivo
Que pretende ter ou tem o poder de afastar o mal. = APOTROPEICO, APOTROPEU

"apotropaico", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/apotropaico [consultado em 24-10-2019].


APOSIOPESE
nome feminino
recurso estilístico que consiste na interrupção intencional uma frase e que pode ser representado graficamente por reticências
Do grego aposiópesis, «silêncio súbito», pelo latim aposiopēse-, «idem»
SINÓNIMOS
reticência
aposiopese in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-01-06 05:20:24]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/aposiopese


PAIDEUMA
Paideuma é aquilo que deve ser ensinado, não meramente para se conhecer o passado, mas para uso do presente e do futuro.
Frobenius
O paideuma – conceito utilizado por Pound a partir de Frobenius – traria a “organização do conhecimento para que o próximo homem ou geração possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar o mínimo tempo com itens obsoletos”.
https://www.casadasrosas.org.br/centro-de-referencia-haroldo-de-campos/edicoes-paideuma
No Concretismo, o paideuma (aqui entendido como elenco de autores que serviriam de “nutrição de impulso” ao movimento) era constituído, basicamente, por Mallarmé, Joyce, Pound e Cummings,
https://ditirambospoesia.wordpress.com/2017/12/18/gertrude-stein/


COONESTAR
verbo transitivo
Dar aparência de honesto ou de conformidade com a honra a (o que é indecente ou indecoroso).

"coonestar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/coonestar [consultado em 22-04-2020].


ANFIGURI
substantivo masculino
1. Discurso feito adrede para não ser entendido.
2. [Figurado] Peça literária ininteligível.

"anfiguri", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/anfiguri [consultado em 30-04-2020].


AVUNCULAR
<categoria_ext_aao>adjectivo de dois géneros
Que vem dos tios.

"avuncular", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/avuncular [consultado em 15-05-2020].


INCOATIVO
(latim tardio inchoativus, do latim inchoo, -are, começar, empreender, construir)
<categoria_ext_aao>adjectivo
1. Que dá ou origina um começo. = INICIAL
2. [<dominio_ext_aao>Gramática] Diz-se do verbo que designa começo ou aumento progressivo de acção.

Sinónimo Geral: INCEPTIVO

"incoativo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/incoativo [consultado em 05-07-2020].


PROCLIVE
(latim proclivis, -e)
<categoria_ext_aao>adjectivo de dois géneros
1. Inclinado para diante.
nome masculino
2. Inclinação para diante (ex.: o paciente deverá estar em posição de proclive).

"proclive", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/proclive [consultado em 06-09-2020].


FANCHONO
fan·cho·no |ô|
(origem duvidosa)
nome masculino
1. [Calão] Homem homossexual.
2. [Brasil] Pequeno carro de tábua grossa, com quatro rodízios, empregado nas casas comerciais para transporte de fardos.
Plural: fanchonos |ô|.

"fanchono", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/fanchono [consultado em 16-12-2020].


Desmilinguido

des·mi·lin·gui·do |güi|
(
particípio de desmilinguir
)
adjectivo
1. [Brasil, Informal]  Que se desmilinguiu.
2. [Brasil, Informal]  Enfraquecido, debilitado.

• Grafia no Brasil: desmilingüido.

"desmilingüido", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/desmiling%C3%BCido [consultado em 26-05-2022].

Uxorilocal

u·xo·ri·lo·cal
(latim 
uxor, -oris
, mulher, esposa + 
local
)
adjectivo de dois géneros
[<dominio_ext_aao>Antropologia]  Relativo a uxorilocalidade ou ao modo de residência de um novo casal em que os cônjuges vão habitar na casa ou na povoação da mulher (ex.: residência uxorilocal).

"uxorilocal", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/uxorilocal [consultado em 14-10-2021].




LATINORUM image
VIVIT SUB PECTURE VULNUS
locução
Expressão que Virgílio emprega para descrever a paixão nascente de Dido por Eneias; faz-se-lhe alusão para exprimir a vivacidade dos vestígios que deixam os sentimentos profundos.
etimologiaOrigem etimológica: locução latina que significa "a ferida sangra no fundo do peito".Fonte: Virgílio, Eneida, IV, 67."vivit sub pectore vulnus",

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/vivit%20sub%20pectore%20vulnus.


PAULATIM DEAMBULANDO, LONGUM CONFICITUR ITE
Devagar se vai ao longe

NOMEN AMICITIAE QUATENUS EXPEDIT, HAERET
O nome da amizade dura enquanto é útil

NATURALIA NON SUNT TURPIA
O que é natural não é vergonhoso

EX ORE PARVULORUM  VERITAS
da boca das crianças (sai) a verdade; as crianças não sabem dissimular a verdade
São Mateus, Evangelho, 21, 16

EHEU! FUGACES LABUNTUR ANNI
Ai de nós! Os anos correm céleres
Horatio


DUBITANDO AD VERITATEM PERVENIMUS
Duvidando, chegamos à verdade
Cicero


CURRENTE CALAMO
Ao correr da pena


AURO SUADENTE, NIL POTEST ORATIO
Se o ouro persuade, nada vale a palavra
Publilio Siro


CUM BRUTIS NON EST LUCTANDUM
Não se deve lutar com brutos (não disputar com ignorantes e insolentes)


DABE NEMO POTEST QUOD NON HABIT, NEQUE PLUS QUAM HABIT
Ninguém pode dar o que não tem nem mais do que tem


CONVENTIO EST LEX
Ajuste é lei ( o que foi tratado deve ser cumprido)


CAVE ILLIUS SEMPER QUI TIBI IMPOSUIT SEMEL
Acautela-te para sempre daquele que te enganou uma vez (cesteiro que faz um cesto, faz um cento)

ABYSSUS ABYSSUM INVOCAT 
O abismo atrai o abismo


ROMA LOCUTA, CAUSA FINITA
Roma falou, a causa está finda (A decisão está tomada).


 PHILOSOPHUM NE FACIT BARBA 
A barba não faz o filósofo (O hábito não faz o monge).


NE SUTOR ULTRA CREPIDAM
Que o sapateiro não vá além dos sapatos (Não te metas no que não sabes).


ERRANDO DISCITUR
É errando que se aprende.


CARPE DIEM QUAM MINIMUM CREDULA POSTERO

Aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã
Odes I, 11.8 (Lat.: Carmina I) - Quintus Horatius Flacco ( Horácio:  65 a.C. - 8 a. C.)


EXTREMA OMNIA SUNT VITIOSA

Todos os extremos são viciosos.
in http://www.filologia.org.br/revista/36sup/index.pdf
(visto em 21-03-2023)


SEMEL EMMISSUM VOLAT IRREPARABILE VERBUM

(locução latina que significa "a palavra, uma vez emitida, voa irreparável")
locução:
A palavra, uma vez solta dos lábios, corre, voa, sem que possa mais corrigir-se, emendar-se, alterar-se; equivalente a "devem medir-se as palavras".
Fonte: Horácio, Epístolas, I, 18, 71.

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/semel%20emissum%20volat%20irreparabile%20verbum [consultado em 21-03-2023].



IPSA SCIENTIA POTESTAS EST".

Conhecimento é poder ("toda a ciência é poder", na tradução literal).
Aforismo atribuído a Sir Francis Bacon (1561-1626),  pensador e filósofo inglês que originalmente o formulou como Scientia potentia est, mas que mais tarde alterou para a versão definitiva acima transcrita.
Este axioma foi usado pela primeira vez na versão de 1668 do Leviatã, de Thomas Hobbes (1588-1679), também um filósofo inglês, que serviu como secretário de Bacon durante sua juventude.

Informação extraída e melhorada do site  https://conceitosdomundo.pt/conhecimento-e-poder/  
20/03/2023


NOLENS VOLENS

(locução latina que significa "quer queira, quer não queira")
locução
Querendo ou não querendo; expressão latina equivalente a «bom grado, mau grado».

 in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/nolens,%20volens [consultado em 13-03-2019].
Anacronismos image
1. jun, 2016

Prefácio
(Prefácio original, entretanto substituido)

Um blog por que razão?
Não quero que a minha passagem no mundo termine sem pelo menos deixar uma pegada impressa no passado para que, tal como os dinossauros de Carenque, não seja esquecido quando partir desta para a outra, para a que dizem que é melhor mas que eu, tal como S. Tomé, só vendo acredito.
Não tenho pretensões de escritor, não me arrogo pertencer a essa louvável classe de alquimistas das palavras, apenas mancho o papel (neste caso o écran) com os meus pensamentos transmigrados em escrita. Há 4 anos que o faço, arrítmicamente, sem periodicidade definida, sem estilo nem objectivo concreto, apenas por escrever, apenas por gosto ou desabafo e isso é-me suficiente.
As postagens que aqui farei reflectirão diferentes estados de espírito e diferentes datas, umas identificadas, outras não mas seguindo sempre uma ordem cronológica definida, retiradas dos meus apontamentos pessoais e limpas de referências demasiado íntimas ou explícitas , dando primazia à essência e não ao cenário ou aos actores, salvaguardando a minha e sua privacidade.
Sei que farei alguns posts chatos, fracos de conteúdo, à mistura com outros porventura mais interessantes e aproveitáveis, mas eles constituem a minha visão do meu mundo que só poderá ser compreendida pela soma das suas partes, as boas e as más, as aborrecidas e as outras, é o meu testemunho vital e será simultâneamente e na devida altura a minha contribuição póstuma.
Na pagina “Postes do passado” inseri todas as minhas considerações,os meus devaneios linguísticos, começando em 2012 e terminando na actualidade. Até agora tinha-os mantido num discreto e resguardado sigilo celulósico, aguardando pelo dia da libertação.
Na pagina seguinte – “Devezemquandário” – inserirei os posts actuais, aquelas navegações literário-filosóficas ou nem por isso que forem surgindo ao sabor da maré. No entanto e como é lógico, não desnudarei totalmente o meu espírito, digamos que o porei, no máximo, em cuecas...
Esta edição experimental é limitada a um círculo muito restrito; qualquer eventual publicação pública (passo a expressão) passará pela analise das reacções que forem surgindo e constará de temas soltos e considerações pessoais não vinculadas a qualquer linha de pensamento particular, razão pela qual várias vezes me contradisse e contradir-me-ei, disso tenho consciência. Quero que o meu pensamento seja livre e siga ao sabor do vento das circunstâncias, evitando muros conceptuais delimitatórios.
A título meramente informativo, para quem não tem ou teve o supremo privilégio de conhecer-me e por uma questão de enquadramento nas crónicas, informo que as referências laborais a que frequentemente me refiro passam pelas minhas ex-actividades de estafeta num restaurante na cidade do Porto e empregado numa tabacaria em Paris, assim como o actual desempenho de vigilante nocturno em Matosinhos.
Críticas construtivas serão bem vindas, as outras serão tratadas como os cães que vêem passar a caravana: ignoradas.
A vivissecação vai começar...
(Escrito de acordo com a “velha ortografia”, salvo algum erro involuntário)
https://www.youtube.com/watch?v=UImEBsYTOm4&ab_channel=MiguelAra%C3%BAjo

Pois é... E o que se passa quando vamos para velhos.
Consulta em: https://hdl.handle.net/10216/145728


Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Especialização em Estudos Comparativos e Relações Interculturais
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
José Luís dos Santos Freitas
M
2022

José Luís dos Santos Freitas
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
2022

José Luís dos Santos Freitas
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho

Membros do Júri
Professor Doutor José Domingos de Almeida
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Professora Doutora Maria Luísa Malato
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Professora Doutora Maria de Fátima Outeirinho
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Classificação obtida: 16 Valores

Dedicatória
Ao meu pai, cuja bibliofagia insaciável moldou o meu caráter de leitor felizmente compulsivo.
À minha mulher Diva e minhas filhas Sofia e Cristina, pelo “mutualismo facultativo” que nos une e enriquece culturalmente.

Sumário
Declaração de honra .................................................................................................................3
Agradecimentos ...........................................................................................................................4
Resumo................................................................................................................................................ 5
Abstract ............................................................................................................................................. 6
Introdução........................................................................................................................................ .8
1. Das descobertas às opções............................................................................................ 13
1.1. Génese de uma consciência........................................................................................ 13
1.2. Sensibilização social…………………….……………………...................................……..…………….…..15
2. Apre(e)nder o Mundo......................................................................................................... 25
2.1. Pobreza e sofrimento...........……………………………………………………….……………………………….25
2.2. Revolta...................................................................................................................................... 28
2.3. Compreensão da humanidade............................................................................ 30
2.4. Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu…….………32
3. Castro e a Verdade: ficção e censura……..……..…………………………………..………..….43
3.1. A questão da ficcionalidade....………………………………………………………………………....…44
3.2.Postura de um novel humanista............................................................................ 47
Considerações finais .............................................................................................................68
Referências bibliográficas……………………………………………………………………………..……………..74

Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 22 de setembro de 2022
José Luís dos Santos Freitas
Agradecimentos
À minha família, pelo apoio que me deram e pelo orgulho que demonstraram pela prossecussão dos meus estudos, constantemente interrompidos pelas vicissitudes da vida. As suas manifestações de encorajamento foram importantes para vencer os obstáculos que se me foram deparando.
À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima da Costa Outeirinho, pelo Saber que partilhou comigo, pelo apoio demonstrado e — muito importante – pela sua jovialidade: um verdadeiro lenitivo que ajuda a, por vezes, restabelecer a auto-confiança perdida. A sua paciência, estímulo e boa-vontade ajudaram-me a lutar contra a maré, apesar de a corrente ser por vezes forte. Nunca foi uma tábua de salvação; em vez disso, ensinou-me a nadar.
A tod@s @s professor@s que me foram acompanhando no calcorreio pelos caminhos do Conhecimento, e com quem aprendi incontáveis e insuspeitadas singularidades. Bem hajam, também.

Resumo
Abordar José Maria Ferreira de Castro é, até certo ponto, repetir o que já foi questionado pelos investigadores que nos antecederam na árdua tarefa de decifração do autor e da sua obra. No entanto, a nossa investigação, se (assim o esperamos) bem conduzida, acrescentará algumas – embora ténues - centelhas de luz, que poderão guiar os biblionautas castrianos vindouros na demanda da razão para um projeto estético do escritor. Um objetivo desejável, mas de conclusão lenta e imprevisível.
Não nos podemos arrogar o privilégio do solevar definitivo do diáfano véu que cinge essa razão, a força e a mensagem de um daqueles que fazem parte do restrito grupo de ínclitos escritores portugueses que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Não podemos emular o Grande Arquiteto, arrogando-nos um Fiat Lux que afaste as trevas e dissipe quaisquer dúvidas sobre esta questão fulcral que abordamos. Poderemos, porventura, contribuir modestamente para a compreensão do trabalho ímpar e multifacetado de Ferreira de Castro, como ímpares e multifacetados serão os trabalhos de todos os grandes vultos literários da Humanidade.
A nossa focagem no autor de A Selva visa analisar a génese e o percurso ético do escritor, rendido à perspetiva de um novel humanismo universalista, ou seja, afastando a visão renascentista do homem como centro de um universo de etnia exclusivamente branca e masculina, onde os negros, os índios, as mulheres, as crianças e os escravos não tinham expressão. Em suma, um humanismo não democrático e excludente.
Seguindo os seus passos pelo planeta e pela literatura, tentaremos dissecar as causas e efeitos das suas ideias e credos, avaliando a sua — arriscamo-nos a dizer — pegada civilizacional e ética, a sua humanidade e os seus sonhos edénicos. Aventurar-nos-emos, em suma, a explicar quem foi Ferreira de Castro, qual a sua utopia e qual o seu legado às letras e ao Mundo.
Palavras-chave: Ferreira de Castro, ética, humanismo, estética.

Abstract
To address José Maria Ferreira de Castro seems to repeat what has been questioned by preceding researchers in the hard task of deciphering the author and his work. Still, our investigation, if successfully conducted (so we hope), may add some – certainly tenuous – sparks of light that may guide the future Castrian Biblionauts on the quest for the reason of the writer’s aesthetic project. Although rather desirable, it may have a slow and unpredictable conclusion.
We cannot brag from the privilege of lifting the light veil that covers that reason, the force, and the message of one of those men that are included among the strict group of illustrious Portuguese writers that due to great deeds have been freed from death. We cannot emulate the Great Architect by arrogating a Fiat Lux that dissipates the darkness and solve all the doubts about this central question. Nevertheless, it might be possible that we modestly contribute to the understanding of his unique and multifaced work – once unique and multifaceted are the works of all the great writers of Humankind.
When addressing to the author of The Jungle we try to analyze his genesis and ethic course rendered to the perspective of a universalist humanism that moves away the Renaissance look of Man as the center of an exclusively white and male universe where the Black, the Indian, the women, the children and the slaves had no expression whatsoever. In short, a nondemocratic exclusionary humanism.
Following the writer’s steps through planet and literature we shall try to dissect the causes and consequences of his ideas and beliefs, assessing his — we dare say — ethical and civilizational footprint, his humanity and his Edenic dreams. In the end, we shall try to explain who Ferreira de Castro was and which were his Utopia and his legacy to Letters and to the World.
Keywords: Ferreira de Castro, ethics, humanism, aesthetics.

O homem não é um animal solitário, e enquanto perdura a vida em sociedade, a realização de si mesmo não pode ser o supremo princípio ético.
Bertrand Russell
Introdução
O nosso escopo ao elaborar esta dissertação é o de procurar interpretar o modo como Ferreira de Castro, no seu percurso existencial, observa, interioriza e expõe a visão do seu mundo contemporâneo e dos lugares que visitou através do planeta, como ser humano e como europeu, assim como avaliar em que medida as questões intemporais como as injustiças sociais, a insensibilidade e a desumanidade de alguns sobre uma maioria ou minoria, consoante cada situação particular[1], se refletem nos seus testemunhos de viagens — Pequenos Mundos e Velhas Civilizações e A Volta ao Mundo, assim como nos romances Emigrantes, A Selva, Terra Fria, A Lã e a Neve e Eternidade
Não despiciendo, o restante conjunto da sua produção literária reflete também essas preocupações éticas, embora tenhamos escolhido prioritariamente as obras acima discriminadas por elas constituírem o grupo onde as questões focadas têm mais visibilidade. Hoje, como então, testemunhamos a pobreza, a miséria, a exclusão, a discriminação e mesmo a escravatura. Estas máculas sociais têm permanecido quase imutáveis e continuam a fustigar inexorável e generalizadamente o globo.
Ferreira de Castro não é um escritor renascentista; os seus ideais não se regem apenas pelo Humanismo medievo. Para ele, o sentido de Humanidade abarca os conceitos coetâneos a Thomas More e Petrarca, embora os exceda largamente, pois amplia a sua esfera a todos aqueles a quem esse humanismo primário excluiu: as minorias (étnicas ou outras), as mulheres, os escravos, e mesmo as crianças. O humanismo do autor é universalista, no mais cabal sentido do termo[2]. Garcia e Silva[3] resume assim as suas qualidades:
Ferreira de Castro manteve ao longo da vida grande coerência em matérias éticas e ideológicas fundamentais. Anarquista, antimilitarista, antirracista, anticlerical, antipatrioteirista, anticapitalista; anticolonialista, anti pena de morte, anti eleições[4]; pró-eutanásia, pró-amor livre”. (SILVA apud CARVALHO, 2017: 66-67)
Assim, procuraremos compreender a ética do escritor e determinar a sua postura estética através do seu percurso vital, ponderando que contribuição poderá ter tido o nascimento e infância breve no seio de uma família humilde, inserido num panorama social de quase analfabetismo, de uma típica aldeia beirã nos fins do século XIX. Mais importante ainda, em que grau a sua emigração para o Brasil, mais concretamente, para um local de morte iminente, de desenraizamento provável e de penúria garantida, denominado Seringal Paraíso, no Amazonas — local onde estabeleceria contacto com outro tipo alienígena de miséria e de exploração social —, contribuiu para a formação da sua personalidade humanista e para o seu apurado sentido de justiça.
Terá sido talvez esta abordagem primeva com um mundo que não o seu, o que incentivou o jovem Ferreira de Castro à produção livresca e, posteriormente, ao jornalismo. Assim, foi na sede do distrito, em Belém do Pará, local a que se dirigiu após abandonar a selva, desiludido e padecente de enorme incompletude existencial, que tomou o primeiro contacto com o mundo mediático das letras.
Farto da exploração e das injustiças que presenciou durante os quatro anos da sua permanência no seringal, Castro, prenhe de sonhos e parco de dinheiro, tentou progredir nesta cidade através do seu anseio de menino: a atividade jornalística – após desmistificado, na selva amazónica, o logro de um Eldorado impossível. Em entrevista a Álvaro Salema, amigo e um dos seus principais biógrafos, afirma: “Logo nesses dois primeiros anos da minha estadia ali, eu havia modificado muito. A ideia que levara ao Brasil o meu final da infância, que era a de enriquecer, desaparecera completamente. Eu perdera o espírito de emigrante e só desejava ser escritor.“ (CASTRO, 2021: min. 12.04)
Em “Pequena história de A Selva”, José Maria, na sua fuga de há muito desejada, para longe do Paraíso a bordo do navio Sapucaia, que o levaria para um futuro incerto, mas conscientemente decidido, relembra: “Eu tinha, então, dezasseis anos. E dos quatro que passara ali, não houve um só dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir!” (CASTRO, 1970: 18)
Foi uma decisão arriscada, mas de que o autor nunca quis abdicar, mesmo atendendo a que poderia tornar-se um fracasso— o que, felizmente, não sucedeu, como está claramente demonstrado no término da citação autobiográfica que reproduzimos: “A luz do farol ia diminuindo ao longe, um ponto único e vermelho na noite da floresta — um ponto final da minha vida ali.” (Ibidem)
Inicialmente, este jovem, recém-chegado e desconhecido, e em complemento de outros díspares mesteres, empregou as suas aptidões literárias como meio de sobrevivência, ao publicar artigos em jornais e iniciar-se como escritor, produzindo obras literárias em formato folhetinesco, que ele próprio chegou a distribuir porta a porta. Sem embargo, a sua ainda incipiente produção literária denotava já uma preocupação social focada nos pobres, nos oprimidos, naqueles verdadeiros vencidos da vida, que em nada se assemelhavam àqueles que, de apodo homónimo, constituíram os ilustres escritores da Geração de 70, do século que acabara de findar. Para esses, contavam os ideais; para os primeiros, a sobrevivência.
Feita a introdução do escritor, origem criadora do objeto do nosso estudo, e de onde partimos para a análise da sua ética pessoal e da razão estética da sua obra, começamos por expor os pontos que julgamos pertinentes para a compreensão do raciocínio que preside às conclusões que obtivemos.
Deste modo, no primeiro capítulo, exploramos a génese do seu pensamento humanista, fazendo uma breve resenha da sua infância - em Portugal e no Brasil - e de como esta influenciou a sua visão político-social futura. Analisamos a evolução destas caraterísticas a partir da sua estadia e aprendizagem em Belém do Pará, agora numa perspetiva mais maturada, onde veremos o jovem Ferreira de Castro entregue à sua sorte, ao seu sonho e aos estímulos que constituíram a base do seu pensamento humanista.
Visitamos também a sua inscrição no quadro emigracional da época, deparando com os obstáculos que o escritor teve de vencer perante um cenário de insucesso quase por certo garantido. Para finalizar o capítulo, apontamos as referências anarco-libertárias que canalizaram com êxito o seu percurso ético e a sua inscrição no movimento do Realismo Social, de que falaremos posteriormente.
O segundo capítulo incide sobre a forma como Ferreira de Castro interioriza a sua perceção do Mundo, os seus sentimentos perante os males e fragilidades da Humanidade, a sua visão da miséria, das suas causas, dos dramas que, incessantemente, assolam os mais desfavorecidos e cuja raíz vai encontrar – não na Natureza e suas calamidades, mas no seio dos seus pares. Apontamos ainda para a convicção de Ferreira de Castro na grande responsabilidade dos países dominantes do Ocidente — com particular ênfase, da Europa — pelas atitudes exploradoras e preconceituosas que se abatiam e abatem sobre os desfavorecidos de todo o Mundo.
É contra esse comportamento antinatural que o autor manifesta o seu repúdio, a sua revolta; mas, “(...) homem generoso e de profundos afectos, uma pomba sem fel, como lhe chamou carinhosamente Vitorino Nemésio, reconhecendo num comovido tributo o seu pecado de não lhe ter dado em vida a atenção que merecia” (SAMUEL, 2017: 30-31), Ferreira de Castro vê a Humanidade, no seu conjunto, como uma criança que, inconsciente da sua maldade, a exerce, não apenas entre seus semelhantes, mas alargando-a aos seres que lhe são tantas vezes vistos como evolucionalmente inferiores; no geral, a toda a Natureza. Reabordamos, deste modo, a ética castriana, já não como resultado de influências políticas específicas, mas como produto acabado das suas vivências e convicções humanísticas.
Referimos a sua extrema afeição ao reino vegetal, particularmente às árvores, das quais guarda sensações intensas, que cambiam do respeito temeroso ao êxtase quase místico, que espelha nas suas obras e acompanham-no até ao fim da sua passagem terrena.
Apontamos também o modo como o escritor intui o planeta e o transporta para a literatura e, depois, através dela, o devolve a si próprio, explicado, transformado, transmutado numa utopia improvável feita, não apenas de humanidade, mas de um amor incondicional por todos os seres humanos, que o autor acreditava ser possível, embora certamente não no seu tempo, mas num futuro indeterminado.
No terceiro capítulo tentamos demonstrar o papel que a construção ficcional escolhida por Ferreira de Castro tem na narrativa de viagens — que neste ponto tratamos com mais acuidade —, assim como considerar a sua eficácia como processo de transmissão dos valores éticos com que o autor pretende sensibilizar os leitores. Referimos também quais as bases dessa mesma ética, as fontes e influências recebidas pelo escritor, aludindo ainda à polémica em torno da sua pertença ou exclusão do movimento neorrealista, não nos esquecendo de mencionar as dificuldades experienciadas pelo romancista na sua produção literária, provocadas pela coação constante da Censura estatal.
Fixamo-nos assim no escritor e na sua obra. Tentamos expor o que consideramos os pontos mais importantes e já definitivamente consolidados, não apenas do seu sentido ético e de justiça, como também os objetivos estéticos que o nortearam e ao seu legado escrito, no decorrer de toda a sua existência. É com esse objetivo que incidimos, neste capítulo, nas influências basilares do seu Novel Humanismo[5].


 
  •   Das descobertas às opções
  Sem querermos entrar em demasia em abordagens biográficas, talvez ganhemos em lembrar as bases político-sociais que presidem à formação e consolidação da ética de Ferreira de Castro, e é o próprio escritor que nos aponta alguns caminhos.
  
  • Génese de uma consciência
   Eu era uma criança muito tímida, muito melancólica, já com fervores românticos. Os demais garotos não me compreendiam, a minha família também não. Sofri bastante com isso. Eu mesmo não compreendia a mim próprio e lamentava não ter a alegria e o à-vontade dos outros. Vivia permanentemente com uma sensação de inferioridade. Foi com essas características que eu desembarquei na selva amazónica, ainda não tinha 13 anos. A minha adaptação àquele meio, tão diferente do da terra nativa, constituiu um tormento quotidiano, e nunca mais me adaptei completamente. (CASTRO, 2021: min. 6.42)
Já com uma experiência na elaboração de pequenos textos, que redigia, muito novo, de motu proprio ou a pedido, no seu rincão natal, e em defesa da sua (sobre)vivência infante num ambiente estranho e hostil, longe de tudo e de todos os que lhe eram familiares e queridos, José Maria apoiava-se no único bordão a que se podia permitir, durante os parcos momentos de ócio — a escrita. Numa gravação datada de fins da década de 60 do século XX, o autor narra: “Mas, poucos meses depois de chegar ali, comecei a escrever, a escrever sobre os meus estados de alma, os meus desesperos, os meus sonhos.” (CASTRO, 2021: min. 7.39)
Quanto aos motivos que espoletaram a sua atividade literária e jornalística, pouco haverá mais a dizer sem repetir as palavras do escritor, citadas acima. As características com que se reveste nestas poucas palavras, encontramo-las facilmente quando percorremos a sua vida e as suas obras, mesmo que com visão pouco atenta. Ferreira de Castro escrevia, não pela fama ou fortuna, mas por vocação; a esta, o seu talento jornalístico foi, ao longo da existência, elevando o sentido de justiça, em paridade com um humanitarismo crescente. O seu percurso mundano foi sempre pautado por uma recusa das honrarias que lhe foram sendo oferecidas, não somente na sua pátria, mas também por outros países e organizações não nacionais.
Convém lembrar que, embora mais tarde se destaque como escritor de realismo social[6], surgem traços românticos em algumas das suas produções literárias mais primitivas, que o autor posteriormente repudiou[7], e notam-se ainda vestígios nas descrições paisagísticas e humanas com que emoldura a componente mais importante de toda a sua produção literária – A Selva – e por seu intermédio, a Humanidade, com os seus problemas, venturas, misérias e virtudes. O naturalismo também está aí presente[8], com todo um rol de mazelas humanas; no entanto, o realismo social torna-se relevante e constituirá, a partir desta obra, o epicentro da sua arte.
Em A Lã e a Neve, considerada por muitos dos seus críticos como o mais representativo e mais bem-sucedido romance de realismo social do autor, a sua postura ética, já plenamente desenvolvida, aponta para as consequências nefastas de um sistema onde as elites industriais sobreviviam comodamente à custa de uma oferta de trabalho incerto e mal remunerado. No “Pórtico” da obra, Ferreira de Castro descreve as vicissitudes da força operária dos lanifícios da Covilhã que se sujeitava a condições precaríssimas e desumanas e que, não raras vezes, produziam desfechos lamentáveis:
A indústria sofria (...) bastantes oscilações. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matéria ou pouco consumo, diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à lã haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria mais descarnada ainda do que o normal. Com seu fabrico reduzido, a Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas para o meretrício de Lisboa. (CASTRO, 1949a: 18)
1.2. Sensibilização social
Nota-se em Ferreira de Castro, desde o momento em que o escritor abandonou o seringal, onde poucas probabilidades de desenvolvimento pessoal lhe seriam viáveis, o nascimento de uma consciência social até então em latência, e uma vontade forte em instruir-se com o fito de desenvolver e pôr em prática todos esses sentimentos de equidade e justiça que desabrochavam no seu ainda jovem espírito:
[A Selva é] [a]cima de tudo uma grande obra de arte, o romance é também o testemunho da vivência do autor e veicula, como seria de esperar, a sua mundividência, a perspectiva pessoal com que o escritor encarava a vida e os problemas que se levant[av]am[9] ao ser humano.
 
  • De que forma poderemos enquadrar essa mundividência? Claramente através de um conjunto de ideias e sensibilidades que dotaram a totalidade da obra castriana de uma mensagem coerente e consistente da emancipação do Homem. Não se trata de uma simples amálgama de sentimentos piedosos, vulgo “humanistas”; está para além disso, e tem uma designação bem definida na história das ideias políticas e sociais: chama-se anarquismo, e Ferreira de Castro foi um dos expoentes literários do século XX, em Portugal, dessa forma mais livre de encarar o mundo e a vida. (ALVES, 2007a: 87-88)


 O narrador omnisciente d’A Selva alterna com um narrador personagem, e constitui, no fundo, um romance autobiográfico. Esta alternância de realidade com ficção permite a Ferreira de Castro um distanciamento crítico que facilita o processo narrativo, sem, contudo, se afastar demasiado da realidade que o escritor experienciou. A chegada de Alberto, o seu alter-ego, ao Paraíso, rememora o desembarque de José Maria no seringal:
A chegada dos “brabos”, os novos legionários que o Ceará e o Maranhão enviavam à selva, provocava sempre risos e chocarrices daqueles que já se tinham amestrado na vida da terra insubmissa e de costumes singulares. E se o recém-vindo se melindrava, humilhado pela recepção imprevista, os algozes folgazões não o largavam mais, deleitando-se em persegui-lo com todas as facécias que podiam inventar contra a sua inexperiência. Enervava-os, inconscientemente, que alguém acreditasse ainda naquilo de que eles já descriam; e os remoques só terminavam depois do “brabo” se ter familiarizado com os segredos da vida local e resignado ao extermínio das suas próprias ilusões. (CASTRO, 1970: 95)
Circunstâncias similares a estas terão constituído o seu primeiro choque civilizacional, assim como uma das primeiras constatações desse fosso social entre os seres humanos que tão intensamente marcaram o escritor ao longo da sua vida e delinearam o percurso que a partir daí sempre se esforçou por percorrer.
Poucos dias após a publicação de A Selva, morre Diana de Liz; e Castro, em “Pequena história de A Selva” [10], confessa aos seus leitores a dor da partida, aliada à dor da sua passagem pelo sertão brasileiro:
Dir-se-ia que A Selva, drama dos homens perante a injustiça doutros homens e as violências da natureza, estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para o seu próprio autor, uma pequena história, uma pequena parcela da grande dor humana, dessa dor de que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão. (CASTRO, 1970, 28)

 
  • A investigadora Ana Cristina Carvalho afirma que a emigração de Ferreira de Castro, inicialmente instigada pelo anseio de melhores condições de vida e subsistência, transmutou-se, por força das circunstâncias, não num progresso financeiro, mas num enriquecimento espiritual que marcaria o futuro do escritor:


  • [A] emigração para o Brasil, escape à pobreza mais comum na época, terá necessariamente influenciado a decisão de José Maria; porém, e não obstante os parcos recursos da família, em declarações e memórias futuras o escritor apontaria outros motores da sua emigração. E neles valoriza um diferente conceito da “fortuna”, decorrente dessa aventura: as vivências que fundaram a sua consciência humanista. (CARVALHO, 2017: 35)
                                                                                                           
 
  • Convém realçar o extrato de um artigo da autoria do investigador Eugénio dos Santos[11], para que possamos compreender melhor o conjunto de circunstâncias adversas que acompanharam o futuro escritor na sua estreia emigratória e que, por razões óbvias, dificultaram extraordinariamente o início do seu percurso literário. Foi muito provavelmente a sua força de vontade, aliada ao sonho de se tornar jornalista, que o acompanharam desde Portugal, o que lhe gerou o estímulo necessário para se libertar das grilhetas que a sociedade lhe impusera:
  •  

  •  

 Sabe-se bem que em certas regiões do país, de tradição emigratória mais forte, alguns jovens eram “preparados” para partir e poderem ter acesso rápido no lugar de acolhimento. Cuidadosamente alfabetizados, senhores do ofício de caixeiro, aprendido nas casas comerciais das grandes cidades, antigos seminaristas, padres inconformados, jovens de famílias com posses, mas a quem eram impostos casamentos contra a vontade, descontentes com partilhas desiguais, ou rapazes insubmissos ao poder autoritário do pai, alguns com consideráveis meios de riqueza, todos estes tipos de pessoas estavam em condições psicológicas de partir.(...) Há que distinguir, contudo, dois tipos de emigrantes para o Brasil ao longo do século passado e já nos inícios deste: aqueles de que acabamos de falar e que se perfilham para entrarem no comércio, nos serviços, na complexa teia da vida urbana e os outros, que o jovem país prefere acolher, para irem trabalhar nos campos, no interior, como substitutos da antiga mão-de-obra escrava. No café, na borracha, no cacau ou no tabaco o que importa que estes demonstrem é força braçal e resistência às agruras do clima. Por isso, aí não importa ser alfabetizado. Pelo contrário, convém não o ser. Desse modo, se evita a cidade, o desejo de ir à procura de novidades.[12] (SANTOS, 2000: 23)

Ora, Ferreira de Castro era minimamente alfabetizado; chegado ao Brasil, lia tudo a que pudesse ter acesso e, volvidos apenas dois anos, almejava sair do seringal para Belém do Pará, à procura — não de novidades, mas de algo bem específico, bem calculado: a possibilidade de, não só tentar exercer o tão almejado jornalismo, como ter acesso às fontes de informação e conhecimento que lhe permitiriam exercer essa profissão de acordo com a ética anarquista que, ainda embrionária, se ia fortalecendo. Teve assim início a sua penosa, mas triunfadora saga.
 
  • Deste modo, mais além do Utilitarismo do filósofo e feminista John Stuart Mill que advogava a  soberania individual sobre corpo e mente, e de Pierre-Joseph Proudhon, também filósofo, que defendia uma sociedade sem autoridade, Ferreira de Castro acabou adotando como norma de conduta e postura ética, perante si próprio e o Mundo, o Anarquismo Libertário do revolucionário Bakunine, que se encontra muito próximo do pensamento do anarquista William Godwin, no qual figura, essencialmente, a crença de que só o conhecimento poderá ser o veículo de libertação da Humanidade:


 Como outros filósofos libertários que vieram depois de­le, Godwin via a sociedade como um fenômeno que se desenvolvia na­turalmente, capaz de funcionar independente de um governo, mas não compartilhava da fé que outros anarquistas depositavam nos ins­tintos espontâneos da massa inculta. Nesse sentido, permanecia um homem do Iluminismo, acreditando que a educação era a verdadeira chave da liberdade e temendo que, sem ela, as paixões incon­troláveis do homem freqüentemente não ficariam satisfeitas em obter a igual­dade, mas os levariam a desejar o poder. (WOODCOCK, 2002: 69)
Deste difere, no entanto, na sua convicção de que a humanidade necessita apenas de estímulo e compreensão para poder, eficazmente, gerir a sua conduta e criar o seu próprio destino. Em Eternidade, Juvenal, um dos avatares da extensa produção romanesca do escritor, acredita que para o ser humano apenas é necessário consciencialização e senso comum para que ele se transforme num pilar da sociedade, compartilhando com todos os outros os direitos e deveres que lhes são naturalmente inerentes: “O rancho inteiro, desde que promovera a homem responsável cada escravo da enxada, criara amor-próprio e portava-se a contento.” (CASTRO, 1948: 268)
Juvenal, engenheiro silvicultor, responsável pela arborização das serras na ilha da Madeira, depara, ao tomar posse, com um sistema de trabalho exploratório e ditatorial; após ter despedido um capataz desumano, acede, perante os trabalhadores rurais, em nomear outro do agrado destes. A citação que reproduzimos, em complemento da anterior, demonstra o sucesso da sua atitude, antes duramente criticada pelos membros da sociedade industrial a que estava vinculado, que defendiam que só à força de imposições e castigos – que incluíam os despedimentos – seria possível
fazer trabalhar eficazmente os jornaleiros, que viviam e eram pagos miseravelmente. Vieira, o novo capataz, faz o ponto da situação:
— Há alguma novidade? — perguntou-lhe Juvenal.
O capataz respondeu negativamente. Tudo corria bem — acrescentou. Os homens iam dando boa conta de si. Com mais gana só em fazenda própria se trabalharia na Madeira. Ainda na véspera, como um madraceasse, os camaradas, por expontânea decisão, tinham-no afastado do serviço, durante uma semana, para ver se nele crescia a vergonha. Com pessoal assim, tão agradecido ao senhor engenheiro, até dava gosto trabalhar. (CASTRO, 1948: 291)
Na verdade, um dos grandes mentores libertários de Castro foi Piotr Kropotkine; Ricardo Alves afirma que a influência deste ideólogo, juntamente com as de Zola e Raul Brandão, é já visível no Mas…, — uma das obras embrionárias do escritor. (ALVES, 2002: 69-70) Este investigador refere ainda que a viúva de Castro, Elena Muriel Ferreira de Castro[13], o informou de que, ”quando o conheceu, em 1936, a obra e a personalidade do doutrinário russo exerciam nele um grande fascínio. Interesse que já vinha de tempos mais remotos, numa clara referência ao Mas…“ (ALVES, 2002: 126)
Ferreira de Castro foi um homem sensível ao sofrimento alheio; tentou minimizá-lo sempre que possível e indignava-se com a sua existência, principalmente quando provocada por outrem. As suas críticas eram duras, porém de uma contundência isenta de agressividade. À medida que o escritor foi evoluindo, o seu intelecto foi divisando as razões subjacentes ao intrincado entrelaçamento entre culpa e sofrimento, como se encarnasse simultaneamente o papel de acusador e o de advogado do diabo.
Jorge Amado dá-nos também a sua visão de como o escritor influenciou a humanidade:
Com a arma da literatura ajudou a transformar o mundo. Foi verdadeiro escritor da nossa época, sendo, como queria Gorki, ao mesmo tempo coveiro e parteiro, coveiro de um mundo caduco, de um tempo podre, parteiro de um mundo novo, de um tempo alegre e livre. O menino saído do fundo da floresta cumpriu a sua missão grandiosa[14]. (AMADO, 1966: 172)
É extenso o rol dos intelectuais seus contemporâneos ou posteriores que tecem louvores ao autor consagrado. O seu trabalho como escritor, a sua humanidade e humildade, assim como o seu mecenato e o igualitarismo isento de qualquer tipo de discriminação, ditaram o grande número de homenagens que recebeu e continua a receber na atualidade. Assim o descreve Fernando Aguiar-Branco[15]:
Ferreira de Castro foi um humanista. Nos seus livros pulsa, com vigor, a tensão circunstancial e o drama das circunstâncias adversas. N’A Selva, um livro que ressalta da sua autobiografia, bem como em Terra Fria ou em A Lã e a Neve, a problemática do comportamento humano, face a situações limite ou inesperadas do quotidiano, está ali presente. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 15)
António dos Santos Pereira[16] faz o retrato de um homem preocupado com o bem-estar social e em constante luta contra as situações de desigualdade e desfavorecimento dos seres humanos, independentemente do seu género, etnia ou idade: “Vê-lo-emos atento a denunciar a falta de higiene, de habitação digna, de educação, a mendicância, o abandono infantil, a prostituição em expressões bem realistas desde o Funchal às serras do Barroso e à Covilhã, no sentido militante de denúncia para a mudança.”[17] (PEREIRA, 2017: 108)
Um dos textos mais exemplificativos deste esforço de denúncia, encontramo-lo no capítulo inicial de Os Fragmentos : “Historial da velha mina”. É uma memória jornalística datada, segundo o autor, de 1928 ou 1929. Ferreira de Castro, então colaborador d’O Século, acreditava que a publicação de uma reportagem que expunha as condições miseráveis dos mineiros das minas de S. Domingos, em Mértola, apelaria para o sentido de justiça e piedade do recém formado Estado Novo, uma vez que “[h]avia ainda alguma tolerância, embora cada vez mais rara e encolhida.”(CASTRO, 1974: 17) Vai disfarçado de caixeiro-viajante, a pedido dos mineiros, para não levantar suspeitas. Nas instalações da mina depara, entre outras situações pouco ou nada edificantes, com as habitações exíguas e miseráveis dos trabalhadores – meros cubículos de uma única divisão, sem janelas, onde morava uma família inteira:
O quarto servia de cozinha, de sala e dormitório; e à noite, nessa promiscuidade absoluta de corpos e de frangalhos, os pais, se eram respeitadores, apagavam a luz ou voltavam as costas, quando as filhas já crescidas se despiam.
Todas as imposições da vida, as sua intimidades, os seus odores, as suas emergências, se desenrolavam entre estas quatro paredes. Aqui se procedia à sementeira de crianças, aqui elas nasciam, aqui a maioria delas falecia, por carência de higiene e de alimentação adequada aos seus corpitos tenros e indefesos. As sobreviventes gatinhavam no soalho encardido, sujas, babadas, entre farrapos avulsos, colchões estendidos no chão, cobertores amarfanhados sobre eles; e nos seus arrastares iam tombando as panelas sob a chaminé existente ao fundo ou fazendo tremer a pequena mesa onde a mãe preparava os alimentos para o lume e mais tarde a família os comeria. Algumas conseguiam emergir de toda essa mondongaria até o rebordo da cama dos pais, onde assomavam os seus rostitos inocentes, os seus olhitos duma curiosidade embrionária, como se nos mirassem do peitoril duma janela que lhes faltava. (CASTRO, 1974: 21)
Castro, humanista convicto, vê o seu artigo recusado; poucos anos volvidos, em 1934, após numerosos textos e inúmeros cortes, decide, amargurado, abandonar definitivamente o jornalismo em Portugal. Não obstante ter-se dedicado, a partir dessa data e exclusivamente, à tarefa de escritor, continuará a sofrer, até à sua derradeira publicação, as influências da cisalha do aparelho ideológico do Estado Novo. Neste caso particular, embora não se aplicasse a Censura Prévia, também conhecido como o “Lápis Azul”, vigorava uma Censura a posteriori, que funcionava de acordo com a ótica volúvel dos revisores: caso se justificasse, seria feita a apreensão das obras já depois da sua publicação. Atendendo aos prejuizos materiais elevados, aos riscos de perseguição, vigilância, processo criminal ou mesmo cárcere que essa situação poderia implicar, tanto editores e livreiros como os próprios escritores tinham cuidados redrobrados em relação aos livros a imprimir.
Em 1945, Castro é perentório. Numa entrevista assaz acrimoniosa, tece o panorama da literatura no Portugal do seu tempo: “ É ingénuo um governo imaginar que, por decretos ou pela força ou pela censura, consegue impor a sua mentalidade ao povo e aos seus homens de pensamento.”(CASTRO, 1945)[18]
Quarenta anos depois da sua decisão de interromper a atividade jornalística, é publicado a título póstumo, em “Origem de O Intervalo”, um desabafo tardio sobre o cárcere ético que até então o oprimira: “É muito difícil alguém, a menos que tenha alma cínica, falsificar-se a si próprio.” (CASTRO, 1974: 78)

2. “Apre(e)nder” o Mundo
Após o choque de, ainda muito jovem, sentir-se separado da sua família e do seu mundo-berço, Ferreira de Castro teve de, emocionalmente, evoluir. Como criança tímida e introvertida que era, ter-lhe-á sido extremamente difícil superar esses traumas; no entanto, a convivência com o seringal, o seu sofrimento e dos seus companheiros de infortúnio, fizeram-no amadurecer muito rapidamente. A noção das injustiças que viveu e presenciou foram as partículas ígneas que, pouco a pouco, atearam o rastilho que acabou por, definitivamente, ativar a sua conceção idealizada do mundo.
 
  • Assim também no-lo diz Ana Cristina Carvalho, quando afirma que
   
  • [o] testemunho direto do sofrimento humano, os momentos de funda incerteza e as angústias suportadas na Amazónia, antecedidos do desenraizamento prematuro do meio familiar e aldeão, contribuíram, pois, para moldar a personalidade, bem como a visão do mundo, do Ferreira de Castro adulto. (CARVALHO, 2017: 61)


 2.1.   Pobreza e sofrimento

O escritor, nas viagens pelo mundo do seu tempo, valeu-se de uma apurada visão jornalística, aliada a uma elevada capacidade memorialista, sem as quais não teria sido possível escrever A Selva ou Pequenos Mundos e Velhas Civilizações com uma acuidade tão pormenorizada, uma vez que já se tinham passado vários anos após as suas estadias nos locais descritos: A Selva foi publicada 16 anos após a saída do Seringal e Pequenos Mundos constitui uma antologia das diversas viagens que efetuou de 1929 a 1935. A sua sensibilidade emotiva assumiu-se também como fator determinante para a riqueza e prolixidade do conteúdo.
Por ocasião das comemorações do cinquentenário da obra literária de Ferreira de Castro, Alberto Figueira Gomes[19] afirma que “(é) no estudo do homem e do seu drama que Ferreira de Castro põe o melhor do seu génio de pintor de almas, de situações e de lutas.” (GOMES, 1967: 37) Efetivamente, logo a partir da sua primeira obra reeditável[20] — Emigrantes, nota-se no escritor uma necessidade de “ser o Mundo”, de libertar-se da individualidade para melhor o compreender, e à Humanidade que dele é parte integrante.
Ferreira de Castro, como propõe Alves (2003: 16), tenta interiorizar o Orbe e pensar-se enquanto seu constituinte indissociável. De cada vez que deparamos, nas suas obras, com as injustiças humanas, notamos no escritor como que remorso e mortificação por não poder remediar ou anular as deformidades sociais que as provocaram: “Não é fácil debruçarmo-nos sobre a História sem lamentarmos a Humanidade e sem sentirmos horror pelo que fizeram os poderosos de todos os tempos.” (CASTRO, 1949c: 210) Esses sentimentos acompanharam-no desde a infância, pois o autor já os refere numa carta endereçada a Winifred L. Chappell[21], em 1953: “(…) entre os 14 e os 16 anos, tive ocasião de ler várias obras de sociologia, que constituíram, para mim, uma explicação dum mundo que eu sofria, mas não sabia julgar”. (CASTRO, 1953: 195)
Bigotte Chorão afirma que, para Ferreira de Castro,
(...) a literatura não era tanto uma expressão religiosa ou estética como um relato de vida vivida e sofrida. Daí que, em alguns dos seus melhores momentos — como na clássica A Selva —, haja um predomínio da reportagem, isto é, da captação directa de uma realidade conhecida na própria carne.” (CHORÃO, 1967: 148)
Ferreira de Castro revê-se em cada ser humano padecente de injustiças pois, como diz Chorão, também ele sentiu na carne e no espírito o peso de uma dura realidade. Jovem que era, as marcas psicológicas foram profundas e refletiram-se nas suas obras e na sua existência sob a forma de uma rebelião surda, de uma identificação com o Outro que sofre e de um sentimento involuntário de culpa eivado de esperança num melhor porvir.
Por estas razões, o autor de A Volta ao Mundo sentia-se particularmente afetado pela extrema pobreza e desigualdade de algumas regiões, nomeadamente a Índia e outros países asiáticos, muitos deles devendo essa situação de subdesenvolvimento e miséria à cupidez insensível da civilizada Europa:
Não se pode olhar para o ser humano na Índia sem se ter a sensação de que ele é infinitamente desgraçado, mesmo quando, individualmente, não o é. Pelo seu atraso, pelos seus habitantes e pelo próprio abandono a que o votaram, ele oferece, a cada passo, imagens imprevistas, algumas das quais constituem regalo dos frívolos viajantes que buscam no Oriente apenas o pitoresco. (CASTRO, 1950a: 24-25)
O escritor não deixa de responsabilizar, direta ou indiretamente, o mundo ocidental pelo segregacionismo e exploração patentes nos países que, à época, e na esmagadora maioria dos casos, se encontravam sob o domínio das grandes potências europeias, não excluindo, evidentemente, a crescente influência dos Estados Unidos da América. As suas críticas incidem, não apenas na sujeição física desses povos, mas também sobre as visões preconcebidas e aviltantes que sobre eles os referidos impérios fazem recair:
Tem-se clamado muito sobre a imundície na China e os que o fazem parece esquecerem que na Europa há muita imundície igual. Tudo quanto vimos nestas pobres aldeias não é pior do muito que temos visto na maioria dos países latinos, incluindo o nosso, em todas as terras árabes e outros centros de gordo turismo. (CASTRO, 1950b: 101)
Ressalve-se que o humanista não se insurge contra o turismo como atividade lúdica e cultural, que ele próprio praticou, e que constitui, no fundo, não apenas uma mais-valia económica como, simultaneamente, uma relevante janela aberta do Mundo e para o Mundo; opõe-se – isso sim – a quaisquer atitudes amorais, gananciosas ou sectárias sobre povos ou grupos sociais, que possam resultar desse mester.
Ao mesmo tempo, Castro, universalista irredutível, idealiza um Planeta uno, onde cada ocorrência, benéfica ou prejudicial, não pode ser entendida como um caso particular de uma determinada região ou país; apenas mudam as circunstâncias, não devendo existir, portanto, juízos de valor unilaterais. É este conjunto de valores que constitui - mas não apenas - a sua ética, que desenvolveremos mais à frente.
2.2. Revolta

Sou profundamente revoltado. Espiritualmente insubmisso. (CASTRO apud CARVALHO, 2017: 63)

Os Fragmentos é, na nossa opinião, e enquanto escrito na primeira pessoa, ou seja, até à página 83 da edição consultada, e a partir da qual tem início o romance O Intervalo, um livro de confidências, uma espécie de pequeno diário íntimo de um escritor que, desilusão após desilusão, quase já acredita que a sua utopia não passará de um mito. E assim, deixa para os vindouros o seu testemunho, pois que eles, um dia, num futuro longínquo, talvez possam ver cumprido o sonho que ele sonhou. Esta obra contém o seu manifesto de revolta, de inconformidade e desencanto, mas também de esperança, não é uma declaração de desistência. Nela, diz o autor o que não pôde ser dito… até um dia de abril de 1974:
Estes fragmentos são filhos das insatisfações estéticas, tantas vezes torturantes e secretas, que sentem os escritores do Mundo inteiro e também das cancelas cerradas perante a liberdade de pensamento que dificultam, há já muitos anos, os passos espontâneos dos escritores portugueses.” (CASTRO, 1974: 13).
Seguindo a mesma intenção investigativa, Ana Cristina Carvalho[22] reforça-nos a ideia de que o escritor aguardava expetante a ratificação do início dos tempos futuros que profetizara, onde a liberdade de expressão, a justiça e, simultaneamente, a fraternidade universal, deixariam de ser ilusórias:
Os textos reunidos em “Os Fragmentos”, vários deles os últimos escritos por Ferreira de Castro, são passíveis de formar a etapa de “Declínio” declínio no sentido não de decadência mas de perda natural de vitalidade. Enquanto alguns textos são recuperações importantes, caso de O Intervalo, que durante quarenta anos aguardou na gaveta a abolição da censura, outros servem-lhes de enquadramento, e o conjunto, preparado pelo autor para se publicar quando esse momento chegasse, mas editado postumamente, resulta numa espécie de balanço de seis décadas de atividade literária. (CARVALHO, 2017: 127-128)
Ferreira de Castro pôde ainda celebrar o fim da ditadura do Estado Novo, em 25 de abril de 1974. Contudo não chegou a presenciar a publicação do seu último livro, pois morreu 2 meses depois, a 29 de junho. Desta obra citamos um exemplo das suas exteriorizações sarcásticas que, não sendo explicitamente violentas, demonstram uma enorme incisividade e que, durante muitos anos, dormiram numa gaveta à espera da libertação:
E como Portugal era, nessa época (anos 30), uma pátria oficialmente ditosa, que se afirmava ser invejada por todas as outras e por alguém velada dia e noite, à luz eficaz dum candeeiro medievo, para felicidade de todos os filhos, não se justificava alusão alguma aos bairros de folha de Flandres enferrujada e tábuas apodrecidas, tão-pouco às crianças esfarrapadas e de pés nus, que enxameavam nas províncias nortenhas, ou mesmo a outros incontáveis aspectos de miséria dum povo ingrato que desfrutava de muita sorte; tudo isso constituía a nossa originalidade turística, no fundo riqueza da nação. [23] (CASTRO, 1974: 55)
2.3. Compreensão da Humanidade

O escritor invoca os seus pares para que, respeitando uma ética ambiental — da qual terá sido um dos pioneiros no nosso país — se unam em concordância com os valores de igualdade que defende.
Ciente das diferenças entre os povos, exorta-os a dissipá-las, na demanda de um entendimento mútuo que proporcione o tão almejado cosmopolitismo, com pleno respeito pela Natureza, em todas as suas formas:
(…) o universal é a fusão e a compreensão solidária de todas as aldeias, vilas e cidades, planícies e montanhas do Mundo, se há alma para a todas abarcar e se na alma existe sítio propício aos mastros e às velas que nos levem a unir-nos, pelo amor fraternal, a todos os seres humanos, nas suas diversas pátrias.
(CASTRO,[24] 1974: 54)
Ferreira de Castro é um universalista em cujo âmago se repercute o pulsar de toda a humanidade, e afirma-o com uma convicção inabalável que constitui, aliás, o corolário de toda a sua existência:
(…) por cima da condição de europeu, de latino e de português, sinto na minha alma uma grande identidade com a alma de todos os outros povos. Creio, aliás, que isso acontece com quase todos os homens, mesmo sem eles darem por isso, mesmo sem eles o saberem... (CASTRO, 1953:197)
No segundo volume d’A Volta ao Mundo essa identidade de alma, esse espelhamento de sentimentos, está bem presente no seguinte fragmento:
A maioria dos costumes hindus apresenta-se melancolicamente absurda ao primeiro contacto; mas quando, descendo às raízes, se chega à compreensão, a melancolia torna-se muito maior. Na Índia, compreender é mais triste ainda do que julgar pelas exterioridades. (CASTRO, 1950a: 33)
Em toda a extensa descrição da Índia n’A Volta ao Mundo, deparamos constantemente com essa preocupação humanitária, acompanhada por uma sofrida amargura, que provém da sua impotência por pouco ou nada poder fazer para atenuar tamanha miséria: “Antes de virmos à Índia, amávamos o povo hindu pelo que havíamos lido e ouvido sobre o seu sofrimento; agora, que o vimos face a face, amamo-lo muito mais, porque ele é muito mais desditoso do que tínhamos imaginado.” (idem: 149)
O mundo que Ferreira de Castro vê, é, aos seus olhos, imperfeito e injusto. Ele tem plena consciência de que não será durante o período da sua existência terrena que se atingirão os objetivos de justiça social e equidade que defende. Considera a sua postura e a sua missão como escritor um ato impulsionador desses ideais, na direção de um futuro que ambiciona para a humanidade.
Numa impossibilidade de, isolado, fazer desaparecer, omnipotentemente, os males do Mundo, também exclui a hipótese de emular um deus ex machina, que os dissipasse parcialmente, ignorando o todo, numa solução imperfeita e enganosa; Para Castro, a solução passa pela consciencialização e libertação de toda a humanidade, num processo que sabe lento, mas que crê possível; é essa a sua utopia, é esse o seu sonho: “Eu tenho tanta pena do homem que me aflige a certeza de que já não vivo quando a vida for apenas amor, amor que a compreensão nos dá.” (CASTRO apud MOREIRA, 1967: 104)
2.4 Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu.

Numa revisitação literária à selva amazónica brasileira, Ferreira de Castro, no romance intitulado O Instinto Supremo, e baseado em factos históricos sobre a vida do Marechal Rondon[25], a quem admirava, reproduz os esforços deste militar brasileiro para proteger e civilizar os indígenas. Por ocasião das comemorações do cinquentenário da vida literária do escritor, Peregrino Júnior[26] escreveu:
[Instinto Supremo é] um romance cuja figura principal é Rondon, o desbravador, o homem de quem Ferreira de Castro aprendeu, em uma frase, toda uma filosofia. Esta frase é a seguinte: “Morrer se preciso, matar nunca”. Toda a obra de Ferreira de Castro está impregnada desta filosofia, que deseja para os seus semelhantes trabalho, liberdade, fortuna e, finalmente, uma vida digna e melhor. (PEREGRINO JÚNIOR, 1967: 23)
Do mesmo modo, a caraterização feita por Ricardo Alves foca a vertente humanitária e de proteção dos que, pelas mais variadas circunstâncias, se encontram em desvantagem perante os seus pares no Mundo. É para isso que aponta Óscar Lopes quando afirma que a obra Emigrantes inicia uma nova fase do realismo social em Portugal e releva, em A Lã e a Neve, algumas das situações mais emocionantes dessa mesma fase literária. “Em Ferreira de Castro viu este ensaísta [Óscar Lopes], ‘desde sempre, em literatura, um advogado’ das camadas que neste século foram conquistando a sua emancipação: as mulheres, os assalariados e os povos.” (ALVES, 2002: 79)
Observa ainda o investigador que
[r]aramente (…) Castro foi explícito quanto às fontes matriciais do seu pensamento político. Assumia-se como autodidacta e produto das suas múltiplas leituras. A obra, todavia, espelha e veicula eloquentemente as ideias libertárias que perfilhou durante a vida inteira: afirmação de liberdade individual, postura refractária à autoridade, internacionalismo, antimilitarismo, tolerância que excluía conciliação em face de valores essenciais, feminismo e, inclusive, o respeito e comunhão com a natureza, atitude que hoje designaríamos genericamente como ecologista. (ALVES, 2002: 118)
Alves refere também que “Castro foi um contemplativo da Natureza, em especial da natureza vegetal; e esta ocupa também um lugar de primeira importância na sua obra (...).” (ALVES, 2014: 4).
Assim, para além da atenção votada, Alves não é o único a aperceber-se desta consonância com a natureza em toda a sua plenitude. Também Bernard Emery refere em Castro “o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais” (EMERY, 2016: 229), tal como Ana Cristina Carvalho que, no estudo que temos vindo a citar, refere a grande afinidade que Castro teve com a Natureza, em todas as suas manifestações vitais e no respeito pelas caraterísticas físicas da mesma, sejam elas orológicas, oceânicas, fluviais ou meteorológicas.
É, no entanto, à árvore, à floresta, que Ferreira de Castro rende preito e homenagem. Desde a selva amazónica, passando pelos lugares que visitou, recordando o seu torrão natal ou deliciando-se com a Serra de Sintra, as árvores estão sempre presentes nos seus livros.
Trata-se, no caso da Amazónia, de uma relação de amor-ódio, com componentes que, por vezes, ora se confundem, se misturam ou individualizam: a floresta onde os índios se acoitam, a lembrança do trabalho rude e desgastante, a solidão de um lugar estranho e longínquo e a sensação de uma grandiosidade verde e opressiva, são fortes contributos para guardar no mais recôndito da sua memória essa fase da sua vida. O autor, perante a imensidão da selva e a estreita relação que esta tem com a fração terminal da sua infância e início de adolescência, num misto de sofrimento, medo e deslumbre, mas também de aprendizagem, confessa que evitou por muitos anos escrever qualquer obra que abordasse a sua lembrança, mesmo que num registo ficcional. Castro, referindo-se à sua vinda para Belém do Pará, fugido da sua experiência deprimente, e perante a recusa do seu “protetor” em acolhê-lo, relata:
Foi esse momento, tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio. E quando o terrível pesadelo me faz acordar, cheio de aflição, tenho de acender a luz e olhar o quarto até me convencer de que sonho apenas – eu que, nos derradeiros tempos, tanto desejo retornar à selva, para a ver um último dia e dela me despedir para sempre.
Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente.[27] (CASTRO, 1970: 20)
Bernard Emery recorda uma entrevista concedida por Ferreira de Castro em 1939, onde este explica a razão pela qual a selva lhe impunha tão respeitoso temor:
Todas as florestas têm o seu segredo e mesmo os pequenos bosques têm a sua luz. (...) mas nenhuma guarda um segredo tão perturbante como a floresta da Amazónia. Um mundo nos seus primórdios, onde cada silêncio é uma ameaça, cada árvore um inimigo, onde o estremecimento das plantas apodrecidas e espalhadas pelo chão, um fruto que cai, provocam mais receio do que se uma bomba explodisse na rua. (CASTRO apud EMERY, 2016: 128)
No entanto, nessa entrevista, Ferreira de Castro não expõe totalmente os seus medos e a razão dos seus pesadelos. Criança ainda, chegado a um mundo novo e inóspito, repleto de perigos insuspeitados e entregue às descrições cruas e, por vezes exageradas de quem, já experiente, atemorizava os novos candidatos a seringueiros, os “brabos”, com histórias supostamente reais e assustadoras, não seria de admirar que tivesse ficado psicologicamente traumatizado.
No “Pórtico” de O Instinto Supremo, o autor confessa a mais impactante razão do medo que o acompanhou intensamente durante quase três lustros e que provavelmente deixou algumas sequelas, mesmo depois do exorcismo da escrita:
Eram o meu terror esses índios. Quase criança ainda, arribada dum meio diferente, quando caminhava pelos varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearenses e maranhenses, dispersas na brenha, muito, muito longe umas das outras, esperava sempre ver os Parintintins surgirem por detrás das árvores, as flechas já nos arcos retesados, a abaterem-me num momento e cortarem-me a cabeça e sumirem-se de novo, deixando regressar o pesado silêncio da mata, que só por si me atemorizava intensamente. (CASTRO, 1968: 14-15)

No conto Young Goodman Brown, Hawthorne[28] apresenta-nos, plena de simbolismos, uma descrição assaz negativa da floresta:
The whole forest was peopled with frightful sounds; the creaking of the trees, the howling of wild beasts, and the yell of Indians; while, sometimes the wind tolled like a distant church-bell, and sometimes gave a broad roar around the traveller, as if all Nature were laughing him to scorn. (HAWTHORNE: 6)
Não fosse esta ilustração um produto da visão puritana do autor americano, onde a Natureza era encarada como algo maléfico de que o homem teria de se libertar e afastar — portanto, uma narração que obedece a um intuito religioso e moralista —, poderíamos supor que teria sido escrita por Ferreira de Castro.
Essa fobia paralisante que impedia o escritor de se referir ao seu “degredo” de quase quatro anos numa idade em que quaisquer circunstâncias adversas marcam mais profundamente, deixando vestígios por vezes indeléveis, tinha de ser sublimada. Como afirma Jaime Brasil, a primeira etapa da libertação passará pela redação de A Selva — uma libertação pelo Verbo: “A selva possuíra-o, enfeitiçara-o. Os pavores e angústias do adolescente habitavam o homem como demónios atormentadores. Só o Verbo, que é luz e vida, os poderia afugentar. Esse Verbo só encarnou quinze anos depois.” (BRASIL apud EMERY, 2016: 130)
Como jornalista de O Século, o autor foi destacado para a cidade de Paris durante dois meses, o que o forçou a interromper a obra libertadora; foi uma experiência bem-vinda, “sem desgosto algum, antes com um prazer todo febril e exultante [.]” (CASTRO, 1970: 21), pois visitar a França, “(...) o velho país literário que se incrusta no nosso espírito desde os anos infantis e parece não ser um trecho do Mundo, mas o próprio Mundo concentrado num sonho para quem vive longe e nunca o viu” (idem: 22), era a suprema aspiração de qualquer escritor ou artista. Esse interregno foi benéfico para Castro, que relembra:
A vantagem de me libertar, por algum tempo, da atmosfera do livro, do passado que ressuscitava e se tornava presente com uma vitalidade angustiosa, pois se é verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto, que algumas noites suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu próprio criara. (CASTRO, 1970: 22)
Aparte este “amor” ambíguo por uma Amazónia que, simultaneamente, o repele e o atrai, Ferreira de Castro envolve o Mundo inteiro num amplexo indiscriminado. No entanto, será ao seu semelhante que, por razões humanitárias, por saber que ele é um dos seres mais desprotegidos, mais explorados da Criação, dará uma atenção mais pronunciada.
O “escritor-povo” (FREITAS[29], 1967: 186) tem para com a humanidade uma atitude de compreensão pelos erros que esta comete, na assunção de que essas faltas resultam maioritariamente das pressões a que está sujeita. Tal não implica, porém, que perdoe as ofensas dolosas, praticadas por quem quer que seja, contra quem quer que seja. Os pobres, os excluídos, os explorados, têm nele um defensor incondicional:
[Ferreira de Castro possui] a piedade pelo semelhante, a compreensão das suas deficiências, a atribuição de uma culpabilidade relativa quanto aos erros que pratica, num clima que frequentes vezes lhe desobedece e não hesita em esmagá-lo na primeira encruzilhada. Percebemos nele um debruçar caritativo, fraternal, sobre as suas mazelas, a compaixão que sente por essas turbas desgarradas, tragicamente imóveis, que esperam apesar de tudo um milagre salvador. A sujeição apassivou-as e arrebatou-lhes a consciência do que representam neste minúsculo planeta, assoberbado por gigantescas paixões desnaturadas. (MOREIRA, 1967: 103)
Notamos no autor um aumento de perceção e atitude benevolente perante as falhas da humanidade a partir do início do seu relacionamento com Diana de Liz[30], em 1927, e até à morte desta, em 1930, — sentimento que se prolongou pelo resto da sua existência, como homem e como escritor. António dos Santos Pereira[31] afirma que qualquer referência à autora não deverá ser feita com ligeireza, “pois percebemos quanta humanidade de forma única ela aportou a Ferreira de Castro, intensificando a sensibilidade deste aos grandes problemas da vida.” (PEREIRA, 2016: 106)
A nossa interpretação é reforçada pelos prólogos de Ferreira de Castro às obras póstumas da escritora e reproduzidos por Manuel Ferro[32] no seu artigo de investigação. No prólogo de Pedras Falsas lemos que,
(…) partilhando da mesma ansiedade, [d]a mesma chama inquieta e infinita de Florbela Espanca, Diana de Lis enlanguescia em ternura e em compreensão. Era mais humana. As suas páginas, de onde brota uma suavíssima ironia, uma crítica amena aos preconceitos que lutam com irrefragáveis impulsos, estão cheias de piedade, de absolvição. Pautavam-lhe essa atitude compreensiva, o seu coração, onde residiam todas as generosidades, a sua sensibilidade delicadíssima e a sua grande cultura. (Castro apud FERRO, 2009, 389-390)
No prólogo seguinte, em Memórias duma Mulher da Época, Ferreira de Castro refere que os últimos trabalhos desta autora “são páginas onde a compreensão e a justificação da existência como ela é e não como nós gostaríamos que ela fosse, se envolvem em fraternal melancolia para com os nossos semelhantes.” (ibidem)
Não podemos, na verdade, ignorar as alterações que foram surgindo na produção literária do escritor após o seu casamento com Mimi Haas. O que era antes uma prosa cheia de humanidade e compaixão por todos os povos e em todos os personagens das suas obras, para os quais – bons ou maus – não existiam admoestações ou observações condenatórias explícitas, começou a, lentamente, transformar-se em reflexões analíticas sobre a personalidade dos seus intervenientes: Ferreira de Castro – defensor dos bons, dos justos e dos explorados, adquire outra parceria; surge Ferreira de Castro – advogado do diabo, remissor dos maus. Evidentemente, não falamos apenas da análise que o autor faz das suas criações, que adquirem, no computo geral, um cariz marcadamente autobiográfico, como extensões de si próprio, da sua vivência, da sua personalidade e, em consequência, do seu espírito humanista; o escritor debruça-se também sobre a maldade subjacente à espécie humana na generalidade, tentando compreender a sua existência, as suas manifestações e a sua génese.
Em Diana de Liz encontrou Castro uma alma gémea, cheia de perdão e compaixão pela humanidade. Esse entendimento mútuo terá expandido o já existente pensamento filantrópico do escritor, surgindo, em plenitude, no seu mundo literário e pessoal. Bernard Emery é taxativo ao referir que foi esta escritora, “sua companheira desde 1927, que teve uma influência muito positiva na evolução do estilo do autor.” (EMERY, 2016: 95)
Amplia-se em Ferreira de Castro uma compreensão dos dois opostos que não se inscreve num registo aristotélico, ou seja, em função do Bem e do Mal, e muito menos contemplando os seres humanos sob uma perspetiva plotínica, onde a Beleza abarca apenas o Belo. A estética de Ferreira de Castro suplanta essa separação entre o Bem e o Mal, entre o Belo e o Feio.
Segundo Alves, há, no espólio do autor, um sem-número de pedidos de ajuda por parte de viúvas e familiares de escritores e jornalistas, que se viram em dificuldades por força do desaparecimento dos seus entes queridos e que viam em Ferreira de Castro uma alma caridosa, pronta a auxiliar os seus semelhantes em momentos críticos das suas vidas. O crítico refere que Bernard Emery, ao inscrever essa solidariedade num franciscanismo que se revela na obra castriana, considera Castro como um “escritor ateu, mas impregnado de cristianismo.” (ALVES, 2002: 157)
Do mesmo modo, Aguiar-Branco retrata esta faceta humanitária do escritor: “O dinheiro que ganhava com [os prémios literários que recebia], segundo relatam as biografias, usava-o para fomentar obras de cultura ou de socorro a necessitados, na sua maior parte do jornalismo e do teatro.” (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)
Emery explica como Castro, sendo ateu, age em sintonia com uma perspetiva tão consentânea ou, pelo menos, similar à moral cristã:
[…] o escritor de Ossela nunca vê a imagem do Cristo no próximo por quem ele se compadece e se solidariza. Pelo contrário, não podemos negar que nele existe uma atitude franciscana na sua preocupação constante de diálogo, de compreensão e de compaixão. Se reduzirmos o espírito franciscano ao seu componente mais conhecido, e sem dúvida também o mais original, a saber, o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais, podemos efectivamente encontrar pontos comuns entre o escritor ateu e o santo cristão. (EMERY, 2016: 228-229)
O investigador aponta para uma transmutação da fraternidade, sempre presente em Castro, para algo mais intenso, mais íntimo; o escritor revê-se em todos os seres humanos e, ao fazê-lo, encarna a Humanidade, apieda-se e compreende-a, nos seus defeitos e nas suas virtudes:
(…) Também é verdade que a noção de fraternidade tem sempre em Ferreira de Castro uma forte intensidade sentimental, é assim que se explica a evolução que se deu nele da fraternidade para o amor pelo homem. Na génese deste amor, tal como a encontramos em Emigrantes, em A Selva, e depois em Eternidade, em que ela parece definitivamente realizada, há, além da compaixão, um sentimento de culpa face àquele que sofre, àquele que esquecemos, e ao ser que, pela sua insignificância, foi abandonado a uma espécie de inexistência. (idem: 229)
Reafirmamos, face ao exposto por Bernard Emery, o papel de Diana de Liz no desenvolvimento e maturação dos parâmetros definitivos que regem a elaboração das obras posteriores de Ferreira de Castro, que o crítico admite estarem definitivamente realizados em Eternidade.
É o próprio escritor, citado por Dias de Melo[33], que nos explica o juízo estético que rege toda a sua obra e, inseparavelmente, toda a sua vida:
Para mim parece-me que a maior aquisição foi compreender e amar o meu semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus erros e nos seus acertos, e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas realizações e nos seus heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, os limites inumeráveis, as aspirações sempre adiadas, impõem a tantos deles com implacável frequência. Compreender os problemas que afligem a maioria dos homens, que os afligem há milhares de anos, enquanto esperam pela justiça que tem demorado tanto. Compreender e fraternizar com os homens, sejam do Barroso ou da Serra da Estrela, da cidade em que vivo ou da aldeia em que nasci, de todas as cidades e de todas as aldeias de todos os países da Terra, por cima de todas as fronteiras e de todas as pátrias. Este acto de compreensão e de solidariedade, que emana não só do muito que sofri, mas também das observações feitas ao longo da minha existência, tantas vezes movimentada como a dos nómadas, sobre a Humanidade de várias latitudes: foi, sem nenhuma dúvida, a melhor aquisição que fiz. (CASTRO apud MELO, 1966: 94-95)
Ana Cristina Carvalho resume em poucas linhas o principal objetivo ético pelo qual Ferreira de Castro lutou, na firme convicção da vitória dos seus pares: “Um dos mais relevantes emblemas castrianos é a irredutível esperança na capacidade da Humanidade para sanar as suas imperfeições, gerar a própria redenção e construir um futuro brilhante. Bernard Emery chamou-lhe a ‘filosofia de esperança’.” (CARVALHO, 2017: 67)

 
  • Castro e a verdade: ficção e censura 
              A construção ficcional é explorada pelo autor como processo de enriquecimento dos seus textos de viagens, dando-lhes, não apenas a consistência narrativa necessária para descrever a sua experiência erradia, como também a utilizando como veículo para expor a sua visão inconformada dos erros e injustiças do mundo.
É evidente que também os seus romances, à semelhança de quaisquer outros de díspares autores, carecem da ficção para que a narrativa exista como tal e, identicamente ao acima exposto, possam conferir aos textos toda a carga dramática de que estes necessitam para transmitir as críticas e valores defendidos por Castro.

3.1. A questão da ficcionalidade
 
  •  
                               O investigador Ricardo António Alves apresenta uma definição da ética e dos objetivos do labor literário do escritor e que se projetam na globalidade da sua produção escrita:
[A obra de Ferreira de Castro encerra]:
1) uma tentativa de compreender o mundo, pensar os seus problemas e de o questionar.
2) a consciência de que o Homem é um ser complexo e contraditório.
3) inconformismo perante uma organização social injusta que está na origem duma maioria de deserdados que, então como agora, vivem nas margens do sistema. Para Ferreira de Castro, no entanto, os homens não são — não podem ser — uma massa que se conduza como um rebanho, mas indivíduos com realidades específicas e detentores duma dignidade que lhes advém da sua condição humana — que nunca poderá estar desligada da liberdade (...) (ALVES, 2003: 16-17).
O processo de criação dos textos de viagens de Ferreira de Castro obedece a um encadeamento de géneros e subgéneros literários como, por exemplo, romance, crónica e narrativa de viagem que, associados à investigação jornalística, longe de tornarem as obras confusas pela miscigenação genológica ou massudas pela profícua informação acrescentada, clarificam e tornam a leitura gratificante.
Ao lermos Ferreira de Castro nas suas descrições de viagens pelo mundo da época, deparamos com uma informação cuidada, fruto de autodidatismo e apurada visão jornalística, cultivados com denodo. Quando descreve um lugar, o autor provê-se de minuciosos dados históricos, a que acrescenta profícuas informações etnográficas e, se necessário, esclarecimentos sociológicos e acuradas descrições relativas à mitologia ou lendas a ele associados.
Alves ressalva a intenção estética do autor que, afirma, não tem mais pretensões de didatismo que não sejam apenas aquelas que sugerem um caminho evolutivo que conduza ao desenvolvimento racional da humanidade, em direção a um porvir por si idealizado:
Mas Ferreira de Castro era um romancista, não pretendia ser um historiador. A sua intenção era a de escrever uma nova “epopeia”: a das “classes populares em busca duma redenção colectiva. Uma epopeia que não teve ainda o seu épico” [34].
Há, no entanto, em Ferreira de Castro, um gosto da História, um perscrutar do passado que tem de ser visto à luz da sua matriz ideológica. Não se trata de amenizar a leitura, distrair o leitor, transportando-o para séculos recuados, mas perspectivar a evolução da humanidade no sentido do progresso, por contraste com políticas e mentalidades ancestrais, forçosamente superadas, “num trabalho lento de pua furando granito”[35] — para utilizar uma imagem de Terra Fria.[36] (ALVES, 2002: 37-38)
O cunho, por vezes fortemente autobiográfico, percetível na sua produção
literária, sobrepõe-se à ficcionalidade romanesca que o autor utiliza como forma de realçar as situações e vivências que expõe.
Em The Routledge Companion to Travel Writing afirma-se que “[t]here is no way to easily demarcate where fiction ends and anthropology begins” (THOMPSON, 2020: 58). No entanto, é impossível escrever um livro de viagens que não contenha, mesmo que infimamente, traços de ficcionalidade; qualquer descrição que não contemple essa premissa será um mero texto injuntivo, um insípido manual de instruções, que não passará dos pormenores técnicos, sem a mínima ação estetizante.
Embora possam, eventual e legitimamente recair suspeitas de a-historicidade e fantasia no que concerne a ficcionalidade das criações literárias do autor de A Selva, recorremos novamente a Thompson para, se não o ilibar, pelo menos legitimar as opções escolhidas por Ferreira de Castro: “Fiction, it is argued, can play a role in combating one of travel writing’s most ethically troubling characteristics: its persistent failure to promote an egalitarian sense of solidarity with travelees.” (THOMPSON, 2020: 59)
De facto, o uso da ficção permite relatar as experiências viáticas, não como algo por vezes arredio ou aberrante — o que criaria no leitor uma sensação de diferença, estranhamento, ou mesmo repulsa — mas, e mantendo a acuidade expetável, atenuar quaisquer choques civilizacionais ou éticos que as narrações efetuadas possam provocar, criando assim uma sensação de familiaridade ou naturalidade.
O autor demonstra compreensão e empatia para com os povos e as civilizações retratadas; nos seus relatos de viagens não encontramos vestígios de racismo, misoginia, exclusão ou sentimentos de superioridade, salvaguardando, é certo, a sua crença de que só através da instrução e da cultura (ocidentalizada, subentenda-se) será possível estabelecer um patamar de igualdade civilizacional, num total respeito pelos usos e costumes, desde que não colidam com a liberdade dos povos visados ou coibam o seu desenvolvimento.
Em sintonia com o exposto por Thompson, a ficcionalidade de Ferreira de Castro apresenta ao leitor todo um conjunto de novas e, por vezes, perturbadoras noções de povos e civilizações, desmitificando-os da sua aura de incultura e desmistificando conceitos a estes ancestralmente ligados:
For some readers, elements of outright fiction may always seem inappropriate and morally problematic in an ostensibly non-fictional form such as travel writing. However, advocates of fictionalization would suggest that creative-critical forms of travel writing are better able to emphasize writer’s positionality, to relinquish the genre’s customary degree of narrative authority, and encourage more sympathy for the peoples and places being described. (THOMPSON, 2020: 60)
De igual modo, e referindo-nos a outras obras de Ferreira de Castro que, embora já fora do âmbito da literatura de viagens, contêm sempre algo experienciado direta ou indiretamente pelo autor, como A Selva, Emigrantes, Eternidade, A Lã e a Neve ou Terra Fria, assim como aquele que podemos considerar um romance histórico, intitulado O Instinto Supremo, o uso da ficção surge como processo de autentificação do narrado. No ‘Pórtico’ deste último, o escritor justifica o seu uso:
Fiel à realidade literária, que pelo seu poder condensador e harmonizante é, como de há muito se sabe, mais convincente, tantas vezes mais verosímil do que a da vida, em numerosos passos desta obra rompi deliberadamente com a história, em prol da ficção criadora e livre, para que os seus heróis não parecessem mitos, as suas acções não segregassem a incredulidade que brota das fábulas, as suas virtudes emergissem da própria condição humana, como em todas as épocas foi verdade, antes dos factos se decomporem e tornarem lendários. (CASTRO, 1968: 17-18)
A credibilização das narrativas castrianas passa, como o autor indica, pela ficcionalização das suas histórias, dos seus romances; deste modo, as mensagens que os textos veiculam são transmitidas pelas personagens de um modo mais natural, pois o uso do quotidiano, quer nos quadros apresentados, quer na própria linguagem despretensiosa, criam uma relação de empatia com o leitor, que afasta qualquer suspeita de descrições fantasiosas ou inexatas, sob o efeito do processo de verosimilhança aqui construído.
Tzvetan Todorov, citando Oscar Wilde[37], corrobora esta ligação entre ficção e realidade através da literatura:
A vida em si é “terrivelmente desprovida de forma”. Dessa ausência resulta o papel da arte. “A função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo”. Ora, criar um mundo verdadeiro implica que a arte não rompe a sua relação com o mundo. (TODOROV, 2007: 66)
Em consequência, toda a obra do escritor reflete um esforço de legitimação dos seus ideais, mesmo que para isso seja necessário recorrer a uma trama ficcional que reforce e enriqueça literariamente a mensagem que pretende transmitir.
  
  •  Postura de um novel humanista
 
Embora possamos assumir que Ferreira de Castro foi, como soía dizer-se, um homem da sua época, ou seja, viveu sob uma ineludível influência dos conceitos sociais e morais então vigentes, o escritor empenhou-se sempre em, à luz da sua filosofia humanista, recusar tudo e todos os que, de alguma forma, revelassem diferença ou discriminação para com os seus semelhantes. O investigador Ricardo Alves afirma:

Não há, conscientemente, uma atitude etnocêntrica por parte do escritor n’A Volta ao Mundo. Mas, enquanto produto da sua própria cultura, constata-se como ele radica nas ideias progressistas ocidentais — com toda a carga positiva e equívoca que esta palavra encerra — a mudança das mentalidades das novas gerações desses territórios para com a tradição, “numa luta contra o passado”, combate de que ele quis ser um dos paladinos e que aplaudia onde quer que ele se manifestasse. (ALVES, 2002: 48)
Esse empenho na recusa de um etnocentrismo que lhe é, por inscrição cultural, inerente, encontra-se visível na sua atitude de autocrítica e no aviso que faz aos seus leitores, aquando da sua descrição da Índia e da sua civilização:
Os tipos, a cor do pigmento e as raças variam de grupo para grupo; tudo isto parece fantasia teatral, coisa imaginada. No primeiro contacto visual, o forasteiro tem de fazer um esforço para aceitar que toda esta humanidade é igual àquela a que ele pertence. (CASTRO,1950a: 19- 20)
Por outras palavras, o escritor alerta o leitor — e referindo-se a alguns países ou regiões e povos que visitou e que, à época, seriam considerados, por variegados fatores, civilizacionalmente atrasados — para a possibilidade de algumas conceções ocidentais preconceituosas e a-históricas se poderem sobrepor a uma renovada visão humanista do Mundo.
De facto, não há como não atentar na mirada europeísta do autor e de como ela influencia a sua perceção da humanidade. Existe efetivamente um olhar civilizador ocidental que Ferreira de Castro lança sobre as regiões intra e extraeuropeias que visitou.
Porém, e em abono da verdade e defesa do escritor, não nos podemos esquecer que esse mesmo olhar recai sobre o seu próprio país, vítima, como muitos outros, de um atraso moral, civilizacional e tecnológico assaz importante. Como Ricardo Alves salienta, “(...) pode dizer-se que a produção jornalística de Ferreira de Castro evidencia já uma preocupação por temas sociais, como as condições de vida dos presos, os meios de acolhimento nos albergues nocturnos (…), a vida dos operários na Mina de S. Domingos” (ALVES, 2002: 30).
Face ao exposto, constata-se que o problema pátrio é também por si analisado; porém, devido à existência de uma censura estatal extremamente repressiva, as suas críticas só muito mais tarde ganharão voz, pois, agastado com os cortes deturpantes, parciais e não raras vezes totais dos seus artigos, muitos deles sem razão minimamente plausível, desistirá do jornalismo até que, eventualmente, a liberdade de imprensa venha a ser restabelecida.
Só regressa às questões do próprio país quando a sua projeção internacional como escritor lhe permite tornar-se relativamente tolerado ou imune às investidas dos opositores, dos que se esforçam por coartar a sua liberdade de expressão e, por extensão, a verdade sobre as injustiças e as atrocidades internas pois, como diz o autor, “(…) os inimigos da liberdade só o são quando dispõem dela, quando gosam de todas as liberdades, inclusivé a de eliminar a liberdade dos outros.” (CASTRO, 1946: 1)
O escritor não é um turista, ávido por exibir cosmopolitismo e colecionar países e regiões no seu passaporte; é acima de tudo, um humanista que viaja para tentar conhecer, sinalizar e, eventualmente, compreender um mundo que, muito embora alienígena, sofre e tem os mesmos erros e problemas de que a sua pátria padece, também ela prenhe de miséria, fome e opressão.
Não procura o pitoresco, se essa singularidade passa pela infelicidade de um povo; para ele, o pitoresco é a originalidade da diferença de uma sociedade para com outras culturas e outros seres que se lhe assemelham na condição humana.
No japão, muito embora tenha feito observações pouco abonatórias dessa sociedade, visto ela constituir, na época, um país opressor, pois dominava a vizinha China com mão de ferro e pela força das armas, não deixa, contudo, de louvar as caraterísticas positivas dos nipónicos, retratando-os como uma etnia literária e artisticamente avançada, cuja capacidade tecnológica considerava, em certos aspetos, superior à dos norte-americanos. O seu espírito crítico não deixa, pois, de fazer um reparo em defesa da sua — cada vez maior — crença de que, afinal, humanisticamente falando, não existe plural na definição de “ser humano”:
Nós próprios, durante esta longa viagem, durante esta longa sucessão de povos, de costumes e de países diferentes, temos verificado, uma vez mais, quanto é absurdo julgar os homens pela sua cor ou pelo desenho dos seus olhos. Passamos duma terra para outra, duma raça para outra raça e, ao cabo de alguns dias, já nos parece natural o que a princípio nos surpreendeu e quase nos esquecemos de que os homens com quem estamos a conviver são, na aparência e nos usos, diferentes daqueles com quem convivemos semanas antes, porque, acima dos costumes e da cor da pele, persiste sempre e sobretudo — o Homem. (CASTRO, 1950b: 290)
Cruz Malpique apercebe-se bem dessa convicção de igualdade e pertença que Castro faz sempre transparecer na sua postura como escritor e cidadão do Mundo e que transporta para os seus livros:
Ferreira de Castro e a sua obra literária constituem um todo. Ele está nela, ela está nele. Consubstanciam-se. Osmoseiam-se. Penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la. Ferreira de Castro foi às vivências pessoais, transladou-as umas vezes na primeira pessoa, outras vezes na terceira, para lhes dar aparente impessoalidade mas, no fundo, é ele quem está sempre, na raiz daquilo que escreviveu. (MALPIQUE, 1976: 172)
É, todavia, notória a proeminência com que Castro tece acutilantes comentários sobre as injustiças que vai observando no seu périplo pelo mundo, assim como sobre a tirania e cupidez das classes dominantes, não se inibindo, porém, de atribuir a alguns dos povos dominados, por via da sua passividade ou excessiva resignação ou, como dirá Ferrão Moreira[38], “[p]or conveniências opíparas de uns e entranhadas covardias de outros” (MOREIRA, 1967: 99), o seu quinhão de responsabilidade:
Quando, há perto de quatro séculos e meio Vasco da Gama chegou a esta costa [Índia], o panorama devia ser o mesmo. Mas cobria-se, então, de mistério. Nós sabemos hoje que, nesta massa escura e ondulada onde finda o mar, reina a miséria e vegetam densas multidões semi-famintas e semi-nuas, separadas por ódios de raças e credos, tão grandes que nem a desgraça comum as une [.] (CASTRO, 1950a: 49)
Do mesmo modo, referindo-se ao povo malaio, o escritor critica o conformismo patente naqueles que teriam sobejas razões para se revoltarem contra um statu quo de milénios:
(…) gentes que labutam aqui, pelo magro arroz de cada dia ou que vêm, das minas de estanho, gastar, em Kuala Lumpur, o pouco que amealharam do muito pouco que receberam — e sempre a sorrir, com optimismo, perante a exploração de que são vítimas. (CASTRO, 1950a: 223)
Mesmo concedendo o devido e imprescindível distanciamento temporal e histórico e atentando às profundas e complexas mudanças políticas, geográficas e sociais que o orbe experienciou desde a criação das obras citadas, torna-se-nos difícil não ver espelhado o contemporâneo nas descrições do autor e nos seus comentários. Aparte o maravilhamento do Viator e a tentativa de compreensão e assimilação de mundos e culturas aos quais é estranho, o escritor faz transparecer frequentemente, de modo assaz incisivo e sem pudores, um misto de piedade, amargura e denúncia. Eurico Gama[39] afirma que Castro “escreveu com o coração, por vezes sangrando perante tantas injustiças praticadas no mundo atroz que vivemos[.]” (GAMA, 1976:145) Como ácrata assumido desde muito jovem e, nas palavras deste bibliófilo e editor elvense,
a sua ideologia política palpita em todos os seus livros, mas nunca neles encontramos palavras recalcadas pelo ódio, pecado em que Aquilino com frequência se deixava cair. Ferreira de Castro está sempre acima dessas misérias, sem, contudo trair os seus nobres ideais. (ibidem)
De facto, o autor de Emigrantes, não obstante a sua mordacidade e demonstrações de revolta perante as injustiças que presenciou ou denuncia, fá-lo de um modo expositivo, jornalístico, sem demonstração de excessiva rudeza ou agressividade. Como afirmou Agustina Bessa-Luís, citada por Pedro Calheiros, “[o]s contrastes da sociedade causavam-lhe uma pena indigna. Nunca agressiva. Ele era um homem de boa índole, não sabia insultar nem se encolerizava facilmente.” (CALHEIROS, 2007: 19)
As observações e relatos que produz, longe de meros apêndices de um livro de viagens, acabam por revelar o estímulo subjacente à criação, não apenas da obra A Volta ao Mundo, mas também da sua outra publicação, Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, dedicado à mesma temática. Alves, referindo-se à primeira obra, afirma:
Ao contrário de alguns orientalistas do século XIX (…), Castro não procurou o exotismo para satisfazer a curiosidade fácil dos leitores. Registou o belo e o feio, o sublime e o medonho, exalçando-os, deplorando-os e relativizando-os de acordo com a sua visão do mundo e da vida. (ALVES, 2002: 48-49)
Ferreira de Castro foi um escritor com uma sensibilidade incomum, cujo espírito crítico tanto condenava como indultava, de acordo com as circunstâncias, os povos e culturas que visitou. Nalguns trechos das suas obras nota-se essa dicotomia censura-louvor, numa maneira muito própria de, como diz Alves acima, registar o belo e o feio, o sublime e o medonho. Na sua visita a Jerusalém – cidade sagrada para muçulmanos, judeus e cristãos, observa:
(…) as gentes, cá fora, falam, gesticulam muito, altercam entre si, num rumor infindável; dentro, porém, dos pequenos estabelecimentos há sempre figuras de árabes, esboçadas na obscuridade, que se mantêm em completa quietude, pensativos, abstractos, os olhos com a neblina da distância, o corpo presente e o espírito ausente. A alma muçulmana, feita destes contrastes bruscos, dá ao pitoresco das ruas de Jerusalém alguma coisa que está por cima do pitoresco, do ruído e da ânsia de quitar proveito do estrangeiro; algo de melancólica espiritualidade, de leve sombra que se estende, indolentemente, sobre o sol que dorme nas vetustas pedras. (CASTRO, 1949d: 157)
Mais à frente o autor revela o seu modus operandi, de que forma ele exorta a observar o mundo, ou seja, a interpretá-lo. Não o avalia apenas com o que em aparência se lhe depara, mas sobretudo com a visão interior, com o perscrutar crítico do espírito: “Perante Jerusalém, como perante as paisagens, o importante não é o que se vê e sim o estado de alma com que se vê. Na Palestina, o principal não é o que está; o principal é o que cada um traz dentro de si próprio.” (CASTRO, 1949d: 169)
Em conformidade, e referindo-nos ao trabalho do escritor, citamos a investigadora Sofia de Melo Araújo, que afirma:
(...) há que reconhecer o extraordinário papel da Arte em geral, e da literatura de ficção em particular, não apenas como veículo de ideias definidas, mas também enquanto gerador de questionações e reinterpretações do Mundo e da Vida, que assumem mesmo papéis de destaque na transformação do Real. (ARAÚJO, 2016: 72)
Para Sofia Araújo essa aceitação traduz-se “na necessidade de constatar que, para além dos efeitos estéticos, a obra de arte é sempre uma representação de valores, de escolhas, e que alguns desses valores não são simplesmente estéticos, mas sociais, políticos e éticos”. (idem: 73)
O escritor esforçou-se sempre por apresentar os episódios da humanidade e, em geral, da vida à superfície do planeta, tal qual elas se manifestavam: sem filtros e sem véus, embora salvaguardando uma narrativa dentro do que considerava socialmente aceitável, tanto nos seus textos literários como nos jornalísticos.
Assim, Adelino Ferreira Neves recorda o desencanto amargo com que Ferreira de Castro acolheu a informação de que um artigo seu tinha sido suprimido pela Censura. Nesse texto, Castro, mais do que a notícia como mero trato jornalístico, impessoal e frio, ressaltava aspetos sociais que apelavam a uma compreensão, compaixão e justiça pelo que se escondia por detrás de um drama humano, provocado por precipitação e abuso de poder das autoridades: em Beja, um homem havia sido acusado de roubo de cereais; para o tentarem condenar, levaram a sua mulher para a cadeia, onde foi torturada, numa tentativa de obter dela a confirmação do roubo. Esta, não resistindo ao sofrimento, enforcou-se na cela. Em desespero, o marido, ao saber de tão terrível desenlace, barricou-se em casa, armado. Cercado pela GNR e pela PSP, durante o tiroteio que se iniciou, matou um chefe das forças policiais, tendo também sofrido ferimentos. Preso e enviado ao hospital numa ambulância, com febre devido às escoriações, pediu água. O guarda que seguia na viatura, enfurecido pela morte do chefe, em resposta e por vingança, alvejou-o, matando-o. Posteriormente soube-se que o homem estava inocente.
Castro faz a notícia, fiel aos acontecimentos. Neves, como correspondente e redator regional d’O Século em Beja, manda-a publicar, enviando-a para Lisboa. Mais tarde, visitando o autor nessa cidade, soube que a notícia tinha sido totalmente cortada pelo lápis azul da Censura:
Passados tantos anos ainda hoje revejo nitidamente o semblante de tristeza e mágoa de Ferreira de Castro, depois de ter lido a reportagem que escrevera!... E. perguntando-lhe eu da sua impressão crítica dos acontecimentos, Ferreira de Castro disse-me simplesmente... ‘O Matos nunca se poderá considerar um criminoso... defendeu-se dos que o queriam matar; nada teria acontecido se não lhe tivessem morto a mãe dos seus filhos e depois o não tivessem perseguido tão ferozmente.’ [40] (NEVES, 1976: 13-14)
Ana Cristina Carvalho reproduz o extrato de uma entrevista do autor ao Diário de Lisboa (1945), onde este, amargamente, mas com fina ironia, refere a sua incredulidade perante os cortes censórios que, amiudadas vezes, sofria nos seus artigos jornalísticos:
Uma vez, cheguei a escrever três artigos sobre o mesmo assunto — sobre o Natal — e todos foram proibidos, porque neles eu aludia aos pobres que, nessa noite, tinham frio. Chega a parecer inverosímil (...) que as esferas oficiais houvessem deliberado fazer acreditar o país e o estrangeiro que em Portugal ninguém tinha frio, nem fome, nem miséria, que havia, portanto, um Portugal que nós não víamos em parte alguma e que era diferente daquele que nós víamos todos os dias e em toda a parte. (CASTRO apud Carvalho, 2017: 130)
Também Ricardo Alves reconhece o ónus sofrido pelo autor – no fundo, por todos os escritores portugueses não alinhados com as políticas do regime — e que reflete na sua constatação de que “Castro escreveu a sua obra sob a pressão da censura, de Emigrantes a Os Fragmentos. Sentiu, portanto, duma forma aguda os constrangimentos e o sufoco dum estado repressivo e policiado.” (ALVES, 2002: 100)
De facto, o escritor refere na sua última obra – Os Fragmentos – essa sensação torturante com que teve de conviver durante toda a sua vida profissional de escritor e de jornalista, de não poder escrever as verdades que lhe brotavam do mais íntimo da sua consciência e com as quais pretendia denunciar os erros e iniquidades do sistema e, por extensão, do mundo: “(…) de todos esses fabricantes de perniciosos silêncios, o mais nocivo de todos (…) não é o censor real, é a sua consequência, o censor abstracto que se instala no nosso cérebro e de lá nos comanda impiedosamente.” (CASTRO, 1974: 39)
Ferreira de Castro relembra a mágoa com que “(…) f[o]i obrigado a vigiar o comportamento das palavras para além das suas imposições estéticas, nesta mesma secretária de onde eles deviam erguer voo, direitos à luz exterior, e quedarem afinal na escuridão das gavetas, como na de um túmulo.” (idem: 11)
São, como já acima foi referido, contínuos os cortes às suas crónicas, e também aos seus livros: depois de já ter publicado A Volta ao Mundo, Eternidade e Terra Fria, tenta dar ao prelo O Intervalo, no que é prontamente impedido pela Censura. Esta obra, publicada postumamente após o 25 de abril de 1974, e inserida no livro Os Fragmentos, aborda a vida de um personagem ficcional, chamado Alexandre Novais, um dirigente anarcossindicalista português, obrigado a refugiar-se em Espanha por ser alvo de perseguição política no seu país.
A ação decorre em 1933, em Cádis, onde o português participa nas insurreições operárias da Andaluzia, que acabam por redundar no massacre de Casas Viejas, onde populares revoltosos sucumbem, independentemente do seu sexo ou idade, às mãos das forças policiais — acontecimento verídico que precipitou a queda da 2ª República espanhola. Tratava-se, assim, de um tema interditado pelo Estado Novo, pois implicava, não apenas a reprodução inadmissível de uma sublevação popular, como indiciava também a existência de atitudes repressivas do Estado, em território luso.
Por razão desse impedimento, e dando voz a Ferreira de Castro: “Mas já então eu vivia exclusivamente da minha pena. Tinha, pois, de trabalhar. E foi por essa exigência que escrevi, com desalento imenso, o meu primeiro livro de viagens, esses ‘Pequenos Mundos’ que nunca pensara escrever quando os trilhara num sonho errante.” (idem: 78)
Não podendo falar abertamente das injustiças e misérias do seu país, o único recurso foi o de o fazer espelhando noutros mundos o mundo em que nascera e que lhe era interdito criticar.
De notar que, na última obra referida, a sua descrição da ilha da Madeira já consegue deixar transparecer os primeiros vislumbres de uma crítica ao imobilismo e segregacionismo estatal, no que concerne ao bem-estar do povo, sem que, em consequência, seja impedido pela Censura:
O nível de vida do povo, sobretudo do camponês, é impressionantemente baixo. Como na Córsega, a existência humana nas aldeias da Madeira caracteriza-se por uma forçada sobriedade na alimentação. Aqui bebe-se aguardente a mais e pão a menos. (…) Até há pouco tempo havia o sonho da emigração; mas fechadas as portas da América, só no álcool o camponês gozará, porventura, fictícia redenção e momentâneo esquecimento. O seu hortejo, o leitezito da sua vaca, que ele vende para lacticínios, e os bordados que faz a mulher, dão-lhe tão fraco rendimento que nenhuma hipótese de vida farta lhe é possível admitir. Como nas aldeias do continente, encontramos na Madeira menos crianças que vão à escola porque os pais não podiam comprar os livros de ensino. (CASTRO, 1949d: 279)
O pitoresco, como expressão genuína do povo, esse casticismo português de primitivismo e miséria, explorado como um exotismo intraeuropeu, atrativo para os estrangeiros e para benefício económico do Estado e de alguns privilegiados, começa a ser referido com mais incisividade:
Não há muito tempo, esta expressão de existência primitiva era apenas vista como “coisa pitoresca”. O forasteiro arribava, fruía o encanto das longas sebes de buxo e de hidrângeas, sorria-se paternalmente das barraquitas, que são graciosas na sua pobreza e abalava a narrar a impressão colhida do povo que vivia na nossa época como nas épocas primárias. Hoje, desde que se tenha o coração e cérebro em bom funcionamento, isto levanta outras sugestões. (CASTRO, 1949d: 281)
A atitude paternalista atribuída aos forasteiros, e a que o autor se refere, poderá ser considerada uma forma de exotismo intraeuropeu, mas a que não podemos atribuir em exclusivo a visão eurocêntrica e depreciativa que os países do Norte do Continente tinham — e mantêm ainda — sobre os territórios soberanos do Sul da Europa. Muito para além disso, trata-se de uma mirada de supremacia social que poderá ser exercida por um qualquer grupo que se autointitule superior, geralmente em termos de classe, económicos, ou mesmo nacionais, independentemente desta dicotomia continental.
Podemos assim falar também de um “microexotismo intraeuropeu” quando abordamos, por exemplo, algumas formas de turismo rural que não se enquadrem em padrões ecológicos ou culturais, mas que se destinem apenas à fruição dessa “existência primitiva” como “coisa pitoresca”. Sob esta perspetiva, um português da Madeira poderia ser visto como exótico aos olhos de um seu compatriota continental.
Apesar da origem da visão eurocêntrica do Norte Europeu, que acima referimos, ter raízes históricas e geográficas muito mais antigas e complexas, é relevante citar Roberto Dainotto: “With the Reformation, a latitudinal crisis ‘between an increasingly wealthy protestant North and an increasingly impoverished Catholic South’ (Pagden, introduction 13)[41] completed the latitudinal fracture of Europe, shifting its center of influence away from the Mediterranean.” (DAINOTTO, 2007: 44)
Desta crise, e segundo alguns autores – diz Dainotto – nasceu o Espírito da Europa Moderna.
Podemos, assim, compreender um pouco melhor as razões de uma conceção redutora que englobava os quatro países mediterrânicos aderentes à União Europeia nas décadas de 80 e 90 do Século XX – Portugal, Itália, Grécia e Espanha –, e que os países do Norte apelidaram de PIGS[42]: “A modern European identity, in other words, begins when the non-Europe is internalized—when the south, indeed, becomes the sufficient and indispensable internal Other: Europe, but also the negative part of it.” (DAINOTTO, 2007: 4)
Por estas mesmas razões não será de admirar que o autor, profeticamente, se permita, sessenta e dois anos antes das declarações acima transcritas, em 1945, conceder uma entrevista, onde tece críticas ao desempenho governamental e, no geral, ao estrato social dominante sem, contudo, ser demasiado explícito, evitando assim represálias desnecessárias, e para si moralmente desgastantes:
Não sou político. Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos. (CASTRO, 1945) [43]
Por essa altura, a projeção de Ferreira de Castro como escritor, fruto do acolhimento extremamente positivo da crítica e dos leitores, um pouco por todo o mundo, no seguimento das várias traduções e publicações das obras Emigrantes em 1928, e A Selva em 1930, tinha surtido os seus efeitos:
A excepcional recepção internacional da obra de Ferreira de Castro explica grandemente o medo do regime salazarista de proibir as suas obras e de inquietar o escritor. Prender ou censurar Ferreira de Castro, o Soljenitsyne luso, pela sua aura, seria uma autodenúncia internacional dos maus hábitos repressivos do regime e dirigir ainda mais os holofotes para a miséria do povo português.[44] (CALHEIROS, 2017: 35)
Numa carta laudatória enviada ao escritor no seguimento da publicação da novela A Missão, em 1954, Jaime Brasil revela-nos, não apenas a relativa intocabilidade de que Castro gozava, mas também, no que concernia aos editores, o temor de represálias que subjazia a publicação das suas obras:
A novela central é assaz subversiva para lhe ter causado apreensões e aos leões editores. É preciso terem-lhe muito respeito para dos seus acacianos prelos saírem coisas tão atentatórias da ordem estabelecida. Parabéns pela sua coragem, a sua de autor e não a deles editores, pois neles não se trata de coragem, mas de medo. [45] (BRASIL, 1954: 199)
Ferreira de Castro é, como Aquilino Ribeiro, um autor inconformado; o primeiro foi um migrante económico, o segundo, temporariamente um exilado político, posteriormente indultado. Embora separados por treze anos de idade, pois Aquilino nasceu em 1885, partilham o mesmo pensamento ideológico e ideal humanístico: o anarquismo. Nenhum tem qualquer filiação partidária, são republicanos e anticlericais e ambos se insurgem contra o Estado Novo, por questões políticas, sociais e humanitárias; os dois são jornalistas e escritores, mas, ao contrário da suavidade castriana, Aquilino é truculento. Na sua juventude, foi preso por posse de bombas e suspeito de colaborar no assassínio do rei D. Carlos e do seu filho e sucessor, D. Luís Filipe, além de participar em levantamentos e outras atividades ditas subversivas.
No entanto, ambos foram “tolerados” pelo Estado a quem criticavam, pois que o sucesso da sua projeção nacional e mundial exigia um abrandamento ou supressão de medidas punitivas ou restritivas, de modo a salvaguardar a imagem de normalidade e tolerância que o governo pretendia fazer passar ao resto do mundo. De outro modo, seriam hoje, provavelmente, autores quase desconhecidos.
Sem pretender entrar em exageros encomiásticos, achamos, contudo, relevante e pleno de significado o retrato moral que Cruz Malpique faz de Ferreira de Castro: “humano, humanista e humanitário.” (MALPIQUE, 1976: 173) Dois exemplos, para nós, mais marcantes desta afirmação e dos quais não podemos abdicar —sob pena de retirarmos à nossa exposição a alma de Ferreira de Castro —, surgem aquando dos seus relatos das visitas à Índia e, posteriormente, à China. Comecemos pela terra dos Brâmanes:
Maletas feitas, abalamos, um dia, do hotel. A numerosa criadagem formava, consoante o hábito, filas à porta do quarto, atenta à gorgeta (…). Só o “intocável” estava longe, encolhido, isolado, na parte mais obscura do corredor. Ao gratificá-lo, estendemos-lhe a nossa mão, numa pueril mas irrefreável atitude contra o aviltamento do ser humano. Gesto inédito, decerto, na sua vida, ele quedou-se, a contemplar-nos, perplexo. Só perante a teimosia da mão que se lhe oferecia, se decidiu a apertá-la, timidamente, os olhos apavorados, receando não haver compreendido bem e ofender-nos. Afinal, nós éramos iguais em tudo, que para os defensores das castas um europeu e um pária da Índia são ambos intocáveis e impuros… já à porta do ascensor, demos conta de que nos havíamos esquecido dos cigarros e, por eles, volvemos ao quarto. Fomos encontrar o pária a chorar. Ao passarmos, ele soergueu a cabeça e nos seus olhos de grande superfície branca vimos uma submissão e uma inútil gratidão que jamais tínhamos visto noutro olhar…
Pouco depois, o expresso de Agra, levando-nos, partiu da arrogante estação de Bombaim. (CASTRO, 1950a: 74-75)
Na Índia, embora combatido durante décadas, o sistema de castas — no fundo, uma forma de xenofobia e racismo internos —, estritamente ligado à miséria, ignorância e fanatismo religioso de um dos países mais populosos do planeta, pode ainda hoje refletir-se parcialmente no presente, expondo episódios que se poderão aproximar da realidade que Ferreira de Castro presenciou há mais de oitenta anos. Entretanto, na China, o panorama modificou-se radicalmente, embora saibamos que lá, como em qualquer outro país, continua a existir muita miséria escondida e incómoda.
Ferreira de Castro, em 1939, em plena Guerra Sino-Nipónica e no início da II Guerra Mundial, parte da cidade chinesa de Xangai, então ocupada pelos japoneses, para Cobe, no País do Sol Nascente.
Antes de abandonar o cais e embarcar no navio fretado, lembra-se que ainda possui cerca de dez ou doze dólares chineses que, fora do país, nenhum valor terão, devido à extrema desvalorização provocada pelo clima bélico então vigente. Chama o condutor de um jinrixá[46] que acabara de deixar um cliente e oferece-lhos. Ele, após compreender que se tratava de uma dádiva, fica incrédulo e admirado. Castro comenta, não se esquecendo, todavia, de, à semelhança do exemplo que demos sobre a Índia, assinalar subtilmente a exploração e os contrastes sociais:
Com uma só libra se pode fruir um dia de opulência. O trabalhador nativo continua, porém, a receber uns míseros cêntimos. Quis o destino que, para nós, a última imagem humana da velha China mártir fosse a deste sudoroso chinês, de calções curtos e blusa sem mangas, que, com uma mancheia de papéis amarrotados, papéis que nem sequer traduziam generosidade da nossa parte, nos contemplava como se não soubesse ao certo se havíamos perdido o juízo ou se ele estava a sonhar. Na nossa frente erguiam-se os imponentes edifícios de Xangai, catedrais de negócios, e corria a terra chinesa, onde, há já séculos, bandos de alienígenas iniciaram, em proveito próprio, a colheita das riquezas nacionais — e nunca mais a abandonaram. (CASTRO, 1950b: 171)
N’A Volta ao Mundo, da qual retirámos as citações acima, e tal como em Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, Ferreira de Castro divide-se por três tipos de descrição: a geográfica, a histórica e a etnográfica, mantendo em permanência elos de ligação com destaques não menos importantes, talvez mesmo veladamente fulcrais, que serão a injustiça social, as condições desumanas que presenciou no mundo do seu tempo, na sua vivência e nas suas viagens e que, embora aparentem por vezes terem sido extirpadas ou atenuadas nos nossos dias, continuam a surgir mais encobertas e, eventualmente, ainda mais gravosas do que as constatadas à época das descrições do autor. Mesmo considerando que A Selva é um romance de cariz autobiográfico e Pequenos Mundos e A Volta ao Mundo são livros de viagens, seria provavelmente a vertente de denúncia das injustiças sociais, o verdadeiro motivo da sua conceção. No caso de Portugal, o autor recusava-se a compactuar com descrições miríficas que mostrassem um jardim da Europa à beira-mar plantado e habitado por um povo de jardineiros felizes. Seria isso o que o Estado Novo pretendia mostrar aos olhos do mundo, através do controlo da Imprensa, dos poetas e dos escritores portugueses.
Assim, não lhe sendo permitido denunciar o estado da Nação, opta, contra sua vontade e por força da necessidade de subsistência, por escrever os livros referidos. Nestes, não se inibe, todavia, de denunciar as injustiças, expor a miséria, a opressão e as péssimas condições de sobrevivência de cada povo e de cada país que visitou, deixando por vezes, nas entrelinhas, indícios suficientes para se poderem estabelecer ligações com os problemas análogos da sua pátria.
Surge a este propósito uma questão fraturante que tem sido alvo de diversas interpretações: o papel desempenhado pelo autor na génese do neorrealismo português.
No documentário Estado Novo e Literatura, consultável no arquivo online da Rádio Televisão Portuguesa, Luís Augusto Costa Dias (à época, diretor do Museu do Neorrealismo) comenta que, embora Ferreira de Castro possa encontrar-se “dentro do espectro neorrealista”, o seu papel será mais o de “recuperação dos realismos.” (DIAS, 1997: passim)
Segundo o investigador, “a característica basilar do neorrealismo” é “a questão da utopia”, ou seja, “a criação de uma sociedade nova livre de opressões”, através de “uma corrente da arte e do pensamento”, em simultaneidade, e não como “uma literatura exclusivamente política.” (idem)
No entanto, existe uma ligação política que une os pioneiros do neorrealismo: a sua convicção de que só a luta de classes poderá ser o procedimento tendente à criação de uma sociedade mais justa e equilibrada ou, por outras palavras, uma sociedade de inspiração marxista.
Tal não é o caso de Ferreira de Castro: ácrata convicto, nunca aceitaria subjugar os seus ideais a uma qualquer – fosse qual fosse – estrutura de poder, razão por que foi, fiel a si próprio, e até ao fim dos seus dias, agnóstico e apartidário. Como observa Aguiar-Branco, referindo-se ao autor:
[a]firmou sempre que a liberdade de pensar é indissociável da dignidade humana. O seu conceito e prática de liberdade levou-o, inclusivamente, a não professar nenhum credo religioso, nem aderir a qualquer fação ou partido político, apesar de reiterados convites e da sua valia entre os intelectuais neorrealistas e nos meios anarco-sindicalistas. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)
Damos, assim, alguma razão a Ricardo António Alves, quando este afirma que “se ele foi um precursor, não deixa de ser bizarro ter antecipado na estética uma via discordante da sua própria ideologia, tanto mais que quem abre caminhos, trilha-os forçosamente, mesmo que depois acabe por se afastar deles — e não foi o caso.” (ALVES, 2002: 74)
A opinião de João Gaspar Simões é, em parte, concordante com a de Ricardo Alves:
Sem dúvida que são muitas as divergências a assinalar entre o realismo social de Ferreira de Castro e o realismo social dos neo-realistas. A mais evidente é esta: enquanto a literatura do autor de A Selva é fortemente temperada de realidade experiencial, digamos, jornalística, a literatura dos neo-realistas é assinalada por um regresso ao subjectivismo de tipo “Matière de Bretagne”,[47] uma vez que a falta de experiência da realidade evocada conduz à introdução da poesia onde é mister encontrarmos a realidade.[48] (SIMÕES, 1967: 151)
No entanto, no seguimento da sua exposição, Simões volta a reacender a polémica, deixando o leitor num impasse quanto à sua inscrição estético-ideológica:
Copiam-lhe os métodos os novos realistas? Não. Seguem-lhe a filosofia? Tão-pouco. Adoptam-lhe a estética? Também não. Em que é que o realismo social de Ferreira de Castro pode considerar-se, então, precursor do realismo social dos neo-realistas? Apenas em ser realismo social. (…) Os neo-realistas, mesmo que nada aprendam com Ferreira de Castro no ponto de vista da concepção romanesca, têm nele um precursor. E um precursor mais válido do que parece. Enquanto a sua literatura é vivida como experiência humana, a deles — a da maior parte deles — é concebida de cor, elaboração livresca equacionada de acordo com uma estética mais próxima da subjectividade da novela de cavalaria que da objectividade dos relatos quase jornalísticos em que se funda a autêntica novelística de fundo realista. (idem: 152)
Lucas Maia[49]explica este processo de separação de correntes ideológicas, embora de inspiração comum, que poderá fazer-nos entender melhor o motivo das divergências em torno da categorização deste autor:
Durante o processo de afirmação do anarquismo como um movimento social, o aparecimento e influência do russo Mickhail Bakunin é de fundamental importância. Bastante influenciado pelas idéias de Proudhon, Bakunin vai levar às últimas conseqüências as idéias de anarquia como negação da autoridade e do estado. Criou-se deste modo uma polêmica entre Marx e Bakunin ou como entrou para os anais da história do movimento comunista: os socialistas autoritários, discípulos de Marx e os socialistas libertários, discípulos de Bakunin. Os primeiros, amantes da autoridade e do estado, os segundos, a negação racional e direta da autoridade, do estado e dos governos. (MAIA, 2010: 140-141)


Face ao exposto, somos tentados a acreditar que José Maria Ferreira de Castro é um dos escritores mais importantes do Realismo Social no nosso país, movimento artístico então emergente e perseguido. Quanto à sua inscrição no Neorrealismo, limitamo-nos a expor os argumentos teóricos que se nos têm deparado sem, contudo, abraçar qualquer posição estética, pois não consideramos avisado adotar uma decisão definitiva sobre um tema que, pela dificuldade de escolha entre algumas teorias aceites como minimamente válidas e pela dubiedade de outras, não pode exigir uma tomada de opinião sólida sem uma investigação mais aprofundada, e que não constitui o objetivo desta dissertação.

Considerações Finais
No presente estudo, procuramos atardar-nos em pegadas éticas e estéticas de algumas obras de Ferreira de Castro.
Tentámos compreender o autor nos limites de uma multidisciplinaridade, para nós, possível. Aflorámos um pouco da ética, da estética, da moral, do humanismo, da literatura, da sociologia e da política; analisámos o seu percurso vital, quase desde a nascença, o seu desterro compulsório e desvalido, e como lutou para se libertar e à Humanidade, como um todo, de um futuro determinista, não com um intuito biografista, mas colocando tal démarche ao serviço do nosso desígnio, que é o de procurar assimilar a sua ética universalista e o objeto estético por que ansiava. Valemo-nos, à impossibilidade de outros recursos, de livros do autor e de meios audio-visuais e estudos com ele relacionados, assim como obras que selecionámos dentro do quadro multidisciplinar acima referido. Desse modo, peça a peça, capítulo a capítulo, seguimos o seu percurso singular.
Começámos, assim, por analisar as suas origens modestas e os pressupostos de desenvolvimento literário e pessoal, que em nada abonavam a seu favor, e concluimos que, aliado a um anseio de se tornar jornalista, — objetivo preconcebido ainda na infância, em Oliveira de Azeméis —, juntou a uma vontade forte uma visão humanitária, ambas reforçadas pela sua própria experiência e cimentadas pela exploração e condições desumanas a que ele e os seus companheiros de infortúnio se sujeitaram.
Vimos, mais tarde, que o jovem José Maria, ainda adolescente, e pese embora as dificuldades de sobrevivência, aliou o seu desejo de pertencer ao mundo mediático, editando pequenos artigos nos jornais locais — e em paralelo com uma incipiente produção novelística —, a um esforço tenaz de leitura que abarcava as mais diversas e possíveis disciplinas do conhecimento, ao seu alcance. Foi, portanto, um autodidata atento, o que já lhe permitia escrever com acuidade e certa erudição.
Inicia-se nesta fase o seu interesse pelas doutrinas sociais, muito em voga na época, com particular incidência no anarco-sindicalismo, que marcaria o seu percurso até ao fim dos seus dias e que muito cedo se transforma numa forma de realismo social muito própria, que culmina no que apodamos de Novel Humanismo. Este, tendo como pano de fundo várias personagens de referência na sua vida literária e humanística, como Kropotkine, Marechal Rondon, assim como sua primeira mulher Diana de Liz, entre outros, materializa-se numa relação de alteridade “impregnada de cristianismo”, ou, por outras palavras, numa espécie de “franciscanismo” ( Emery apud ALVES, 2002: 157) ateu.
Viajante, sedento de compreender e interagir com o Mundo em que vivia, alargou os seus horizontes e estreitou a sua ligação com povos e culturas próximas e longínquas, sempre atento aos enormes fossos sociais com que deparava, tentando interpretar as razões dessas diferenças com paciência e compaixão.
É, pois, esta, em essência, a sua ética: nem filiado nem acólito, Ferreira de Castro adota uma prática que, passando pela observação, compreensão, denúncia e crítica, atinge o seu clímax num altruísmo transmutado em amor incondicional pelo Mundo, pela Natureza e suas díspares manifestações e, muito particularmente, pela Humanidade.
Antes, porém, e num longo processo, o autor teve de exorcizar-se de visões preconcebidas e fraturantes sobre a sociedade, sublimar as suas conceções do Orbe e pacificar-se com a Natureza. A sua visão da juventude, naturalmente aguerrida e ansiosa pela mudança, foi-se transformando pela ponderação e pela compreensão dos seres com quem partilhava a espécie, acabando por lhe conceder a paz dos que se sentem indivisos com o Universo.
No decorrer da sua vida e como manifestação da sua ética, Ferreira de Castro produziu obras literárias que veiculam a materialização dos seus ideais, da sua visão do Cosmos, da Natureza e da Humanidade que o habita, e que poderão ser consideradas o seu corpus estético.
Pela nossa análise chegámos, porém, à conclusão de que o impacto inicial da sua Obra, pese embora a qualidade literária e o reconhecimento dos valores que encerra, tem vindo a diluir-se por força das suas circunstâncias temporais e situacionais específicas que, na nossa opinião, fazem-lhe perigar a sobrevivência no tempo literário; embora o impacto mundial tenha sido extremamente relevante, à época, as suas descrições viáticas e os seus romances foram perdendo a atualidade perante o público leitor, apesar de toda a sua riqueza como objeto multidisciplinar (histórico, sociológico, político e etnológico, entre outros), apenas resistindo maioritáriamente no seio dos meios académicos e de algumas entidades exclusivamente dedicadas à sua existência e produção intelectual. Na ausência destes, as obras de Ferreira de Castro, embora possuindo uma elevada eticidade, cedo se transformariam em triviais romances e livros de viagens, onde se observariam algumas abordagens à construção social da época, com as suas injustiças e desigualdades, mas que eventualmente passariam despercebidas, e os seus livros acabariam por se tornar textos obsoletos, redundando em meras curiosidades literárias.
A investigadora Sofia Araújo inicia o primeiro capítulo do seu estudo, por nós anteriormente citado, com uma observação, na nossa opinião, muito pertinente:
A aproximação científica da Ética à ficção dá-se na generalidade dos casos pelo estudo da função (ou disfunção) exercida pela Literatura na formação ética dos seus leitores, da forma como o recurso à Literatura, enquanto experiência estética e enquanto reduto de vivências vicariantes, pode influenciar ou mesmo determinar a atitude ética (e respetiva seleção axiológica) do seu recetor. (ARAÚJO, 2016: 33)[50]
Relevamos, assim, a importância da divulgação da obra de José Maria Ferreira de Castro, não apenas como objeto de fruição estética, mas principalmente como somatório dos valores éticos que hoje, como então, é importante difundir. No entanto, não será difícil entender a razão do seu “apagamento” no panorama literário português ou, mais propriamente, no circuito de leitura português; Segundo os dados do Conselho Nacional de Educação, nota-se que
(...)no que respeita à implantação da forma de cultura predominante da modernidade, a cultura escrita, Portugal é, desde meados do século XIX, separado do espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, tornando-se numa periferia da periferia, e tal comportamento agrava-se durante o século XX, quando o país se torna ele próprio numa tendência, ou seja, evidencia um atraso tal que não é “agrupável” com outros países europeus[.][51] (CANDEIAS, 2010: 30)
Assim, a sua ética, embora na essência, imutável, não atinge na atualidade os objetivos iniciais propostos e a projeção que o conjunto do seu trabalho literário pretendia veicular, visto a existência de um público-alvo ser, à época deficitário. Ao mesmo tempo que a anterior, também a sua obra, entendida como objeto estético, foi esvanecendo por falta de leitores sensíveis à perceção estética — circunstâncias que tiveram repercussões negativas óbvias durante as gerações seguintes.
Apesar dos louváveis e insistentes esforços de recuperação das entidades acima referidas que, em continuidade, se debruçam sobre o seu trabalho, Ferreira de Castro, referência literária e ética, tem-se vindo a tornar diáfano à medida que a sua escrita se afunda no passado.
Devido ao complexo entorno que focámos no desenvolvimento do tema proposto, torna-se difícil avaliar com distanciamento e isenção José Maria Ferreira de Castro; é necessário ler atentamente as suas obras e as recensões dos seus críticos mais fidedignos, tapando os olhos e os ouvidos aos modismos, aos gostos das leituras fáceis ou resumidas e a quaisquer tentativas insidiosas de inscrição em cultos ou ideologias.
Apesar da injusta névoa que paira sobre o seu trabalho, os seus livros valem pelo conteúdo, pela coerência e pela mensagem que o leitor consciente e atento identifica, assim como Ferreira de Castro vale pela sua humanidade e universalidade; juntos fazem, como numa transmutação alquímica, a Obra. Nas palavras de Cruz Malpique, que citámos anteriormente: “Consubstanciam-se, osmoseiam-se, penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la.”
Os livros que Castro escreveu são o seu reflexo, e tudo quanto aí deixa transparecer é sincero, sem subterfúgios. Neles apercebemo-nos dos seus medos, dos seus sonhos, das suas amarguras e dos seus momentos de felicidade e familiarizamo-nos com a sua ética (novel) humanista, com o seu grande sentido de justiça e a sua bondade humanitária.
O autor foi um visionário que carregava uma revigorada Utopia, idealizada, iniciada e fortalecida no seio da maior floresta virgem do planeta. Não podemos afirmar que nada sucede por acaso, mas podemos acreditar que as circunstâncias que forçaram o então infante a emigrar para o Brasil e as desventuras sofridas por quem era demasiado novo para sofrer as agruras de um clima estranho, um desenraizamento familiar e pátrio e um labor etariamente impróprio, foram os principais responsáveis pelo desenvolvimento da vocação e da personalidade forte do escritor. Se, porventura, José Maria se tivesse rendido ao propósito original do enriquecimento, se se tivesse deixado influenciar pelo sonhos quiméricos que na época circulavam em muitas aldeias de Portugal, onde o mito do brasileiro rico era recorrente, regressaria (ou não) à sua pátria, imagem viva da sua própria personagem de Emigrantes e de, fugazmente, A Lã e a Neve: o desventurado Manuel da Bouça; ou poderia voltar “brasileiro” e rico e acabaria por morrer, como poucos outros, influente, opulento, não raras vezes benemérito, é certo. Teríamos, contudo, perdido o escritor, a obra, o humanismo, a bondade e a sua grande influência como interventor social.
Felizmente para ele e para nós, a criança já levava consigo para o Brasil os rudimentos de um desejo que aí se tornaria cada vez mais forte: ser jornalista. O resto já é do conhecimento geral.
Ferreira de Castro recusou títulos e honrarias durante toda a sua vida; mas, a sua condição de ser humano, imperfeito como os seus pares, permitiu-lhe uma insignificante, perdoável e justificada vaidade.
Na sua visita ao Egito, o autor comenta a necrópole de Sakkara, declarando: “Os mortos, quando deixaram pedras a falar por eles, viveram sempre mais do que os vivos.“ (CASTRO, 1949d: 138) Na Serra de Sintra, no local da sua sepultura, existe, por sua expressa vontade, um simples banco de pedra que lhe serve de lápida tumular; é a sua Menfis. Nele está gravado o nome, data de nascimento e morte, e a sua profissão: escritor. Não contém epitáfio; esse, foi por si escrito, muitos anos antes:
Meu irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos. Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na serra onde eu e quem o meu coração tiver amado dormimos o último sono e leva contigo um pouco de pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços… (CASTRO, 1948: 9)
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[1] Consideramos, para este efeito, maioria quando se trate de, por exemplo, uma região ou um povo, subjugado aos ditames de um governo ou qualquer outra organização social ou grupo; por minoria, entendemos grupos étnicos ou outros (negros, indianos, homossexuais, transgéneros, etc.), sujeitos às mesmas condições.
[2] Não confundir com o Humanismo Universalista, ou Movimento Siloísta, criado em 1969 pelo escritor argentino Mario Luis Rodriguez Cobos (1938-2010), também conhecido pelo pseudónimo Silo. (Vide https://partidohumanista.cl/mario-luis-rodriguez-cobos/). Embora, possivelmente, não exista qualquer relação, as bases deste movimento são muito similares ao que Ferreira de Castro praticava.
[3] Luís Garcia e Silva (1933-2020) – médico dermatologista e militante libertário, foi editor do jornal A Batalha. (Vide Introdução e Notas da coletânea de artigos “Ecos da Semana”, editada em 2004 pelo Centro de Estudos Libertários de Lisboa in http://ric.slhi.pt/Suplemento_de_A_Batalha/estudos/monografias).
[4] Abstemo-nos de utilizar a referência bibliográfica Sic nas citações apresentadas, visto a sua maioria conter grafia já não utilizada, e corrermos o risco de entrar em exagero na reprodução do advérbio latino. Mantém-se então essas ocorrências, numa reprodução fiel dos textos consultados, e de total responsabilidade dos seus autores.
[5] Expressão que optámos por usar em alternativa a outras designações que, por demasiado utilizadas em díspares assuntos e ocasiões, externos ao nosso trabalho, poderiam induzir os nossos leitores em erro.
[6] O Realismo Social está presente nas mais diversas artes e visa observar e realçar as condições sociopolíticas das classes trabalhadoras com o intuito de denunciar as desigualdades e injustiças provocadas pelas estruturas de poder dominantes.
[7] É o próprio Ferreira de Castro quem assume o romantismo, não apenas nas obras primárias, renegadas por si, mas estendendo-se por toda a sua produção literária: “Eu tinha vinte e sete anos e olhei para trás. Tudo quanto havia escrito, todas as experiências estéticas já realizadas, inclusive as páginas mais audaciosas, que me pareciam, por esse seu carácter, as mais originais, encontravam-se imbuídas de romantismo, sentimento que vinha desde a meninez e me acompanharia pela vida fora, em satélite do meu próprio realismo futuro, me acompanharia tão persistentemente como a Lua acompanha a Terra, mesmo quando não a vemos” (CASTRO, 2007: 20).
[8] Miguel Real afirma que A Selva, “possui[ndo] uma dimensão social, que o conteúdo do romance evidencia, e, porém, quanto ao estilo, mais naturalista do que realista, salientando mais a estranheza e a anormalidade dos comportamentos humanos do que a evidenciação das relações sociais colectivas estabelecidas justa ou injustamente na sociedade” (REAL, 2007: 268).
[9] As chavetas retas figuram na citação.
[10] “Pequena história de A Selva” foi acrescentada a esta edição, extraída da edição comemorativa de A Selva, de 1955).
[11] Professor Doutor Eugénio Francisco dos Santos (1937-2022). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[12] Torna-se evidente que o jovem Ferreira de Castro não pertencia ao primeiro grupo de emigrantes – os Brasileiros de Torna-Viagem -, industriados para atividades que, à partida, lhes garantiriam sucesso profissional e económico, mas sim ao grupo de emigrantes indiferenciados, engodados, não raras vezes, pelas promessas de engajadores sem escrúpulos, para serventia em mesteres inferiores, mal remunerados e amiudadamente escravizantes.
[13] Elena Muriel Ferreira de Castro, pintora (1913-2007). Casou com o escritor em 1938.
[14] Extrato de uma mensagem, publicada no jornal Diário de Lisboa em 09/06/1966.
[15]. Discurso de abertura da sessão de homenagem a Ferreira de Castro por ocasião das comemorações dos 100 anos de vida literária do escritor.
[16] António dos Santos Pereira (1954- ) – professor catedrático da Universidade da Beira Interior, na área de História e Arqueologia.
[17] Conferência pronunciada em 19 de outubro de 2016.
[18] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”. A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[19] Alberto Figueira Gomes (1912-1986) – escritor e jornalista madeirense.
[20] Ferreira de Castro recusou sempre a reedição de todas as obras anteriores a 1928, “aquelas primeiras produções que eu próprio considerava e considero, apenas tentativas” (CASTRO in SALEMA, 2021. Min 17.48) — obras rudimentares que não espelhavam os seus ideais estéticos.
[21] Winifred L. Chappell (1879-1951) foi uma professora, diaconisa da Methodist Federation for Social Action (MFSA), sufragista, escritora e editora norte-americana, muito ativa na defesa dos pobres e dos explorados.
[22] Ana Cristina Leitão Martins de Carvalho (1961- ), doutorada em Ecologia Humana, investigadora integrada do CICSNova (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. É membro do Conselho Editorial da revista C@striana on line.
[23] Esta citação integra o capítulo “A aldeia nativa” da obra Os Fragmentos.
[24] Idem, ibidem.
[25] Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) foi um sertanista e engenheiro militar brasileiro. Foi também diretor do Serviço de Proteção ao Índio e idealizador do Parque Nacional de Xingu.
[26] João Peregrino Júnior da Rocha Fagundes (1898-1983), jornalista, médico, contista e ensaísta, foi presidente da Academia Brasileira de Letras.
[27] Esta edição contém “Pequena história de A Selva”, reproduzida da edição comemorativa de 1955.
[28] Nathaniel Hawthorne (1804-1864) - escritor norte-americano.
[29] José de Freitas - jornalista e escritor (1910-1976).
[30] Diana de Liz (1892-1930): pseudónimo literário de Maria Eugénia Haas da Costa, primeira mulher de Ferreira de Castro, também conhecida como “Mimi Haas” — nome com que assinava as suas contribuições para vários jornais e revistas.
[31] António dos Santos Pereira – doutorado em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor Catedrático na Universidade da Beira Interior.
[32] Manuel Simplício Geraldo Ferro – doutorado em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, exercendo o cargo de Professor Auxiliar na mesma Faculdade.
[33] José Dias de Melo (1925-2008), poeta e escritor açoriano. Conferência proferida em 16 de setembro de 1966, na sociedade literária “Artista Faialense”.
[34] Trata-se de uma afirmação do próprio Ferreira de Castro (1974. p: 60).
[35] Página 17 da edição que consultámos (Alves refere a pág. 15 da edição de 1980, que utilizou).
[36] Citação extraída do capítulo “A Revolta da Andaluzia (1931)” e O Intervalo.
[37] Wilde, Oscar, 1996, Le Déclain du Mensonge, Œuvre, Paris, Gallimard: 791; Le Antique,ibidem, pp 865 e 853.
[38] Dr. Fernando Ferrão Moreira, professor de Língua e História Pátria na, então, Escola Técnica e Elementar Gomes Teixeira, no Porto.
[39] Eurico Gama (1913-1977), bibliógrafo e editor, foi diretor da Biblioteca Municipal de Elvas.
[40] Extraído do artigo “In memoriam de Ferreira de Castro”, de Adelino Vieira Neves – Cascais, 1976.
[41] PAGDEN, Anthony. ‘‘Europe: Conceptualizing a Continent.’’ The Idea of Europe:From Antiquity to the European Union, ed. Pagden. New York, Woodrow Wilson Center Press, 2002. 33–54. Citado pelo autor.
[42] Portugal, Italy, Greece, Spain: “É um acrónimo de clara intenção pejorativa (pig, porco em inglês) criado nos anos noventa do século XX para designar Portugal, Itália, Grécia e Espanha. Esta categorização articula uma dimensão geográfica e cultural – Europa do sul ou mediterrânica – e outra económica – países cronicamente deficitários – para transmitir uma mensagem simples: ‘povos do Sul que sendo incapazes de se sustentarem a si próprios vivem à custa do Norte virtuoso, endividando-se’.“ Extrato do artigo de José Maria de Castro Caldas: “ PIGS – Observatório sobre Crises e Alternativas” in https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7809.
[43] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”,A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[44] Pronunciado por Pedro Calheiros na “Conferência Inaugural”, em 11/10/2016.
[45] Ao referir-se aos “leões editores”, Ricardo Alves esclarece que se trata de uma alusão aos proprietários da Guimarães & Cª, Maria Leonor e Francisco da Cunha Leão.
[46] O mesmo que riquexó.
[47] On donne le nom de « matière de Bretagne » à un ensemble de légendes et de chansons, diffusées à l'origine par des jongleurs gallois et armoricains, et qui alimentèrent, entre 1150 et 1250 environ, un certain nombre de romans appelés romans bretons. In https://www.larousse.fr/encyclopedie/divers/matieres_de_Bretagne_et_romans_bretons/180250.
[48] Extrato de um artigo publicado por Simões no jornal O Primeiro de Janeiro, em 29/06/1966.
[49] Lucas Maia dos Santos, doutorado em Geografia e professor na Universidade Estadual de Goiás, no Brasil. Especializou-se em: Marxismo, Geografia e Sociologia do trabalho e Geografia Urbana.
[50] Araújo explica o que entende por aproximação científica: Ética, enquanto domínio científico, não é o conjunto de respostas que escolhemos dar às questões de valores, mas antes o próprio exercício reflexivo em torno desses mesmos valores. Como tal, uma reflexão em torno dos aspetos éticos de determinada obra ou de aspetos da mesma será sempre uma reflexão aberta e teórica, e não uma classificação objetiva e definitiva, e muito menos um ato normativo. (ARAÚJO, 2016: 73)
[51] Segundo o autor, o declínio do país teve início no dealbar do século XX; até aí, Portugal estava agrupado com outros países (Bulgária, Roménia, Grécia e Jugoslávia) no último patamar da tabela europeia de evolução educativa.



Ferreira de Castro – a selva alquímica: transmutações e aprendizagens num espaço multifacetado

José Maria Ferreira de Castro, nascido em 1898 em Oliveira de Azeméis e emigrado ao 11 anos para o Brasil, onde trabalhou nos seringais da Amazónia, é um escritor consagrado nacional e internacionalmente, com dezenas de reedições em lingua portuguesa e traduções um pouco por todo o mundo. Infelizmente e de forma progressiva desde os últimos decénios do século XX e o advento do novo milénio, tem sido inexplicávelmente arredado da memória e do conhecimento dos seus compatriotas. O facto é lamentável, mesmo atendendo tão sómente ao facto de o autor ter sido um interveniente de relevo no panorama do realismo social e em dos percursores do neo-realismo português. A sua influência e importância literária estendeu-se principalmente desde a década de 30 até ao ano de 74 do século passado, data da sua morte. Dado o seu carácter humanista e a sua presença interventiva na melhoria das condições sociais dos mais desfavorecidos, seria de esperar que o seu exemplo tivesse sido valorizado após a revolução dos cravos e até aos nossos dias.
Além do acima exposto há a considerar toda uma experiência literária de viagens nacional e, como se diria na época, além-fronteiras, digna de destaque e que culmina com a sua magnus opus viática A Volta ao Mundo, pertencente ao género literário que é, aliás, o tema central desta comunicação.
Para uma abordagem geopoética na vertente de espaço e transculturalidades da obra A Selva, de José Ferreira de Castro, é necessário analisá-la, não apenas como uma descrição sensorial de e em um mero espaço geográfico e dissociável de outras ligações interdisciplinares como a economia, a história, a sociologia, a etnografia ou outras possíveis inscrições, mas também isentá-la de qualquer conotação com a visão dualista e adâmica da Natureza: ora messiânica, como a defendida por John Milton em Paradise Lost, ora lugar tenebroso e de perdição, segundo Nathaniel Hawthorne em Young Goodman Brown, um imaginário recorrente do Antebellum norte-americano. Interessa encarar o processo, não apenas como um apontamento de viagens e uma vivência de alteridade, mas também como um testemunho de emigração de forte componente autobiográfica, espelhando-se na 3ª pessoa de um autor implícito espectável e com a distorção expectável de uma produção textual ficcionada.
E, muito relevantemente, assumi-la como uma ponte entre o espaço cultural e social de visão europeista e colonialista do autor com as visões autóctones, também elas dessemelhantes entre si: a visão do seringador, do paraense europeizado, e a do indio amazónico da tribo dos Parintintins, preservado até então da influência aculturante, avesso ao contacto civilizacional e feroz defensor do seu espaço e da sua identidade.
Ferreira de Castro, no seu Pórtico ou prólogo da obra, refere: “ao farfalhar do patriotismo, venha do norte ou do sul, da Europa ou da América, se sobrepõe sempre, no meu espirito, uma causa mais forte, uma razão maior: a da Humanidade. A razão deste livro” (CASTRO:14). Numa correspondência particular, datada de 1953, o escritor reforça esse seu sentimento de unidade e de partilha: “[...] a verdade é que, por cima da minha condição de europeu, de latino e de português, sinto na minha alma uma grande identidade com a alma de todos os outros povos. Creio, aliás, que isso acontece com quase todos os homens, mesmo sem eles darem por isso, mesmo sem eles o saberem...”. Antonio Olinto, escritor brasileiro já falecido, sintetiza, em 1966, numa frase sucinta e magistralmente bem concebida, o axis magnum do autor: “Nele, mais do que em qualquer outro romancista de lingua portuguesa de nosso tempo, há um gosto de mundo[...]”.
Para além da preocupação com o bem-estar social patente em toda a obra, o autor parte para uma análise multifacetada cujo epicentro é e sempre será a selva no decorrer de todo o romance, o imenso espaço amazónico enquanto lugar de experimentação, cadinho multidisciplinar que concatena ramificações tão aparentemente díspares como a botânica e a escravatura, passando pela climatologia, a agricultura e indústria, a organização laboral, a zoologia, a sociologia, a etnografia, até temas como a emigração ou, afinal, a própria geografia física. Neste espaço diversificado Ferreira de Castro monta um palco para simbioses culturais, tanto com os searenses como com os indios amazónicos. Contudo esse mutualismo é sistematicamente negado pelo ultimo grupo co-espacial - os Paratintins – situação eventualmente originada pelo forte sentido de territoralidade e independência deste corpus social: “À quoi sert une frontière? A séparer, à rejeter et à exclure. À entraver le passage de ceux qui ne sont pas de chez nous ou pas comme nous” [SAVOVA : 367]. Neste caso, a fronteira índia será a imensidão selvática, herdada de incontáveis gerações.
Mais conciso, Albert Jacquard expõe :
“Quand l’autre est à la fois semblable et différent […]. Nous faisons toute cette expérience a minima [devant] notre reflet dans la vitre d’un magasin : « C’est moi, ça ? » Un moi qui est un autre. Je ne peux nier que ce soit moi et, pourtant, je ne me reconnais pas dans cette image ” [apud SABOVA : 367].
Pelo outro lado, não podemos esquecer a existência de uma negação de diálogo e empenho na imposição de valores emanados de uma cultura ocidentalizante que se arroga superior e decreta sem permutas.
N’A Selva, Ferreira de Castro mostra o espaço físico – a selva geográfica, um espaço imenso, de limites vagamente identificáveis. Mas mostra também um espaço de experiências “tranculturais”, de vivências, um espaço também traumáticamente seu, espaço de sofrimento, onde a presença do homem dito civilizado estava ainda apenas identificada como um desejo mórbido de riqueza e não como uma ameaça para o próprio habitat. Oriundo de um povo colonizador, o autor é agora a sua contraparte, o seu oposto: colonizado pelos ideais de riqueza e pela ganância daqueles que foram outrora os explorados e oprimidos, é-o também pelos indios brasileiros a quem os valores ocidentalizantes nada dizem e a que opõem, à sua limitada maneira, o dominio do espaço geográfico que ocupam. A sua tribo é uma pequena nação independente que resiste às investidas espaciais e culturais, mantendo a sua identidade, a sua alteridade. Há aqui um jogo de influências onde por vezes é dificil distinguir quem coloniza quem pois os, esforços expansionistas de uns são frequentemente travados pelo territorialismo dos outros num vai-e-vem de cedências impostas. Os paraenses são, por sua vez e enquanto corpus laboral dominante, culturalmente autofágicos, deixam-se embrutecer por distorcidos valores de lucro amoral que se reflecte no esforço de eliminação dos autóctones e na exploração e quase escravização daqueles sobre quem têm ascendente. As práticas esclavagistas ainda estavam presentes na mentalidade nacional, pois a sua abolição era ainda recente, datando de 13 de maio de 1888, por intermédio da Lei Áurea, promulgada pela Princesa Isabel, filha de D. Pedro II, imperador do Brasil.
Existem pois vários espaços co-existentes e interpenetráveis que interagem com o autor e as várias culturas em presença, tessituras de alteridade, visões do outro com perspectivas radicalmente diferentes:
« [...] si un étranger, par définition, est “celui qui n’est pas moi”, [...] tout un chacun déviant cet étranger-là : une personne qui regarde tout autant qu’il est regardé, une figure au seuil de ses frontières intérieures (qu’elle sera tentée, ou non, de franchir pour s’aventurer de l’autre côté de soi) » [SAVOVA : 335].
Este espaço cuja porosidade permite o fervilhar de tais inter-relações é assim uno na diversidade e permite, consoante as vivências e perspectivas, transformar-se, qual processo alquímico, metafóricamente em chumbo ou em ouro, elemento enriquecedor ou escória deletéria.
Ozíris Borges Filho, partindo do livro A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, defende o
conceito de topoanálise, embora manifeste discordância com a definição por este sustentada de que “ a topoanálise seria [...] o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima”, o que considera demasiado redutor, defendendo antes que:
“Por topoanálise, entendemos mais que o “estudo psicológico”, pois a topoanálise abarca também todas as outras abordagens sobre o espaço. Assim, inferências sociológicas, filosóficas, estruturais, etc.,fazem parte de uma interpretação do espaço na obra literária. Ela também não se restringe à análise da vida íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a personagem seja no âmbito cultural ou natural” [BORGES, Ozíris, 2008].
Mesmo fazendo uma leitura pouco atenta d’A Selva, é por demais evidente a enorme importância macroespacial presente em todo o romance, podendo-se mesmo sugerir que a referida selva é o seu personagem principal, à roda da qual tudo gira, constituindo o eixo agregador de toda a trama literária, não sendo contudo a única face prismática visível para a análise crítica desta obra emblemática, nos contextos através dos quais está sendo abordada.
Alberto, como alter ego do autor, manifesta-se de início excludente perante uma sociedade que não compreendia e cujos hábitos ou atitudes recusava liminarmente, pois ”[...] sentia uma repulsa instintiva por toda aquela humanidade de hábitos rudimentares e cujo convívio, ainda em hipótese, o amargurava profundamente”[CASTRO : 79]. No entanto, essa visão negativa vai-se desvanecendo à medida que o personagem se vai entrosando com a nova sociedade que o cerca, ajudado pelo seu camarada, protector e mentor Firmino: “A pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se e compreendia-as melhor. Já eram outras para êle, assim vestidas com os farrapos dramáticos que a Europa ignorava”[CASTRO : 162].
Benjamim Videira Pires sintetiza este processo de forma assaz simples:
“Pela aproximação, convívio e miscegenação, completamo-nos, como homens, unindo os contrários, que não são antagónicos nem contraditórios. [...] Miscegenação, assimilição, aculturação, inculturação? Nenhuma antropologia, ainda tão incerta de si, consegue traçar-lhes as fronteiras. [A] transculturação [é] osmose contínua e sem datas, em corpo e alma, de tudo o que somos e temos, entre homens e povos que sabem conviver [...] (PIRES : 9).
Definindo assim transculturalidade como uma aculturação mútua, simbiótica, sem a qual a alteridade não é integralmente aceite, inibindo o espelhamento recíproco do eu nos outros, o personagem-autor vai mimetizando no decorrer da sua obra o processo de reencontro, de reunificação do Homem como um todo numa metafórica inversão do relato bíblico, contido no Livro do Génesis, da dispersão humana provocada pela, também ela simbólica, derrocada da Torre de Babel.
Bibliografia
CASTRO, Ferreira de (1945), A Selva, Lisboa, Guimarães & Cª. óáíú
file:///C:/Users/josef_000/Downloads/Nathaniel+Hawthorne+-+Young+Goodman+Brown.pdf
http://museuvirtual.cm-sintra.pt/mfc/colecoes.html#
http://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/683
http://www.planetpublish.com/wp-content/uploads/2011/11/Paradise_Lost_NT.pdf
PIRES, Benjamim Videira (1988), Os Extremos Conciliam-se(Transculturação em Macau), Instituto Cultural de Macau.
SAVOVA, Lioubov (2012), Le Métier du poète en exil, Paris, Honoré Champion.
http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067/OZIRIS_FILHO.pdf
www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=234


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ELIAS CANETTI

ELIAS CANETTI (1905-1984)
Nascido na Bulgaria, em Rustschuk, na fronteira com a Roménia, descendente de judeus sefarditas expulsos em 1492 pelos reis católicos, o seu apelido é de origem toponímica, uma corruptela de Cañete, na província de Cuenca, em Espanha. Aos 6 anos muda-se com a família para Manchester, na Inglaterra, onde aprende a língua inglesa; dois anos depois, após a morte de seu pai, desloca-se para Viena, na Áustria e desenvolve a língua alemã por imposição da sua mãe. Em 1916 vai para a Suiça e aí permanece até 1921 de onde se segue uma passagem por Frankfurt, na Alemanha, e o retorno a Viena, graduando-se em Química (que nunca exerce) no ano de 1929. Aqui inicia a sua carreira literária, casando-se entretanto com Veza Taubner-Calderón, sua primeira esposa,tambem ela escritora e judia. Nova mudança geográfica em 1938, desta vez para França, fugindo aos progroms iniciados pelo partido nacional socialista alemão em 9 de Novembro desse ano, com o Kristalnacht, em Viena. No ano seguinte, perante a eminência de invasão deste país pelos exércitos de Hitler e atendendo à sua perigosa e ineludívelmente fatal classificação racial de judeu, refugia-se em Londres, levando consigo a sua esposa (que morrerá em 1963) e em 1952 adquire a nacionalidade britânica; no inicio da década de 70 do sec XX retira-se para Zurique, na Suiça, onde casa de novo, desta vez com Hera Buschor, tendo tido uma filha desta relação . Residirá nesta cidade até ao seu falecimento em 1984.
Pese embora que a sua língua de nascimento tenha sido a búlgara, que o ladino fosse a língua tradicionalmente falada pela sua família e o inglês utilizado durante a sua infância e posteriormente o seu exílio, é contudo no alemão da sua juventude que produz toda a obra literária, ditado pelo elevado conceito que tem pela cultura de um país que não responsabiliza pelo seu exílio: a Alemanha.
Publica obras que abrangem os mais variegados géneros literários, das quais se poderão salientar, dentre outras não menos importantes, a novela (Die Blendung – Auto de Fé), a biografia (Der andere Prozess –O Outro Processo) , o teatro (Kömodie der Eitelkeit - A Comedia das Vaidades), o ensaio (Das Gewissen der Worte – A Consciência das Palavras), o relato de viagens (Die Stimmen von Marrakesch - As Vozes de Marraquexe), as memórias (Die Geretette Zunge – A Língua Posta a Salvo). Além destes há ainda a destacar livros de aforismos e aquela que foi a sua obra mais importante, na qual investiu 20 anos da sua vida, que é Masse und Macht ( Massa e Poder) , um tratado psico-sociológico que estabelece a relação entre as formas de poder e as massas humanas ou, melhor dizendo, procura” [c]ompreender o poder através do estudo da multidão, em detrimento de conceitos como ‘classe’ ou ‘nação’ “(SONTAG:147). Em 1972 recebe o Prémio Georg Büchner (o mais importante galhardão literário alemão), seguindo-se os prémios Gottfried Keller em 1977, Johann Peter Hebel em 1980, Franz Kafka em 1981 e nesse mesmo ano o Prémio Nobel da Literatura.
Embora laureado e detentor de uma obra tão rica e diversificada, não parecem existir sobre ele muitos trabalhos académicos em língua portuguesa. Salvo a honrosa excepção referenciada na bibliografia, nada mais aparenta existir para consulta e a sua biografia, escrita por Sven Hanuschek, está apenas disponível em alemão.
Elias Canetti não é o comum escritor de viagens. Além de As Vozes de Marraquexe, escrito em 1967 e baseado numa viagem a Marrocos efectuada em 1954, nada mais produz que possa ser mínimamente conotado com experiências de viagens. As suas memórias, que constituem três volumes de uma vasta obra e onde o escritor se justifica, desconstrói-se nem sempre veladamente perante o leitor numa perspectiva ora tainista ora sartriana, apenas afloram o percurso viático do autor como mero elemento de ligação e coesão. Fora esta deslocação física, as únicas viagens que o autor relata pertencem ao plano cognitivo e teórico e dão consistência à sua produção literária como um todo, não lhe sendo também alheia a sua diaspórica passagem no orbe.
No entanto Canetti também não é um sociólogo, novelista, ensaista, aforista ou biógrafo; Canetti é o que escolhe ser em cada determinado momento da sua carreira literária. A fluidez com que passa da ficção para o ensaio, do relato de viagem para o tratado sociológico faz dele, a seu modo, um Pessoa sem heterónimos, um a(u)tor que encarna um papel no qual investe todo o seu potencial e que não desilude as expectativas que cria perante o género que escolhe e o leitor que selecciona. Como viator, Canetti transporta-nos para a sua viagem, instala-nos ao seu lado, fá-lo-na experienciar com as suas descrições singelas mas carregadas de força descritiva, quase fílmica, ora alabando a diferença do Outro, como quando sugere na sua obra que paira no ar “ como que uma nota de orgulho” pela produção artistica exposta no Souk, para venda [CANETTI (2003):18], ou ao fazer a comparação dentro da própria alteridade dizendo que o comércio “[é] uma actividade ‘aberta’ “ num país “que tem tanto de intimo como de fechado” [CANETTI (2003):19/20], ou ainda por comparação com a sua vivência civilizacional: opinando que o comércio “não tem sombra de arte” noutros países onde o preço é tabelado [CANETTI (2003):21].
Esta visão de Marraquexe é substancialmente diferente da visão colonial e orientalista que George Orwell descreve:
“[...] quando se vê como as pessoas vivem e, mais ainda,com que facilidade elas morrem, é sempre dificil acreditar que estamos a caminhar entre seres humanos. [...] As pessoas têm caras morenas – e, ainda para mais, são tantas! Será que são mesmo feitas da mesma carne que nós? Ou serão apenas uma matéria morena indiferenciada, tão pouco indiferenciadas quanto as abelhas ou os insectos ou o coral?” (apud SAID: 296).
Pelo contrário, o autor manifesta uma voluntária e desejada estranheza, o desejo de admirar (não necessáriamente de compreender) o Outro no que ele tem de diferente ou oposto, num todo impronunciável, incaracterizável e espelhar-se nele, ser e rever-se no outro, pois “o eu cumpre-se na diversidade e na metamorfose, não deixando, um tanto paradoxalmente de ser eu” (TOPA:149), e justificando-se taxativamente: “Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta, a indignação, essas ficam deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos, maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo novo. O bom e perfeito viajante não tem coração!” [CANETTI (2003):26].
O coração encontra-se no local de pertença, de identidade: é este o sentido que o literato intenta transmitir. O seu coração assume ao longo das permutas com a alteridade esse compromisso:
[...] cette identité [...] – et ce sera l’alternative de Canetti – c’est une identité en perpétuelle métamorphose, toujours prête à accepter l’autre, quel qu’il soit, pour l’avoir reconnu comme une dynamique de soi.
Ne pas partager la même religion ou nationalité, les mêmes habitudes culturelles, rend la joie de Canetti plus expansive encore - une joie abreuvée dans le miracle de la vraie rencontre : ici, l’identité originaire n’est pas niée, mais mise en perspective. Indéfiniment (SAVOVA: 350).
Canetti, no seu passado, também foi o Outro, um estrangeiro que, com os seus usos e costumes, veio de Rustschuk para a Europa, pois “[o] resto do mundo chamava-se aí Europa, [...] a Europa começava onde o império turco tinha outrora acabado”[CANETTI (2008): 11], um estranho no meio de outros também para si estranhos. Simultâneamente viajante observador e também objecto de observação, sentiu os olhares questionantes e incómodos da sua excludente não-pertença, algo que revive no Souk marroquino: “Só então vi em cada tenda dois ou três pares de olhos postos em mim. A criatura estranha passara a ser eu” [CANETTI (2003):33].
Não obstante, em As Vozes de Marraquexe, Elias Canetti demonstra uma refinada sensibilidade emocional , uma quase ternura perante uma alteridade que confessa não compreender nem querer compreender, sob pena de destruir toda a diferença que faz a diferença, tenta formar um hiato entre o seu Eu ocidental e o Outro exótico, civilizacionalmente dessemelhante, mantendo-lhe a aura de estranheza precípua, criando com ele uma empatia relacional, uma sensação de equidade, quiçá eivada de um sentimento de superioridade, de entidade esclarecida que o autor, conscientemente ou não, ignora, num esforço de neutralidade que a sua escrita, como reflexo de si próprio, da sua individualidade, nega. Contudo Canetti dá voz ao observado, atentando nele, valorizando-o. Não o compreendendo interioriza-o, recusa o conhecimento do outro porque recusa o poder que isso lhe confere, a supremacia de uma visão orgulhosa e colonialista resultante da percepção da diferença. Ele viaja no desconhecido e tudo absorve, tudo questiona sem esperar resposta como uma esponja absorve um líquido sem dele tomar consciência. Este interpenetra-a, preenche-a, faz parte dela e não necessita de ser compreendido.
A sua obra entretece-se, não apenas com um sentimento de pertença a uma comunidade semita universal mas também com uma perspectiva sociológica e filosófica das relações entre o poder de e sobre as massas humanas. Extensas e complexas como são essas correspondências, tornam-se incompatíveis com meros informes sucintos ou notas de rodapé. Será no entanto interessante explorar esses indissociáveis vínculos que abrem novos e surpreendentes horizontes à compreensão e interpretação global do autor e do seu legado.
Lugares
Bulgária, Áustria, França, Inglaterra, Suiça, Alemanha, Marrocos
Citações
Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los atravéz de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.
Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas primeiras horas [CANETTI (2003): 25/26].
Para mim era como se estivesse realmente noutro sítio, como se tivesse enfim chegado ao termo da minha viagem. Não queria sair mais dali! Ali estivera há cem anos, tudo esquecera! Tudo lembrava agora. Encontrei aí toda essa densidade, todo esse calor de vida que sinto em mim próprio. Eu era, eu fui aquele lugar, quando lá estava. E creio que para sempre o serei!
Era_me tão penoso separar-me dele que ali voltava sempre de cinco em cinco ou de dez em dez minutos.
Andasse por onde andasse na Mellah, procurasse eu lá o que procurasse, interrompia tudo para voltar àquele pequeno lugar, para o atravessar nesta ou naquela direcção, para ter a certeza, a absoluta certeza de que ele ainda lá estava!... [CANETTI (2003): 53].
Nada teme más el hombre que ser tocado por lo desconocido. Desea saber quién es el que le agarra; le quiere reconocer o, al menos, poder clasificar. El hombre elude siempre el contacto con lo extraño.[…] Todas las distancias que el hombre ha creado a su alrededor han surgido de este temor a ser tocado. [CANETTI (1981): 3].

Bibliografia activa seleccionada

CANETTI, Elias (2003), As Vozes de Marraquexe – Notas de uma viagem, Barcelona, Bibliotex Editor.
Bibliografia crítica seleccionada

CANETTI, Elias (1981), Masa y Poder, Barcelona, Muchnik Editores.
CANETTI, Elias (2008), A Língua posta a salvo, Porto, Campo das Letras.
SAID, Edward W. (2004), Orientalismo, Lisboa, Edições Cotovia.
SAVOVA, Lioubov (2012), Le Métier du Poète en Exil – Vladimir Nabokov, Elias Canetti et Yordan Yovkov, Paris, Honoré Champion Editeur.
SONTAG, Susan (1986), Sob o Signo de Saturno, São Paulo, L&PM Editores.
TOPA, Helena (2003), A palavra de Fogo – Uma leitura contextualizante da prosa breve de Elias Canetti, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia.


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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Duas gerações – a mesma experiência: o exílio
Simetrias e assimetrias entre Aquilino Gomes Ribeiro e António José Saraiva


José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de investigação no âmbito da disciplina de Técnicas em Comparatismo do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Julho de 2017
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Duas gerações – a mesma experiência: o exílio
Simetrias e assimetrias entre Aquilino Gomes Ribeiro e António José Saraiva


Resumo
Lato sensu, falar de exílios será como falar de seres humanos: serão todos iguais; o estado de exilado caracteriza-se sempre por uma desterritorialização, seja ela física ou psicológica, ou mesmo ambas, provocada por uma incompatibilização, natural ou induzida, com o seu ambiente natural, qualquer que ele seja. As consequências são também similares: solidão, sentimento de falta de pertença, impossibilidade de retorno integral à “normalidade” do seu local de enraizamento e do seu inner self.
No entanto, essa igualdade exílica não poderia ser mais diferente, do mesmo modo que os seres humanos não são todos iguais. Uma análise menos simplista transporta-nos para um universo em que a diversidade, tanto humana como situacional, imprime um cunho heterogéneo, impossível de contornar ou copiar. As características de cada indivíduo – onde se incluirão, entre outros, a morfologia, o género, a aptidão artística ou a personalidade - assim como o âmbito político-geográfico em que decorrem - origens e destino do exílio, causas e consequências - trazem a este complexo binómio alterações de carácter social, pessoal, político, religioso ou outros, extremamente relevantes.
Partindo de um exílio forçado e de outro autoimposto, de percursos geograficamente similares e de razões políticas convergentes, mas assumindo uma temporalidade e espacialidade apartadas por três décadas e, em consequência, um contexto sociopolítico e económico transformado por alterações estruturais profundas, tenta-se fazer a análise dos pontos de convergência e assimetrias decorrentes dos percursos exílicos de duas figuras do panorama literário português do século XX que, embora tendo compartilhado o mesmo local de proscrição - Paris, assim como cometido o mesmo “crime” - o livre pensamento, sentem diferentemente as suas expatriações. E, por isto, modificam-se as consequências, as dimensões, as características e os desequilíbrios (GUILLÉN: 15).
Tal é a abordagem que se pretende aplicar no sentido de estabelecer relações de identidade/heterodoxia nos percursos exílicos de Aquilino Gomes Ribeiro e António José Saraiva.
Palavras-chave: Aquilino, Saraiva, exílio, Paris, correspondência.

Abstract
Lato sensu, talking about exile and talking about people is the same: they are all alike. Exile implies a deterritorialisation, either physical, psychological or both, caused by a natural or induced incompatibility with the native environment. Consequences are also similar: solitude, feeling of exclusion, impossibility of a fully return to one’s “normality”.
However, that equality couldn’t be more different, the same way humans are not so equal as they seem. A deeper analisys presents us a universe in which both human factor and situational diversity acquire a unique and irreproducible character.
One’s characteristics such as (among others) morphology, gender, artistic skills or personality, as well as political and geographical context, like origin and place of exile and its causes and consequences, bring most relevant changes, regarding social, personal, political, religious or even other features, to this complex binomial.
Starting from one’s forced and another’s self-imposed exile, through similar geographical routes and converging political reasons but carrying a life experience aparted by three decades and, consequently, suffering from profound structural changes, we try to analyse the assembling and differing points of the exile parcours of two actors from the XXth century’s Portuguese literary scene that, despite having shared the same place of proscription – Paris, and the same “crime” – freethought, experience differently their banishment. And that way consequences,dimensions,characteristics and unbalances turn differently[1](GUILLÉN: 15).
Such is the approach we intend to apply in order to establish identity/heterodoxy connections between the exile pathways of Aquilino Gomes Ribeiro and António José Saraiva.
Key-words: Aquilino, Saraiva, exile, Paris, correspondence.

1 – O Mestre
Aquilino Gomes Ribeiro (1885-1963) – Cronista, escritor. Experienciou três exílios físicos por dissidência ativa (durante a Monarquia, em 1908, por posse de bombas; no Estado Novo, em 1927 e 1928, por participação em sublevações contra o regime vigente à época). Amnistiado em 1932, viveu em Portugal, onde continuou a desenvolver prolífica obra literária, até à sua morte.
Truculento e iconoclasta, como o caracteriza Mário Soares, no prefácio de Em defesa de Aquilino (CALDEIRA e ANDRINGA {org.}: 16), Aquilino Ribeiro cedo se incompatibiliza com o imobilismo político e cultural que o panorama português lhe apresenta nos princípios do século XX, e que o leva a sentir-se [n]áufrago, rebelde, indócil, desamparado (Aquilino apud VIDIGAL:17); começa assim um inxílio [2] que o levará a outros exílios, físicos, como consequência direta do seu labor oposicionista, aliado a um ceticismo acrático que, em Paris, aprender[á] a converter em norma de vida (Aquilino apud REIS: 14).
Aquilino, em 1908, é, não apenas um jornalista em percurso iniciático, mas também um escritor em formação, em maturação. O seu exílio em Paris permite-lhe conhecer outras vertentes culturais, conceitos insuspeitados, ideias inovadoras que lhe vão criando novos horizontes criativos e novas perspetivas de análise, numa ampliação de sentidos que a experiência do exilio traz consigo (GUILLÉN: 158). Como expatriado, sabe tomar partido do seu deslocamento, entranha-se nele, absorve dele tudo o que a sua pátria lhe nega, não pode ou não lhe consegue dar, fortalece o seu espírito artístico e humanitário.
Esta oportunidade de desenvolvimento e o reconhecimento assumido perante a nationis hospitio distancia-se, no entanto, do seu raciocínio crítico; não se coíbe de exprobrar a França, não como corpus social ou geográfico, mas na própria essência do seu sistema governativo e cultural, numa postura humanista e inconformada perante a qual, e pelas mesmas razões, a sua pátria não é excluída.
Aliás, e como corolário da sua desterritorialização forçada, a mágoa que sente perante a patria mater, agora encarada como patria matrasta, extravasa na maioria das crónicas que publica como correspondente em França de alguns periódicos portugueses e adquire, em consequência, uma conotação político-social que, forçosamente, assume a sua própria visão pessoal e toda a pujança dos seus ideais. São particularmente relevantes os artigos publicados nesse mesmo ano de 1908 (REIS: passim).
Apesar duma francofilia que nunca negou é, no entanto, avesso a influências galicizantes na linguagem, muito do agrado de escritores de referência, seus antecessores, como Eça de Queirós ou Fialho de Almeida, a quem acusa de conspurca[r] de francesia o papel de impressão (Aquilino Ribeiro apud LOPES: 274).
Acérrimo defensor da língua portuguesa, expõe-na proficuamente nas suas obras, num leque abrangente que inclui desde o discurso académico, culto, às expressões mais populares. A sua postura crítica perante a sociedade e perante o atraso cultural do país é profusamente exposta em toda a sua obra literária (onde se incluem alguns registos jornalísticos), numa abordagem picaresca, em equilíbrio com uma atitude de defesa do casticismo da língua, e que se terá um dos seus expoentes máximos no romance O Malhadinhas (RIBEIRO, 1985).
Embora possamos considerar Aquilino Ribeiro um estrangeirado, no sentido em que o autor, em sintonia com o conceito, tal como é entendido na análise de Carlos Leone (LEONE: passim), fortalece a sua experiência humanista e cultural em França, refresca o seu saber com ideias e conceitos novos, ele é e será sempre, todavia, um homem do seu país; ao amargor irónico do rejeitado pela pátria contrapõe-se o orgulho e o sentimento de pertença do luso destemido e telúrico. E aí, fruto desse antagonismo de sentimentos, dessa visão da pátria, ora mãe, ora madrasta, surge uma literatura que denuncia, com toda a crueza dos seus personagens, mas que simultaneamente, através dessa mesma rudeza, dissimula a sua denúncia.
Aquilino utiliza muito poucos estrangeiramentos e neologismos, que defende aplicar só por necessidade (RIBEIRO apud CRUZ: 69). Daí a sua aversão aos excessos, principalmente os praticados por Fialho de Almeida, acusado de leviandade e de abundância anormal no uso de estrangeirismos (FRANCO: 24).
Esta sua defesa da língua revela-se de novo no prefácio da coletânea Cavaleiro de Oliveira – Cartas, onde admite proceder nessa prosa ao de leve […] a bem da vernaculidade filológica e da clareza, ressalvando que mesmo assim fica a construção eivada de galicismos […] (RIBEIRO, prefácio, in OLIVEIRA {1960}: XXXIII).
A propósito, convém referir, e porque estamos a tratar do tema do exílio e suas inferências, que Aquilino Ribeiro tem uma ligação muito especial com o Cavaleiro de Oliveira e a sua obra, uma relação da qual se poderá inferir uma curiosa bipolaridade, quase como que de amor/ódio, e que Maria Helena Pinto Cunha faz notar na sua dissertação de mestrado.
Excluindo outras razões que, para o tema em epígrafe, não são particularmente relevantes, como o desentendimento entre o escritor e o seu antigo professor, António Gonçalves Rodrigues, com acusações mútuas de plágio, informa-nos a autora que, a partir de 1922, e após a tradução e prefácio da obra de Francisco Xavier, Recreação Periódica, Aquilino não mais abandonará o estudo do Cavaleiro. Anos depois, em 1955, na obra autobiográfica Abóboras no Telhado (RIBEIRO, 1955), o escritor narrará detalhadamente todo o esforço bibliográfico em torno desse autor.
Maria Helena Cunha termina, formulando uma ilação:
A reabilitação da obra do Cavaleiro de Oliveira parece cumprir uma profecia do próprio autor que se centrava a sua leitura no apelo ao povo português para acordar desse sono profundo inquisitorial. Poderemos ver nesse interesse de Aquilino Ribeiro pelo Cavaleiro de Oliveira uma forma de contestação à ditadura do Estado Novo? (CUNHA: 94-95).
Há, pois, aqui, um enquadramento sobremaneira paradoxal: por um lado, Aquilino acusa o Cavaleiro de ser escritor menor, fútil, irregular e leviano, eivado das corrupções e vícios que a longa permanência no estrangeiro e porventura o desuso do idioma haviam fatalmente de imprimir-lhe no estilo [um estrangeirado?];contudo, e nas mesmas linhas: escrevia com solércia, graça ligeira, se não chiste, com espontaneidade (RIBEIRO, prefácio, in OLIVEIRA {1960}: XXXIV - XXXV). Com tantos defeitos e algumas poucas virtudes, é de estranhar que tenha dedicado tanto da sua vida a um escritor que em sua opinião parece não valer a pena, um “escritor menor”.
Verá Aquilino no Cavaleiro de Oliveira o émulo ou talvez até a musa inspiradora da sua obra, profusamente habitada por personagens picarescas que têm bastante em comum com este último e consigo próprio? Haverá alguma admiração mal contida, dissimulada, fruto das posturas críticas tomadas pelo autor das Cartas, perante a Autoridade e a Igreja e que se lhe assemelham? A nosso ver, sim.
Não será despiciendo o facto de o escritor ser filho de um padre, o que, embora adquira uma certa “normalidade”(à época), é, contudo, relevante como desencadeador ou, no mínimo, potenciador da sua postura anticlerical - um estigma social que carregará durante a sua juventude e uma revolta mal disfarçada que guardará consigo até à morte.
Ressalva-se apenas a discordância com a proposta de Maria Helena Cunha de que este interesse pela obra seria provavelmente provocado pelo paralelismo que Aquilino veria em relação ao Estado Novo: como esta foi publicada em 1922, seria impossível ou, no mínimo, improvável, que o escritor se lhe opusesse ou que estabelecesse qualquer paralelo com um sistema político que só seria implantado quatro anos depois, em 1926, pois estava-se ainda na Primeira República. Quanto à Monarquia, considera-se bastante provável essa analogia, uma vez que, pesasse embora mais de uma década sobre a sua extinção, o espectro da realeza ainda pairava e era alimentado por algumas fações da sociedade portuguesa. Ademais, o autor fora um dos seus mais virulentos opositores.
No tocante ao “estrangeiramento” do Cavaleiro de Oliveira (e muito particularmente o de Aquilino) e às conotações positivas ou negativas que daí se poderão inferir, existem duas correntes de opinião a considerar e que, embora aparentemente antagónicas, não se auto-excluem. Joaquim Barradas de Carvalho, professor universitário e historiador, defende:
É sintomático que os intelectuais mais em evidência, mais capazes, dos últimos séculos da nossa história, sejam comummente e através dos tempos denominados estrangeirados; sendo estes, afinal, os mais clarividentes defensores dos interesses autenticamente nacionais (CARVALHO apud CUNHA: 47).
Em contrapartida, Eduardo Lourenço considera, quanto aos ditos estrangeirados, que:
[…] é possível que estejamos a colocar a questão às avessas. Que seja mais explicativa a idéia de que foram até à cultura europeia, do que a de que vieram da cultura superior europeia. Ou antes, a de que só vieram depois de ter ido e talvez seja muito importante esta prioridade, pois ela determinou concerteza o carácter peculiar dessas filiações ou importações (LOURENÇO apud LEONE: 52-53).
Em nossa opinião, ambos estarão corretos: se Aquilino Ribeiro se revelou um grande escritor e humanista, é indubitável que a influência desse “entreposto de culturas” de uma grande metrópole como é Paris, onde se cruzavam e desenvolviam ideias e ideais de todos os quadrantes da civilização, teve no seu intelecto uma enorme influência; por outro lado, e concordando com Eduardo Lourenço, não se nasce do nada, é necessário existir uma centelha para se atear o fogo. O combustível, esse, o exílio forneceu-o, pois este pode ser elixir cognitivo, afinamento da consciência e afirmação da estatura do exilado, enriquecimento axiológico, filtro capaz de transformar a dureza do desterro em experiência do pensamento (FARIA, Almeida, Prefácio, in GUILLéN, {2005}: 11].
Consultámos ainda um ensaio sobre os estrangeirados, elaborado por Jorge Borges de Macedo (MACEDO: passim), que, em nossa opinião, reforça, embora que parcialmente, o parecer de Almeida Faria. Não o abordaremos, porém, aqui, pois que a discussão sobre a validade dos conceitos expostos e a sua aplicação iriam desviar este pequeno estudo dos seus objetivos originais.

2 – O Professor
António José Saraiva (1917-1993) – Cronista, escritor, investigador de História e Literatura Portuguesa, professor. Exilou-se voluntariamente em 1960, em sequência de pressões do Estado Novo, devido à sua ligação ao Partido Comunista Português e ao apoio ao general Humberto Delgado, candidato da Oposição, opções essas que o Regime sancionou, proibindo-o de lecionar, não apenas no ensino público, mas também no privado. Retornou ao país em 1974, onde passou a residir, continuando a publicar o resultado das suas investigações, até à data do seu falecimento.
Podemos considerar que António José Saraiva, à semelhança de Aquilino, foi um inxilado no seu país, muito antes de se desterrar voluntária e fisicamente na capital francesa. Já em 1943, recém-formado em Filologia Românica, confessa: eu sinto que a minha pátria é grande e que vivo exilado num país de pequeninas cousas (SARAIVA e SARAIVA: 126). Essa cisão interna, essa incompletude espiritual, deveu-a à sua postura de inconformidade perante um mundo pátrio que não preenchia os seus anelos humanistas, os seus ideais de justiça social.
Perante o que investigámos do seu percurso no orbe, e de acordo com as suas próprias afirmações, o início do seu desterro espiritual ficou inicialmente a dever-se a diferendos profissionais; mais tarde, e pelas ligações políticas acima citadas, esse exílio interno tornar-se-á ainda mais penoso. Após o egresso do ensino, passará a viver exclusivamente da criação literária e, em 1960, já em França, integrar-se-á no meio académico parisiense.
O seu exílio voluntário marca-o fortemente, assumindo de início um carácter epifânico, como o próprio refere, pouco após a sua chegada a Paris: [t]udo se renovou […]. As paredes em que me sentia metido, apoiado e contente, alargaram-se. Agora sim, digo que não sei nada. Preciso de pensar, pensar, e reconstruir um mundo. Tudo ruíu […]. Nesse momento, a possibilidade de esperança num mundo em que, aparentemente, todas as portas estão fechadas (A.J.Saraiva, apud RODRIGUES: 53), abria-se-lhe. No entanto, à medida que os anos vão passando, tornou-se também uma experiência dolorosa:
[…] a solidão em que vivo, neste meu quarto vazio ou nas ruas cheias de gente, desde há anos, ora me inclina para uma resignação filosófica, ora para um desespero furioso (RODRIGUES: 36). [...] sinto-me só, sem raízes, desesperadamente só e sem raízes, incapacitado de trabalhar, vazio de crer humano, em fase de considerar muito sériamente a necessidade moral do suicídio! (NEVES:107).
Utilizando a abordagem da docente e investigadora Ana Paula Coutinho Mendes, Saraiva tocou algumas das principais e mais sensíveis teclas identitárias do exilado: [o]s sentimentos de estranheza, de desintegração, de indecisão e de fissura interiores; as tensões associadas tanto ao abandono como ao regresso à terra natal (MENDES: 219).
Essas fragilidades, muito mais notórias neste literato do que em Aquilino, são patentes na maioria da sua correspondência, não apenas aquela permutada entre o autor e Óscar Lopes, mas, e principalmente, nas missivas trocadas com Luisa Dacosta, sua amiga e confidente, assim como aquelas cambiadas com a sua segunda mulher, Maria Isabel Saraiva.
Ao contrário do Mestre, António José Saraiva é mais inseguro, mais emotivo, admite pertencer ao género das pessoas que são muito sensíveis ao desconforto e à dureza do mundo exterior, quando alguma vez se chocam com ele (RODRIGUES: 22). Esse conjunto de circunstâncias fá-lo sentir mais dura e intensamente os anos de exílio, sente-se preso entre dois mundos, fragmentado, a viver em fatias sobrepostas e impermeáveis entre si (SARAIVA e SARAIVA:36), incapaz de aceitar, tanto o isolamento da pátria como a consciência da sua condição de exílio, pois que, [n]ão é tanto a perda de um lugar que fere, mas sim a perda do sentido de lugar, seja onde for que o individuo se encontre (NOUSS: 36).
A investigadora Elisabeth Lamothe vai mais longe, considerando que o sentimento de perda, para além de apenas um lugar, representa uma vacuidade dramaticamente indefinida: L’exilé n’est pas seulement en butte à un obstacle donné, à une peine délimitée, mais à l’indéterminé de la perte[3] ( LAMOTHE, Elisabeth {2012}, Migrations et translations dans The Lacuna de Barbara Kingsolver in SAVIN :96).

3.1 - Correspondências ou similaridades
Com base numa filosofia da migração de Vilém Flusser, Aquilino e Saraiva, vistos como “dissidentes”, eram fatores de perturbação da ordem e foram expulsos para que a pátria pudesse se tornar ainda mais comum e habitual do que antes (FEITOSA, Charles in LINZ e PELBART: 42).
Para estes, o mundo é percebido de forma mais apurada e, como tal, afastam-se da normalidade estática da sua sociedade, tornam-se estrangeiros, indesejados, e, ao mesmo tempo, deliberadamente inoportunos, como Georges Steiner caracteriza os artistas exilados, errantes entre as línguas (STEINER apud SAID: 33). A sua postura de não-alinhamento com o statu quo é uma forma de reagirem a esse “comum e habitual”, surgindo assim como “incomuns e inabituais” no local de fixação e, ao fazê-lo, tornam-se, a seu modo, revolucionários.
Esse “ser revolucionário” é visto com estranheza e desconfiança, tanto pela pátria de acolhimento como pela da sua naturalidade; a retração e repulsão são mútuas, reforçando assim a sensação de banimento e de não-pertença, sentido por todas as partes envolvidas: o indivíduo, a comunidade de origem e os “outros”.
Aos excluídos caberá então ser criativos, explorar novas formas de suprir a sua autoconfiança, de modo a não soçobrarem no esforço de compilação das novas informações decorrentes do contacto com a alteridade, “igualarem-se”, “outrarem-se”, ou simplesmente dissimularem-se para poderem passar despercebidos, ao mesmo tempo que tentam “desenraizar-se” e criar raízes nesse outro lugar.
Paralelamente, como “revolucionários íntimos”, como seres agora sem polis, tentarão mudar, ou, pelo menos, influenciar, mesmo que inconscientemente, os dois polos da sua “dupla” vida, à luz da síntese das suas experiências. É aqui, nestas circunstâncias, que se tornam deliberadamente inoportunos perante a alteridade e a pátria.

3.2 – O libertário
No Mestre, encontramos fortes traços de inconformismo, expressos na forma de críticas contundentes que, focando-se embora na atualidade francesa da época, dissimulam nas entrelinhas “recados” e alertas ao seu país, através das crónicas que enviava regularmente para algumas publicações portuguesas. É particularmente reveladora a crónica publicada na Ilustração Portuguesa de 15 de Novembro de 1909, sob o título de Liliput em Paris: [n]este reino onde é preciso amputar as nossas dimensões, […] reduzir as ideias do tamanho de nozes ao tamanho de avelãs ou caroços de cereja [e onde existe] essa subtil ciência dos Governos que sabe converter cada gesto, cada necessidade do cidadão numa fórmula bancária, apercebemo-nos de uma crítica sobremaneira irónica e mordaz da governação política portuguesa, à época, a coberto da aparentemente inócua descrição de uma diversão circense, em voga na sociedade parisiense. Se mais dúvidas existissem sobre os paralelismos intencionais, a sua visita ao director, ou mais propriamente o primeiro-ministro daquele reino constitucional, tão constitucional como o trono dos bons reis fainéants[4], numa clara alusão ao chefe do governo monárquico, o ditador João Franco, e à própria instituição monárquica, tal bastaria para no-las dissipar.
Tratava-se assim de uma atitude astuciosa de Aquilino para denunciar a situação portuguesa através de crónicas de dupla significação. Ana Paula C. Mendes refere esta estratégia típica dos exilados: [e]star entre duas línguas permite ao sujeito narrativo reflectir sobre cada uma delas, descobrir-lhe ecos ou dobras de sentido que escapam normalmente a um falante comum que se movimenta no interior de apenas um idioma (MENDES: 209).

3.3 – O académico
No tocante ao Professor, a correspondência particular é bem o reflexo dos seus estados de alma sem, contudo, exprimir com demasiada abertura as suas opiniões ou os seus planos para o futuro. Não por sua livre opção, mas para, devido às circunstâncias, dissimular astuciosamente, qual Ulisses contemporâneo, quaisquer confidências mais reveladoras que pudessem comprometer a possibilidade de retorno à sua Ítaca. Não convém esquecer que este, tal como Aquilino, se encontrava em vigilância permanente pela polícia política, tanto francesa como portuguesa.
Um dos fatores típicos de desestabilização do exilado é focado repetidamente por Saraiva: o problema da divergência de opiniões, da ausência de solidariedade por parte dos conterrâneos entre si, da falta de coesão. O ambiente de retração, de desconfiança, comum aos exilados (que o autor funde na categoria dos emigrantes) e parte integrante da sua condição, é denunciado com amargura, frequentemente. No início de 1965, refere:
Paris […] tornou[-se] insuportável, porque os portugueses de cá traçaram entre si fronteiras invisíveis mas intransponíveis, de tal maneira que eu fico desagrupado, reduzido aos amigos mais íntimos. É impressionante verificar como as pessoas se agrupam em função de cumplicidades que se exprimem exteriormente por ideologias [...](RODRIGUES: 103).
Ainda nesse mesmo ano, o docente observa que:[o] meio da emigração é tal, que a coisa mais útil e menos perniciosa que podemos fazer é afastarmo-nos, ou, então, estar calados. Ninguém espera que da emigração venha alguma coisa (RODRIGUES: 116). Deste modo, assume uma postura que, embora tomando a forma de reconhecimento identitário, de pertença a uma comunidade, o ostraciza ainda mais. Ao seu exílio interno pátrio, sucede um duplo exílio:
Os outros exercem sobre nós toda a pressão de que são capazes para nos fazer aderir a eles, isto é para nos alienar. Fazem-no até com muitas e boas intenções, da mesma forma que os apóstolos pressionaram o próximo para os levar para o céu. Mas o céu dos outros nunca é o nosso céu [...] (NEVES: 101).
Relembramos aqui Flusser e a sua teoria sobre a resistência das comunidades às alterações ou tentativas de alteração do statu quo.

Conclusão
Pela análise dos dois escritores em perspetiva, concluímos que, aparte as características-padrão da exiliência, comuns, não apenas a Aquilino e Saraiva, mas a toda uma “comunidade exílica”, independentemente das suas origens ou dos seus destinos, mesmo até da sua localização temporal[5], existem diferenças de fundo na forma como cada um deles encarou a sua experiência, as benesses ou malefícios que daí advieram e o próprio processo de sublimação.
Aquilino Ribeiro sempre expressou hiperbólica admiração pelo país que o acolheu e o ajudou a fortalecer, não apenas a sua postura humanista perante o mundo, mas ainda a sua evolução como artista. Dotado de um estilo muito próprio que foge aos cânones literários do seu tempo e que consiste num retomar das expressões populares, muitas delas arcaicas, num casticismo linguístico que exige, por vezes, o recurso a processos de desencriptação, através de dicionários e outras obras especializadas, o autor revela-nos o seu apego às raízes nacionais. Muito embora injustiçado e expatriado - e disso direta influência - Aquilino demonstra na sua escrita um culto pátrio aliado a uma denúncia, impiedosa mas dissimulada, dos males que afligem o seu país.
Não haverá, porventura, melhor definição para o recurso estilístico de Aquilino Ribeiro que a caracterização da essência do estilo, concebida pelo poeta António Osório e referida na obra Povo e Personagem, da professora Cremilda Medina: dizer o inominável de forma brutal, mas sem a desmesura daquele, o máximo de violência num mínimo de retórica (OSÓRIO apud MEDINA: 65).
António José Saraiva, por seu turno, embora assumindo e reconhecendo o incentivo que alguns franceses lhe deram, nunca se sentiu integrado nesta comunidade. Aproveitou, no entanto, essa oportunidade para enriquecer a sua erudição e a sua experiência num exílio que o impeliu a, através da escrita, debruçar-se sobre as suas origens, numa recusa desesperada de assunção de desenraizamento. Enquanto investigador, aplicou-se exaustivamente na história e literatura portuguesas, o que lhe permitiu suportar o degredo ao manter viva a imagem e memória do seu território natal, mau grado a dificuldade provocada pelo deslocamento físico para outro país e consequente afastamento das principais fontes de referenciação.
Apartando-nos do sofrimento psicológico, visivelmente expresso na sua correspondência, o seu contributo literário muito beneficiou com o seu desterro.
Ao contrário de Aquilino Ribeiro, e por motivos óbvios, não podemos analisar o seu percurso exílico senão através da sua correspondência e de algumas entrevistas que concedeu esporadicamente a vários órgãos da comunicação social: toda a sua produção como autor baseia-se em investigação histórica e literária que é, por natureza, excludente de considerações ou juízos de valor que não os estritamente ligados aos temas que esta foca. Aquilino tinha a seu favor a possibilidade de “escrever nas entrelinhas” das suas crónicas e ainda a de produzir obras ficcionais que, por o serem, admitiam segundos sentidos ou outras mensagens subliminares.
Saraiva tenta combater a letargia nacional com um esforço de desenvolvimento social e cultural através da elucidação e aprimoramento das circunstancias históricas e da renovação do estudo da língua, pois sente que o seu papel é o de autor e semeador de ideias, crítico (NEVES: 103); quer voltar a influenciar o público português, ser “deliberadamente inoportuno” para levar a gente a procurar uma saída para o beco onde parece que as pessoas estão metidas (idem, ibidem).
Em termos gerais, ambos os autores influenciaram, não apenas o panorama social e político, mas também e muito particularmente, o literário, através da sua visão renovada pela permanência e contacto com outras culturas, na “capital mítica dos exílios”, que é Paris. Não que tenham dela recebido algo de raiz, mas porque permitiu-lhes afinar e refinar as suas próprias características intelectuais e a sua marcada personalidade humanística, legando à sua pátria novas perspetivas de futuro ao lançar a semente da mudança.
[...] para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou - mas do ideal intimo a que aspirava (Eça de Queirós apud MACHADO: 30).

Bibliografia
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HERCEG, José G. Santos, Dictadura militar y Filosofía en Chile: cartografías de un campo de relaciones discursivas, La Cañada [em linha]. N° 4 (2013), p. 15. [Consult. em 23/05/2017]. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/revista/21016/A /2013. ISSN-e 07189524.
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SAVIN, Ada {edit.} (2013), Migration and Exile - Charting new literary and artistic territories, Newcastle upon Tyre, Cambridge Scholars Publishing.


[1] Tradução livre, do português.
[2] Es posible ser exiliado sin moverse del país natal, basta con estar extrañado, desvinculado, alienado. Este fenómeno ha sido acertadamente llamado “inxilio”. La categoría parece haber sido acuñada en Uruguay y ha tenido mucho uso en el contexto de los análisis literarios. […] El inxilio es, entonces, una suerte de mudez, de silencio/sordera producida por una situación de extranjería, que paradojalmente tiene lugar en los límites de la propia tierra (Herceg : 15).
[3] O exilado enfrenta, não somente um dado obstáculo, um mal circunscrito, mas também a indeterminação da perda (tradução livre, do francês).
[4] Que não fazem nada ou nada querem fazer (tradução livre, do francês).
[5] Convirá, aqui, ter uma certa cautela na assunção de dados que tomamos como adquiridos, mas que, todavia, poderão cair no exagero da superinterpretação (vide ECO, Umberto [2005], Interpretação e Superinterpretação, Martins Fontes, São Paulo).

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Mario Vargas Llosa

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Recensão critica ao ensaio A Civilização do Espetáculo,
 de Mario Vargas Llosa


José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho académico no âmbito da disciplina de Teoria da Literatura – Modos e Modelos, da especialização em Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Julho de 2018
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A Civilização do Espetáculo, de Mario Vargas Llosa
Recensão Crítica


José Luís dos Santos Freitas
Up.200700990@letras.up.pt

LLOSA,Mario Vargas (2012), A Civilização do Espetáculo, Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Quetzal.
Recorrendo a uma seleção de artigos de opinião publicados no periódico madrileno El País, reagrupados acronicamente e aglutinados com outros textos de modo a permitirem uma sequência lógica de leitura, Mario Vargas Llosa apresenta no ensaio em epígrafe uma visão pessoal do estado da cultura no mundo e suas tendências de futuro, a qual, na visão do autor, já ultrapassou a borda do abismo e encontra-se em queda livre.
Dos temas abordados pelo escritor, escolhemos apenas aqueles que mais diretamente se ligam ao estado das artes e da literatura, pois é esse o nosso escopo crítico, ignorando outras que, embora pertinentes, se distanciam um pouco das nossas intenções de análise.
Assim, elegemos” Metamorfose de uma palavra”, “I. A civilização do espetáculo”, “II. Breve discurso sobre a cultura”,”III. Proibido proibir” e “Antecedentes – Pedra de Toque. Mais informação, menos conhecimento”, como os textos mais representativos do assunto escolhido e que a seguir abordaremos separadamente.
Metamorfose de uma palavra
Citando Llosa, quando a sua geração entrou para a escola ou para a universidade, ainda existia cultura, a qual foi sendo progressivamente substituída por uma “bizarra matéria” (LLOSA : 11) que adulterou a primeira,perante a condescendência da sociedade em geral.Segundo os seus parâmetros, a cultura está a desaparecer, “e talvez já tenha desaparecido, discretamente esvaziada do seu conteúdo e este substituído por outro, que desfigura o que teve” (idem, ibidem).
Em 1954, prevendo esta mudança gradual, Hanna Arendt escreve:“ (…) la société de masses, qu’on l’aime ou pas, va demeurer nôtre dans l’avenir prévisible, de là sa « culture » la culture populaire {ne peut être} abandonnée à la populace” (ARENDT : 253).
A filósofa defendia o controlo dessa inevitável transformação como a única forma possível de preservar toda uma herança cultural que temia que desaparecesse na voragem da nova “cultura” emergente.
Como recurso introdutório para justificar a sua tese, o escritor cita os pareceres de T. S. Eliot, George Steiner, Guy Debord, Giles Lipovetsky e Jean Serroy, assim como de Frédéric Martel.
O primeiro refere a necessidade de uma elite que preserve a alta cultura e que permita que culturas minoritárias mantenham o seu nível de qualidade, o qual será o expetável para a faixa social de onde provém, ou seja, uma gradação de cultura por classes. Esse sistema de sociedade teria como base de sustentação a família, em primeiro lugar, e um lugar de destaque para a religião cristã – essencial, para Eliot, na construção e manutenção da cultura ocidental. Este escritor admite a possibilidade de um período de ausência de cultura, originado pela sua decadência, o que Llosa identifica com a atualidade.
Steiner também aceita o papel da religião na cultura,porém demarca-a da exclusividade do cristianismo, entendendo-a como uma ambição de transcendência, comum a todas as culturas. Critica Eliot por não ter considerado os grandes conflitos armados mundiais e o Holocausto como fator de declínio da cultura europeia.
Para Steiner, Deus foi morto pelos filósofos iluministas, o que redundou, pela ausência dos valores morais que veiculava, num caos de destruição bélica cujo expoente máximo foram os campos de concentração e extermínio nazis e soviéticos. Na sua visão, este foi o ponto em que a cultura acabou, sendo substituída pela pós-cultura ou contracultura, que carateriza como a descrença no progresso e o surgimento de um pessimismo estoico que vê a História, também ela, em declínio. A partir daí, a tradição cultural ficará confinada ao academismo, sendo substituída na sociedade pela imagem e pela música estridente das novas gerações, factos que considera inibidores do desenvolvimento do raciocínio dedutivo e de qualquer atividade que exija algo mais complexo que uma atitude passiva de receção.
Gui Debord, apoiado numa teoria de cariz marxista, defende que a sociedade se está a afundar num consumismo galopante que lhe retira a vontade própria. O escritor acusa o capitalismo de criar mercadorias que, pelas suas características apelativas, escravizam o homem, afundando-o cada vez mais numa induzida e desenfreada espiral de consumo de produtos supérfluos.
Segundo Llosa, embora existam pontos de confluência entre o seu pensamento e o de Debord, este encara o problema numa perspetiva mais económica, histórica e filosófica do que cultural e defende uma atitude revolucionária para acabar com este tipo de sociedade, objetivos que o escritor peruano afirma serem totalmente diferentes dos da sua linha de pensamento.
A opinião de Gilles Lipowetski e Jean Serroy não difere muito dos exemplos apontados por Llosa, exceto no que concerne a existência do que denominam de cultura-mundo, criada pela partilha dos denominadores culturais de todos os países que, apesar das diferentes tradições, se vão interpenetrando, esbatendo assim progressivamente as suas diferenças. De acordo com os autores, deixaram de existir focos radiantes de cultura, pois “[n]estes tempos hipermodernos, a cultura transformou-se num mundo cuja circunferência passou a estar em todo o lado e o centro em lado nenhum” (LIPOWETSKI e SERROY: 12).
Divergindo sobremaneira da opinião de Llosa, os autores consideram que, embora a produção da cultura esteja cada vez mais industrializada e massificada, há que aceitar a sua transformação como inevitável e, proactivamente, tentar geri-la: “Uma das questões da cultura-mundo é precisamente esta: como educar os indivíduos e formar espíritos livres num universo de excesso informativo?” (idem: 100).
E prosseguem:
“(…) não se trata de promover uma política alternativa ou uma política de civilização – se é que até isso se pode fazer - . Mas uma política que procure, de maneira mais realista civilizar a cultura-mundo que é agora a nossa.
É a esta cultura-mundo (…) que nos devemos ater para o melhor e para o pior. Ela traz consigo muitos males, como se disse, mas tem grande potencial” (idem: 184).
Tal convicção não é partilhada por Hanna Arendt, que considera que a cultura emergente, a cultura de massas, não sairá da sua condição de anticultura, por mais esforços educativos que se venham a propor. Para a filósofa, não passará de “un loisir de masse, qui se nourrit des objets culturels du monde. Croire qu’une telle société deviendra plus « cultivé » avec le temps et le travail de l’éducation est, je crois, une erreur fatale ” (ARENDT :270).
Inúmeras vezes, no decorrer da História, foi anunciado o término de qualquer ação ou acontecimento: a morte de Deus, a morte da crítica, o fim da civilização, o fim do Mundo. E, no entanto, todos continuam a existir, talvez reformulados, eventualmente enfraquecidos, mas ainda presentes. É nossa convicção que, como afirmam Lipowetski e Serroy, apesar dos muitos males que ela veicule, a cultura de massas ou cultura-mundo tem potencial para se transformar numa cultura renovada, com diferentes parâmetros, que se irá libertando dos limites que atualmente lhe são impostos, nomeadamente pelos interesses políticos e comerciais, retomando progressivamente os princípios axiais do conhecimento.
Note-se que a qualidade da oferta artística e literária tem aumentado nas últimas décadas e é apreciada por um número cada vez maior de um público que se vai demarcando da massificação todavia crescente. Embora ainda nos deparemos com um número impressionante de indivíduos pseudo-cultos, de “turistas culturais” que tratam a arte como um trunfo na ascensão social, nos likes do Facebook e nos carimbos do passaporte, assim como no conhecimento e leitura compulsiva dos livros da moda, começa-se a notar em alguns um interesse que vai transcendendo a mera representação. Será destes últimos que, autodidatas ou eventualmente apoiados pelas agora reduzidas elites do conhecimento, poderá nascer uma renovada cultura, eventualmente com novos paradigmas, e detentora de uma nova tradição.
Como última referência mencionada pelo literato, Frédéric Martel, sociólogo e autor do livro Culture mainstream, fala de uma nova forma de cultura que, democratizada, chega a todas as classes sociais. Esta cultura, já não exclusiva de uma elite é, no seu entender, o reflexo de uma nova modernidade ou pós-modernidade que acompanha sincronicamente os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia, em constante desenvolvimento.
Martel, perfeito reflexo da sua época, não menciona literatura, arte, música clássica, humanidades ou filosofia; em seu lugar figuram mangas, videojogos, telenovelas e outros programas televisivos, concertos de rock, música rap e afins.
Como comenta Llosa: “A cultura é diversão e o que não é divertido não é cultura” (LLOSA:28). A nova cultura é transitória, descartável, ao invés da anterior: perene, profunda, feita de marcos incontornáveis e duradouros; a primeira vale pela sua rendabilidade e não pela sua qualidade.
I. A civilização do espetáculo
A visão de repórteres esperando pelo ato desesperado de um broker atirando-se de alguma janela de Wall Street no dia 19 de setembro de 2008, é o mote escolhido por Vargas Llosa para definir o estado atual da civilização do ocidente. A procura do drama, do escândalo, da tragédia, são prioridades na informação por serem altamente ventáveis, pois entretêm e não exigem muito ou nenhum esforço intelectual.
O súbito aumento do nível de vida da classe média e o seu crescimento exponencial, no período pós Segunda Guerra Mundial, ajudado por um extraordinário crescimento económico norte-americano e europeu (a que não será alheio o Plano Marshall, ditado pela Doutrina Truman, programa americano de desenvolvimento dos países europeus devastados pela guerra), ditou uma procura de diversão sem precedentes na História do planeta. A progressiva liberalização dos parâmetros morais e a democratização da cultura,tornada light para poder ser acessível a todos, contribuíram para o florescimento de empresas e produtos que respondessem cabalmente a esse crescente desejo hedonista.
Sob estes parâmetros, Llosa define a cultura atual como “todas as manifestações da vida de uma comunidade: a sua língua, as suas crenças, os seus usos e costumes, a sua indumentária, as suas técnicas e, em suma tudo o que nela se pratica, evita, respeita e abomina” (LLOSA:33). Deste modo, diz o autor, ironizando, tudo se resume a um passatempo agradável.
Max Horkheimer e Theodor Adorno, num texto intitulado “A indústria cultural – o iluminismo como mistificação de massas”, vão um pouco mais longe afirmando: “A libertação prometida pelo amusement é a do pensamento como negação. A impudência da pregunta retórica: «Que é que a gente quer?» consiste em se dirigir às pessoas fingindo tratá-las como sujeitos pensantes, quando seu fito, na verdade, é o de desabituá-las ao contato com a subjetividade” (MOLES: 192).
Edgar Morin tem uma visão diferente deste problema,sustentando que “a cultura é como a Natureza: vive de respirações, de fluxos, de fôlegos, de fecundações e de mestiçagens. É por isso que a cultura viva de hoje em dia é fortemente afectada pela mundialização em marcha forçada que domina a actualidade” (MORIN [2005]: 403) .
Para Morin, o problema consiste num desenvolvimento a duas velocidades: “A mundialização política, cultural e social avança muito menos depressa que a do mercado ou das redes (idem, ibidem).
Por outras palavras, os meios de difusão adiantam-se, ultrapassam a velocidade de assimilação de novos conceitos pela sociedade e esse desfasamento produz uma certa impressão de caos, de incongruência.
Lipovetsky e Serroy chamam a esta sensação de instabilidade A Grande Desorientação: “já não sofremos de escassez de conhecimentos, antes nos sentimos perdidos com a própria abundância de informações (LIPOVETSKY e SERROY: 28, 29). “A desordem já não nasce do que falta mas do híper. É este que é preciso questionar” (idem:31).
É, contudo, premente a observação do escritor peruano sobre a evanescência da crítica no panorama atual da cultura: diz Llosa que o trabalho dos críticos está a ser substituído pelos publicitários, a promoção de uma obra não se pauta pela qualidade mas pela habilidade com que é difundida e vendida, como objeto de consumo que passou quase exclusivamente a ser.
Alberto Mandel define um consumidor como “um cidadão que não reflete sobre aquilo que compra. Para que um cidadão não reflita sobre aquilo que compra é necessário educá-lo na estupidez [fazê-lo crer que não entenderá as grandes obras]” (MANDEL: 88). “A noção que querem inculcar-nos é a de que a criação artística e intelectual deve ser algo que nos ajuda a não pensar” (idem, ibidem).
Neste aspeto, Mandel concorda com Llosa:”o triunfo do trivial e do fácil por contraponto ao que é difícil”(ibidem).
O facilitismo cultural, político e de costumes é impiedosamente atacado pelo escritor. O mesmo sucede com os vários autores citados durante a exposição dos temas tratados e que, curiosamente, são geralmente citados em termos ora sub-reptíciamente irónicos ora utilizando falácias informais, cuja lógica torna difícil a sua identificação, a tal ponto que, a grande maioria das vezes, duvidamos – e com razão - da intenção laudatória do autor.
Llosa atribui também e em grande parte as culpas do estado da cultura aos políticos, que se dissociaram dos pensadores e outros baluartes da alta cultura para, num processo de culto da imagem perante a sociedade, ávida de celebridades mediáticas, se unirem ou aparecerem junto com os ídolos do momento. Nesse sentido, Walter Benjamin, no artigo “A obra de arte na sua reprodutibilidade técnica”, faz uma reflexão sobre a representação teatral em que a sociedade se transformou: “Na época de Homero a humanidade se oferecia em espetáculo aos deuses do Olimpo; ele agora se converteu no seu próprio espetáculo” (MOLES: 254).
Os jornalistas também são visados como instrumento dessa banalização do que é o interesse público, permitindo e incentivando tal estado de coisas que ajudaram a criar. O autor ressalva que eles, ao fim e ao cabo, ao alimentar essa cultura de massas, estão também a tentar sobreviver, pois criaram apetites vorazes que se veem obrigados a satisfazer, se quiserem subsistir no circo de feras em que se transformou a comunicação social. Como Alan Bloom refere: “Agora foi tudo explorado; lança-se luz por toda a parte; o inconsciente foi tornado consciente, o reprimido expresso. E que encontrámos nós? Não diabos aterradores mas a luz do espectáculo (BLOOM: 77).
II. Breve discurso sobre a cultura
Llosa faz notar que, hoje em dia, o tradicional conceito de cultura e as suas fronteiras tornaram-se diáfanos, a ponto de não se conseguir discernir se existem ou não indivíduos cultos e descarrega o peso dessa culpa sobre os etnólogos, antropólogos e sociólogos, como fiadores da inclusão e diluição da cultura popular na ideia original de cultura. A sua crítica mais mordaz é dirigida a Mikhail Bakhtin e seus seguidores, a quem considera responsáveis por essa miscigenação.
Em consequência – diz ele – somos todos cultos porque seguimos as mais variadas correntes de “cultura” que hoje em dia se nos apresentam.
Alan Bloom sintetiza este estado de espírito da sociedade:
“(…) a cultura (…) passou a fazer parte da conversa fiada, chegando ao ponto de se tornar patológica a sua imprecisão original (…) os artistas não têm visão alguma do sublime mas sabem que a cultura (isto é, o que eles fazem) tem direito à honra e apoio da sociedade civil. Os sociólogos e os disseminadores dos seus pontos de vista, os jornalistas de todas as feições, a tudo chamam cultura – a cultura da droga, a cultura rock, a cultura dos bandos de rua e por aí adiante infindavelmente e sem discriminação. O insucesso da cultura é agora cultura” (BLOOM: 179).
O mundo, apesar da crise da cultura, beneficia de um avanço enorme em termos de ciência e de técnica; no entanto, esse desenvolvimento deve-se a técnicos, a especialistas, e não a homens e mulheres cultos. Ao falar de ciência e técnica estamos a falar de conhecimento, e isso não se deve confundir com cultura, pois esta é o seu elemento coordenador, o fiel da balança racional que permite o equilíbrio entre o conhecimento e o que dele se faz.
Da obra Cultura e Sociedade, extraímos uma citação de Agostinho Almiro de Almeida, professor da FFUP, que hierarquiza o processo do conhecimento através da informação:“a informação visa (…), potencialmente, proporcionar conhecimento mas, não é, em si, conhecimento. O que confere (retira) conhecimento à informação é um “transformador” que dá pelo nome inteligência” (NUNES: 30).
Na mesma obra, Vasco Graça Moura, sintetiza o processo de relacionamento entre o conhecimento e a cultura:
“O homem não é um ser científico. A dimensão científica corresponde a uma sua fundamental necessidade de conhecimento, mas não o esgota. A ciência ocupa um lugar cada vez mais importante na sociedade e cabe-lhe um papel cada vez mais decisivo no desenvolvimento e no progresso.
Mas, por outro lado, a ciência, desacompanhada de uma dimensão embebida dos valores do Humanismo, da Ética, da História, da Civilização e da Cultura, não pode produzir conhecimento digno desse nome numa perspectiva humana e socialmente relevante. Há mais coisas no espírito humano do que possa supor uma vã crença científica… A ciência desacompanhada de outras valências redunda, quando muito, nas deficiências insolúveis de uma epistemologia incompleta e até, em certos casos, perigosa para o futuro da Humanidade” (NUNES: 138).
III. Proibido proibir
Mário Vargas Llosa faz acerba crítica a todo o processo que adveio da sublevação estudantil de Maio de 1968, que entende como um movimento fomentado pela juventude burguesa e cujos resultados foram imensamente mais perniciosos que benéficos, no sentido em que a única conquista daí advinda foi o derrube da autoridade e credibilidade do ensino e dos docentes, O resultante igualitarismo forçado e por vezes demagógico, impeliu os estudantes mais economicamente beneficiados a migrar para o ensino particular,permitindo criar um fosso ainda maior no que respeita às diferenças entre classes sociais.
Lipovetsky e Serroy levantam aqui uma dúvida legítima:
“No passado, a escola era uma instância eminentíssima. Continua a sê-lo nos países pobres, onde o acesso à educação, não garantido a todos, é sentido como um privilégio pelos que dele beneficiam, mas nos países ricos tornou-se um direito que o aluno considera que lhe é devido e de que beneficia sem lhe manifestar o respeito que outrora tinha.
O que terá ocorrido? Deveremos acusar a “cultura de 68” e os seus desvios? No entanto, encontramos o mesmo analfabetismo noutros lugares, nos países que não tiveram as barricadas nem as discussões intermináveis da famosa primavera” (LIPOVETSKY e SERROY: 186).
Poder-se-á dar crédito a Llosa naquele seu juízo sobre o Maio de 68 ou a sua análise estará matizada pela aversão declarada que este nutre por Foucault e que associa ao movimento?
Parece-nos que o autor cristalizou as suas opiniões e modelo de cultura algures num período da sua juventude e quase tudo o que a partir daí surgiu deixa de ter valor como cultura “aceitável” ou, pelo menos, digna de análise.
Antecedentes. Pedra de toque – Mais informação, menos conhecimento
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) são, neste artigo, postas em causa, fazendo contrastar as opiniões de Nicholas Carr, especialista em tecnologias da comunicação e o filósofo Joe O’Shea.
Aqui, mais uma vez, o escritor escolheu salomonicamente os exemplos que descrimina: Carr, apesar da sua profissão, é um crítico da internet, que considera, apesar das numerosas vantagens que apresenta, transformadora da nossa forma de pensar e redutora da capacidade de memorização.
Por seu lado, O’Shea, como fanático da Web, defende incondicionalmente a superioridade da informação daí decorrente em detrimento dos anacrónicos livros.O filósofo refere-se aos livros e à Web como informação pragmática e não como veículo de fruição estética, o que, evidentemente, nada abona a seu favor: apesar de filósofo, não passará, afinal, de um técnico.
Llosa admite que a “revolução da informação está longe de ter acabado” (LLOSA: 205) e que nos devemos alegrar se considerarmos que tal representa um progresso. Porém cita Van Nimwegen, um biólogo computacional, que defende que confiar aos computadores a solução de todos os problemas cognitivos apenas diminuirá a capacidade do cérebro humano em adquirir um conhecimento estável, ou seja “quanto mais inteligente for o nosso computador, mais parvos seremos” (idem, ibidem).
Independentemente da atualidade dos temas expostos e apurado espírito crítico, Vargas Llosa peca por rigidez formal e uma isenção amiúde tendenciosa. Apresenta, é certo, opiniões opostas às suas convicções, criteriosamente selecionadas e rebate-as com razões válidas, mas por vezes também com paralogismos. Na nossa opinião, o escritor expressa com honestidade as suas crenças, porém cai no erro de uma certa parcialidade e do conservadorismo das suas opiniões.
No computo geral e apesar da irredutibilidade com que o escritor critica impiedosamente alguns nomes consagrados que fizeram e fazem parte da tentativa perene de elaboração de uma teoria do conhecimento e cujos contributos são imprescindíveis, consideramos Mario Vargas Llosa um marco, também ele incontornável, pelo seu contributo, em prol da história da cultura.A sua obra, talvez eivada de alguns exageros tem, contudo, um aspeto positivo a considerar: alerta para o perigo de uma involução cultural que é necessário prevenir e reverter.
A barbárie que o autor receia está também presente nas nossas preocupações pois, embora acreditemos na transitoriedade da crise que a cultura atravessa, tememos sempre que este e Anna Arendt tenham razão: « Le propre de la barbarie de l’Occident et ce qui lui confère sa puissance formidable, c’est que ce refuss’est accompli non pas contre toutes les formes de culture mais à l’intérieur de l’une d’entre elles, celle du savoir (MICHEL : 242).
Bibliografia ativa selecionada
ARENDT, Hanna (1972), La Crise de la Culture – Huit Exercices de Pensée Politique, Paris, Galimard.
BLOOM, Allan (1987), A Cultura Inculta, Trad. Francisco Faia, Mem-Martins, Europa-América.
HENRY, Michel (1987), La Barbarie, Paris, Bernard Grasset.
LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean (2010), A Cultura-Mundo – Resposta a uma Sociedade Desorientada, Trad. Victor Silva, Lisboa, Edições 70.
LLOSA,Mario Vargas (2012), A Civilização do Espetáculo, Trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa, Quetzal.
MANGUEL, Alberto, «O temor ao poder do leitor continua até hoje”, Revista LER (2012): pp. 28-35 e 88, Mem Martins, Fundação Círculo de Leitores.
MOLES. Abraham et al.(2005), Teoria da Cultura de Massas, 7ª Ed., S. Paulo, Paz e Terra.
MORIN, Edgar (2005), Cultura e Barbárie Europeias, trad. Ana Paula de Viveiros, Lisboa, Instituto Piaget.
NUNES, Rui [Coord.] (2012), Cultura e Sociedade, Porto, Cordão de Leitura.
Bibliografia crítica selecionada
BARBOSA, Lívia e CAMPBELL, Colin [Org.] (2013), Cultura, Consumo e Identidade, Rio de Janeiro, Editora FGV.
GILSON, Étienne (1970), Cultura e Sociedade de Massa,Trad. Teresa Vasconcelos Saraiva, Porto, Morais Editores.
MORIN, Edgar (1999), O Desafio do Século XXI – Religar os Conhecimentos, Trad. Ana Rabaça, Lisboa, Instituto Piaget
SANTAELLA, Lúcia (1999), (Arte) & (Cultura) – Equívocos do Elitismo, S. Paulo, Cortês Editora.


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L'Oeil Cartographique de L'Art
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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

L’oeil cartographique de l’art
Christine Buci-Glucksmann

Relatório de leitura

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de investigação e síntese, no âmbito da disciplina de Literatura e Estudos Interartes, do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Janeiro de 2019
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Relatório de leitura
BUCI-GLUCKSMANN, Christine (1996), L’œi lcartographique de l’art, Paris, Galilée.

O livro em análise, da filósofa francesa Christine Buci-Glucksmann, especializada em filosofia estética e literatura barroca, debruça-se sobre as relações entre a pintura e a cartografia numa perspetiva, não apenas histórica, mas também e essencialmente estética, abrangendo o espaço que medeia entre o século XV e o presente.
A filósofa invoca o caráter heterogéneo das abordagens cartográficas da arte, na arte e como arte, que passam por uma visão ou, na expressão da autora, num olho, ora alegórico, ora tautológico, entrópico, crítico ou efémero, num processo em constante evolução e, por consequência, “un voyage par nature inachevé, comme le rêve d’un Ulysse cartografe (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 7).
Focar-nos-emos sobre os dois primeiros e o último capítulos da obra, seus conceitos e deduções teóricas: l’oeil-monde ou le fantasme d’Icare, l’oeil descriptif et allégorique e Icare aujourd’hui : l‘œil éphémère.
Ptolomeu, um geógrafo visionário que viveu no século II da Era Cristã, afirma que [l]a géographie est une imitation de la peinture de toute la terre (apud BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 51). Joan Blaeu, cartógrafo holandês do século XVII, autor de um dos maiores atlas do seu tempo, completa a visão ptolomaica ao considerar a geografia como l’oeil et la lumière de l’histoire (idem, ibidem).
Apesar do mapeamento do mundo existir desde o alvor das primeiras civilizações, é só a partir do século XV que as cartas geográficas adquirem uma produção exponencialmente célere com o descobrimento de novas terras, num contexto não inocentemente sincrónico com o esforço humanista de conhecer e compreender o mundo (VALENTIM, passim). Antonio Sanchez Martinez, professor da universidade de Lisboa, explica a importância deste fenómeno:
En tanto que fieles imitaciones de la naturaleza, las imagenes recordaban aquello que previamente habia sido visualizado; hacian visible lo invisible. Las imagenes tenian la virtud de satisfacer la legibilidad del mundo, un mundo que era mas asequible y comprensible por medio de representaciones visuales que a traves de las palabras. La representacion visual permitia leer aquello que hasta entonces era indescifrable. Las descripciones visuales o pinturas se complementaron asi con el arte de la escritura (MARTINEZ:393).
Ambas formas de representacion, tanto pictorica como cartográfica constituian imagenes del mundo (idem:394).
Com Bruegel, a representação pictórica materializada na tela A queda de Ícaro, de 1558, adquire, através de uma perspetiva aérea, um “paisagismo geográfico”, como lhe chamaria Marcel Duchamp, fruto de um olhar-mundo que abarca o espaço da pintura como carta geográfica. É uma visão que atinge um pormenor quase infinitesimal, como se do olhar de um Ícaro atento, no auge da sua viagem exploratória, se tratasse. É esse ponto culminante que Bruegel retrata, o registo final antes da queda, o momento em que o Ícaro-pintor grava a sua paisagem-mapa, após o que, finda a sua missão, se precipita no mar.
Contrariando Duchamp, que encara as representações geográficas como uma forma de arte não retiniana, Bruegel pinta, na obra citada, uma tela-mapa, que não prescinde da representação artística como preocupação estética para mimetizar o mundo num plano, minuciosamente, e que é, de facto, uma planta geográfica do lugar que o pintor idealizou, seja ele real ou ficcionado.O mundo reduz-se a um mapa, este a um fragmento de território e este ainda a um detalhe infinitesimal.
Pascal, a propósito da variedade, escreve: une ville, une campagne, de loin est une ville et une campagne ; mais, à mesure qu’on s’approche, ce sont des maisons, des arbres, des tuiles, des feuilles, des herbes, des fourmis, des jambes de fourmis, à l’infini. Tout cela s’enveloppe sur le nom de campagne. […] Tout est un, tout est divers (PASCAL : 84).
Esta citação do físico francês, dada como exemplo, aponta para a pluralidade e, simultaneamente, unidade do que é representado e que Duchamp apoda de “diagrama de uma ideia”, ou seja, o conceito de que uma carta geográfica ou uma tela, como artefacto, não representam movimento, mas descrevem-no. A estaticidade do jogo de luzes e de cores não esconde a dinâmica do que é representado e concomitantemente sugerido.
A este propósito, a investigadora afirma que deparamos com an unveiling of the frames of representation as illusory: the eye, exposed to its own ways of seeing, recognizes them as a construct, as an artefact. The coincidence of reality “as it is” with the visible no longer holds up (apud D’ERICO {2018}: 62).
Com Bruegel — diz a autora — o olhar-mundo torna-se olhar-cartográfico: la carte ne fera que précipiter sur un plan le regard icarien (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 21). A carta geográfica estabelece uma relação entre o visível-legível da imagem e a invisibilidade de um mundo fisicamente ausente.
No entanto, la carte est si peu le territoire que je peux la vider, et même réaliser une carte vide. Car au fond sur une carte, je ne possède rien. Le monde y est absent (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 25) ou, por outras palavras, mesmo que a carta desapareça, o que ela representa pode perdurar.
Gilles Deleuze e Félix Guattari vêem nas cartas geográficas, não simples decalques, mas modelos abertos e rizomáticos. Por essa razão, e combinando as suas premissas com os conceitos de desempenho e competência introduzidos por Noam Chomsky, afirmam: [c]’est peut-être un des caracteres les plus importants du rhizome, d’être toujours à entrées multiples […], contrairement au calque qui revient toujours «au même ». Une carte est affaire de performance, tandis que le calque renvoie toujours à une « compétence » prétendue (DELEUZE, GUATTARI : 20).
Perante o olhar perspetivista barroco, a carta aceita diferentes entradas e pontos de vista, embora com a condicionante de o fazer num plano ou num globo. O olho cartográfico pratica, segundo a autora, um barroco da superfície que mistura o detalhe com o infinito. Não sendo o território, a carta geográfica exprime-o numa relação não mimética que projeta uma visão icárica deturpada.
Desde o fim do séc. XIV e durante todo o séc. XV, e impulsionado pela descoberta de novos mundos e a redescoberta dos trabalhos de Ptolomeu, assistiu-se a um “furor geographicus” (BOUTIER {2005}) sem precedentes, um pouco por toda a Europa. Em Veneza imprimem-se os primeiros “portraits de ville”, que são une forme nouvelle de représentation de l’espace, qui associe un fond géométrique au dessin en élévation des principaux monuments de la ville (idem, ibidem).
Estes « portraits » propose[nt] une image globale de la ville, qui puisse satisfaire les exigences de mesure et de géométrie sans pour autant faire disparaître la dimension visuelle qui donne à celui qui regarde le plan l’impression d’observer la ville dans sa réalité matérielle (idem, ibidem).
Durante o século XVI os mapas evoluem, modernizam-se, tornam-se descriptio: a planta geográfica é acompanhada por uma descrição do seu conteúdo. Ergue-se aqui uma nova visão do mundo, que se afasta progressivamente dos mapas medievais, de cariz marcadamente simbólico, submetidos à visão teocêntrica cristã. A mudança da visão do olho-mundo origina cartas geográficas cada vez mais secularizadas, como a criada por Martin Waldsermüler, em 1507, onde as figuras de Ptolomeu e Amerigo Vespuccio substituem a iconografia cristã, cuja intenção representativa é muito mais teológica que geográfica.
Durante toda a Idade Média, na Europa, as representações geográficas da Terra tinham como modelo os mapas criados por Isidoro de Sevilha, no séc. VI, vulgarmente chamados T/O, onde a letra T dividia a terra em três continentes (Europa, Ásia e África – os únicos conhecidos até então) e a letra O representava o seu formato , crido como circular e plano.
No início do séc. XVI as cartas geográficas sofreram transformações profundas, com a redescoberta da Geografia ptolomaica e do seu sistema de projeção cartográfico, que excluía qualquer simbologia, apoiando-se apenas na transposição matemática de um mundo, assumido como esférico, numa carta plana ou num globo.
Tal representação apresenta, porém, problemas insolúveis, como o da supressão do horizonte e da ausência de um ponto de vista fixo; a representação é bidimensional, sem espessura,sendo uma miniatura do globo terrestre que aí se projeta. De igual modo, modifica-se de acordo com as fronteiras do mundo conhecido.
A partir de meados do século referido, essas cartas começam a refletir uma tomada de poder político, seja ela do âmbito secular ou do religioso.
Retoma-se uma certa simbologia, uma simbologia do lugar, através de minúsculas representações de locais, edifícios, florestas, etc, onde as cores começam a dominar e os detalhes se tornam visíveis e legíveis, inclusive ornamentais. Como comenta Buci-Glucksmann, [l]a carte peinte est une forme visuelle d’écriture de signes. Signes de langage des toponymes et des inscriptions, signes quasi hiéroglyphiques de montagnes et fleuves très stylisés, signes scénographiques et ornementaux des cartouches (BUCI-GLUCKSMANN {1996} : 37-38). O séc. XVI inaugura um período alegórico nas cartas geográficas, que cedo se transformam em documentos e instrumentos de domínio, de poder. No entanto, estas revelam-se também uma arte de descrever o mundo, atravessando as fronteiras do saber científico, e o seu expoente surge com a aposição de cartouches ou painéis, preenchidos ou não com desenhos ou textos, não apenas informativos, mas também inseridos como ornatos, com a função de causar efeitos de prazer ou de estilo, numa forma de pensar geo-artística pioneira.
Com Vermeer, no séc. XVII, surge uma nova forma de pintura que combina alegoria e cartografia. No quadro L’art de la peinture, além da representação alegórica de Clio, a musa da História, em pose, e a do próprio artista, de costas, a retratá-la, a carta representada, contendo a inscrição Nova […] descriptio, ao fundo, na “parede”, é meta-pictural, representando todo o conjunto um quadro dentro de um quadro, dado que o encaixe e o entalhe das figuras cartográficas engendram dois espaços, dois mundos, em que o quadro central, valorizado como imagem e objecto, se recorta sobre o do fundo.[…] Entre quadro-figural e quadro-fundo, o olho desloca-se, atento e curioso, como sobre um mapa (BUCI-GLUCKSMANN, 1998).
Diferente do estilo pictórico italiano, onde os quadros representam o que vemos, Vermeer representa o mundo que é visto. A imagem perspetivista torna-se imagem ótica. Assim, a Nova Descriptio é a própria pintura, na identidade do olho cartográfico e do olho descritivo. O observador, como olho, não é exterior ao plano do quadro, o olho é o quadro. Assim, o artefacto cartográfico não passará de uma duplicação duplicada da pintura-mundo, num registo descritivo e não-narrativo.
A investigadora ressalva que o olho descritivo não é apanágio de Vermeer ou do século XVII: já é aflorado por Bruegel e mesmo por Jan Van Eyck, no século XV, com a sua preocupação pela representação realista e minuciosa: frontaliser le monde et le mettre en surface, telle est la pulsion originaire du désir cartographique en peinture (BUCI-GLUCKSMANN {1996}: 63).
Esta dialética entre o plano e o frontal, própria do olho cartográfico da arte, encontra-se também na pintura de El Greco (Doménikos Theotokópoulos), um dos expoentes da Renascença Espanhola, no século XVI.
Vista y plano de Toledo é uma obra onde se denotam traços da frontalidade bizantina e do maneirismo romano, com a estilização exagerada da primeira e o capricho nos detalhes, caraterizado por deformações e alongamentos dos corpos, no segundo. O confronto destes dois processos origina, diz a investigadora, um já referido barroco da superfície, onde os diferentes planos se encaixam e desencaixam numa visão múltipla, originando diferentes perspetivas da cidade. Cria-se um diálogo interno entre as diferentes Toledo: a que é vista do alto de um morro sobranceiro à cidade, onde dois edifícios representam o poder — a Catedral e o Alcazar; a alegoria do Tejo, por intermédio de uma “escultura” dourada, em falso relevo; a Toledo do plano que o filho do pintor, retratado na tela, segura, no quadro, à direita, e a Toledo que é explicada num comentário de 17 linhas, ao fundo do referido plano. Resta, pois, saber qual a verdadeira Toledo aqui representada.
Ao simbolismo das duas primeiras, contrapõe-se a descrição cartográfica e écfrásica, dentro da própria pintura, das últimas.
Diversamente do olho-quadro de Vermeer, onde a carta geográfica na parede é vista em fundo, num plano secundário, na Vista y plano de Toledo a carta é, na verdade, a superfície da tela, que aparece como que destacada sobre a cidade, em primeiro plano.
A descrição aí anotada é a própria alegoria da pintura, e obriga-nos a um ponto de vista imposto pelo seu autor. Nos comentários, El Greco ressalva que a vista foi retocada, embora o plano seja exato. A carta em evidência dá-nos a confirmação da veracidade-falsidade da pintura, num jogo entre as três dimensões, onde o plano cartográfico se expõe como que em destaque, aparentando uma veracidade simulada, através da representação de uma superfície vincada nalguns pontos e de fraca legibilidade, como um documento muito usado, onde a tinta se vai desvanecendo.
Enquanto a estrutura das pinturas de Vermeer assenta sobre um sistema de quadros dentro de quadros, El Greco fá-lo através de um espaço duplo, onde se misturam o olhar e o decifrar, ao inscrever o discurso sobre a pintura na própria pintura.
A autora considera que o efeito cartográfico da arte pictural depende de um jogo de planos onde intervenham mecanismos de projeção e transposição. Assim, a superfície da tela, por ação de um processo de enquadramento e por efeito de dobragem e reflexibilidade, encaminha para o que ela designa de plan-tranfert,
Walter Benjamin, citado pela escritora, afirma: […] l’allégorie s’oppose au symbol et au mythe par ses procédures de fragmentation, de montage et de collage […] et préfigurent dès le XVIIe siècle baroque, le moderne des montages-collages (BUCI-GLUCKSMANN {1996} : 61). Temos, assim, a antevisão das abordagens vanguardistas dos inícios do século XX, assim como as dos ultramodernistas.
No último capítulo, a investigadora coloca-nos perante uma questão, firmada num conceito de leveza, de volatilidade, e associada a uma moderna cartografia do mundo, assente na simulação computacional: ter-nos-emos transformado em Ícaros neste mundo mágico dos mapas-mundo virtuais?
Desde as grutas de Lascaux à mitologia grega, passando pelos contos das Mil e uma Noites e pelo trabalho de Dante, os spiriti ou espíritos (assim nomeados pelo poeta do séc. XIII, Guido Cavalcanti, e entendidos como projeções do estado de alma), representavam essa leveza sentida pelo ser, na observação do objeto artístico, liberto do seu peso material e tornado visão, simultaneamente sensorial e metafísica (CALVINO: passim).
Com a evolução do conhecimento tecnológico, a cartografia teve e continua a ter de ser continuamente redefinida, uma vez que os mapeamentos atuais passam por uma virtualização e globalização dos espaços que se estende muito para além da escala planetária.
O encontro de Ícaro com a cartografia já possui uma pré-história artística, que passa pela demanda de um virtual estético que liberte a obra das suas amarras terrenas, da linha do horizonte, por intermédio de um ponto de vista do aviador – conceito tão caro a Malevitch e a Duchamp – e que conduz a uma não-existência da forma, a uma ausência de ponto de observação. Esta arte numérica que suprime o objeto real na sua construção, necessita de um observador que, interagindo com o médio, recupere da abstração a mensagem que esta veicula.
Contrariamente à visão dependente da gravidade, do horizonte, do alto e do baixo e da queda, a arte icárica opõe um” être du trajet”, uma viagem, onde Ícaro ascende ou paira, numa fluidez espacial (BUCI -GLUCKSMANN {1996}: 150-151).
As novas cartografias virtuais, seja através de observações microscópicas ou macroscópicas, permitem construir representações a duas ou a três dimensões da Terra ou mesmo do resto do universo cognoscível, nos seus mais ínfimos ou vastos detalhes. As cartas, como representações virtuais, espelham o olho cartográfico no olho conceptual ao longo da história, na forma de quadros, planos e “portraits de ville” pois, tal como estes, o virtual não passa de uma perspetiva, uma forma de perceção da realidade.
Christine Buci-Glucksmann, apresenta neste livro uma análise multidisciplinar e transdisciplinar sobre a correlação entre a elaboração de mapas e cartas geográficas e as formas de arte, que não apenas a pictórica, mas que englobam todas as abordagens do processo criativo.
Desde o barroco à pós-modernidade, passando pelos Ready-Mades de Duchamp, pelas Vanguardas Russas, com El Lissitsky e Malevitch, pelos trabalhos cinéticos de Takis, o Nouveau Réalisme de Yves Klein, o Espacialismo de Lucio Fontana, não esquecendo a arte fractal de Desmond Paul Henry, a arte New Media de Bill Viola, as instalações de Rebecca Horn, a leveza arquitetural de Toyo Ito ou as obras concetuais e visuais de David Reed, a arte procura uma nova visão do mundo, liberta do peso gravítico que a limita.
A arte procura uma desmaterialização, uma transparência que sugira mais do que mostre e que, ao mesmo tempo, transforme ou subverta a realidade com novos sentidos e novas combinações. Pôr em causa o “ocularocentrismo” que domina a civilização ocidental desde o século XVII é, pois, o objetivo contemporâneo da arte.
Bibliografia
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visto em 7 de dezembro de 2018.
BUCI-GLUCKSMANN, Chistine (1996), L’œil cartographique de l’art, Paris, Galilée.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine (1998): Texto introdutório, in PAVÃO, Isabel (1998), Cartographies, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
CALVINO, Italo (2002), Leveza (p.p. 15-44) in Seis propostas para o próximo milénio, Lisboa, Teorema.
D’ERRICO, Lucia (2018), Powers of Divergence – An Experimental Approach to Music Performance, Chapter – Derivative III: An Eye That Sees Itself, Leuven University Press: 61-64, in https://www.jstor.org/stable/j.ctv4s7jp2.13, visto em 1 de dezembro de 2018.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix (1980), Mille Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit.
MARTINEZ, Antonio Sanchez (2011), Representación por Imitación: el Renacimiento de la ‘Geographia’ de Ptolomeo y las Pinturas del Mundo Conocido, Lisboa, Centro Interuniversitario de História das Ciências e Tecnologia – Universidade de Lisboa, in https://documat.unirioja.es/descarga/articulo/3812894.pdf, visto em 8 de novembro de 2018.
PASCAL, Blaise (1976), Pensées, Paris, Flammarion.
VALENTIM, Carlos Manuel (2002), Navegações Portuguesas - Humanismo, as navegações e o, in http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/f05.html, visto em 3 de dezembro de 2018.


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A Génese do Neoplatonismo - Plotino
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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

A génese do Neoplatonismo:
Centralidade do Belo nas hipóstases de Plotino

Ensaio

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de análise crítica, no âmbito da disciplina de Estética Literária, do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais, do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes.
Junho de 2019

A génese do Neoplatonismo:
Centralidade do Belo nas hipóstases de Plotino


Análise crítica da obra :
Ennéades, Tome I, partie VI, PLOTIN (1976), BRÉHIER, Émile (Trad. du grec pour le français), Paris, Société d’Édition « Les Belles Lettres ».

Definir o Belo foi uma das preocupações dos filósofos da Antiguidade Clássica, onde este conceito significava, não apenas o belo, mas o justo, o bom, o virtuoso, a cor, a luz e, em suma, todos os atributos considerados positivos.
Em grego, o termo Kalocagathia – que poder-se-á traduzir, grosso modo, como perfeição -, provém de kalos kai agathos – “belo e bom/virtuoso” –, a essência do Homem Ideal, para Platão e Aristóteles.
Ao longo dos tempos a conceção do Belo foi-se modificando, adotando novas formas, confundindo-se ou mesclando-se com o Feio, numa subversão da ideia original. Tal não significa que belo e feio sejam hoje ou venham a ser no futuro, sinónimos. A evolução do Gosto, numa perspetiva estética, tem-se vindo, no entanto, a distanciar, não só da metafisica, mas também da noção do Uno como condição sine qua non dos conceitos platónico e plotiniano do Belo. O Gosto acompanha a evolução humana e, como ela, transmuta-se, influenciando conceitos e preconceitos.
Plotino (204 – 270 d.C.) foi um filósofo nascido em Licópolis[1], no Egito, mas que iniciou a sua escola em Alexandria e, posteriormente, transferiu-a para Roma. Foi discípulo de Amónio Sacas, que a tradição indica como sendo o fundador da primeira escola neoplatónica de Alexandria (circa 200 d.C.) e de quem viria a colher os fundamentos que dariam origem ao desenvolvimento de uma visão neoplatónica do mundo, centrada numa perspetiva estética e metafísica. Essa postura filosófica está descrita nas Enéiadas, uma obra composta por seis tomos, contendo cada um nove tratados (ennéa em grego significa nove), num total de 54. Constituem a sua única contribuição conhecida para a posteridade e foram compilados pelo seu discípulo Porfírio.
Nesta, o filósofo advoga três hipóstases ou princípios fundamentais, no mundo inteligível: o Uno, entendido como o princípio criador ou Théos, que já na filosofia pré-socrática é associado ou identificado com o Bem, e ao qual a Beleza se subordina. Na cosmologia platónica é o Demiurgo, o Grande Artesão, aquele que retira a matéria do Caos e lhe dá forma através das ideias.
Importa ressalvar que a entidade referida, em Plotino, não se insere em nenhuma plêiade deísta, fazendo apenas parte de um conceito de monoteísmo agnóstico, onde Deus é entendido como uma entidade geradora, isenta de vínculos a correntes teológicas. Será também útil recordar que o filósofo separa os conceitos de Belo e Bem, no sentido em que o último existe independentemente do belo e não necessita deste para se manifestar, ou seja, o bem suscita o desejo de o praticar objetivamente, enquanto que o belo é uma sensação subjetiva, uma qualidade.
Abaixo do Uno está a segunda hipóstase: o Intelecto (Nous), a origem do pensamento, da inteligência, das Ideias, que recebe do primeiro a emanação do Belo (ou contemplação da Beleza) como uma luz, o qual, por sua vez, reverbera-a sobre a alma (Pshyché), que é a terceira hipóstase, dando-se a este processo metafísico o nome de processão.
A alma, como mediadora entre o mundo inteligível ou das Ideias e o mundo sensível ou da Matéria, une-se a um corpo físico a que, através da forma e ideia, dá vida, constituindo assim o que conceptualmente se designa por Homem. Este, embora sujeito à tentação dos apelos inerentes à carnalidade, aos prazeres físicos que o desviam do caminho do Bem, sente as emanações de luz espiritual provindas do mundo inteligível, que o “enamoram” e fazem aspirar à elevação e união com o Theos, simultaneamente arquetípico e teleológico.
Inversamente, a Pshyché recebe do homem (Soma), enquanto matéria, e por conversão, a contemplação do Belo, pois este, não só é emanado por ela como transmissora da Beleza irradiada do Uno e a que o corpo aspira, mas também resulta das belas obras e das belas atitudes que o último tenha eventualmente produzido, assim como da sabedoria que tenha vindo a desenvolver : Não existe beleza mais real que a sabedoria que detetamos em alguém, a qual amamos sem atentar à sua aparência física, que poderá mesmo ser feia. Ignoramos totalmente a aparência externa e focamo-nos na sua beleza interior. [Tradução livre, do francês][2] (PLOTIN {1976B}: 138).
Também na arte, que o Soma, como parte integrante do mundo sensível, produz e experiencia, podemos encontrar o Belo; a visão da arte através dos olhos físicos faz com que o Homem aspire, pela contemplação, às outras belezas não sensíveis de que se apercebe.
Para Plotino, a arte não imita os objetos, mas as ideias a que estes estão subjacentes; a Forma é introduzida no objeto pelo artista, não através dos seus olhos ou das suas mãos, mas porque ele participa da arte [Trad. livre, idem] [3] (PLOTIN {1976B}: 135).
No entanto, como o corpo material tem uma visão limitada pela condição de pertença ao mundo sensível, a sua perceção da Beleza, enquanto irradiação do Uno, limita-se apenas à consciência da emanação do Belo que a alma, em simbiose, lhe transmite e ao qual ele não tem pleno acesso. Deste modo, a cintilação do Belo, emanada pela Pshyché e que acolhe como manifestação da Beleza, indu-lo a almejar a ascensão mística ao mundo inteligível, através da pureza de ações e obras. O corpo físico empenha-se em se libertar da imperfeição das tentações terrenas, dos prazeres e sensações primárias, contemplando a alma. Esta, por seu turno, maravilha-se com a emanação provinda do Intelecto e que este recebe do Uno, a Causa Prima. O fulgor desta emanação vai-se perdendo à medida que o Uno se distancia, donde o homem (que é a última instância desta expansão de luz, pois é consciente da sua Forma e Ideia) apenas recolhe uma pálida reverberação, a qual, ainda bela, impele-o a transpor as dificuldades com que depara na prossecução do seu objetivo.
Neste estágio o amor, inspirado pela perceção da beleza sensível, é um dos principais meios, a escada que conduz à união dos corpos e também das almas e os transporta aos patamares mais elevados, ao êxtase da visão do Belo, ao vislumbre e conúbio com o Princípio Criador.
Embora reconhecendo a validade das premissas platónicas que servem de base à sua teoria filosófica e que são em grande parte partilhadas pelos filósofos estoicos, Plotino recusa que, como os últimos proclamam, o Belo se encontre apenas na simetria das formas e confinado ao Uno, como seu único portador; as formas simples em si podem ser belas e não estarem sujeitas à visão de conjunto para, através da simetria e da proporção, se poderem justificar como tal.
No entanto, para que o Belo se manifeste num todo, é necessário que as suas partes sejam igualmente belas; de outro modo, a heterogeneidade resultante, por ser anómala, redundaria em algo truncado ou deformado e de onde seria necessário extirpar a dessemelhança, sob risco de cair no domínio do feio.
De acordo com estas premissas, o filósofo questiona: Quando vemos o mesmo rosto, de proporções inalteradas, por vezes belo e por vezes feio, como podemos negar que a beleza que está nestas proporções nada tem a ver com elas e que é por algo de diferente que o rosto bem proporcionado é belo? [Trad. livre, idem][4](PLOTIN {1976A}: 96).
A multiplicidade em Plotino é vista numa perspetiva global, de conjunto, onde a soma das partes constitui um todo, que é Belo. Tudo o que é incompleto, partido, destacável, é feio, não faz parte de uma Ideia.
Evidentemente, salvaguarda-se que, embora bela entre belas, uma parte descontextualizada dificilmente poderá fazer um conjunto belo: um belo pé ou uma bela mão não farão sentido num belo rosto. Só nestes casos particulares poderemos aplicar os argumentos estoicos da simetria e da proporção.
É, aliás, esta a refutação que dá início ao capítulo 1 do tratado VI, do livro I das Enéadas, onde o pensador rebate as teorias estoicas referentes à exclusividade da beleza apenas pela sua proporção e simetria, aliadas a uma certa harmonia de cores, em nome da beleza [Trad. livre, idem][5](CICÉRON, XIII-30: 69), demonstrando a fragilidade de tais fundamentos.
Perguntamo-nos aqui onde estão as belas cores na pulcritude da estatuária grega, de monocromia marmórea, não menosprezando, contudo, a sua proporção e simetria. Se aceitarmos esta condição estoica para classificar algo como belo, que dizer então do modelo humano original? A comparação da gradação de cores entre o representado e a sua representação tornará um deles mais belo, menos belo, igualmente belo ou feio?
Poderá haver cópias mais perfeitas que o modelo, mas tal não significa que este seja feio. Contudo, tal implicará gradações na avaliação da beleza, dependendo do observador, o que contradiz o próprio conceito de beleza apresentado pelos filósofos estoicos.
Do mesmo modo, segundo estes, só a soma das partes e não cada parte isolada, poderá ser bela. À luz deste raciocínio, um rosto não pode ser belo, pois é apenas parte de um conjunto maior, que é o corpo, assim como a luz do sol não poderá ser bela porque é simples. De igual modo, um som isolado não será belo, a não ser aliado a outros sons para formar uma partitura.
As ciências, os discursos, as condutas e as leis também poderão ser considerados belos, mas certamente não haverá maneira de encontrar neles qualquer espécie de simetria. Do mesmo modo, a Inteligência é bela, apesar de ser una, não pertencendo a nenhum conjunto nem apresentando, como nos casos anteriores, qualquer regularidade.
O filósofo, embora fixando-se na alma, debruça-se sobre a componente física, o corpo, e a categoria sensível a que este pertence, reconhecendo que estes também podem ser belos e constituírem, portanto, através desta qualidade, um veículo de ascensão aos patamares superiores do mundo inteligível. A Psyché é o interlocutor entre o Nous e o Soma, dando origem a que o último, se for intuído pela alma como belo, será por esta reconhecido como semelhante a si própria e às suas congéneres, partilhando com ela a mesma pureza e a mesma Ideia. A matéria, enquanto amorfa é uma representação da feiura, pois não tem razão nem forma, pela ausência de um plano diretor moldado pela Ideia.
Essa Ideia, a existir, ordena o corpo de modo a que as suas partes se combinem harmonicamente, tornando-se belas na sua unidade, fazendo-se reconhecer pela alma como tal e partilhando com esta uma afinidade estética que a atrai e à qual se une: Deste modo, a beleza dos corpos provém da sua participação numa razão provinda dos deuses. [Trad. livre, idem][6](PLOTIN {1976A}: 98).
Esta atração ou o enamoramento referido por Plotino é, do mesmo modo que a visão da arte ou das qualidades morais de outrem, puramente andrógino e assexuado.
Para o pensador, o prazer estético, e mesmo o prazer amoroso, são formas de elevação da alma, através da qual o corpo, por contemplação, logra aceder ao vislumbre dos níveis superiores e atingir a consciência do Belo e por este imergir no Uno, no Bem, a que a Beleza suprema se subordina.
Segundo o licopolitano, a capacidade de julgar é a principal razão pela qual a Pshyché revê no Soma as virtudes que lhe possibilitam unir-se-lhe em perfeita sintonia, não excluído que as outras partes da alma, embora em menor escala, também contribuem como um todo para essa ligação íntima. Esse vínculo é conseguido pelo reconhecimento da existência de uma Ideia interior, como um cânone, que aglutina as formas dispersas que constituem o Soma, criando assim uma unidade feita de múltiplas partes que partilham a mesma ideia.
A alma, reconhecendo nesta forma multíplice, mas una, uma sintonia consigo própria, comunga com ela a volúpia da contemplação do Belo e o anseio da união, através do Nous, com o Theos, a Unidade Suprema, a fonte de onde emana uma Luz que nunca fatiga ou sacia os seus amantes.
Reportando-nos à composição da alma segundo a doutrina platónica, que a divide em três partes que denomina racional, passional e apetitiva (PLATÃO {1975}, X: 307 et seq.) das quais apenas a primeira é efetivamente focada na obra em análise, concluímos que Plotino se sente em terreno movediço quanto ao acolhimento desta tripartição. O filósofo menciona vagamente essa divisão sem a sujeitar muito a um aprofundamento que poderia expor fragilidades teóricas passíveis de comprometer a sua perceção da alma e o desempenho desta em todo o processo abordado.
Como, porém, não é esse o escopo deste trabalho, deixaremos a especulação tal qual se encontra, pois conduzir-nos-ia a caminhos desviantes da intenção original, ou seja, da crítica do tratado enquanto fundamento de uma teoria do Belo.
Rematando as suas reflexões sobre as belezas sensíveis, Plotino aborda as cores e o fogo, e tece considerações entre a sua beleza intrínseca e os limites do feio. As cores simples serão, no seu entendimento, uma forma que domina a escuridão natural da matéria, através de uma luz imaterial, que é razão e ideia. Essa luz incorpórea é o fogo e está associado por ele ao grau mais elevado das categorias do mundo sensível por ser um corpo quase etéreo, mais leve que qualquer outro, simples por não conter nenhuma outra forma – embora possa ser contido por elas – e que é elevado pelo filósofo à categoria de Ideia.
Plotino considera-o o arquétipo da cor, através do qual a matéria recebe a cor, a forma e a luz. Ofuscada pelo seu brilho, a matéria amorfa, não comungando da Ideia da cor, torna-se feia.
Aqui o pensador desvia-se da teoria das cores e da luz, de Platão, embora as considere igualmente uma categoria do mundo sensível: Chamamos-lhes cores. É uma chama que se escoa dos corpos e que contém partículas que são apreendidas pelo olho, de modo a produzir uma impressão visual. [Trad. livre, idem][7] (PLATON {1970}: 193).
As conclusões de Platão sobre a composição das cores, da luz e do fogo, divergem das de Plotino por este as encarar numa perspetiva metafísica (no seu sentido neoplatónico), enquanto o primeiro as teoriza sob um ponto de vista científico, semelhante às conceções atomistas veiculadas pelos filósofos Leucipo e Demócrito, seus contemporâneos.
Em relação à música, o filósofo alexandrino afirma que as harmonias musicais sensíveis provêm de sons cujas harmonias são impercetíveis aos sentidos físicos e permitem à alma captar a sua beleza através da Ideia que lhe está subjacente. Como na matéria, o som ou conjunto harmónico de sons, unidos pela ideia que lhes preside, torna-se belo e é reconhecido pelas almas como tal.
Concordando com Plotino, entendemos que um som isolado poderá ser harmonioso (belo) ou desagradável (feio), tudo dependendo do seu timbre, altura e intensidade. Podemos referir, a título de exemplo, o som provindo de uma flauta de Pan ou de uma harpa, comparado com o de uma trompa de caça ou a buzina de um comboio.
Referindo-se às belezas das categorias superiores ao mundo sensível, apenas percebidas pelas entidades do mundo inteligível, visto não poderem ser captadas pelos sentidos do mundo físico, o pensador afirma que a alma as contempla com adoração, com deleite, com amor, mesmo com frémitos de prazer.
No Fedro, Sócrates afirma que […] o Amor é um desejo e […] mesmo as pessoas que não amam desejam sempre o belo (PLATÃO {1981}: 43). As almas sentem essas emoções, principalmente e com mais intensidade as que estão enamoradas. Mesmo o corpo, ao contemplar o belo em outros corpos e desejando-os intensamente, sente a sua beleza com maior acuidade: todos a vêm, mas não sentem o seu ferrão de igual modo. Os que mais o sentem são aqueles a que chamamos enamorados [Trad. livre, idem][8] (PLOTIN {1976A}: 100).
Em nosso entender, há uma certa nebulosidade na identificação do amor em Plotino. Numa perspetiva estritamente agnóstica, essa indefinição conduz-nos por vezes à incerteza sobre se o pensador se refere ao êxtase místico, ao Ágape, similar aos de S.ta Teresa de Jesus ou S. João da Cruz, ou se alude ao Eros – o amor físico -, embora não no sentido de um prazer puramente sensorial mas sim numa perspetiva tântrica, de equilíbrio dos opostos pela comunhão do intelecto e dos corpos, cujo objetivo é, em ambos os casos, o ascenso ao extrafísico, ao mundo inteligível.
O filósofo (ou, mais propriamente, o seu compilador, discípulo e amigo, Porfírio) tenta aclarar no tratado a relação entre a alma, o amor e a beleza, e a importância do expurgo pela Pshyché das impurezas decorrentes do seu contacto com o mundo sensível, por via do corpo físico e das tentações daí advindas. O pensador, através de uma sequência de perguntas e respostas, introduz-nos no cerne da sua teoria sobre o Belo (PLOTIN {1976A}: 100-101):
A beleza do mundo superior, do mundo sensível, depende exclusivamente da pureza da Pshyché, pois só através dela o homem poderá atingir o êxtase, aquilo que está acima da matéria e da própria alma, a perceção da Beleza intangível pela contemplação do Belo. Nessa condição, a alma compraz-se com tudo aquilo em que se revê, como um reflexo, uma congeneridade.
Ao “olhar” para si própria ou para as outras, a Pshyché sente a beleza, a sublimidade dos sentimentos, do caráter nobre e da dignidade, próprio das almas imaculadas. Estas, não delimitadas por cor, forma ou grandeza, nem conspurcadas pelas baixas sensações provenientes do contacto íntimo com a matéria e as suas emoções e sensações primárias e animalescas, são iluminadas pela irradiação resplandecente da Inteligência, de essência divina.
Tais qualidades são belas e reais para a alma livre de impurezas, do mesmo modo que o ouro retirado da terra mostra o seu esplendor após se libertar das sujidades que o envolvem.
Dando seguimento ao raciocínio precedente, o licopolitano explica mais pormenorizadamente como esta, pela prática das virtudes, se eleva ao nível do seu Criador. Não despiciendo os benefícios que poderão advir da sua ligação ao Soma, como uma relação pura, de enamoramento pelas qualidades e virtudes superiores que este apresente, como belas e dignas de serem experienciadas, Plotino refere também os perigos dessa ligação, no sentido de que ela é suscetível de ser influenciada pelas sensações inferiores e emoções primárias do mundo sensível que, tentando apoderar-se do corpo e estando este unido à alma, a podem contaminar.
Tais sensações são por ele referidas metaforicamente como imundícies, que arrastam a alma para a rendição aos instintos básicos, próprios da carnalidade, afastando-a da contemplação e da comunhão com as virtudes que a aproximam do Uno. A alma, cega pelos prazeres inferiores, afasta-se cada vez mais da emanação da luz divina, embrenhando-se na escuridão em direção ao Hades, à perdição, como se caminhasse por um lameiro, onde se vai atolando e de onde dificilmente se conseguirá libertar.
A alma é, em si, bela; a sua cedência aos gozos sórdidos e amorais é que a conspurcam e degradam. Despojando-se dos vícios a que se subjugar, voltará à sua inocência pristina.
Só, portanto, o sacrifício, o exercício da disciplina moral, a sabedoria e todas as virtudes próprias do Intelecto a afastarão da impureza da matéria e elevá-la-ão aos estádios superiores do mundo inteligível.
Para isso contribuem a coragem e a prudência, que são atitudes que engrandecem a alma; a primeira permite-lhe não temer a morte, pois esta é apenas a separação definitiva do corpo e que a liberta das tentações de que, por intermédio da prudência, se tenta afastar, constituindo estas virtudes uma prova da sua grandeza. É pela morte que a Psyché se afasta da materialidade, libertando-se das amarras físicas que a condicionam.
Purificada, a alma torna-se Nous, imerge na inteligência pura, funde-se com ela e, rendendo-se à Beleza que emana da instância máxima ou Uno, aproxima-se e assemelha-se a este, a Deus.
Neste ponto da sua reflexão, Plotino reporta-se ao Fedro de Platão onde, tal como o autor, se assume a Beleza como real e à qual a alma, encontrando-a nas suas reminiscências e associando-a ao Bem, ambiciona retornar (PLATÃO {1981}: 76-80).
O filósofo alexandrino caracteriza o Bem em direta associação com o Belo e como resplandecência do Uno, do qual ele provém, tal como todo o ser, vida e pensamento.
A alma perde-se na sua contemplação, desprezando tudo aquilo que, ligada ao corpo material, achava digno de ser tido por belo pois, ao contemplar o Uno, está a reverenciar a Beleza absoluta, a qual, como o autor afiança, por ser verdadeiramente pura, encontra-se acima da terra e do céu. [Trad. livre, idem] [9](PLOTIN {1976A}: 103).
De tal sublimidade, as outras belezas mundanas, embora dela provindas, como cópias ou imitações, não a diminuem nem a acrescentam. É desta superior e verdadeira beleza que a Psiché se reveste e que a enche de amor, fazendo com que ela seja de igual modo amada pelos seus pares.
A partir do momento em que a alma experiencia a contemplação extática do Ser Supremo, inicia também o seu maior desafio que é, aplicando sua perseverança e força de vontade, a conservação da visão beatífica e da união efetiva com o Belo e que constitui simultaneamente a sua provação e o seu prémio. Tal como Plotino, assim também o afirma Sócrates, no Fedro: […] para o homem que pretende atingir o belo, belo será […] ter de enfrentar os obstáculos que a conquista da beleza exige! (PLATÃO {1981}: 144).
Essa, diz, é a verdadeira felicidade, pois para os demais, para aqueles que ainda não se libertaram das amarras da matéria e das suas tentações, só restará perseguir as imagens, silhuetas e sombras da beleza material, continuando a ater-se aos bens e poderes terrenos que os cegarão e mistificarão, fazendo-se passar pelo Bem e pela Beleza real, e os conduzirão ao abismo.
Plotino assinala o caminho para a prossecução e realização do objetivo supremo da alma, quais os passos que o homem necessita de seguir para levar a bom porto o seu desígnio:
Para tal é mister que este, através da Psiché, consiga “ver” o que está escondido, enxergar para além do que os seus olhos físicos lhe mostram e que não passa, como atrás referido, de meros e rudimentares reflexos da verdadeira Beleza.
Fazendo uma analogia com o retorno de Ulisses à sua pátria, o pensador afirma que não é o apelo às coisas sensíveis que conduz a alma ao reto caminho, mas sim a procura pelo retorno à origem, à união com Deus ou o Uno, de onde tudo provém. Não é com meios terrenos ou com os sentidos que esta alma conseguirá atingir o seu objetivo, mas sim com a visão interior, com os olhos da alma, que tal será possível.
Ao dar por encerrado o tratado, Plotino resume a senda a percorrer para a união mística das 3 hipóstases:
Em primeiro lugar a alma necessita, como um neófito[10], de se habituar a reconhecer as belas ocupações e as belas obras que são produzidas pelos homens de bem. Estas belas ocupações e obras deverão ser entendidas, não como algo físico (mesmo que por intermédio da arte), mas como as obras, atitudes e posturas moralmente elevados, feitos por homens espiritualmente pulcros. Terá em seguida de olhar para dentro de si e reconhecer a sua própria beleza interior, que deve estar em sintonia com as almas com que se identifica. Caso não a encontre, terá de aperfeiçoar-se, libertar-se de toda a imperfeição e fealdade moral por todos os meios ao seu alcance. Só aí, olhando-se e admitindo-se bela, sem nenhuma mácula, sem nenhum resquício de ligação à materialidade que renegou, poderá reconhecer e ser reconhecida pelas outras almas suas semelhantes e estará apta a contemplar e unir-se ao Todo de que faz parte.
Porém, se não estiver totalmente expurgada do mal, da imperfeição, os seus olhos nada verão de belo, porque a visão da luz está toldada pelas impurezas de que ainda não se libertou e, mesmo que o belo esteja perante ela, não o conseguirá enxergar. É necessário que o olho que vê se emparelhe, se una totalmente ao que é visto: Nunca um olho verá o sol se não se tornar igual a ele nem uma alma poderá ver o belo se não se tornar, ela também, bela [Trad. livre, idem].[11] (PLOTIN, {1976A}: 106).
Neste estágio a alma torna-se luz, pois não estará sujeita a nenhuma medida nem nenhuma forma; ligar-se-á ao Intelecto e ascenderá à contemplação das grandes obras e da grande beleza daí decorrente, pois é necessário tornar-se divino e belo se se quiser contemplar Deus e o Belo. Ao ascender ao plano superior, o Nous, a alma aperceber-se-á da beleza das ideias que ele contém, pois que o Intelecto, esse lugar das Ideias, é também a morada do Belo.
Acima deste encontra-se a natureza do Bem: o Uno, o derradeiro e mais elevado patamar do inteligível, fonte e princípio de tudo o que existe. Aí, e a ele subordinado, veremos a Beleza que, emitindo o seu esplendor sobre toda a pirâmide da qual compartilha o vértice, induz por seu intermédio toda a organização cósmica que tem por base o Homem, enquanto impregnado pela alma, à fruição e êxtase da visão do seu Criador.
Bibliografia
CICÉRON (1968), Tusculanes, tome II (III-V), Paris, Société d’Édition « Les Belles Lettres ».
PLATÃO (1975), A República, Lisboa, Europa-América.
PLATÃO (1981), Fedro, Lisboa, Guimarães & C.ª, Editores.
PLATON (1970), Timée – Critias, Paris, Société d’Édition « Les Belles Lettres ».
PLOTIN (1976A), Ennéades I. 6, Paris, Société d’Édition « Les Belles Lettres ».
PLOTIN (1976B), Ennéades V. 8, Paris, Société d’Édition « Les Belles Lettres ».
[1] Atual Assiute, no Médio Egito, capital da província com o mesmo nome, junto à margem do Nilo, sensivelmente a meio caminho entre o Cairo e Assuão.
[2] […] il n’y a pas de beauté plus réelle que la sagesse que l’on voit en quelqu’un, on l’aime sans égard à son visage, qui peut être laid ; on laisse là toute son apparence extérieure, et l’on recherche sa beauté intérieure.
[3] […] non parce qu’il a des yeux ou des mains, mais parce qu’il participe à l’art.
[4] […] lorsque l’on voit le même visage, avec des proportions qui restent identiques, tantôt beau et tantôt laide, comment ne pas dire que la beauté qui est dans ces proportions est autre chose qu’elles, et que c’est par autre chose que le visage bien proportionné est beau ?
[5] […] joint à certain charme du teint a nom de la beauté […]
[6] Ainsi, la beauté du corps dérive de sa participation à une raison venue des dieux.
[7] Nous les appelons toutes couleurs. C’est une flame qui s’écoule de chacun des corps et qui comporte des parties proportionnées à la vue, de manière à produire l’impression.
[8] […] tous la voient, mais tous n’en sentent pas également l’aiguillon¸ ceux qui le sentent le mieux son ceux qu’on appelle les amoureux.
[9] […] pour être tout à fait pur, est au-dessus de la terre et du ciel.
[10] Há, nas Ennéades de Plotino, múltiplas referências a escolas herméticas, nas quais este terá sido iniciado. Daí os termos mistérios, neófito ou iniciação serem recorrentes na sua obra.
[11] Jamais un œil ne verrait le soleil sans être devenu semblable au soleil, ni une âme ne verrait le beau sans être belle.


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Claudio Magris
Publicado na revista electrónica do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa:
http://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/prosadores-escrevem-a-europa/
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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

CLAUDIO MAGRIS

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Verbete subordinado ao tema Europa face à Europa
Trabalho académico no âmbito da disciplina de Literatura Comparada – Questões e Perspetivas, do ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes.
Janeiro de 2018
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CLAUDIO MAGRIS (1939 - )
Professor, ensaísta e romancista italiano, nasceu em Trieste, uma cidade proeminente no antigo império Austro-Húngaro, que foi e continua a ser, entre auges e quedas, uma urbe cosmopolita, local onde se entrecruzam ideias e civilizações, ponto de passagem de caudilhos, artistas e pensadores e um dos cadinhos das ditosas ou arriscadas e, por vezes, desastrosas experiências que, desde Carlos Magno, têm formado e transformado a Europa.
Magris defende o conceito de Mitteleuropa como entidade geopolítica e cultural de relevante importância para a coesão interna do continente europeu, em sintonia com o postulado de Jacques Le Rider: “The idea of a Holy Roman Germanic Empire, guarantor of equilibrium in the middle of Europe reappears in intellectual discussion every time Central Europe faces a crisis” (LE RIDER: 159).
O autor tem dedicado a sua vida como docente e escritor a refletir sobre uma Europa histórica, política, social e cultural de jure. Germanista assumido, defende o primado cultural alemão, isento de perspetivas nacionalistas ou imperialistas, cosmopolita, aberto à comunidade, não como uma imposição identitária alemã, mas como parte de um saber que deve ser universal. O escritor sustenta que “(a) nacionalidade é cultura, não biologia” [MAGRIS, 2011, 158], que pensar alemão não significa ser alemão, uma vez que “o reconhecimento de pertença/não pertença (…) não tem nada que ver com o parentesco étnico, mas sim com a afinidade a uma cultura e a um estilo de vida” [idem,159]. O autor acrescenta ainda que os maiores pensadores dos últimos séculos, as influências políticas e culturais europeias e mesmo mundiais, mais marcantes, provêm da cultura alemã. Nomes como Marx, Hegel, Heidegger ou Nietzche, foram determinantes na formação do pensamento moderno. [apud CASTELLVÍ, 1989].
Escreve regularmente para algumas publicações periódicas e jornais, com particular incidência para o Corriere della Sera e é detentor de vários prémios literários nacionais e internacionais, tendo sido várias vezes proposto ao Prémio Nobel da Literatura. Escritor de fronteira apercebe-se e explora criticamente o jogo de tensões que a sua situação privilegiada lhe oferece, o que o torna uma autoridade no seu campo.
Claudio Magris assume-se defensor convicto de uma Europa confederada. Este escritor italiano que, a ter nascido duas décadas antes seria, por fatalidade temporal e histórica, um súbdito do Império Austro-húngaro, - o qual marca uma presença importante no seu pensamento político, - acredita na construção de uma Europa una e coesa na diversidade, ou seja, com a força que “poderia e deveria ter, se soubesse entesourar a sua multiplicidade dispersiva de energias e as unificasse em vez de as desperdiçar numa evasiva perpétua, numa desaceleração permanente” [MAGRIS, 1992: 279].
Na sua obra icónica, Danúbio, Magris faz um périplo pelo percurso do rio homónimo, desde a(s) sua(s) imprecisa(s) nascente(s), o seu término igualmente indistinto e a sua vaga periferia. É um documento híbrido, misto de livro de viagens, autoficção, relato histórico-geográfico e antologia de parábolas, onde o curso de água serve de metáfora para a Europa Central e suas conotações com uma Mitteleuropa de forte influência germânica e ambas também de limites indefinidos (vide MEDEIROS: 141-149, LE RIDER: 155-169). Este rio, lugar de separação, mas também de encontro, espetador de tensões constantes, consequentes da contiguidade com os países de Leste, - os Eslavos, - outrora considerados bárbaros,” aqueles a que a conceção oitocentista chamava ‘nações sem história’ “[MAGRIS, 1992: 232]. São povos de diferentes etnias e fronteiras flutuantes que, no decorrer dos séculos, mudaram e ainda mudam de limites e governos, ao sabor das correntes hegemónicas. Mais recentemente, até ao fim da década de 80 do século passado, eram dominados ou influenciados pela extinta União Soviética.
Espetador de guerras titânicas, mas também protagonista das correntes de pensamento que revolucionaram o mundo, o rio faz o escritor cogitar “se, seguindo-o até ao delta, entre povos e gentes diferentes, entramos numa arena de recontros sangrentos ou no coro de uma humanidade apesar de tudo una na variedade das suas línguas e das suas civilizações” [MAGRIS, 1992: 32].
Magris desconstrói a Europa fazendo uma leitura das suas origens e do seu percurso histórico, social e político, disseca a influência civilizadora do Sacro-Império Romano-Germânico e a sempre presente e marcante influência da dinastia dos Habsburgo e demarca através delas a importância da cultura germânica, asseverando que “(…) a presença alemã na Mitteleuropa foi um grande capítulo de história e o seu eclipse uma enorme tragédia, que o nazismo, responsável pela sua degradação e derrocada, não pode fazer-nos esquecer. Interrogarmo-nos sobre a Europa significa, hoje, interrogarmo-nos sobre a nossa própria relação com a Alemanha” [MAGRIS, 1992: 31]. ”A este universalismo alemão (…) está ligada uma grande página da civilização europeia, a intensidade de uma Kultur que assumiu sobre os seus ombros a tensão entre a vida e o valor, entre a existência e a ordem” (idem, ibidem).
É nas ondas do Danúbio, no seu percurso, no recorte das suas margens, nesse rio viajante, que “é e não é, que nasce de vários lugares e vários progenitores” [MAGRIS, 1992: 34]., onde existem “os pragueses de nome alemão ou os vieneses de nome checo”[idem, ibidem], que a Europa a que Magris dá voz, tenta encontrar uma identidade ainda indefinida e, quiçá, utópica.
Até à queda do muro de Berlim, mítico ícone da Guerra Fria, em 1989, Claudio Magris entrevia a região – e, no fundo, toda a Europa – ameaçada pela então crescente hegemonia soviética, a Leste, a qual cria que, a breve prazo, poderia destruir o projecto de união europeia preconizado por, entre outros, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Jean Monnet. As alterações entretanto produzidas (a reunificação da Alemanha e o fim da URSS) criaram-lhe novas, porém cautelosas, espetativas.
A atual visão crítica do autor sobre a Europa coincide com a sua visão microcósmica da cidade-natal, Trieste, austro-húngara num passado ainda recente e que no pós-segunda guerra mundial, sob a égide dos Aliados e até 1954, se manteve tecnicamente um Estado independente, aguardando a decisão das Nações Unidas entre a submissão à extinta Jugoslávia de Tito ou a adesão à Itália: “Soy pesimista com la razón, optimista com la voluntad. He nacido com esa fe en la utopia y com el precoz desencanto que me daba la historia de Trieste, esa espécie de no future (sic)” [apud ROJO, 2017].
É essa fé na utopia de uma Europa Federada que dá a Claudio Magris a força necessária para se opor ao ceticismo generalizado, apesar dos vários fracassos (resgates, Brexit, movimentos independentistas) de uma Europa Confederada, vulgo União Europeia ou UE.
Danúbio não servirá por si só para caracterizar o desvelo e preocupação do autor perante a Mitteleuropa e, afinal, o Velho Continente; outras obras de sua autoria, como A História não Acabou, completam-na. Nesta, Magris, através das crónicas aí reproduzidas e quase todas publicadas anteriormente no Corriere della Sera, faculta o complemento essencial para a compreensão global do seu sonho europeu. Neste manual de pensamento humanista, o autor não se foca num Estado ou região (não obstante o seu país ser o ponto de partida) mas alarga-se à Europa e ao próprio orbe, reconhecendo e respeitando sempre a miríade dos diferentes Outros que a constituem. Essa visão do autor carateriza o seu ideário europeu, o que (des)espera da Europa, lugar de no future, de vazio sem perspetivas, mas da qual não abdica, não deixa de acreditar com a força da vontade, embora a razão se lha negue [apud CASTELLVÍ, 1989].
Nessa sua coletânea de crónicas, o autor alerta para os perigos de uma sociedade globalizada e que podem fazer perigar ainda mais os esforços de unificação: “Na globalização toda a identidade se sente ameaçada, com o temor de se dissolver e desaparecer, e então exaspera a sua particularidade, faz dela uma diferença absoluta e selvagem, um ídolo – que, como todos os ídolos, impele facilmente à violência e ao sacrifício de sangue” [MAGRIS, 2011: 12].
A esperança de uma Europa federada assenta na existência de um destino comum, com todas as promessas e ameaças que lhe são inerentes. Se, por um lado, o escritor vê com apreensão o perigoso recrudescer dos nacionalismos exacerbados, receosos pela sua perda de identidade, pelo outro teme ainda os “inimigos hegemónicos” [MORIN: 136), os países cujas influências económicas culturais e políticas exercem pressões relevantes no processo de globalização.
Tal como George Steiner (STEINER: 26-28) o autor afirma que, na Europa, os Cafés fizeram e ainda fazem história, pois a sua importância como Ágoras modernas, como locais de discussão e refinamento cultural e reflexão política, são marcos incontornáveis da cultura europeia, são locais “onde se misturam trabalho e lazer, onde nos entregamos a certas rotinas, a certa preguiça, a certa reflexão, e onde podemos ler, discutir, e depois escrever” [apud MOURA, 2016).
Por vezes Magris cede ao seu pessimismo com a razão, temendo “que a Europa tenha terminado, província secundária de uma história que se decide noutros lugares, nas salas de comandos de outros impérios”. Porém, logo em seguida, riposta, otimista com a vontade: “(…) a familiaridade com o elenco da Mitteleuropa (…) leva-nos a não acreditar em destinos irreparáveis (…), justamente porque a Europa ainda existe, o seu sol está ainda suficientemente alto no horizonte e ainda aquece” [MAGRIS,1992:278-279].
Citações
“Pienso que esta fiebre identitaria, que conduce a una continua obsesión por identificar todas las naciones y todos los idiomas y todos los grupos étnicos, y que sin duda son un valor sagrado, cuando la lleva a cabo un Estado es un delirio, porque también puede arrastrar a la guerra y a las persecuciones. Una minoria amenazada, cuando se convierte en Estado, también se convierte en mayoría, y entonces comienza a amenazar a la minoría dentro de ella” [apud CORONA, 2008].
“Eu sou um patriota europeu, que sonha pelo momento em que a Europa será um único Estado e os atuais países serão regiões” [apud SILVA, 2016].
“O Danúbio corre, largo, e o vento da tarde passa pelo café ao ar livre como a respiração de uma velha Europa que talvez esteja hoje nas margens do mundo, sem já produzir mas apenas consumindo história. (…) A Europa é este café, no qual já não vêm sentar-se os administradores delegados do Espírito do Mundo, mas quando muito funcionários de alguma sua filial subalterna, que não tomam decisões mas as executam (…)” [MAGRIS, 1992: 277-278].
“Todo o herdeiro dos Habsburgos é um verdadeiro homem do futuro, porque aprendeu, antes de muitos outros, a viver sem futuro, na interrupção de toda a continuidade histórica, ou seja, aprendeu não a viver mas a sobreviver” ([MAGRIS, 1992: 279-280].
“O rio (…) arrasta a civilização alemã, com o seu sonho da odisseia do espírito que torna a casa, para oriente e mistura-a com outras civilizações, noutras tantas metamorfoses mestiças em que a sua história atinge a consumação e a queda” [MAGRIS, 1992:16].
Bibliografia ativa selecionada
CASTELLVÍ, Miguel Pedro, 09/08/1989 in https://literatura283.wordpress.com/2016/06/07/claudio-y-su-danubio. Visto em 03/12/2017.
CORONA, Clemente, 2008, in https://www.tugranviaje.com/entrevista/claudio-magris-el-viajero-a-pie/.
LE RIDER, Jacques, in Mitteleuropa, Zentraleuropa, Mittelosteuropa A Mental Map of Central Europe. http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1368431007087471: pp 159. Visto em 10/01/2018.
MAGRIS, Claudio, 1992, Danúbio, Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Dom Quixote.
MAGRIS, Claudio, 2011, A História Não Acabou, Trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Quetzal.
MEDEIROS, Carlos Alberto, 2003, Europa Central: ambiguidades de um conceito, imprecisões de delimitação, Revista da Faculdade de Letras – Geografia I série, vol. XIX, Porto, 2003, pp. 141-149. In http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/311.pdf. Visto em 08/01/2018.
MORIN, Edgar, 1987, Pensar a Europa, Trad. C.Santos, Mem-Martins, Europa-América.
MOURA, Paulo, in https://www.publico.pt/2016/05/23/culturaipsilon/noticia/claudio-magris-1732207. Visto em15/11/2017.
ROJO, José Andrés, 06/02/2017 in http://elpaissemanal.elpais.com/documentos/claudio-magris/. Visto em 15/11/2017.
SILVA, João Céu e, 30/05/2016, in https://www.dn.pt/artes/interior/estamos-a-viver-a-iv-guerra-mundial-5198812.html. Visto em 17/11/2017.
STEINER, George, 2013, (5ªEd.), A Ideia de Europa, Trad. José Manuel Durão Barroso, Lisboa, Gradiva. Visto em 13/11/2017.
Biografia crítica selecionada
GERNER, Kristian, 1999, Australian Journal of Politics and History, Volume 45, Number 1, pp 3-19: A Moveable Place With a Moveable Past: Perspectives on Central Europe, in http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-8497.00050/pdf.
KATZENSTEIN, Peter J. (Ed.), 1997, Mitteleuropa – Between Europe and Germany, An Introduction, Providence and Oxford, Berghahn Books.
PRADO, Bernat Castany, 2015, Anacionalismo y Anarquismo en el Siglo XX. seguido de una traducción del "Manifiesto de los Anacionalistas" (1931), de Eugène Lanti, in http://revistas.um.es/cartaphilus/article/view/247571. (Link direto: http://diposit.ub.edu/dspace/bitstream/2445/96205/1/657459.pdf).Visto em 12/11/2017.
QUIÑONERO, Juan Pedro, 17/11/2014, in http://www.abc.es/cultura/20141117/abci-entrevista-claudio-magris-201411161843.html. Visto em 03/12/2017.
World Heritage Encyclopedia, 2017, in http://self.gutenberg.org/articles/Cultural_hegemony. Visto em 28/11/2017.
http://www.ibe.unesco.org/sites/default/files/gramscis.pdf (2001). Visto em 11/12/2017.


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Almada Negreiros: Nome de Guerra - Um romance que pode não o ser

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Almada Negreiros: Nome de Guerra
Um romance que pode não o ser


José Luís dos Santos Freitas
up200700990@letras.up.pt

Trabalho de investigação no âmbito da disciplina de Literatura Portuguesa e Hibridismo de Géneros, do Ramo de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Junho de 2020

Almada Negreiros: Nome de Guerra
 Um romance que pode não o ser.


Não foi impunemente que os mais conhecidos Artistas de todas as épocas estabeleceram entre si esse heróico serviço d’estafeta através do tempo para nos trazerem hoje, aqui, a Arte, Única e em toda a sua pureza e essência, iluminando a própria História da Humanidade.
Almada Negreiros
(apud GOUVEIA, Teresa [2017]: pp 5-6)

Nota biográfica

José Sobral de Almada Negreiros nasceu em 1893 no arquipélago de S. Tomé e Príncipe, no Golfo da Guiné, que, à época, era colónia portuguesa. Educado na metrópole, inicia publicamente a sua atividade artística como desenhador e escritor ainda antes de completar 20 anos, tendo em 1915 fundado a Revista modernista Orpheu, em parceria com Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa.
Almada Negreiros teve, durante toda a sua vida, e como resultado da sua assumida apoliticidade[1], uma atividade prolífica largamente reconhecida, alternando maioritariamente a produção desenhística com a literária. Faleceu em Lisboa em 1970.
Ser ou não ser um romance
Gaspar Simões, em 1938, por altura da primeira publicação de Nome de Guerra, e embora salvaguardando o génio do homenageado, considera a obra datada, e afirma que, mantendo, todavia, a originalidade, o livro retrata, à data da publicação, uma visão da Lisboa de 13 anos antes. (GASPAR SIMÕES, “Duas palavras de introdução” in ALMADA NEGREIROS {1}: 7).
Segundo o ensaísta Osvaldo Manuel Silvestre, a obra mantém o seu valor literário malgrado o hiato temporal, o qual apenas criou um efeito de “descontextualização” porque desligou-se da sua necessidade enquanto romance modernista e criação autoral (SILVESTRE [2017]: 20).
O que está em causa no romance não é o retrato naturalista, a visão da Lisboa de 1925, mas o contexto situacional e a interação dos personagens, que contam uma história, e esta, considerando-a como um bildungsroman, será intemporal, pois representa a maturação de uma personagem, independentemente da época e da paisagem, tanto geográfica como socialmente.
No entanto, a classificação genológica daquele que, por muitos, é considerado como o único romance modernista português, não é unânime pois, tanto na classificação como na singularidade, revela-se problemático:
Nome de Guerra é o único romance publicado por Almada e, com A Confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro (1914), conta-se como um dos dois únicos romances produzidos pelo modernismo português (SAPEGA [1992]: 91).
Nas palavras de José-Augusto França, [Nome de Guerra] é «o único «romance de aprendizagem» que se escreveu em Portugal» (MOREIRA [2013]: 78).
[…] Almada reescreve Nome de Guerra, existente numa primitiva versão desde 1925 como romance de costumes que, entretanto, se transforma em romance de tese; por intermédio da inserção de comentários, metalepses de autor e uma série de títulos de cunho frequentemente aforístico, a ação primitiva converte-se agora em mero exemplo demonstrativo da libertação do protagonista, relativamente à alienação de si mesmo, mediante o acesso à individuação (SILVA [2015]: 151).
Numa literatura como a nossa, em que o romance “de tese” teimosamente tem persistido, Nome de Guerra viria a ser, logo na década de 30, um dos primeiros grandes romances “problemáticos” (o outro é o Jogo da Cabra Cega, de José Régio), e, concretamente, naquele sentido em que R.M. Albérès estabelece a distinção entre uma literatura “de tese” e uma literatura “problemática”: “A primeira prende-se a problemas estritamente humanos e sociais, solúveis pela humanidade, a segunda interessa-se pela ressonância metafísica e moral dos nossos actos e pelo nosso destino (SILVESTRE [2017]: 20).
Romance finalmente sem tempo, quer dizer metarromance, para fora das dimensões físicas da narrativa. Nome de Guerra é um romance conceptual e metafísico e, como tal, único na literatura portuguesa moderna [...] (FRANÇA [1987] Introdução in ALMADA NEGREIROS {2}: XXI).
No âmbito do modernismo, no qual José de Almada Negreiros se insere, essas ambiguidades genológicas são, contudo, recorrentes. Mais especificamente, em Nome de Guerra, o artista manipula a história, metamorfoseia-se alternadamente num Eu ou num Ele, escritor, autor implícito ou narrador, gerando dúvidas constantes sobre a classificação ficcional da obra, onde surge também um cunho veladamente autobiográfico.
Jacinto Lucas Pires comenta esta indefinição de Almada: Por um lado, há nele um carácter lúdico – essa apetência de brincar com a linguagem, de brincar com a forma para dizer coisas muitas sérias; por outro, o romance é feito de capítulos curtos, e cada um parece brincar com a ideia de ser um mini-livro autónomo (PIRES [2017]: 5). No entanto, Almada aproxima-se e distancia-se de todas estas categorizações, num labirinto semântico e estrutural que mistifica as expectativas de leitura que vai sucessivamente criando.
A narrativa gera indefinições no tocante à legitimidade da classificação da obra como romance, pois esta apresenta uma estrutura simples, embora com alguma complexidade psicológica, uma ação temporal reduzida e uma mancha gráfica mais consentânea com a classificação do texto como novela. Neste sentido, o crítico literário João Pedro de Andrade admite ser possível que, “perante um juízo crítico ortodoxo, Nome de Guerra não pertença em absoluto ao género do romance”, pois a ação representa nela um papel secundário. Este crítico refere ainda a existência de uma tese pressuposta no livro (ANDRADE apud SOUSA [2003]:14). No entanto, a relativa complexidade de algumas sequências permite gerar reflexões extraliterárias, que poderão ir de encontro às expetativas do autor no que refere a receção da obra.
Todo o pontilhismo aforístico da mesma, visível fragmentariamente em diversos capítulos que se assemelham a uma montagem cinematográfica e em títulos cuja leitura sugere estarmos perante os atos de uma peça de teatro, completam este painel, o que corrobora a afirmação de que Almada Negreiros é extremamente pictórico ou cinematográfico quando escreve e é também muito narrativo quando pinta (PINTO DOS SANTOS [2017]).
Fernando Cabral Martins[2] , em consonância, afirma que, em geral, o tom de todos os textos do autor Almada Negreiros – manifestos, poemas, ensaios, artigos e romance incluídos – obriga a esquecer a “condição verbal” deles, para sugerir antes a presença de um performer (MARTINS [2017]: 22). E, citando Agustina Bessa Luís, acrescenta: Escrever tem muito a ver com a arte cénica. O escritor tem muito a ver com o artista que se apresenta no palco, que se projecta para algo (idem, ibidem).
Acima de tudo, a dimensão visual que o autor imprime nos seus múltiplos e multiformes trabalhos é condição sine qua non da sua expressão artística. O olhar, o ver como fonte de conhecimento e como premissa imprescindível do espetáculo – pois como espetáculo entende todas as formas de arte -, o Ver enfático que expressa nas suas palestras e nas suas entrevistas, é a sua sempiterna preocupação[3].
Eduardo Lourenço, num texto publicado na Folha de S. Paulo, em 1997, reconhece essa característica no artista: Na poesia ou na ficção Almada permanece um visual. Concebe os seus personagens com a mesma nitidez estilizada, sintética, que caracteriza os seus desenhos (LOURENÇO [1997]).
As transmutações ecfrásticas de Almada Negreiros, também designadas como transferências amodais por Daniel Stern (apud GIL e PINTO DE ALMEIDA [2016]: 46), são traduções intersemióticas, onde o efeito performativo que lhes é impresso pelo autor se esforça por anular as barreiras interartísticas através da tentativa de dissipação da semântica linguística, na busca de uma linguagem visual universal.
Romance de aprendizagem ou romance de tese?
Debruçando-nos sobre os três primeiros capítulos – curtos e aforismáticos - da obra em estudo, damo-nos conta de que Almada Negreiros faz uma introdução pouco consentânea com as expectativas de leitura que, geralmente, um leitor encontra num romance padrão.
No primeiro capítulo, intitulado “As pessoas põe nomes a tudo e a si próprias também”, o autor faz uma reflexão em volta das implicações dos nomes de espécie e de género, próprios e de família, e tece considerações sobre a influência da árvore genealógica e da carga íntima que tal implica: Nós todos, inclusive os expostos, temos todos as nossas árvores genealógicas do mesmo tamanho (ALMADA NEGREIROS {2}: 12).
Mais à frente, no mesmo encadeamento reflexivo, o escritor faz passar uma advertência sobre a igualdade genética de circunstâncias em que todos os seres humanos se encontram: […] Não somos um fruto qualquer, somos como qualquer outro fruto (idem:13). Toda esta abordagem inicial, acutilante e nada narrativa, sugere uma aproximação didática e moralista que inicie um tratado sobre as origens e desenvolvimento da nomenclatura da espécie humana e as suas implicações na vida e futuro dos visados: Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E se o João é Sousa e a Manuela é Pereira, então, à natureza e à vida junta-se-lhes ainda por cima a existência e complicou-se o problema (idem, ibidem).
A perplexidade apodera-se do leitor, pois este aguardava que, à denominação genológica de romance, correspondesse uma expectável introdução, se não à trama, pelo menos ao tema ou às personagens diretamente implicadas na ação. No entanto, recomeça a leitura, na esperança de que este primeiro capítulo seja apenas uma nota à margem da obra.
O segundo capítulo, “A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um”, continua a não corresponder ao tão esperado romance. Em vez disso, amplia as considerações ao íntimo humano, às relações deste com a sociedade e a inter-relação entre ambos, como se de uma tese sociológica se tratasse. Disserta ainda sobre o papel dos genes, da educação e da sociedade no comportamento de cada um e, de novo num discurso moralizante, exorta indiretamente aos que o leem a ação de criarem o seu próprio destino: O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a entregar-se a si próprio. Sem [o seu íntimo pessoal], nem para fazer número se aproveita ninguém (ALMADA NEGREIROS {2}: 14).
Começamos então a dar-nos conta de que, possivelmente, o artista nos está a prover indícios para a criação de uma personagem da tão aguardada narrativa, introduzindo a importância do atributo de nome de guerra, que titula o livro, e do nome a ele adstrito, assim como de toda a carga fática que os une, e que ainda desconhecemos.
Chegado ao fim deste capítulo, Almada, autobiográfica e performativamente (pois de uma performance se trata)[4], informa que [o] autor destas palavras também desenha e não sabe expressar por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa (ALMADA NEGREIROS {2}: 16).
Ao introduzir a categorização de performance, cria-se mais uma indefinição genológica em relação à classificação de Nome de Guerra, dando relevo à opinião de Fernando Cabral Martins, aqui anteriormente citado.
Passando ao terceiro capítulo, “Uma Judite que não se chama assim”, o tema da individuação e dos nomes a ela associados estreita bruscamente e singulariza-se num nome: Judite.
Nesse momento, logo após a leitura das primeiras linhas, confirmamos as suspeitas que já nos perseguiam desde as considerações do capítulo anterior: Judite é uma personagem que serve de base ao desenvolvimento da história que se seguirá e que, para não nos alongarmos em considerações e discussões genológicas, convimos chamar romance.
Os dois capítulos antecedentes - como se poderá observar no desenvolvimento da história, a que apenas aludimos, por não fazer parte diretamente do nosso escopo específico - visam estabelecer um retrato psicológico dessa pessoa fictícia a quem poderemos considerar – e não apenas a Antunes – uma das personagens mais importantes da obra.
O cuidado e ênfase com que o autor tece considerações sobre o nome de Judite aguça a curiosidade do leitor acerca do significado real da sua atribuição: Judite é um nome de mulher a quem a Bíblia fez cortar a cabeça de Holofernes (ALMADA NEGREIROS {3}: 11).
No entanto, o escritor não facilita a receção da obra, não descodifica o significado que imprime na nomeação da personagem. David Lodge fornece-nos um esclarecimento sobre as razões que subjazem a esta decisão de Almada: Não é habitual os romancistas explicarem as conotações dos nomes que dão às suas personagens; tais significados devem-se desenvolver no subconsciente de quem lê[5]:(LODGE 1993: 37).
De facto, Almada, já em 1916, fiel à cripticidade (perdoe-se o neologismo) que imprime à maioria da sua criação literária, afirma: Todos [os meus] livros devem ser lidos pelo menos duas vezes prós muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar (ALMADA NEGREIROS {1}).
Não será por mero acaso que Almada Negreiros outorga a Judite o privilégio de, em pseudonomia do que já de si é um pseudónimo, titular o livro, não o atribuindo ao suposto “herói”, àquele que é o objeto de evolução. Quanto a este, o autor vai deferindo importância à medida que vai “apagando” Judite.
Judite é um catalisador, uma personagem sem a qual não há transformação, não existe processo de aprendizagem nem, consequentemente, romance, nos moldes que o escritor visa imprimir. E, tal qual um catalisador, desaparece de cena quando deixa de ser indispensável, deixando o “estrelato” a Antunes, que se vai lentamente destacando da penumbra.
É, pois, da apresentação e da construção de uma protagonista ficcional e da própria história, o que podemos auferir da súmula destes três capítulos iniciais.
Nome de Guerra é, no entanto, maioritariamente narrativo. O fluxo e refluxo dos acontecimentos imprime à obra uma ação […] fragmentária percebida através da sobreposição de imagens desligadas da corrente do tempo. São imagens estáticas, pois de outra maneira não seria possível sobrepô-las, e a sua associação, que parece prescindir de uma causalidade explícita, torna-se responsável pela dimensão fragmentária da narrativa (SOUSA [2003]: 42).
João Paulo Sousa vai mais longe, afirmando ainda que:
Se a fragmentaridade assim exposta é um factor decisivo para a inclusão do romance de Almada Negreiros no vasto panorama da prosa da modernidade, os processos e as técnicas daí decorrentes estabelecem uma aproximação a outras disciplinas artísticas, na sequência desse desejo tão caro à vanguarda de estabelecer uma íntima comunhão das artes (SOUSA [2003]: 44).
O desenvolvimento da obra sugere, na sua generalidade, uma disposição cinematográfica, pois apresenta cada capítulo como se de um fotogramase tratasse, e onde as analepses e metalepses que Almada frequentemente utiliza têm um papel preponderante.
Conclusão
Como se pode deduzir pelas premissas apresentadas nesta breve exposição, e tendo em linha de conta as opiniões expressas pelos diferentes especialistas mencionados sobre a classificação genológica da obra Nome de Guerra, de Almada Negreiros, e onde se incluem escritores, críticos literários, encenadores e poetas, podemos concluir que não existe uma opinião consensual e, consequentemente, a possibilidade de atribuição de qualquer categorização normativa definitiva.
Como texto modernista, Almada imprime-lhe uma mudança no paradigma de como escrever um romance. Essa subversão da norma literária provocou e continua a provocar as mais variegadas reações, desde a aclamação ao repúdio. Foi a aposta do autor como artista irreverente e inconformado e, nesse sentido, Nome de Guerra cumpriu, pelo menos parcialmente, o desejo de José de Almada Negreiros: quebrar os cânones, quebrar qualquer cânone.
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[1] Vide Sudoeste N1, in http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Sudoeste/N1/ N1_master/SudoesteN1.pdf. p.13.
[2] Professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, onde ensina Literatura e Cultura Portuguesa.
[3] Vide https://www.youtube.com/watch?v=4DdMz5U3qTc – a partir dos 3 min. 40 seg.
[4] Vide AUSTIN, J. L. (1962), How to do Things with Words, Oxford University Press : pp 6-7.
[5] [It is not] customary for novelists to explain the connotations of the names they give to their characters: such suggestions are supposed to work subliminally on the reader's consciousness (tradução livre, do original).


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Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Novas Cartas Portuguesas: um retrato e denúncia da(s) violência(s) como fenómeno globalizado.
Ensaio

José Luís dos Santos Freitas
up200700990@edu.letras.up.pt

Trabalho de investigação no âmbito da disciplina de Estudos Feministas e Estudos Queer, da Especialização em Estudos Comparatistas e Relações Interculturais, do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Junho de 2021

Novas Cartas Portuguesas: um retrato e denúncia da(s) violência(s) como fenómeno globalizado.

O menosprezo pelo papel das mulheres na sociedade, a sua desvalorização familiar, política e artística, fomentada durante inumeráveis séculos pelas sociedades patriarcais, baniu-as quase totalmente do cânone ocidental, onde em geral apenas figuram como meros apêndices dos homens. Iguais parâmetros ditam os modelos civilizacionais da esmagadora maioria das sociedades organizadas do mundo. Ao ignorar as mulheres, eles — os homens e os seus cânones — determinam a sua irrelevância, a sua invisibilidade.


Resumo
Neste ensaio, ideamos fazer uma ligação entre Novas Cartas Portuguesas e o multíplice campo da violência, nos seus mais variados moldes. O caso português, a que as autoras pretenderam dar visibilidade, é por nós utilizado como ponto de partida para mapear e decifrar esta temática, que é extensível a todo o universo humano. Buscamos, assim, um fio de Ariadne que nos conduza pelas ligações entre os diferentes fatores sobre os quais recai tão funesta responsabilidade.
Palavras-chave: Novas Cartas, cânone, género, violência, guerra.
Abstract
In this essay we tried to create a bound between Novas Cartas Portuguesas and the multifaceted field of violence, in its diferent moulds. We took the, then Portuguese reality that the authors intended to focus on, as starting point as well as a bridge to the maping and decoding of this topic, which can be stretched throughout the whole human universe. Thus, we seek to find a leading thread that can guide us among the connections of the diferent elements upon which falls such a dismal burden.
Key-words: New (Portuguese) Letters, canon, gender, violence, war.
As Novas Cartas Portuguesas, escritas em parceria (diriam elas: sororidade) por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa — obra publicada em abril de 1972 e prontamente embargada pela Censura (renomeada Exame Prévio, no início do mês seguinte)[1], então existente no período hegemónico do Estado Novo português (um regime totalitário, nacionalista e patriarcal, sob a presidência de Marcelo Caetano desde 1968, por incapacidade física e psíquica de Salazar), foi uma pedrada no charco do falogocentrismo[2] política, religiosa e socialmente legitimado. Profundamente interligada com essa subjugação milenar de género, a guerra nas colónias, a fome e o desemprego foram também as causas basilares da sua produção. Através dela, as autoras, cuja intenção visava a desconstrução e denuncia da conjuntura nacional, acabaram por, inesperadamente, criar elos de ligação com contextos transnacionais equivalentes. A projeção do livro no estrangeiro — saído clandestinamente do país — gerou movimentos de solidariedade, um pouco por todo o globo.
A obra, no entanto, foi reputada como pornográfica pelo aparelho censório do Estado português, numa tentativa velada e parcialmente infrutífera de abafar as mensagens subliminares, metafóricas ou, por vezes, explícitas, aí veiculadas. O intuito do livro era expor o estado depauperado e caduco da Nação: um país de Marialvas, mergulhado em guerras coloniais, em desigualdades sociais, empobrecido e inculto.
De acordo com o antropólogo Miguel Vale de Almeida, [as] expressões “marialva” e “marialvismo” podem ser vistas como símbolos-chave que nos falam de formas históricas e culturais de construção da desigualdade, alicerçada sobre uma retórica da masculinidade (VALE DE ALMEIDA, 1997; p. 3) ou, por outras palavras, um machismo à portuguesa. A subalternização e violência sobre as mulheres era exercida através de um conjunto de atitudes normalizado de domínio do então denominado sexo forte (os homens) sobre o sexo fraco (as mulheres) – definições estas ainda comuns em alguns grupos sociais, aparentemente minguantes, das sociedades ocidentais. No entanto, atendendo ao aumento generalizado de ideologias nacionalistas, populistas e conservadoras, um pouco por todo o planeta, poder-se-á questionar, a médio prazo, essa tendência decrescente da hegemonia masculina ainda em dominância.
Em Carta de um homem chamado José Maria para António, seu amigo de infância, é descrito o pensamento falocrata, predominante à época da publicação das Novas Cartas e, contudo, ainda presente na atualidade:
[A] tua irmã Joana […] a fazer-se senhora lá porque tem estudos e agora já não lhe sirvo que eu na altura disse à tua mãe minha madrinha “ponha-a é na costura se tem saúdes fracas e nasceu fina demais para o campo”. Isso de estudos não me agrada. Mas ela teimou e a fidalga a D. Mariana toda finuras e falinhas doces a puxá-la lá para casa a pôr-lhe laços e vestidos a dar-lhe livros…a estragá-la estragá-la que nunca mais foi a mesma (BARRENO, HORTA, COSTA {2019}; P. 178).

O advento da obra coincidiu com o auge da segunda vaga do feminismo[3] e com profundas transformações sociais que então iam surgindo em muitos pontos do globo. Os conflitos raciais, os movimentos de libertação de antigas colónias dos países europeus, assim como o derrube ou tentativas de deposição de governos totalitários, maioritariamente na América Latina, na Europa e em África, estavam no seu auge. O surgimento da obra numa época de tão grandes mudanças (re)começou a (re)criar uma consciencialização e uma reflexão sobre os papéis de género e sobre o impacto da violência a eles associada, assim como as suas origens, ramificações e consequências no mundo. Como seria expectável, o cânone ocidental vigente, já de si fechado a estas ou quaisquer outras mulheres, cerrou-se ainda mais a uma obra que poria escandalosa e inequivocamente em causa a sua própria valência.
Considerando que as autoras escreveram Novas Cartas Portuguesas como denúncia, não apenas do “estatuto” da mulher, mas também e muito relevantemente da repressão social e política e da guerra colonial como veículo de violência, desigualdade e morte, focamo-nos um pouco mais pormenorizadamente nestes dois últimos itens (repressão e guerra) numa perspetiva globalizante. Não porque o feminismo seja elidível ou destacável dos fatores citados, nem porque seja desprezável, mas porque ele é um elemento que, nimiamente interligado com os anteriores, torna implícita e visível a sua presença neste trabalho. A análise do fenómeno bélico como causa e efeito do papel dissemelhante dos géneros, assim como da violência que estes sofrem e provocam, é um ónus suportado maioritariamente pelos homens – seus produtores, realizadores e intérpretes.
Pierre Bourdieu defende que é por intermédio da libido dominandi, ou desejo de dominar, […] que os homens (por oposição às mulheres) s[ão] socialmente instituídos e instruídos de maneira a deixarem-se tomar, como crianças, por todos os jogos que lhe são socialmente fixados e cuja forma por excelência é a guerra (BOURDIEU, 1999; p. 64). [O] homem é também uma criança que brinca ao jogo de ser homem (idem, p. 65). Falamos, portanto, de relações infantis de poder. No entanto, não querendo desviar-nos demasiado do escopo do nosso trabalho, ao partir para análises e considerações de cariz psicológico ou mesmo psiquiátrico, cingimo-nos mais aprofundadamente à sociologia e aos estudos sobre o género que lhe estão direta ou indiretamente associados. No entanto, não podemos deixar de referir esta infantilidade freudiana que o referido autor aborda, no que concerne às suas mais graves consequências: a guerra — que aporta consigo morte, destruição, injustiça e sofrimento físico e psíquico; os seus efeitos não se restringem apenas aos intervenientes individuais ou coletivos diretos, mas a todos os outros que, na generalidade, são vítimas inocentes, e comummente ignorantes da causa última do seu sofrimento. Desta categorização não podemos excluir os próprios homens, embora as mulheres e as crianças sejam os sacrificados por excelência. Para aliviar consciências, estas vítimas são eufemisticamente definidas pelas forças beligerantes como “danos colaterais”, e despersonalizadas.
Na sua tese de mestrado, Maria Eduarda Treis e Pâmela Samara Morais abordam uma das consequências mais extremas e gravosas dos conflitos bélicos: a violação como arma de guerra, e assim denominada de facto já no conflito bósnio, em 1992, mas apenas reconhecida de jure pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) para a ex-Jugoslávia no mesmo ano. Este Tribunal, cumulativamente e na mesma data, designou-a crime contra a humanidade. O TPI para o Ruanda, em 1994, considerou-a também um ato de genocídio.
O fato de, por longas décadas, a mulher ter sido considerada uma propriedade, um “bem” a ser possuído por seus pais e posteriormente por seus maridos, ajuda a compreender o porquê de o abuso sexual ser uma prática comum. Ao interpretá-las como posse masculina, essas mulheres transformavam-se em alvos, sendo o estupro muitas vezes um meio para atingir os homens a quem a “propriedade” pertencia (TREIS e MORAIS, 2018; p. 107).
Numa sociedade como a ruandesa, fortemente marcada por um regime étnico e patriarcal, a violação das mulheres constituía um aviltamento para a sociedade na qual elas se inseriam, o que implicava o seu egresso e a perda de identidade perante os seus concidadãos e, por consequência direta, perante si próprias. Tendo a guerra do Ruanda sido fundamentada em conflitos rácicos, as crianças eventualmente nascidas destas violações eram consideradas “geneticamente impuras” e também fortemente marginalizadas.
Autoras de um artigo versando o mesmo tema (a violação em cenário de guerra), as investigadoras Haula Hamad Timeni Freire Pascoal Pereira e Sabrinna Correia Medeiros Cavalcanti, embora fundamentalmente em sintonia com Treis e Morais, apresentam uma perspetiva um pouco diferente:
[…] os estupros estratégicos têm o objetivo de atacar não só a vítima, no caso, a mulher, mas, por intermédio dela, atingir a estrutura social na qual ela está inserida, dissolvendo sua comunidade por intermédio da violência sexual, uma vez que, em tempos de guerra os corpos dos indivíduos tornam-se metaforicamente um só corpo social (PEREIRA e CAVALCANTI, 2015; p. 11).
Temos, deste modo, duas visões que não são antagónicas nem excludentes; pelo contrário, completam-se: considerando que, por um lado, Treis e Morais mencionam que a violação é assumida como um processo de desagregação de um grupo social por via do ataque à “propriedade”, Pereira e Cavalcanti referem a sua importância como um ataque direto à sociedade per se. São duas abordagens convergentes, embora partindo de premissas um pouco distintas. Acrescentamos ainda uma terceira perspetiva que ajuda a compreender melhor os mecanismos de destruição societária que, neste contexto, os atos de abuso sexual contra as mulheres pretendem espoletar: Júnia de Vilhena e Joana Novais defendem que os atos de violação em cenário de guerra visam ferir e destruir mortalmente o inimigo pelo estupro continuado de suas mulheres, incidindo então ao mesmo tempo no registro subjetivo da autoestima e nos dos processos de filiação do inimigo, o que implica uma estratégia de transformação dos corpos das mulheres em campo de batalha (VILHENA e NOVAIS, 2018; p.300). Este registo subjetivo de autoestima é, pois, após um processo de aviltamento, interiorizado e ampliado pelo grupo, que configura, como corpo social, uma perda de identidade e uma subversão dos processos de filiação, retirando aos últimos, perante as vítimas, a sua significação genealógica ancestral. Ao fazê-lo, transforma-os em aberrações decorrentes de atos considerados socialmente contranatura, relegando-os para representações vivas do inimigo, o que realimenta o ódio e mantém sempre presente a afronta, continuando assim a minar a estrutura da comunidade. Os “bastardos” daí resultantes serão muito dificilmente aceites pelo grupo a que as suas progenitoras pertencem, o que representa, não apenas uma atrocidade para com os visados, e que redunda por vezes no seu abandono ou mesmo infanticídio, como — caso estes sobrevivam — poder-lhes-á também potenciar fortemente a reiteração da violência sob esta ou outras formas, numa tentativa distorcida e infrutífera de sublimação.
Em cenários de guerra, as violações e agressões dos ofensores às suas vítimas são legitimadas pela despersonalização ou coisificação daqueles contra quem combatem ou a quem atacam. Para eles, estes inimigos — homens, mulheres ou crianças — não são humanos, não sendo, portanto, passíveis de qualquer espécie de piedade ou sentimentos de remorso, por mais graves ou cruéis que possam ser os atos que lhes sejam infligidos. Sobre este tema, a filósofa Judith Butler afirma:
Podemos pensar na guerra como algo que divide as pessoas em dois grupos: os que são dignos de dó e os que não são. Estes últimos são aqueles que não podem ser chorados porque nunca estiveram vivos, ou seja, nunca foram considerados como tal. Podemos imaginar o mundo como estando dividido entre os primeiros e os segundos, na perspetiva daqueles que travam a guerra para proteger as vidas de uma comunidade e defendê-la contra as vidas de outros – mesmo que isso signifique matar os outros [Tradução livre] (BUTLER, 2010; p. 38)[4].
Ainda num contexto de violência bélica, embora referindo-se mais às vítimas indiretas, a investigadora Susana Martinho de Oliveira, numa tese de mestrado direcionada para o stress de guerra e o caso português, refere que os ex-combatentes de cenários de guerra experienciam inevitavelmente muita dor, medo, zanga, depressão, falta de intimidade emocional e disfunção a nível sexual, deparando-se ainda muitas vezes com situações de abuso de substâncias e violência doméstica (OLIVEIRA, 2008; P. 59). Este tipo de violência, embora seja exercido preeminentemente sobre as suas companheiras, poder-se-á, com muita probabilidade, alargar ao resto do agregado familiar, incidindo principalmente sobre as crianças:
Em alguns casos, as memórias de guerra também podem suscitar no ex-combatente sintomas ambivalentes relativamente aos seus filhos, quando eles se aproximam das idades das crianças que eles mataram ou viram morrer na guerra. A criança vai sentir este distanciamento como rejeição, como sinónimo de não ser amada ou aceite, observando-se muitas vezes um isolamento das próprias crianças (idem, p. 73).
Relativamente aos filhos, tal como acontece noutros meios familiares, mesmo que a criança não seja directamente envolvida na violência, ela sofrerá danos psicológicos por ver a mãe a ser agredida. Por outro lado, a violência doméstica tende a entrar em escalada com o tempo e a criança pode vir a tornar-se num adulto vítima ou agressor (idem, p. 85).
Nesta última citação encontramos pontos em comum com os observados no caso ruandês anteriormente relatado, onde as crianças, por via do trauma sofrido, poder-se-ão tornar, eles próprios, ofensores.
As autoras das Novas Cartas, ao fazerem uma crítica às políticas coloniais do então vigente Estado Novo, propõem-se, ao mesmo tempo, alertar para os episódios recorrentes de violência doméstica provocados por uma patologia traumática — o stress pós-traumático de guerra (cuja existência, à época, ainda era pouco conhecida e diagnosticada) —, assim como para a prevalência e consequências devastadoras deste problema. Monólogo de uma mulher chamada Maria é um texto em registo de oralidade que denuncia esse tipo de brutalidade e os traumas familiares decorrentes:
[…] mas como é que eu podia saber que o meu António havia de vir assim das Áfricas, ele que era uma pessoa, não desfazendo, de tão bom coração e desde que veio das guerras anda transtornado da cabeça e me mete medo grita noite e dia, bate-me até se fartar e eu ficar estendida. […] Foi assim que me começaram a dar estes ataques […] (BARRENO/HORTA/COSTA, 2019; p. 191).
E, no tocante às crianças:
[…] só não dando cabo de mim porque o menino coitadinho, se foi botar agarrado ao meu corpo e ele então de vê-lo tão fraquinho e assustado, teve vergonha e abalou, deixando-me assim sem conhecimento, sozinha com a criança, e voltou um mês depois para me pedir desculpa […] (idem, p. 191).
Embora o stress de guerra seja consequência de políticas bélicas, das quais os visados não terão responsabilidade direta, pois são geralmente forçados a exercer o seu “dever patriótico de matar”, toda a espiral de violência potencialmente subsequente e virada para o seu próprio agregado familiar revela uma pré-existente “formatação” dos géneros e dos seus atributos socialmente instituídos: Foi sina ser infeliz, não vale a pena lutar contra o destino,[…] o homem pode revoltar-se sempre que quer mas a mulher está presa a eles, a um filho e depois? (idem, pp. 191-192). Esta atitude de apatia estoica de uma larga faixa de mulheres, condicionadas pelas sociedades patriarcais das quais fazem parte, e onde, à nascença, lhes é inculcada uma postura de passividade, de ataraxia perante os poderes e hábitos instituídos, terá uma quota-parte significativa no predominante estado da desigualdade de género no mundo. Segundo a visão de Bourdieu, […] torna-se necessário “reconstruir a história do trabalho histórico de deshistorização” ou, se se preferir, a história da (re)criação continuada das estruturas objectivas e subjectivas da dominação masculina que se realizou de modo permanente desde que há homens e mulheres, e através da qual a ordem masculina se viu continuamente reproduzida de época em época (BOURDIEU, 1999; p. 72).
Para o sociólogo, é muito importante investigar a história dos agentes e instituições que concorrem de modo permanente para garantir essas permanências (idem, ibidem). O que poderá ter sido entendido no passado como um processo “natural” de dominância do fisicamente mais forte sobre o mais fraco, ter-se-á tornado, ao longo dos tempos, um processo “artificial” de controlo psicológico por via das instituições socialmente reconhecidas ou impostas (e.g.: Estado, Igreja, Escola, etc.).
Há, porém, outras violências no orbe além da guerra; podemos dar como exemplo a coerção política nos países não democráticos, que é veiculada geralmente pelos seus braços, armados ou não, como as milícias e as forças da ordem — a polícia e o exército —, que limitam ou suprimem as liberdades dos cidadãos. Estas entidades operam, não apenas por intermédio do abuso físico, mas também da brutalidade psicológica. Recorde-se a este propósito o modus operandi da polícia política do Estado Novo (PIDE-DGS), assim como de outras sociedades não democráticas (e.g.: STASI, na antiga Alemanha de Leste; KGB, na ex-União Soviética, ou GESTAPO, a polícia política – e racial – da extinta Alemanha Nazi). Este tipo de violência, no caso português, não era exercido num registo de confronto aberto, de procedimento ostensivo, como no contexto Nacional Socialista, mas inscrito numa atuação geralmente mais dissimulada: um clima de aparente “guerra fria” que possibilitava, ainda que parcialmente, camuflar o jogo de ataques e contra-ataques promovido por ambos os intervenientes – o aparelho repressivo do governo salazarista - por um lado, e uma faixa da população, mais esclarecida e politizada, mas ainda impotente para afrontar eficazmente o sistema - pelo outro.
Neste ponto, podemos também referenciar as situações de racismo, amplificadas pela guerra colonial e pela ação propagandística do Estado Português que, direta ou indiretamente, estimulava estes sentimentos, usando-os como instrumento bélico contra um oponente cuja cor de pele servia de pretexto para incentivar a aversão ou o ódio. Embora num tom quase apologético, encontramos essa referência na obra que nos serve de base, em Carta de um homem chamado José Maria para António, seu amigo de infância: […] às vezes a gente fica tão doido que não se interessa do cheiro ou da cor delas… que somos todos iguais… bem sei... mas faz-me impressão e fico cá a remoer depois de me pôr nelas estes pensamentos… (BARRENO, HORTA, COSTA, 2019; p. 178).
À época da edição do livro, o problema rácico não era, na então denominada metrópole (Portugal), mencionável ou, no mínimo, tão visível como atualmente, o que poderá justificar parcialmente a pouca relevância que o tema tem em todo o percurso da obra. Ademais, a presença de africanos negros em Portugal ainda não era tendenciosamente encarada como um “problema”, não nos permitindo assim fazer uma análise de fundo da questão – razão provável por que este tópico seja apenas aflorado à vol d’oiseau pelas autoras. Contudo, o passado colonial e esclavagista do país contribuiu significativamente para este sentimento de superioridade racial e de exclusão, e que poderá ter sido agravado pelas vagas de imigrantes africanos e lusodescendentes de cor, que demandaram o país, principalmente a partir da década de 60 — cabo-verdianos como mão-de-obra na construção civil e, na década de 70, com os regressados das ex-colónias, assim como luso-descendentes miscigenados e cidadãos negros que se queriam manter portugueses ou que imigraram com o intuito de conquistarem melhores condições de existência[5]. Aqui, e no que concerne à vertente que focamos, os então chamados “retornados” eram vistos, não tanto como uma consequência direta de fuga aos que eram acintosamente denominados “terroristas negros”, mas, segundo uma falsa perspetiva, direcionada para um ressentimento perante quem vem “roubar” postos de trabalho e, como justificativo dessa animosidade, por quem andou a “explorar os pretos”.
Não deixa, no entanto, de ser um problema grave em todo o mundo e fonte de violência, não apenas de cariz racial mas ainda podendo adquirir características de interseccionalidade, pois é por vezes exponenciado em termos de identidade sexual, xenofobia ou outras formas de exclusão.
A situação política, social e de género vivida no país, no período pré-revolucionário, é abordada com particular acutilância no texto O Cárcere, onde se retratam casos de pobreza extrema: Num canto estava um pequeno fogareiro e a marmita amolgada, bens com muito esforço conseguidos (BARRENO, HORTA, COSTA, 2019; p. 169). Surgem também referências à violência doméstica: […] buscando o mínimo pretexto que lhe permitisse passar ao ataque, à brutalidade, e o que foi o seu gesto ou resposta não interessa, talvez lhe tenha chamado efectivamente polícia ou bruto ou polícia bruto ou coisa parecida, mas se não fosse isso o pretexto seria outro […] (idem, p. 170). […] e porque me trata ele assim, a mim, que lhe cozo as batatas, que lhe trato da roupa e que pari os seis filhos que ele me fez? (idem, p. 171). Deixa ainda transparecer, a olhos mais atentos, os casos de repressão política: […] lembrou-se de tudo, sim, porque dissera aquilo, lembrou-se de quando o José fora preso e sovado, sovado na prisão, e como eles tinham protestado então, com alarido e com ódio aos polícias […] o José ainda tinha feito qualquer coisa, rixa, ou propaganda contra a polícia ou assim (idem, p. 171).
O Cárcere apresenta assim, de acordo com a nossa interpretação, uma tripla metáfora:
1 – O retrato de uma enxovia imunda, o reduto possível para aqueles a quem a sociedade negava o direito ao trabalho, à educação, à dignidade humana e a uma cidadania de pleno direito. Para estes, cada dia era uma pena a cumprir, e esse sentimento de aprisionamento e impotência trazia consigo o desleixo, o desespero, a miséria social, a sensação de que nada valia a pena, de que restava somente esperar pela morte redentora e niveladora.
2 – Um ergástulo[6] e referimo-nos aqui aos “trabalhos” das mulheres, cujos parceiros obrigavam a uma subserviência própria de escravos, sofrendo toda a sorte de sevícias injustas e gratuitas. Para elas, e mesmo para os seus filhos, se os tivessem, era um aguardar que o amanhã doesse menos do que o hoje e, quiçá, aspirar ao abandono por parte do companheiro ou o seu passamento fortuito que, mesmo que não desejado, seria pelo menos emancipador.
3 – Uma prisão ou calabouço – para aqueles que, revoltados com as condições sociais, políticas e económicas, se insurgiam contra o statu quo opressor das classes dirigentes e sofriam destas as consequências das suas reivindicações justas mas denegadas, o que geralmente redundava em detenções e torturas físicas e psicológicas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência como o uso intencional da força física ou de domínio, efetivo ou sob a forma de ameaça, autoinfligido ou contra outra pessoa, grupo ou comunidade, que possa resultar ou que tenha fortes probabilidades de resultar em lesões, morte, dano psicológico, desenvolvimento deficiente ou carência [Tradução livre] (KRUG et al.2002. p. 5)[7]. Neste trabalho, embora o suicídio ou o sofrimento autoinfligido sejam também considerados formas de violência e possam ser decorrentes das questões que focamos, apenas os nomeamos, pois divergem ligeiramente do enfoque que pretendemos. Não podemos, no entanto, deixar de mencionar um outro tipo de violência, reconhecido pela OMS e claramente visível em algumas das referências por nós citadas, mas que, talvez por ser demasiado vulgarizada socialmente e geralmente interiorizada desde a infância, pode passar despercebida ou considerada como “normal”. Referimo-nos à violência verbal, à força agressiva e negativizante que as palavras lograrão conter, podendo veicular agressões psicológicas concretas, assim como promessas de agressão física iminente ou efetiva, em qualquer das suas formas (violência de género, doméstica, bélica, política, etc.). Esta será, provavelmente, a forma mais relevante e virulenta de agressividade, e fonte — direta ou indireta — de todos os atentados à pessoa humana que mencionámos ou eventualmente de outros que, embora não fugindo ao tema tratado, seriam demasiado vastos para as limitações de extensão deste trabalho (e. g.: violência económica ou ideológica).
Daniel Welzer-Lang[8], no livro Les Hommes Violents, dá voz a um dos seus entrevistados sobre o tema da violência psicológica:
Quando me falam de violência, a imagem que à partida me surge é a da violência física, ‘tás a ver é a pancada, é a violência física…mas eu tinha também outras formas e talvez esta não fosse a mais forte, a violência física. A violência mais forte é talvez a violência moral, aquela…que…que…tentava mesmo atingir o outro no que ele era, no seu ser, mesmo no mais íntimo, por isso era mesmo mais forte que a violência física [Tradução livre] (WELZER-LANG, 1996. p. 40) [9].
O investigador define este tipo de brutalidade como toda a ação que visa minar a integridade psíquica do outro: a sua autoestima, a sua autoconfiança, a sua identidade como sujeito [Tradução livre] (idem, p. 41)[10]. A violência verbal pode diferir da violência psicológica nos processos de atuação, pois é passível de tomar a forma de insultos, gritos, mudanças de tom de voz, sobreposição ou interrupção contínua dos discursos de quem fala, reparos humilhantes ou pressões sobre o visado para que continue a falar ou interrompa a elocução, ordens desabridas, etc.
No texto O Cárcere, que já abordámos anteriormente, identificamos algumas destas formas: Tens isto que é um nojo, nem sequer lavaste o chão […] despeja isso depressa que não admito porcarias aqui. […] Depressa, ouviste, o que são esses modos, a arrastar os pés, quero respeito […] é isso que pensas, que te atreves a dizer, é isso? (BARRENO, HORTA, COSTA ,2019; p.170).
Em O Pai, podemos também encontrar a exemplificação destes dois processos, não apenas pela reiteração de termos ofensivos, (como perversa), mas também pelo uso de expressões ou afirmações insultuosas ou acusatórias:
Foste a culpada de tudo, bem sabes que foste a culpada de tudo, eu sou homem; sou homem e tu és provocante, perversa. É perversa. Uma mulher sem vergonha, sem pudor. Não te quero ver mais, enojas-me, repugnas-me, envergonhas-me. Tu percebias, sei que percebias, que sabias como me punhas. Eu sou homem minha puta. […] — Grande cabra — chamou-lhe a mãe quando ela se dirigia para a porta da rua, agarrada às paredes para não cair. — Grande cabra. (idem, p. 130).
Conclusão
As Novas Cartas Portuguesas foram pensadas e escritas pelas suas autoras num contexto nacional, como testemunho e manifesto de revolta perante o estado deplorável da nação. Serviram também como grito de alerta dirigido à passividade feminina e de repulsa a uma consciência masculina sexista, podendo assim ser entendidas como uma interpretação e exposição das diversificadas formas de violência existentes, não apenas no país, mas no mundo. Embora alguns críticos possam ter considerado a obra datada, devido ao seu posicionamento espaciotemporal específico, ela pode ser também entendida como um retrato atemporal e disfórico da situação sociopolítica planetária, e nessa perspetiva a abordámos.
Neste breve ensaio, o nosso ponto de partida foi a violência de género como motor e consequência dos episódios bélicos, de onde ramificámos para outras formas correlatas de opressão física e psicológica.
Platão, Tomás de Aquino e Diderot, entre outros, teceram, durante séculos, considerações inconclusivas sobre a antiquíssima questão por todos sobejamente conhecida: Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O Concílio de Florença, por sua vez, discutiu durante anos (1431-1445), o sexo dos anjos sem conseguir chegar a nenhum resultado palpável.
Não pretendendo como eles ceder a longas e estéreis dissertações, apenas abordámos os diferentes fenómenos de abuso, ignorando a sua sempre discutível origem ou categorização. Fizemos uma breve análise da violência num esforço de compreensão dos seus mecanismos, com vista ao seu controlo e eliminação, independentemente das máscaras sob as quais se esconda. Ela é rizomática e espalha-se, transmuta-se em novas formas a que a fértil imaginação humana dá requintes de malvadez; por isso as atrocidades estão em constante evolução, acompanhando o desenvolvimento social e tecnológico do mundo.
Podemos e devemos encontrar soluções e é isso que devemos exigir a nós próprios, individualmente e como comunidade.
Nota Biográfica

O autor deste ensaio, José Luís dos Santos Freitas, nasceu em 1957, em Oliveira de Azeméis, de onde, muito jovem, se mudou para Esmoriz, aí residindo durante cerca de 20 anos; daí transitou para o Porto, onde casou e onde habita há 40 anos. Ingressou em 2007, junto com sua esposa, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo ambos concluído em 2012 e 2011, respetivamente, a licenciatura em Línguas, Literaturas e Culturas. O primeiro no plano disciplinar de Inglês/Espanhol e a companheira no plano de Francês/Espanhol. Tem duas filhas: a mais velha, licenciada em Psicologia, com pós-graduação em Estudos Juvenis, e a segunda a concluir uma Licenciatura em Geologia.
Exerceu funções em diversas unidades ligadas à hotelaria, onde iniciou a sua vida profissional, tendo sido gerente de cantinas, chefe de mesa, sócio-gerente de café-restaurante, chefe de armazém e escanção, entre outras atividades do setor, que abandonou por saturação e desencanto ao fim de 28 anos.
A razão fundamental da sua licenciatura tardia prende-se com uma aspiração velha de três décadas: a possibilidade de, tendo apenas logrado concluir o ensino liceal, prosseguir os estudos que interrompeu por razões pessoais e laborais. Não o fez por necessidade profissional, pois seria já demasiado tarde, mas por uma ânsia de Conhecimento, que nunca o abandonou no decorrer desses anos de interrupção do aprendizado.
Mais tarde, já em 2016 e após uma estadia de um ano em Paris, reiniciou o seu percurso na mesma Faculdade onde, à data desta nota bibliográfica, está a concluir o primeiro ano do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, com Especialização em Estudos Comparativos e Relações Interculturais.
Atualmente exerce a atividade de Porteiro de Condomínio numa unidade da gama média/alta, durante o período noturno — única possibilidade viável para poder continuar a estudar, embora com limitações, pois necessitou de se inscrever como aluno extraordinário, por disciplinas, tendo posteriormente requerido a agregação, como forma incontornável de validar e concluir o Mestrado.
Durante este período, e no âmbito da disciplina de Literatura Comparada – Questões e Perspetivas, em 2018, elaborou um verbete subordinado ao tema Prosadores escrevem sobre a Europa, visando o escritor italiano Claudio Magris, que foi publicado no recurso eletrónico do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, e visível para consulta em https://aeuropafaceaeuropa.ilcml.com/pt/verbete/claudio-magris/.
Leitor compulsivo desde criança (que muito deve e agradece ao pai), interessa-se por quase todas as áreas do Conhecimento, embora possa destacar, entre outros, os estudos sobre Literatura de Viagens — a primeira cátedra do seu Renascimento académico e que profundamente o impressionou — e os Estudos feministas e Estudos Queer – um tema que, para um “pré-idoso”, foi uma surpresa pela sua diversidade e riqueza de sentido, e que desvendou estimulantes e insuspeitados horizontes.
A título não académico, interessa-se sobremaneira por genealogia, que considera um campo de conhecimento que ultrapassa em muito a vertente pessoal e leva a (também) viagens pelo mundo da História, sendo esta última outra das suas paixões de longa data.
Lema de vida? Cito Sócrates, o Filósofo:
Só sei que nada sei.
 
Bibliografia
BARRENO, Maria Isabel/HORTA, Maria Teresa/COSTA, Maria Velho da (2010). Novas Cartas Portuguesas – edição anotada. Alfragide, Publicações Dom Quixote.
BOURDIEU, Pierre (1999). A Dominação Masculina. Oeiras, Celta Editora.
BUTLER, Judith (2010). Frames of War. When is Life Greavable? London and New York, Verso.
Krug, E. D., Dahlberd, L. L., MERCI, J. A., ZWI, A. B., LOZANO, R. {Eds.} (2002). World Report on Violence and Health, Geneva, World Health Organization. In https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf?sequence=1.
Visto em 26/05/2021.
OLIVEIRA, Susana Martinho de (2008). Traumas de guerra: traumatização secundária das famílias dos ex-combatentes da guerra colonial com PTSD. In http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/803/1/16853_Tese_-_Susana_M_Oliveira.pdf. Visto em 06/05/2021.
PEREIRA, Haula Hamad Timeni Freire Pascoal/CAVALCANTI, Sabrinna Correia Medeiros (2008). In http://revistatema.facisa.edu.br/index.php/revistatema/article/view/232. Visto em 07/05/2021.
TREIS, Maria Eduarda Jark/MORAIS, Pâmela Samara Vicente (2018). Estupro Genocida: como a tática de guerra marcou a sociedade ruandesa. In http://seer.ufrgs.br/revistaperspectiva/article/view/87176. Visto em 06/05/2021.
VALE DE ALMEIDA, MIGUEL (1997). Fado, Touros e Saudade como Discursos da Masculinidade, da Hierarquia Social e da Identidade Nacional. In http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2008/06/marialvismo1.pdf. Visto em 29/05/2021.
VILHENA, Júnia de/NOVAIS, Joana de Vilhena {Org.} (2018). O Corpo que nos possui, Corporeidade e suas Conexões. Curitiba-Brasil, Editora Appis. In https://pt.scribd.com/read/405695258/O-Corpo-que-nos-Possui-Corporeidade-e-Suas-Conexoes# . Visto em 11/05/2021.
WELZER-LANG, Daniel (1996). Les Hommes Violents. Paris, INDIGO & Côté-femmes Editions.
[1] A 5 de Maio, o governo de Marcelo Caetano publica o Decreto-Lei nº 150/72, sobre o estatuto da imprensa, fundado na Lei 5/71 da Assembleia Nacional. in http://www.museudaimprensa.pt/galeriavirtualdacensura/cronologia.htm. Este decreto tenta “branquear” a Censura, tal como já tinha sido feito em 1969, com a então PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado, renomeada DGS – Direcção-Geral de Segurança.
[2] Na crítica feminista, o termo denota a dominação masculina, evidente no facto de o falo ser sempre aceite como o único ponto de referência, o único modo de validação da realidade cultural (in E-Dicionário de Termos Literários - https://edtl.fcsh.unl.pt/).
[3] A segunda vaga feminista (circa 1960-1980) começa a encarar o sexo para além da procriação, como fonte de prazer, e debruça-se sobre os problemas familiares, com relevância para o tema da violência doméstica, luta pela igualdade e pelo fim da discriminação.

[4] We might think of war as dividing populations into those who are greavable and those who are not. An ungrievable life is one that cannot be mourned because it has never lived, that is, it has never counted as a life at all. We can see the division of the globe into greavable and ungreavable lives from the perspective of those who wage war in order to defend the lives of certain communities, and to defend them against the lives of others – even if it means taking those latter lives.

[5] Vide CASTRO HENRIQUES, ISABEL. A Presença Africana em Portugal, uma História Secular: Preconceito, Integração, Reconhecimento (Séculos XV-XX). Passim. Visto em
https://www.acm.gov.pt› Presenca_Africana_pt.pdf/f330d2d0-5f61-40be-93f2-d38d9fb35359. Lido em 17/05/2021.
Vide também VEIGA, Sandra Maria (2012). Trabalho de Projecto de Mestrado:
Os Emigrantes cabo-verdianos em Portugal: Identidade construída. Passim. Visto em https://run.unl.pt/bitstream/10362/8104/1/sandra.pdf. Lido em 17/5/2021.
[6] prisão destinada, entre os antigos Romanos, aos condenados a trabalhos forçados. In ihttps://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa.

[7] . [T]he intentional use of physical force or power, threatened or actual, against oneself, another person, or against a group or community, that either results in or has a high likelihood of resulting in injury, death, psychological harm, maldevelopment or deprivation (em inglês,no original)..

[8] Socio-antropólogo, membro do Grupo de Estudos sobre a Divisão Social e Sexual do Trabalho, sediada em Paris, dedica-se ao estudo das construções sociais do género masculino e é professor e investigador da Universidade de Toulouse Le Mirail.

[9] Quand on me parle des violences, l’image qu’on a tout de suite c’est la violence physique, tu vois c’est les coups, c’est la violence physique…mais je prennais bien d’autre formes aussi et c’était peut-être pas la plus forte, je dirais la violence physique. La violence la plus fort, c’est peut-être la violence morale, celle…qui…qui…cherchait vraiment à atteindre l’autre dans ce qu’il était, dans son être, vraiment au plus profond, donc ça a sûrement était plus fort même que la violence physique (em francês, no original).

[10] […] comme toute action visant à porte atteinte a l’intégrité psychique de l’autre: son estime de soi, sa confiance en soi, son identité de sujet (em francês, no original).



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Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Especialização em Estudos Comparativos e Relações Interculturais

José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
José Luís dos Santos Freitas
M
2022

José Luís dos Santos Freitas

José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
2022

José Luís dos Santos Freitas
José Maria Ferreira de Castro: ética e estética na sua escrita novel humanista
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pela Professora Doutora Maria de Fátima da Costa Outeirinho
Membros do Júri
Professor Doutor José Domingos de Almeida
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professor Doutor Maria Luísa Malato
Faculdade de Letras- Universidade do Porto
Professor Doutor Maria de Fátima Outeirinho
Faculdade (nome da faculdade) - Universidade (nome da universidade)
Classificação obtida: 16,2 Valores

Dedicatória
Ao meu pai, cuja bibliofagia insaciável moldou o meu caráter de leitor felizmente compulsivo.
À minha mulher Diva e minhas filhas Sofia e Cristina, pelo “mutualismo facultativo” que nos une e enriquece culturalmente.

Sumário
Declaração de honra------------------------------------------------------- 3
Agradecimentos----------------------------------------------------------- 4
Resumo------------------------------------------------------------------- 5
Abstract-------------------------------------------------------------------6
Introdução-----------------------------------------------------------------8
1. Das descobertas às opções -----------------------------------------------13
1.1. Génese de uma consciência----------------------------------------------13
1.2.Sensibilizaçãosocial------------------------------------------------------15
2. Apre(e)nder o Mundo-----------------------------------------------------25
2.1. Pobreza e sofrimento----------------------------------------------------25
2.2. Revolta ----------------------------------------------------------------28
2.3. Compreensão da humanidade.------------------------------------------30
2.4. Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu-------------------32
3. Castro e a Verdade: ficção e censura---------------------------------------43
3.1. A questão da ficcionalidade.----------------------------------------------44
3.2.Postura de um novel humanista-------------------------------------------47
Considerações finais -------------------------------------------------------68
Referências bibliográficas---------------------------------------------------74


Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 22 de setembro de 2022

José Luís dos Santos Freitas

Agradecimentos
À minha família, pelo apoio que me deram e pelo orgulho que demonstraram pela prossecussão dos meus estudos, constantemente interrompidos pelas vicissitudes da vida. As suas manifestações de encorajamento foram importantes para vencer os obstáculos que se me foram deparando.
À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima da Costa Outeirinho, pelo Saber que partilhou comigo, pelo apoio demonstrado e — muito importante – pela sua jovialidade: um verdadeiro lenitivo que ajuda a, por vezes, restabelecer a auto-confiança perdida. A sua paciência, estímulo e boa-vontade ajudaram-me a lutar contra a maré, apesar de a corrente ser por vezes forte. Nunca foi uma tábua de salvação; em vez disso, ensinou-me a nadar.
A tod@s @s professor@s que me foram acompanhando no calcorreio pelos caminhos do Conhecimento, e com quem aprendi incontáveis e insuspeitadas singularidades. Bem hajam, também.


Resumo
Abordar José Maria Ferreira de Castro é, até certo ponto, repetir o que já foi questionado pelos investigadores que nos antecederam na árdua tarefa de decifração do autor e da sua obra. No entanto, a nossa investigação, se (assim o esperamos) bem conduzida, acrescentará algumas – embora ténues - centelhas de luz, que poderão guiar os biblionautas castrianos vindouros na demanda da razão para um projeto estético do escritor. Um objetivo desejável, mas de conclusão lenta e imprevisível.
Não nos podemos arrogar o privilégio do solevar definitivo do diáfano véu que cinge essa razão, a força e a mensagem de um daqueles que fazem parte do restrito grupo de ínclitos escritores portugueses que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Não podemos emular o Grande Arquiteto, arrogando-nos um Fiat Lux que afaste as trevas e dissipe quaisquer dúvidas sobre esta questão fulcral que abordamos. Poderemos, porventura, contribuir modestamente para a compreensão do trabalho ímpar e multifacetado de Ferreira de Castro, como ímpares e multifacetados serão os trabalhos de todos os grandes vultos literários da Humanidade.
A nossa focagem no autor de A Selva visa analisar a génese e o percurso ético do escritor, rendido à perspetiva de um novel humanismo universalista, ou seja, afastando a visão renascentista do homem como centro de um universo de etnia exclusivamente branca e masculina, onde os negros, os índios, as mulheres, as crianças e os escravos não tinham expressão. Em suma, um humanismo não democrático e excludente.
Seguindo os seus passos pelo planeta e pela literatura, tentaremos dissecar as causas e efeitos das suas ideias e credos, avaliando a sua — arriscamo-nos a dizer — pegada civilizacional e ética, a sua humanidade e os seus sonhos edénicos. Aventurar-nos-emos, em suma, a explicar quem foi Ferreira de Castro, qual a sua utopia e qual o seu legado às letras e ao Mundo.
Palavras-chave: Ferreira de Castro, ética, humanismo, estética.


Abstract
To address José Maria Ferreira de Castro seems to repeat what has been questioned by preceding researchers in the hard task of deciphering the author and his work. Still, our investigation, if successfully conducted (so we hope), may add some – certainly tenuous – sparks of light that may guide the future Castrian Biblionauts on the quest for the reason of the writer’s aesthetic project. Although rather desirable, it may have a slow and unpredictable conclusion.
We cannot brag from the privilege of lifting the light veil that covers that reason, the force, and the message of one of those men that are included among the strict group of illustrious Portuguese writers that due to great deeds have been freed from death. We cannot emulate the Great Architect by arrogating a Fiat Lux that dissipates the darkness and solve all the doubts about this central question. Nevertheless, it might be possible that we modestly contribute to the understanding of his unique and multifaced work – once unique and multifaceted are the works of all the great writers of Humankind.
When addressing to the author of The Jungle we try to analyze his genesis and ethic course rendered to the perspective of a universalist humanism that moves away the Renaissance look of Man as the center of an exclusively white and male universe where the Black, the Indian, the women, the children and the slaves had no expression whatsoever. In short, a nondemocratic exclusionary humanism.
Following the writer’s steps through planet and literature we shall try to dissect the causes and consequences of his ideas and beliefs, assessing his — we dare say — ethical and civilizational footprint, his humanity and his Edenic dreams. In the end, we shall try to explain who Ferreira de Castro was and which were his Utopia and his legacy to Letters and to the World.
Keywords: Ferreira de Castro, ethics, humanism, aesthetics.



O homem não é um animal solitário, e enquanto perdura a vida em sociedade, a realização de si mesmo não pode ser o supremo princípio ético.

Bertrand Russell



Introdução
O nosso escopo ao elaborar esta dissertação é o de procurar interpretar o modo como Ferreira de Castro, no seu percurso existencial, observa, interioriza e expõe a visão do seu mundo contemporâneo e dos lugares que visitou através do planeta, como ser humano e como europeu, assim como avaliar em que medida as questões intemporais como as injustiças sociais, a insensibilidade e a desumanidade de alguns sobre uma maioria ou minoria, consoante cada situação particular[1], se refletem nos seus testemunhos de viagens — Pequenos Mundos e Velhas Civilizações e A Volta ao Mundo, assim como nos romances Emigrantes, A Selva, Terra Fria, A Lã e a Neve e Eternidade
Não despiciendo, o restante conjunto da sua produção literária reflete também essas preocupações éticas, embora tenhamos escolhido prioritariamente as obras acima discriminadas por elas constituírem o grupo onde as questões focadas têm mais visibilidade. Hoje, como então, testemunhamos a pobreza, a miséria, a exclusão, a discriminação e mesmo a escravatura. Estas máculas sociais têm permanecido quase imutáveis e continuam a fustigar inexorável e generalizadamente o globo.
Ferreira de Castro não é um escritor renascentista; os seus ideais não se regem apenas pelo Humanismo medievo. Para ele, o sentido de Humanidade abarca os conceitos coetâneos a Thomas More e Petrarca, embora os exceda largamente, pois amplia a sua esfera a todos aqueles a quem esse humanismo primário excluiu: as minorias (étnicas ou outras), as mulheres, os escravos, e mesmo as crianças. O humanismo do autor é universalista, no mais cabal sentido do termo[2]. Garcia e Silva[3] resume assim as suas qualidades:
Ferreira de Castro manteve ao longo da vida grande coerência em matérias éticas e ideológicas fundamentais. Anarquista, antimilitarista, antirracista, anticlerical, antipatrioteirista, anticapitalista; anticolonialista, anti pena de morte, anti eleições[4]; pró-eutanásia, pró-amor livre”. (SILVA apud CARVALHO, 2017: 66-67)
Assim, procuraremos compreender a ética do escritor e determinar a sua postura estética através do seu percurso vital, ponderando que contribuição poderá ter tido o nascimento e infância breve no seio de uma família humilde, inserido num panorama social de quase analfabetismo, de uma típica aldeia beirã nos fins do século XIX. Mais importante ainda, em que grau a sua emigração para o Brasil, mais concretamente, para um local de morte iminente, de desenraizamento provável e de penúria garantida, denominado Seringal Paraíso, no Amazonas — local onde estabeleceria contacto com outro tipo alienígena de miséria e de exploração social —, contribuiu para a formação da sua personalidade humanista e para o seu apurado sentido de justiça.
Terá sido talvez esta abordagem primeva com um mundo que não o seu, o que incentivou o jovem Ferreira de Castro à produção livresca e, posteriormente, ao jornalismo. Assim, foi na sede do distrito, em Belém do Pará, local a que se dirigiu após abandonar a selva, desiludido e padecente de enorme incompletude existencial, que tomou o primeiro contacto com o mundo mediático das letras.
Farto da exploração e das injustiças que presenciou durante os quatro anos da sua permanência no seringal, Castro, prenhe de sonhos e parco de dinheiro, tentou progredir nesta cidade através do seu anseio de menino: a atividade jornalística – após desmistificado, na selva amazónica, o logro de um Eldorado impossível. Em entrevista a Álvaro Salema, amigo e um dos seus principais biógrafos, afirma: “Logo nesses dois primeiros anos da minha estadia ali, eu havia modificado muito. A ideia que levara ao Brasil o meu final da infância, que era a de enriquecer, desaparecera completamente. Eu perdera o espírito de emigrante e só desejava ser escritor.“ (CASTRO, 2021: min. 12.04)
Em “Pequena história de A Selva”, José Maria, na sua fuga de há muito desejada, para longe do Paraíso a bordo do navio Sapucaia, que o levaria para um futuro incerto, mas conscientemente decidido, relembra: “Eu tinha, então, dezasseis anos. E dos quatro que passara ali, não houve um só dia em que não desejasse evadir-me para a cidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de qualquer forma, mas fugir!” (CASTRO, 1970: 18)
Foi uma decisão arriscada, mas de que o autor nunca quis abdicar, mesmo atendendo a que poderia tornar-se um fracasso— o que, felizmente, não sucedeu, como está claramente demonstrado no término da citação autobiográfica que reproduzimos: “A luz do farol ia diminuindo ao longe, um ponto único e vermelho na noite da floresta — um ponto final da minha vida ali.” (Ibidem)
Inicialmente, este jovem, recém-chegado e desconhecido, e em complemento de outros díspares mesteres, empregou as suas aptidões literárias como meio de sobrevivência, ao publicar artigos em jornais e iniciar-se como escritor, produzindo obras literárias em formato folhetinesco, que ele próprio chegou a distribuir porta a porta. Sem embargo, a sua ainda incipiente produção literária denotava já uma preocupação social focada nos pobres, nos oprimidos, naqueles verdadeiros vencidos da vida, que em nada se assemelhavam àqueles que, de apodo homónimo, constituíram os ilustres escritores da Geração de 70, do século que acabara de findar. Para esses, contavam os ideais; para os primeiros, a sobrevivência.
Feita a introdução do escritor, origem criadora do objeto do nosso estudo, e de onde partimos para a análise da sua ética pessoal e da razão estética da sua obra, começamos por expor os pontos que julgamos pertinentes para a compreensão do raciocínio que preside às conclusões que obtivemos.
Deste modo, no primeiro capítulo, exploramos a génese do seu pensamento humanista, fazendo uma breve resenha da sua infância - em Portugal e no Brasil - e de como esta influenciou a sua visão político-social futura. Analisamos a evolução destas caraterísticas a partir da sua estadia e aprendizagem em Belém do Pará, agora numa perspetiva mais maturada, onde veremos o jovem Ferreira de Castro entregue à sua sorte, ao seu sonho e aos estímulos que constituíram a base do seu pensamento humanista.
Visitamos também a sua inscrição no quadro emigracional da época, deparando com os obstáculos que o escritor teve de vencer perante um cenário de insucesso quase por certo garantido. Para finalizar o capítulo, apontamos as referências anarco-libertárias que canalizaram com êxito o seu percurso ético e a sua inscrição no movimento do Realismo Social, de que falaremos posteriormente.
O segundo capítulo incide sobre a forma como Ferreira de Castro interioriza a sua perceção do Mundo, os seus sentimentos perante os males e fragilidades da Humanidade, a sua visão da miséria, das suas causas, dos dramas que, incessantemente, assolam os mais desfavorecidos e cuja raíz vai encontrar – não na Natureza e suas calamidades, mas no seio dos seus pares. Apontamos ainda para a convicção de Ferreira de Castro na grande responsabilidade dos países dominantes do Ocidente — com particular ênfase, da Europa — pelas atitudes exploradoras e preconceituosas que se abatiam e abatem sobre os desfavorecidos de todo o Mundo.
É contra esse comportamento antinatural que o autor manifesta o seu repúdio, a sua revolta; mas, “(...) homem generoso e de profundos afectos, uma pomba sem fel, como lhe chamou carinhosamente Vitorino Nemésio, reconhecendo num comovido tributo o seu pecado de não lhe ter dado em vida a atenção que merecia” (SAMUEL, 2017: 30-31), Ferreira de Castro vê a Humanidade, no seu conjunto, como uma criança que, inconsciente da sua maldade, a exerce, não apenas entre seus semelhantes, mas alargando-a aos seres que lhe são tantas vezes vistos como evolucionalmente inferiores; no geral, a toda a Natureza. Reabordamos, deste modo, a ética castriana, já não como resultado de influências políticas específicas, mas como produto acabado das suas vivências e convicções humanísticas.
Referimos a sua extrema afeição ao reino vegetal, particularmente às árvores, das quais guarda sensações intensas, que cambiam do respeito temeroso ao êxtase quase místico, que espelha nas suas obras e acompanham-no até ao fim da sua passagem terrena.
Apontamos também o modo como o escritor intui o planeta e o transporta para a literatura e, depois, através dela, o devolve a si próprio, explicado, transformado, transmutado numa utopia improvável feita, não apenas de humanidade, mas de um amor incondicional por todos os seres humanos, que o autor acreditava ser possível, embora certamente não no seu tempo, mas num futuro indeterminado.
No terceiro capítulo tentamos demonstrar o papel que a construção ficcional escolhida por Ferreira de Castro tem na narrativa de viagens — que neste ponto tratamos com mais acuidade —, assim como considerar a sua eficácia como processo de transmissão dos valores éticos com que o autor pretende sensibilizar os leitores. Referimos também quais as bases dessa mesma ética, as fontes e influências recebidas pelo escritor, aludindo ainda à polémica em torno da sua pertença ou exclusão do movimento neorrealista, não nos esquecendo de mencionar as dificuldades experienciadas pelo romancista na sua produção literária, provocadas pela coação constante da Censura estatal.
Fixamo-nos assim no escritor e na sua obra. Tentamos expor o que consideramos os pontos mais importantes e já definitivamente consolidados, não apenas do seu sentido ético e de justiça, como também os objetivos estéticos que o nortearam e ao seu legado escrito, no decorrer de toda a sua existência. É com esse objetivo que incidimos, neste capítulo, nas influências basilares do seu Novel Humanismo[5].


1 -Das descobertas às opções Sem querermos entrar em demasia em abordagens biográficas, talvez ganhemos em lembrar as bases político-sociais que presidem à formação e consolidação da ética de Ferreira de Castro, e é o próprio escritor que nos aponta alguns caminhos.

1.1 - Génese de uma consciência Eu era uma criança muito tímida, muito melancólica, já com fervores românticos. Os demais garotos não me compreendiam, a minha família também não. Sofri bastante com isso. Eu mesmo não compreendia a mim próprio e lamentava não ter a alegria e o à-vontade dos outros. Vivia permanentemente com uma sensação de inferioridade. Foi com essas características que eu desembarquei na selva amazónica, ainda não tinha 13 anos. A minha adaptação àquele meio, tão diferente do da terra nativa, constituiu um tormento quotidiano, e nunca mais me adaptei completamente. (CASTRO, 2021: min. 6.42)

Já com uma experiência na elaboração de pequenos textos, que redigia, muito novo, de motu proprio ou a pedido, no seu rincão natal, e em defesa da sua (sobre)vivência infante num ambiente estranho e hostil, longe de tudo e de todos os que lhe eram familiares e queridos, José Maria apoiava-se no único bordão a que se podia permitir, durante os parcos momentos de ócio — a escrita. Numa gravação datada de fins da década de 60 do século XX, o autor narra: “Mas, poucos meses depois de chegar ali, comecei a escrever, a escrever sobre os meus estados de alma, os meus desesperos, os meus sonhos.” (CASTRO, 2021: min. 7.39)

Quanto aos motivos que espoletaram a sua atividade literária e jornalística, pouco haverá mais a dizer sem repetir as palavras do escritor, citadas acima. As características com que se reveste nestas poucas palavras, encontramo-las facilmente quando percorremos a sua vida e as suas obras, mesmo que com visão pouco atenta. Ferreira de Castro escrevia, não pela fama ou fortuna, mas por vocação; a esta, o seu talento jornalístico foi, ao longo da existência, elevando o sentido de justiça, em paridade com um humanitarismo crescente. O seu percurso mundano foi sempre pautado por uma recusa das honrarias que lhe foram sendo oferecidas, não somente na sua pátria, mas também por outros países e organizações não nacionais.
Convém lembrar que, embora mais tarde se destaque como escritor de realismo social[6], surgem traços românticos em algumas das suas produções literárias mais primitivas, que o autor posteriormente repudiou[7], e notam-se ainda vestígios nas descrições paisagísticas e humanas com que emoldura a componente mais importante de toda a sua produção literária – A Selva – e por seu intermédio, a Humanidade, com os seus problemas, venturas, misérias e virtudes. O naturalismo também está aí presente[8], com todo um rol de mazelas humanas; no entanto, o realismo social torna-se relevante e constituirá, a partir desta obra, o epicentro da sua arte.

Em A Lã e a Neve, considerada por muitos dos seus críticos como o mais representativo e mais bem-sucedido romance de realismo social do autor, a sua postura ética, já plenamente desenvolvida, aponta para as consequências nefastas de um sistema onde as elites industriais sobreviviam comodamente à custa de uma oferta de trabalho incerto e mal remunerado. No “Pórtico” da obra, Ferreira de Castro descreve as vicissitudes da força operária dos lanifícios da Covilhã que se sujeitava a condições precaríssimas e desumanas e que, não raras vezes, produziam desfechos lamentáveis:

A indústria sofria (...) bastantes oscilações. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matéria ou pouco consumo, diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à lã haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria mais descarnada ainda do que o normal. Com seu fabrico reduzido, a Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas para o meretrício de Lisboa. (CASTRO, 1949a: 18)

1.2. Sensibilização social
Nota-se em Ferreira de Castro, desde o momento em que o escritor abandonou o seringal, onde poucas probabilidades de desenvolvimento pessoal lhe seriam viáveis, o nascimento de uma consciência social até então em latência, e uma vontade forte em instruir-se com o fito de desenvolver e pôr em prática todos esses sentimentos de equidade e justiça que desabrochavam no seu ainda jovem espírito:

[A Selva é] [a]cima de tudo uma grande obra de arte, o romance é também o testemunho da vivência do autor e veicula, como seria de esperar, a sua mundividência, a perspectiva pessoal com que o escritor encarava a vida e os problemas que se levant[av]am[9] ao ser humano.
 De que forma poderemos enquadrar essa mundividência? Claramente através de um conjunto de ideias e sensibilidades que dotaram a totalidade da obra castriana de uma mensagem coerente e consistente da emancipação do Homem. Não se trata de uma simples amálgama de sentimentos piedosos, vulgo “humanistas”; está para além disso, e tem uma designação bem definida na história das ideias políticas e sociais: chama-se anarquismo, e Ferreira de Castro foi um dos expoentes literários do século XX, em Portugal, dessa forma mais livre de encarar o mundo e a vida. (ALVES, 2007a: 87-88)


O narrador omnisciente d’A Selva alterna com um narrador personagem, e constitui, no fundo, um romance autobiográfico. Esta alternância de realidade com ficção permite a Ferreira de Castro um distanciamento crítico que facilita o processo narrativo, sem, contudo, se afastar demasiado da realidade que o escritor experienciou. A chegada de Alberto, o seu alter-ego, ao Paraíso, rememora o desembarque de José Maria no seringal:

   A chegada dos “brabos”, os novos legionários que o Ceará e o Maranhão enviavam à selva, provocava sempre risos e chocarrices daqueles que já se tinham amestrado na vida da terra insubmissa e de costumes singulares. E se o recém-vindo se melindrava, humilhado pela recepção imprevista, os algozes folgazões não o largavam mais, deleitando-se em persegui-lo com todas as facécias que podiam inventar contra a sua inexperiência. Enervava-os, inconscientemente, que alguém acreditasse ainda naquilo de que eles já descriam; e os remoques só terminavam depois do “brabo” se ter familiarizado com os segredos da vida local e resignado ao extermínio das suas próprias ilusões. (CASTRO, 1970:  95)


Circunstâncias similares a estas terão constituído o seu primeiro choque civilizacional, assim como uma das primeiras constatações desse fosso social entre os seres humanos que tão intensamente marcaram o escritor ao longo da sua vida e delinearam o percurso que a partir daí sempre se esforçou por percorrer.

Poucos dias após a publicação de A Selva, morre Diana de Liz; e Castro, em “Pequena história de A Selva” [10], confessa aos seus leitores a dor da partida, aliada à dor da sua passagem pelo sertão brasileiro:

Dir-se-ia que A Selva, drama dos homens perante a injustiça doutros homens e as violências da natureza, estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para o seu próprio autor, uma pequena história, uma pequena parcela da grande dor humana, dessa dor de que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão. (CASTRO, 1970, 28)

A investigadora Ana Cristina Carvalho afirma que a emigração de Ferreira de Castro, inicialmente instigada pelo anseio de melhores condições de vida e subsistência, transmutou-se, por força das circunstâncias, não num progresso financeiro, mas num enriquecimento espiritual que marcaria o futuro do escritor:

[A] emigração para o Brasil, escape à pobreza mais comum na época, terá necessariamente influenciado a decisão de José Maria; porém, e não obstante os parcos recursos da família, em declarações e memórias futuras o escritor apontaria outros motores da sua emigração. E neles valoriza um diferente conceito da “fortuna”, decorrente dessa aventura: as vivências que fundaram a sua consciência humanista. (CARVALHO, 2017: 35)
Convém realçar o extrato de um artigo da autoria do investigador Eugénio dos Santos[11], para que possamos compreender melhor o conjunto de circunstâncias adversas que acompanharam o futuro escritor na sua estreia emigratória e que, por razões óbvias, dificultaram extraordinariamente o início do seu percurso literário. Foi muito provavelmente a sua força de vontade, aliada ao sonho de se tornar jornalista, que o acompanharam desde Portugal, o que lhe gerou o estímulo necessário para se libertar das grilhetas que a sociedade lhe impusera:

Sabe-se bem que em certas regiões do país, de tradição emigratória mais forte, alguns jovens eram “preparados” para partir e poderem ter acesso rápido no lugar de acolhimento. Cuidadosamente alfabetizados, senhores do ofício de caixeiro, aprendido nas casas comerciais das grandes cidades, antigos seminaristas, padres inconformados, jovens de famílias com posses, mas a quem eram impostos casamentos contra a vontade, descontentes com partilhas desiguais, ou rapazes insubmissos ao poder autoritário do pai, alguns com consideráveis meios de riqueza, todos estes tipos de pessoas estavam em condições psicológicas de partir.(...) Há que distinguir, contudo, dois tipos de emigrantes para o Brasil ao longo do século passado e já nos inícios deste: aqueles de que acabamos de falar e que se perfilham para entrarem no comércio, nos serviços, na complexa teia da vida urbana e os outros, que o jovem país prefere acolher, para irem trabalhar nos campos, no interior, como substitutos da antiga mão-de-obra escrava. No café, na borracha, no cacau ou no tabaco o que importa que estes demonstrem é força braçal e resistência às agruras do clima. Por isso, aí não importa ser alfabetizado. Pelo contrário, convém não o ser. Desse modo, se evita a cidade, o desejo de ir à procura de novidades.[12] (SANTOS, 2000: 23)

Ora, Ferreira de Castro era minimamente alfabetizado; chegado ao Brasil, lia tudo a que pudesse ter acesso e, volvidos apenas dois anos, almejava sair do seringal para Belém do Pará, à procura — não de novidades, mas de algo bem específico, bem calculado: a possibilidade de, não só tentar exercer o tão almejado jornalismo, como ter acesso às fontes de informação e conhecimento que lhe permitiriam exercer essa profissão de acordo com a ética anarquista que, ainda embrionária, se ia fortalecendo. Teve assim início a sua penosa, mas triunfadora saga.
Deste modo, mais além do Utilitarismo do filósofo e feminista John Stuart Mill que advogava a soberania individual sobre corpo e mente, e de Pierre-Joseph Proudhon, também filósofo, que defendia uma sociedade sem autoridade, Ferreira de Castro acabou adotando como norma de conduta e postura ética, perante si próprio e o Mundo, o Anarquismo Libertário do revolucionário Bakunine, que se encontra muito próximo do pensamento do anarquista William Godwin, no qual figura, essencialmente, a crença de que só o conhecimento poderá ser o veículo de libertação da Humanidade:

 Como outros filósofos libertários que vieram depois de­le, Godwin via a sociedade como um fenômeno que se desenvolvia na­turalmente, capaz de funcionar independente de um governo, mas não compartilhava da fé que outros anarquistas depositavam nos ins­tintos espontâneos da massa inculta. Nesse sentido, permanecia um homem do Iluminismo, acreditando que a educação era a verdadeira chave da liberdade e temendo que, sem ela, as paixões incon­troláveis do homem freqüentemente não ficariam satisfeitas em obter a igual­dade, mas os levariam a desejar o poder. (WOODCOCK, 2002: 69)


Deste difere, no entanto, na sua convicção de que a humanidade necessita apenas de estímulo e compreensão para poder, eficazmente, gerir a sua conduta e criar o seu próprio destino. Em Eternidade, Juvenal, um dos avatares da extensa produção romanesca do escritor, acredita que para o ser humano apenas é necessário consciencialização e senso comum para que ele se transforme num pilar da sociedade, compartilhando com todos os outros os direitos e deveres que lhes são naturalmente inerentes: “O rancho inteiro, desde que promovera a homem responsável cada escravo da enxada, criara amor-próprio e portava-se a contento.” (CASTRO, 1948: 268)
Juvenal, engenheiro silvicultor, responsável pela arborização das serras na ilha da Madeira, depara, ao tomar posse, com um sistema de trabalho exploratório e ditatorial; após ter despedido um capataz desumano, acede, perante os trabalhadores rurais, em nomear outro do agrado destes. A citação que reproduzimos, em complemento da anterior, demonstra o sucesso da sua atitude, antes duramente criticada pelos membros da sociedade industrial a que estava vinculado, que defendiam que só à força de imposições e castigos – que incluíam os despedimentos – seria possível
fazer trabalhar eficazmente os jornaleiros, que viviam e eram pagos miseravelmente. Vieira, o novo capataz, faz o ponto da situação:

— Há alguma novidade? — perguntou-lhe Juvenal.
 O capataz respondeu negativamente. Tudo corria bem — acrescentou. Os homens iam dando boa conta de si. Com mais gana só em fazenda própria se trabalharia na Madeira. Ainda na véspera, como um madraceasse, os camaradas, por expontânea decisão, tinham-no afastado do serviço, durante uma semana, para ver se nele crescia a vergonha. Com pessoal assim, tão agradecido ao senhor engenheiro, até dava gosto trabalhar. (CASTRO, 1948: 291)


Na verdade, um dos grandes mentores libertários de Castro foi Piotr Kropotkine; Ricardo Alves afirma que a influência deste ideólogo, juntamente com as de Zola e Raul Brandão, é já visível no Mas…, — uma das obras embrionárias do escritor. (ALVES, 2002: 69-70) Este investigador refere ainda que a viúva de Castro, Elena Muriel Ferreira de Castro[13], o informou de que, ”quando o conheceu, em 1936, a obra e a personalidade do doutrinário russo exerciam nele um grande fascínio. Interesse que já vinha de tempos mais remotos, numa clara referência ao Mas…“ (ALVES, 2002: 126)
Ferreira de Castro foi um homem sensível ao sofrimento alheio; tentou minimizá-lo sempre que possível e indignava-se com a sua existência, principalmente quando provocada por outrem. As suas críticas eram duras, porém de uma contundência isenta de agressividade. À medida que o escritor foi evoluindo, o seu intelecto foi divisando as razões subjacentes ao intrincado entrelaçamento entre culpa e sofrimento, como se encarnasse simultaneamente o papel de acusador e o de advogado do diabo.
Jorge Amado dá-nos também a sua visão de como o escritor influenciou a humanidade:

Com a arma da literatura ajudou a transformar o mundo. Foi verdadeiro escritor da nossa época, sendo, como queria Gorki, ao mesmo tempo coveiro e parteiro, coveiro de um mundo caduco, de um tempo podre, parteiro de um mundo novo, de um tempo alegre e livre. O menino saído do fundo da floresta cumpriu a sua missão grandiosa[14].  (AMADO, 1966: 172)

É extenso o rol dos intelectuais seus contemporâneos ou posteriores que tecem louvores ao autor consagrado. O seu trabalho como escritor, a sua humanidade e humildade, assim como o seu mecenato e o igualitarismo isento de qualquer tipo de discriminação, ditaram o grande número de homenagens que recebeu e continua a receber na atualidade. Assim o descreve Fernando Aguiar-Branco[15]:

                   Ferreira de Castro foi um humanista. Nos seus livros pulsa, com vigor, a tensão circunstancial e o drama das circunstâncias adversas. N’A Selva, um livro que ressalta da sua autobiografia, bem como em Terra Fria ou em A Lã e a Neve, a problemática do comportamento humano, face a situações limite ou inesperadas do quotidiano, está ali presente. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 15)


António dos Santos Pereira[16] faz o retrato de um homem preocupado com o bem-estar social e em constante luta contra as situações de desigualdade e desfavorecimento dos seres humanos, independentemente do seu género, etnia ou idade: “Vê-lo-emos atento a denunciar a falta de higiene, de habitação digna, de educação, a mendicância, o abandono infantil, a prostituição em expressões bem realistas desde o Funchal às serras do Barroso e à Covilhã, no sentido militante de denúncia para a mudança.”[17] (PEREIRA, 2017: 108)
Um dos textos mais exemplificativos deste esforço de denúncia, encontramo-lo no capítulo inicial de Os Fragmentos : “Historial da velha mina”. É uma memória jornalística datada, segundo o autor, de 1928 ou 1929. Ferreira de Castro, então colaborador d’O Século, acreditava que a publicação de uma reportagem que expunha as condições miseráveis dos mineiros das minas de S. Domingos, em Mértola, apelaria para o sentido de justiça e piedade do recém formado Estado Novo, uma vez que “[h]avia ainda alguma tolerância, embora cada vez mais rara e encolhida.”(CASTRO, 1974: 17) Vai disfarçado de caixeiro-viajante, a pedido dos mineiros, para não levantar suspeitas. Nas instalações da mina depara, entre outras situações pouco ou nada edificantes, com as habitações exíguas e miseráveis dos trabalhadores – meros cubículos de uma única divisão, sem janelas, onde morava uma família inteira:

O quarto servia de cozinha, de sala e dormitório; e à noite, nessa promiscuidade absoluta de corpos e de frangalhos, os pais, se eram respeitadores, apagavam a luz ou voltavam as costas, quando as filhas já crescidas se despiam.
                 Todas as imposições da vida, as sua intimidades, os seus odores, as suas emergências, se desenrolavam entre estas quatro paredes. Aqui se procedia à sementeira de crianças, aqui elas nasciam, aqui a maioria delas falecia, por carência de higiene e de alimentação adequada aos seus corpitos tenros e indefesos. As sobreviventes gatinhavam no soalho encardido, sujas, babadas, entre farrapos avulsos, colchões estendidos no chão, cobertores amarfanhados sobre eles; e nos seus arrastares iam tombando as panelas sob a chaminé existente ao fundo ou fazendo tremer a pequena mesa onde a mãe preparava os alimentos para o lume e mais tarde a família os comeria. Algumas conseguiam emergir de toda essa mondongaria até o rebordo da cama dos pais, onde assomavam os seus rostitos inocentes, os seus olhitos duma curiosidade embrionária, como se nos mirassem do peitoril duma janela que lhes faltava. (CASTRO, 1974: 21)


Castro, humanista convicto, vê o seu artigo recusado; poucos anos volvidos, em 1934, após numerosos textos e inúmeros cortes, decide, amargurado, abandonar definitivamente o jornalismo em Portugal. Não obstante ter-se dedicado, a partir dessa data e exclusivamente, à tarefa de escritor, continuará a sofrer, até à sua derradeira publicação, as influências da cisalha do aparelho ideológico do Estado Novo. Neste caso particular, embora não se aplicasse a Censura Prévia, também conhecido como o “Lápis Azul”, vigorava uma Censura a posteriori, que funcionava de acordo com a ótica volúvel dos revisores: caso se justificasse, seria feita a apreensão das obras já depois da sua publicação. Atendendo aos prejuizos materiais elevados, aos riscos de perseguição, vigilância, processo criminal ou mesmo cárcere que essa situação poderia implicar, tanto editores e livreiros como os próprios escritores tinham cuidados redrobrados em relação aos livros a imprimir.
Em 1945, Castro é perentório. Numa entrevista assaz acrimoniosa, tece o panorama da literatura no Portugal do seu tempo: “ É ingénuo um governo imaginar que, por decretos ou pela força ou pela censura, consegue impor a sua mentalidade ao povo e aos seus homens de pensamento.”(CASTRO, 1945)[18]
Quarenta anos depois da sua decisão de interromper a atividade jornalística, é publicado a título póstumo, em “Origem de O Intervalo”, um desabafo tardio sobre o cárcere ético que até então o oprimira: “É muito difícil alguém, a menos que tenha alma cínica, falsificar-se a si próprio.” (CASTRO, 1974: 78)

2. “Apre(e)nder” o Mundo
Após o choque de, ainda muito jovem, sentir-se separado da sua família e do seu mundo-berço, Ferreira de Castro teve de, emocionalmente, evoluir. Como criança tímida e introvertida que era, ter-lhe-á sido extremamente difícil superar esses traumas; no entanto, a convivência com o seringal, o seu sofrimento e dos seus companheiros de infortúnio, fizeram-no amadurecer muito rapidamente. A noção das injustiças que viveu e presenciou foram as partículas ígneas que, pouco a pouco, atearam o rastilho que acabou por, definitivamente, ativar a sua conceção idealizada do mundo.
Assim também no-lo diz Ana Cristina Carvalho, quando afirma que

 [o] testemunho direto do sofrimento humano, os momentos de funda incerteza e as angústias suportadas na Amazónia, antecedidos do desenraizamento prematuro do meio familiar e aldeão, contribuíram, pois, para moldar a personalidade, bem como a visão do mundo, do Ferreira de Castro adulto. (CARVALHO, 2017: 61)

2.1. Pobreza e sofrimento

O escritor, nas viagens pelo mundo do seu tempo, valeu-se de uma apurada visão jornalística, aliada a uma elevada capacidade memorialista, sem as quais não teria sido possível escrever A Selva ou Pequenos Mundos e Velhas Civilizações com uma acuidade tão pormenorizada, uma vez que já se tinham passado vários anos após as suas estadias nos locais descritos: A Selva foi publicada 16 anos após a saída do Seringal e Pequenos Mundos constitui uma antologia das diversas viagens que efetuou de 1929 a 1935. A sua sensibilidade emotiva assumiu-se também como fator determinante para a riqueza e prolixidade do conteúdo.
Por ocasião das comemorações do cinquentenário da obra literária de Ferreira de Castro, Alberto Figueira Gomes[19] afirma que “(é) no estudo do homem e do seu drama que Ferreira de Castro põe o melhor do seu génio de pintor de almas, de situações e de lutas.” (GOMES, 1967: 37) Efetivamente, logo a partir da sua primeira obra reeditável[20] — Emigrantes, nota-se no escritor uma necessidade de “ser o Mundo”, de libertar-se da individualidade para melhor o compreender, e à Humanidade que dele é parte integrante.
Ferreira de Castro, como propõe Alves (2003: 16), tenta interiorizar o Orbe e pensar-se enquanto seu constituinte indissociável. De cada vez que deparamos, nas suas obras, com as injustiças humanas, notamos no escritor como que remorso e mortificação por não poder remediar ou anular as deformidades sociais que as provocaram: “Não é fácil debruçarmo-nos sobre a História sem lamentarmos a Humanidade e sem sentirmos horror pelo que fizeram os poderosos de todos os tempos.” (CASTRO, 1949c: 210) Esses sentimentos acompanharam-no desde a infância, pois o autor já os refere numa carta endereçada a Winifred L. Chappell[21], em 1953: “(…) entre os 14 e os 16 anos, tive ocasião de ler várias obras de sociologia, que constituíram, para mim, uma explicação dum mundo que eu sofria, mas não sabia julgar”. (CASTRO, 1953: 195)
Bigotte Chorão afirma que, para Ferreira de Castro,

(...) a literatura não era tanto uma expressão religiosa ou estética como um relato de vida vivida e sofrida. Daí que, em alguns dos seus melhores momentos — como na clássica A Selva —, haja um predomínio da reportagem, isto é, da captação directa de uma realidade conhecida na própria carne.” (CHORÃO, 1967: 148)

Ferreira de Castro revê-se em cada ser humano padecente de injustiças pois, como diz Chorão, também ele sentiu na carne e no espírito o peso de uma dura realidade. Jovem que era, as marcas psicológicas foram profundas e refletiram-se nas suas obras e na sua existência sob a forma de uma rebelião surda, de uma identificação com o Outro que sofre e de um sentimento involuntário de culpa eivado de esperança num melhor porvir.
Por estas razões, o autor de A Volta ao Mundo sentia-se particularmente afetado pela extrema pobreza e desigualdade de algumas regiões, nomeadamente a Índia e outros países asiáticos, muitos deles devendo essa situação de subdesenvolvimento e miséria à cupidez insensível da civilizada Europa:

Não se pode olhar para o ser humano na Índia sem se ter a sensação de que ele é infinitamente desgraçado, mesmo quando, individualmente, não o é. Pelo seu atraso, pelos seus habitantes e pelo próprio abandono a que o votaram, ele oferece, a cada passo, imagens imprevistas, algumas das quais constituem regalo dos frívolos viajantes que buscam no Oriente apenas o pitoresco. (CASTRO, 1950a: 24-25)

O escritor não deixa de responsabilizar, direta ou indiretamente, o mundo ocidental pelo segregacionismo e exploração patentes nos países que, à época, e na esmagadora maioria dos casos, se encontravam sob o domínio das grandes potências europeias, não excluindo, evidentemente, a crescente influência dos Estados Unidos da América. As suas críticas incidem, não apenas na sujeição física desses povos, mas também sobre as visões preconcebidas e aviltantes que sobre eles os referidos impérios fazem recair:

Tem-se clamado muito sobre a imundície na China e os que o fazem parece esquecerem que na Europa há muita imundície igual. Tudo quanto vimos nestas pobres aldeias não é pior do muito que temos visto na maioria dos países latinos, incluindo o nosso, em todas as terras árabes e outros centros de gordo turismo. (CASTRO, 1950b: 101)

Ressalve-se que o humanista não se insurge contra o turismo como atividade lúdica e cultural, que ele próprio praticou, e que constitui, no fundo, não apenas uma mais-valia económica como, simultaneamente, uma relevante janela aberta do Mundo e para o Mundo; opõe-se – isso sim – a quaisquer atitudes amorais, gananciosas ou sectárias sobre povos ou grupos sociais, que possam resultar desse mester.
Ao mesmo tempo, Castro, universalista irredutível, idealiza um Planeta uno, onde cada ocorrência, benéfica ou prejudicial, não pode ser entendida como um caso particular de uma determinada região ou país; apenas mudam as circunstâncias, não devendo existir, portanto, juízos de valor unilaterais. É este conjunto de valores que constitui - mas não apenas - a sua ética, que desenvolveremos mais à frente.

2.2. Revolta

Sou profundamente revoltado. Espiritualmente insubmisso. (CASTRO apud CARVALHO, 2017: 63)

Os Fragmentos é, na nossa opinião, e enquanto escrito na primeira pessoa, ou seja, até à página 83 da edição consultada, e a partir da qual tem início o romance O Intervalo, um livro de confidências, uma espécie de pequeno diário íntimo de um escritor que, desilusão após desilusão, quase já acredita que a sua utopia não passará de um mito. E assim, deixa para os vindouros o seu testemunho, pois que eles, um dia, num futuro longínquo, talvez possam ver cumprido o sonho que ele sonhou. Esta obra contém o seu manifesto de revolta, de inconformidade e desencanto, mas também de esperança, não é uma declaração de desistência. Nela, diz o autor o que não pôde ser dito… até um dia de abril de 1974:

Estes fragmentos são filhos das insatisfações estéticas, tantas vezes torturantes e secretas, que sentem os escritores do Mundo inteiro e também das cancelas cerradas perante a liberdade de pensamento que dificultam, há já muitos anos, os passos espontâneos dos escritores portugueses.” (CASTRO, 1974: 13).

Seguindo a mesma intenção investigativa, Ana Cristina Carvalho[22] reforça-nos a ideia de que o escritor aguardava expetante a ratificação do início dos tempos futuros que profetizara, onde a liberdade de expressão, a justiça e, simultaneamente, a fraternidade universal, deixariam de ser ilusórias:

Os textos reunidos em “Os Fragmentos”, vários deles os últimos escritos por Ferreira de Castro, são passíveis de formar a etapa de “Declínio” declínio no sentido não de decadência mas de perda natural de vitalidade. Enquanto alguns textos são recuperações importantes, caso de O Intervalo, que durante quarenta anos aguardou na gaveta a abolição da censura, outros servem-lhes de enquadramento, e o conjunto, preparado pelo autor para se publicar quando esse momento chegasse, mas editado postumamente, resulta numa espécie de balanço de seis décadas de atividade literária. (CARVALHO, 2017: 127-128)

Ferreira de Castro pôde ainda celebrar o fim da ditadura do Estado Novo, em 25 de abril de 1974. Contudo não chegou a presenciar a publicação do seu último livro, pois morreu 2 meses depois, a 29 de junho. Desta obra citamos um exemplo das suas exteriorizações sarcásticas que, não sendo explicitamente violentas, demonstram uma enorme incisividade e que, durante muitos anos, dormiram numa gaveta à espera da libertação:

E como Portugal era, nessa época (anos 30), uma pátria oficialmente ditosa, que se afirmava ser invejada por todas as outras e por alguém velada dia e noite, à luz eficaz dum candeeiro medievo, para felicidade de todos os filhos, não se justificava alusão alguma aos bairros de folha de Flandres enferrujada e tábuas apodrecidas, tão-pouco às crianças esfarrapadas e de pés nus, que enxameavam nas províncias nortenhas, ou mesmo a outros incontáveis aspectos de miséria dum povo ingrato que desfrutava de muita sorte; tudo isso constituía a nossa originalidade turística, no fundo riqueza da nação. [23] (CASTRO, 1974: 55)

2.3. Compreensão da Humanidade

O escritor invoca os seus pares para que, respeitando uma ética ambiental — da qual terá sido um dos pioneiros no nosso país — se unam em concordância com os valores de igualdade que defende.
Ciente das diferenças entre os povos, exorta-os a dissipá-las, na demanda de um entendimento mútuo que proporcione o tão almejado cosmopolitismo, com pleno respeito pela Natureza, em todas as suas formas:

(…) o universal é a fusão e a compreensão solidária de todas as aldeias, vilas e cidades, planícies e montanhas do Mundo, se há alma para a todas abarcar e se na alma existe sítio propício aos mastros e às velas que nos levem a unir-nos, pelo amor fraternal, a todos os seres humanos, nas suas diversas pátrias.(CASTRO,[24] 1974: 54)

Ferreira de Castro é um universalista em cujo âmago se repercute o pulsar de toda a humanidade, e afirma-o com uma convicção inabalável que constitui, aliás, o corolário de toda a sua existência:

(…) por cima da condição de europeu, de latino e de português, sinto na minha alma uma grande identidade com a alma de todos os outros povos. Creio, aliás, que isso acontece com quase todos os homens, mesmo sem eles darem por isso, mesmo sem eles o saberem... (CASTRO, 1953:197)

No segundo volume d’A Volta ao Mundo essa identidade de alma, esse espelhamento de sentimentos, está bem presente no seguinte fragmento:

A maioria dos costumes hindus apresenta-se melancolicamente absurda ao primeiro contacto; mas quando, descendo às raízes, se chega à compreensão, a melancolia torna-se muito maior. Na Índia, compreender é mais triste ainda do que julgar pelas exterioridades. (CASTRO, 1950a: 33)

Em toda a extensa descrição da Índia n’A Volta ao Mundo, deparamos constantemente com essa preocupação humanitária, acompanhada por uma sofrida amargura, que provém da sua impotência por pouco ou nada poder fazer para atenuar tamanha miséria: “Antes de virmos à Índia, amávamos o povo hindu pelo que havíamos lido e ouvido sobre o seu sofrimento; agora, que o vimos face a face, amamo-lo muito mais, porque ele é muito mais desditoso do que tínhamos imaginado.” (idem: 149)
O mundo que Ferreira de Castro vê, é, aos seus olhos, imperfeito e injusto. Ele tem plena consciência de que não será durante o período da sua existência terrena que se atingirão os objetivos de justiça social e equidade que defende. Considera a sua postura e a sua missão como escritor um ato impulsionador desses ideais, na direção de um futuro que ambiciona para a humanidade.
Numa impossibilidade de, isolado, fazer desaparecer, omnipotentemente, os males do Mundo, também exclui a hipótese de emular um deus ex machina, que os dissipasse parcialmente, ignorando o todo, numa solução imperfeita e enganosa; Para Castro, a solução passa pela consciencialização e libertação de toda a humanidade, num processo que sabe lento, mas que crê possível; é essa a sua utopia, é esse o seu sonho: “Eu tenho tanta pena do homem que me aflige a certeza de que já não vivo quando a vida for apenas amor, amor que a compreensão nos dá.” (CASTRO apud MOREIRA, 1967: 104)

2.4 Castro — humanitarismo, ética e ecologia: um santo ateu.
Numa revisitação literária à selva amazónica brasileira, Ferreira de Castro, no romance intitulado O Instinto Supremo, e baseado em factos históricos sobre a vida do Marechal Rondon[25], a quem admirava, reproduz os esforços deste militar brasileiro para proteger e civilizar os indígenas. Por ocasião das comemorações do cinquentenário da vida literária do escritor, Peregrino Júnior[26] escreveu:

[Instinto Supremo é] um romance cuja figura principal é Rondon, o desbravador, o homem de quem Ferreira de Castro aprendeu, em uma frase, toda uma filosofia. Esta frase é a seguinte: “Morrer se preciso, matar nunca”. Toda a obra de Ferreira de Castro está impregnada desta filosofia, que deseja para os seus semelhantes trabalho, liberdade, fortuna e, finalmente, uma vida digna e melhor. (PEREGRINO JÚNIOR, 1967: 23)

Do mesmo modo, a caraterização feita por Ricardo Alves foca a vertente humanitária e de proteção dos que, pelas mais variadas circunstâncias, se encontram em desvantagem perante os seus pares no Mundo. É para isso que aponta Óscar Lopes quando afirma que a obra Emigrantes inicia uma nova fase do realismo social em Portugal e releva, em A Lã e a Neve, algumas das situações mais emocionantes dessa mesma fase literária. “Em Ferreira de Castro viu este ensaísta [Óscar Lopes], ‘desde sempre, em literatura, um advogado’ das camadas que neste século foram conquistando a sua emancipação: as mulheres, os assalariados e os povos.” (ALVES, 2002: 79)
Observa ainda o investigador que

[r]aramente (…) Castro foi explícito quanto às fontes matriciais do seu pensamento político. Assumia-se como autodidacta e produto das suas múltiplas leituras. A obra, todavia, espelha e veicula eloquentemente as ideias libertárias que perfilhou durante a vida inteira: afirmação de liberdade individual, postura refractária à autoridade, internacionalismo, antimilitarismo, tolerância que excluía conciliação em face de valores essenciais, feminismo e, inclusive, o respeito e comunhão com a natureza, atitude que hoje designaríamos genericamente como ecologista. (ALVES, 2002: 118)

Alves refere também que “Castro foi um contemplativo da Natureza, em especial da natureza vegetal; e esta ocupa também um lugar de primeira importância na sua obra (...).” (ALVES, 2014: 4).
Assim, para além da atenção votada, Alves não é o único a aperceber-se desta consonância com a natureza em toda a sua plenitude. Também Bernard Emery refere em Castro “o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais” (EMERY, 2016: 229), tal como Ana Cristina Carvalho que, no estudo que temos vindo a citar, refere a grande afinidade que Castro teve com a Natureza, em todas as suas manifestações vitais e no respeito pelas caraterísticas físicas da mesma, sejam elas orológicas, oceânicas, fluviais ou meteorológicas.
É, no entanto, à árvore, à floresta, que Ferreira de Castro rende preito e homenagem. Desde a selva amazónica, passando pelos lugares que visitou, recordando o seu torrão natal ou deliciando-se com a Serra de Sintra, as árvores estão sempre presentes nos seus livros.
Trata-se, no caso da Amazónia, de uma relação de amor-ódio, com componentes que, por vezes, ora se confundem, se misturam ou individualizam: a floresta onde os índios se acoitam, a lembrança do trabalho rude e desgastante, a solidão de um lugar estranho e longínquo e a sensação de uma grandiosidade verde e opressiva, são fortes contributos para guardar no mais recôndito da sua memória essa fase da sua vida. O autor, perante a imensidão da selva e a estreita relação que esta tem com a fração terminal da sua infância e início de adolescência, num misto de sofrimento, medo e deslumbre, mas também de aprendizagem, confessa que evitou por muitos anos escrever qualquer obra que abordasse a sua lembrança, mesmo que num registo ficcional. Castro, referindo-se à sua vinda para Belém do Pará, fugido da sua experiência deprimente, e perante a recusa do seu “protetor” em acolhê-lo, relata:

Foi esse momento, tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio. E quando o terrível pesadelo me faz acordar, cheio de aflição, tenho de acender a luz e olhar o quarto até me convencer de que sonho apenas – eu que, nos derradeiros tempos, tanto desejo retornar à selva, para a ver um último dia e dela me despedir para sempre.
Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente.[27] (CASTRO, 1970: 20)


Bernard Emery recorda uma entrevista concedida por Ferreira de Castro em 1939, onde este explica a razão pela qual a selva lhe impunha tão respeitoso temor:

Todas as florestas têm o seu segredo e mesmo os pequenos bosques têm a sua luz. (...) mas nenhuma guarda um segredo tão perturbante como a floresta da Amazónia. Um mundo nos seus primórdios, onde cada silêncio é uma ameaça, cada árvore um inimigo, onde o estremecimento das plantas apodrecidas e espalhadas pelo chão, um fruto que cai, provocam mais receio do que se uma bomba explodisse na rua. (CASTRO apud EMERY, 2016: 128)

No entanto, nessa entrevista, Ferreira de Castro não expõe totalmente os seus medos e a razão dos seus pesadelos. Criança ainda, chegado a um mundo novo e inóspito, repleto de perigos insuspeitados e entregue às descrições cruas e, por vezes exageradas de quem, já experiente, atemorizava os novos candidatos a seringueiros, os “brabos”, com histórias supostamente reais e assustadoras, não seria de admirar que tivesse ficado psicologicamente traumatizado.
No “Pórtico” de O Instinto Supremo, o autor confessa a mais impactante razão do medo que o acompanhou intensamente durante quase três lustros e que provavelmente deixou algumas sequelas, mesmo depois do exorcismo da escrita:

Eram o meu terror esses índios. Quase criança ainda, arribada dum meio diferente, quando caminhava pelos varadouros que ligavam as barracas dos pobres cearenses e maranhenses, dispersas na brenha, muito, muito longe umas das outras, esperava sempre ver os Parintintins surgirem por detrás das árvores, as flechas já nos arcos retesados, a abaterem-me num momento e cortarem-me a cabeça e sumirem-se de novo, deixando regressar o pesado silêncio da mata, que só por si me atemorizava intensamente. (CASTRO, 1968: 14-15)

No conto Young Goodman Brown, Hawthorne[28] apresenta-nos, plena de simbolismos, uma descrição assaz negativa da floresta:

The whole forest was peopled with frightful sounds; the creaking of the trees, the howling of wild beasts, and the yell of Indians; while, sometimes the wind tolled like a distant church-bell, and sometimes gave a broad roar around the traveller, as if all Nature were laughing him to scorn. (HAWTHORNE: 6)

Não fosse esta ilustração um produto da visão puritana do autor americano, onde a Natureza era encarada como algo maléfico de que o homem teria de se libertar e afastar — portanto, uma narração que obedece a um intuito religioso e moralista —, poderíamos supor que teria sido escrita por Ferreira de Castro.
Essa fobia paralisante que impedia o escritor de se referir ao seu “degredo” de quase quatro anos numa idade em que quaisquer circunstâncias adversas marcam mais profundamente, deixando vestígios por vezes indeléveis, tinha de ser sublimada. Como afirma Jaime Brasil, a primeira etapa da libertação passará pela redação de A Selva — uma libertação pelo Verbo: “A selva possuíra-o, enfeitiçara-o. Os pavores e angústias do adolescente habitavam o homem como demónios atormentadores. Só o Verbo, que é luz e vida, os poderia afugentar. Esse Verbo só encarnou quinze anos depois.” (BRASIL apud EMERY, 2016: 130)
Como jornalista de O Século, o autor foi destacado para a cidade de Paris durante dois meses, o que o forçou a interromper a obra libertadora; foi uma experiência bem-vinda, “sem desgosto algum, antes com um prazer todo febril e exultante [.]” (CASTRO, 1970: 21), pois visitar a França, “(...) o velho país literário que se incrusta no nosso espírito desde os anos infantis e parece não ser um trecho do Mundo, mas o próprio Mundo concentrado num sonho para quem vive longe e nunca o viu” (idem: 22), era a suprema aspiração de qualquer escritor ou artista. Esse interregno foi benéfico para Castro, que relembra:

A vantagem de me libertar, por algum tempo, da atmosfera do livro, do passado que ressuscitava e se tornava presente com uma vitalidade angustiosa, pois se é verdade que neste romance a intriga tantas vezes se afasta da minha vida, não é menos verdadeiro também que a ficção se tece sobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. Tanto, tanto, que algumas noites suspendia bruscamente o trabalho, só por não poder suportar mais o clima que eu próprio criara. (CASTRO, 1970: 22)

Aparte este “amor” ambíguo por uma Amazónia que, simultaneamente, o repele e o atrai, Ferreira de Castro envolve o Mundo inteiro num amplexo indiscriminado. No entanto, será ao seu semelhante que, por razões humanitárias, por saber que ele é um dos seres mais desprotegidos, mais explorados da Criação, dará uma atenção mais pronunciada.
O “escritor-povo” (FREITAS[29], 1967: 186) tem para com a humanidade uma atitude de compreensão pelos erros que esta comete, na assunção de que essas faltas resultam maioritariamente das pressões a que está sujeita. Tal não implica, porém, que perdoe as ofensas dolosas, praticadas por quem quer que seja, contra quem quer que seja. Os pobres, os excluídos, os explorados, têm nele um defensor incondicional:

[Ferreira de Castro possui] a piedade pelo semelhante, a compreensão das suas deficiências, a atribuição de uma culpabilidade relativa quanto aos erros que pratica, num clima que frequentes vezes lhe desobedece e não hesita em esmagá-lo na primeira encruzilhada. Percebemos nele um debruçar caritativo, fraternal, sobre as suas mazelas, a compaixão que sente por essas turbas desgarradas, tragicamente imóveis, que esperam apesar de tudo um milagre salvador. A sujeição apassivou-as e arrebatou-lhes a consciência do que representam neste minúsculo planeta, assoberbado por gigantescas paixões desnaturadas. (MOREIRA, 1967: 103)

Notamos no autor um aumento de perceção e atitude benevolente perante as falhas da humanidade a partir do início do seu relacionamento com Diana de Liz[30], em 1927, e até à morte desta, em 1930, — sentimento que se prolongou pelo resto da sua existência, como homem e como escritor. António dos Santos Pereira[31] afirma que qualquer referência à autora não deverá ser feita com ligeireza, “pois percebemos quanta humanidade de forma única ela aportou a Ferreira de Castro, intensificando a sensibilidade deste aos grandes problemas da vida.” (PEREIRA, 2016: 106)
A nossa interpretação é reforçada pelos prólogos de Ferreira de Castro às obras póstumas da escritora e reproduzidos por Manuel Ferro[32] no seu artigo de investigação. No prólogo de Pedras Falsas lemos que,

(…) partilhando da mesma ansiedade, [d]a mesma chama inquieta e infinita de Florbela Espanca, Diana de Lis enlanguescia em ternura e em compreensão. Era mais humana. As suas páginas, de onde brota uma suavíssima ironia, uma crítica amena aos preconceitos que lutam com irrefragáveis impulsos, estão cheias de piedade, de absolvição. Pautavam-lhe essa atitude compreensiva, o seu coração, onde residiam todas as generosidades, a sua sensibilidade delicadíssima e a sua grande cultura. (Castro apud FERRO, 2009, 389-390)

No prólogo seguinte, em Memórias duma Mulher da Época, Ferreira de Castro refere que os últimos trabalhos desta autora “são páginas onde a compreensão e a justificação da existência como ela é e não como nós gostaríamos que ela fosse, se envolvem em fraternal melancolia para com os nossos semelhantes.” (ibidem)
Não podemos, na verdade, ignorar as alterações que foram surgindo na produção literária do escritor após o seu casamento com Mimi Haas. O que era antes uma prosa cheia de humanidade e compaixão por todos os povos e em todos os personagens das suas obras, para os quais – bons ou maus – não existiam admoestações ou observações condenatórias explícitas, começou a, lentamente, transformar-se em reflexões analíticas sobre a personalidade dos seus intervenientes: Ferreira de Castro – defensor dos bons, dos justos e dos explorados, adquire outra parceria; surge Ferreira de Castro – advogado do diabo, remissor dos maus. Evidentemente, não falamos apenas da análise que o autor faz das suas criações, que adquirem, no computo geral, um cariz marcadamente autobiográfico, como extensões de si próprio, da sua vivência, da sua personalidade e, em consequência, do seu espírito humanista; o escritor debruça-se também sobre a maldade subjacente à espécie humana na generalidade, tentando compreender a sua existência, as suas manifestações e a sua génese.
Em Diana de Liz encontrou Castro uma alma gémea, cheia de perdão e compaixão pela humanidade. Esse entendimento mútuo terá expandido o já existente pensamento filantrópico do escritor, surgindo, em plenitude, no seu mundo literário e pessoal. Bernard Emery é taxativo ao referir que foi esta escritora, “sua companheira desde 1927, que teve uma influência muito positiva na evolução do estilo do autor.” (EMERY, 2016: 95)
Amplia-se em Ferreira de Castro uma compreensão dos dois opostos que não se inscreve num registo aristotélico, ou seja, em função do Bem e do Mal, e muito menos contemplando os seres humanos sob uma perspetiva plotínica, onde a Beleza abarca apenas o Belo. A estética de Ferreira de Castro suplanta essa separação entre o Bem e o Mal, entre o Belo e o Feio.
Segundo Alves, há, no espólio do autor, um sem-número de pedidos de ajuda por parte de viúvas e familiares de escritores e jornalistas, que se viram em dificuldades por força do desaparecimento dos seus entes queridos e que viam em Ferreira de Castro uma alma caridosa, pronta a auxiliar os seus semelhantes em momentos críticos das suas vidas. O crítico refere que Bernard Emery, ao inscrever essa solidariedade num franciscanismo que se revela na obra castriana, considera Castro como um “escritor ateu, mas impregnado de cristianismo.” (ALVES, 2002: 157)
Do mesmo modo, Aguiar-Branco retrata esta faceta humanitária do escritor: “O dinheiro que ganhava com [os prémios literários que recebia], segundo relatam as biografias, usava-o para fomentar obras de cultura ou de socorro a necessitados, na sua maior parte do jornalismo e do teatro.” (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)
Emery explica como Castro, sendo ateu, age em sintonia com uma perspetiva tão consentânea ou, pelo menos, similar à moral cristã:

[…] o escritor de Ossela nunca vê a imagem do Cristo no próximo por quem ele se compadece e se solidariza. Pelo contrário, não podemos negar que nele existe uma atitude franciscana na sua preocupação constante de diálogo, de compreensão e de compaixão. Se reduzirmos o espírito franciscano ao seu componente mais conhecido, e sem dúvida também o mais original, a saber, o amor por todos os seres da Criação, incluindo os animais e os vegetais, podemos efectivamente encontrar pontos comuns entre o escritor ateu e o santo cristão. (EMERY, 2016: 228-229)

O investigador aponta para uma transmutação da fraternidade, sempre presente em Castro, para algo mais intenso, mais íntimo; o escritor revê-se em todos os seres humanos e, ao fazê-lo, encarna a Humanidade, apieda-se e compreende-a, nos seus defeitos e nas suas virtudes:

(…) Também é verdade que a noção de fraternidade tem sempre em Ferreira de Castro uma forte intensidade sentimental, é assim que se explica a evolução que se deu nele da fraternidade para o amor pelo homem. Na génese deste amor, tal como a encontramos em Emigrantes, em A Selva, e depois em Eternidade, em que ela parece definitivamente realizada, há, além da compaixão, um sentimento de culpa face àquele que sofre, àquele que esquecemos, e ao ser que, pela sua insignificância, foi abandonado a uma espécie de inexistência. (idem: 229)

Reafirmamos, face ao exposto por Bernard Emery, o papel de Diana de Liz no desenvolvimento e maturação dos parâmetros definitivos que regem a elaboração das obras posteriores de Ferreira de Castro, que o crítico admite estarem definitivamente realizados em Eternidade.
É o próprio escritor, citado por Dias de Melo[33], que nos explica o juízo estético que rege toda a sua obra e, inseparavelmente, toda a sua vida:

Para mim parece-me que a maior aquisição foi compreender e amar o meu semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus erros e nos seus acertos, e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas realizações e nos seus heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, os limites inumeráveis, as aspirações sempre adiadas, impõem a tantos deles com implacável frequência. Compreender os problemas que afligem a maioria dos homens, que os afligem há milhares de anos, enquanto esperam pela justiça que tem demorado tanto. Compreender e fraternizar com os homens, sejam do Barroso ou da Serra da Estrela, da cidade em que vivo ou da aldeia em que nasci, de todas as cidades e de todas as aldeias de todos os países da Terra, por cima de todas as fronteiras e de todas as pátrias. Este acto de compreensão e de solidariedade, que emana não só do muito que sofri, mas também das observações feitas ao longo da minha existência, tantas vezes movimentada como a dos nómadas, sobre a Humanidade de várias latitudes: foi, sem nenhuma dúvida, a melhor aquisição que fiz. (CASTRO apud MELO, 1966: 94-95)

Ana Cristina Carvalho resume em poucas linhas o principal objetivo ético pelo qual Ferreira de Castro lutou, na firme convicção da vitória dos seus pares: “Um dos mais relevantes emblemas castrianos é a irredutível esperança na capacidade da Humanidade para sanar as suas imperfeições, gerar a própria redenção e construir um futuro brilhante. Bernard Emery chamou-lhe a ‘filosofia de esperança’.” (CARVALHO, 2017: 67)

Castro e a verdade: ficção e censura
A construção ficcional é explorada pelo autor como processo de enriquecimento dos seus textos de viagens, dando-lhes, não apenas a consistência narrativa necessária para descrever a sua experiência erradia, como também a utilizando como veículo para expor a sua visão inconformada dos erros e injustiças do mundo.
É evidente que também os seus romances, à semelhança de quaisquer outros de díspares autores, carecem da ficção para que a narrativa exista como tal e, identicamente ao acima exposto, possam conferir aos textos toda a carga dramática de que estes necessitam para transmitir as críticas e valores defendidos por Castro.

3.1. A questão da ficcionalidade

O investigador Ricardo António Alves apresenta uma definição da ética e dos objetivos do labor literário do escritor e que se projetam na globalidade da sua produção escrita:

[A obra de Ferreira de Castro encerra]:
1) uma tentativa de compreender o mundo, pensar os seus problemas e de o questionar.
2) a consciência de que o Homem é um ser complexo e contraditório.
3) inconformismo perante uma organização social injusta que está na origem duma maioria de deserdados que, então como agora, vivem nas margens do sistema. Para Ferreira de Castro, no entanto, os homens não são — não podem ser — uma massa que se conduza como um rebanho, mas indivíduos com realidades específicas e detentores duma dignidade que lhes advém da sua condição humana — que nunca poderá estar desligada da liberdade (...) (ALVES, 2003: 16-17).


O processo de criação dos textos de viagens de Ferreira de Castro obedece a um encadeamento de géneros e subgéneros literários como, por exemplo, romance, crónica e narrativa de viagem que, associados à investigação jornalística, longe de tornarem as obras confusas pela miscigenação genológica ou massudas pela profícua informação acrescentada, clarificam e tornam a leitura gratificante.
Ao lermos Ferreira de Castro nas suas descrições de viagens pelo mundo da época, deparamos com uma informação cuidada, fruto de autodidatismo e apurada visão jornalística, cultivados com denodo. Quando descreve um lugar, o autor provê-se de minuciosos dados históricos, a que acrescenta profícuas informações etnográficas e, se necessário, esclarecimentos sociológicos e acuradas descrições relativas à mitologia ou lendas a ele associados.
Alves ressalva a intenção estética do autor que, afirma, não tem mais pretensões de didatismo que não sejam apenas aquelas que sugerem um caminho evolutivo que conduza ao desenvolvimento racional da humanidade, em direção a um porvir por si idealizado:
Mas Ferreira de Castro era um romancista, não pretendia ser um historiador. A sua intenção era a de escrever uma nova “epopeia”: a das “classes populares em busca duma redenção colectiva. Uma epopeia que não teve ainda o seu épico” [34].
Há, no entanto, em Ferreira de Castro, um gosto da História, um perscrutar do passado que tem de ser visto à luz da sua matriz ideológica. Não se trata de amenizar a leitura, distrair o leitor, transportando-o para séculos recuados, mas perspectivar a evolução da humanidade no sentido do progresso, por contraste com políticas e mentalidades ancestrais, forçosamente superadas, “num trabalho lento de pua furando granito”[35] — para utilizar uma imagem de Terra Fria.[36] (ALVES, 2002: 37-38)
O cunho, por vezes fortemente autobiográfico, percetível na sua produção
literária, sobrepõe-se à ficcionalidade romanesca que o autor utiliza como forma de realçar as situações e vivências que expõe.
Em The Routledge Companion to Travel Writing afirma-se que “[t]here is no way to easily demarcate where fiction ends and anthropology begins” (THOMPSON, 2020: 58). No entanto, é impossível escrever um livro de viagens que não contenha, mesmo que infimamente, traços de ficcionalidade; qualquer descrição que não contemple essa premissa será um mero texto injuntivo, um insípido manual de instruções, que não passará dos pormenores técnicos, sem a mínima ação estetizante.
Embora possam, eventual e legitimamente recair suspeitas de a-historicidade e fantasia no que concerne a ficcionalidade das criações literárias do autor de A Selva, recorremos novamente a Thompson para, se não o ilibar, pelo menos legitimar as opções escolhidas por Ferreira de Castro: “Fiction, it is argued, can play a role in combating one of travel writing’s most ethically troubling characteristics: its persistent failure to promote an egalitarian sense of solidarity with travelees.” (THOMPSON, 2020: 59)
De facto, o uso da ficção permite relatar as experiências viáticas, não como algo por vezes arredio ou aberrante — o que criaria no leitor uma sensação de diferença, estranhamento, ou mesmo repulsa — mas, e mantendo a acuidade expetável, atenuar quaisquer choques civilizacionais ou éticos que as narrações efetuadas possam provocar, criando assim uma sensação de familiaridade ou naturalidade.
O autor demonstra compreensão e empatia para com os povos e as civilizações retratadas; nos seus relatos de viagens não encontramos vestígios de racismo, misoginia, exclusão ou sentimentos de superioridade, salvaguardando, é certo, a sua crença de que só através da instrução e da cultura (ocidentalizada, subentenda-se) será possível estabelecer um patamar de igualdade civilizacional, num total respeito pelos usos e costumes, desde que não colidam com a liberdade dos povos visados ou coibam o seu desenvolvimento.
Em sintonia com o exposto por Thompson, a ficcionalidade de Ferreira de Castro apresenta ao leitor todo um conjunto de novas e, por vezes, perturbadoras noções de povos e civilizações, desmitificando-os da sua aura de incultura e desmistificando conceitos a estes ancestralmente ligados:

For some readers, elements of outright fiction may always seem inappropriate and morally problematic in an ostensibly non-fictional form such as travel writing. However, advocates of fictionalization would suggest that creative-critical forms of travel writing are better able to emphasize writer’s positionality, to relinquish the genre’s customary degree of narrative authority, and encourage more sympathy for the peoples and places being described. (THOMPSON, 2020: 60)

De igual modo, e referindo-nos a outras obras de Ferreira de Castro que, embora já fora do âmbito da literatura de viagens, contêm sempre algo experienciado direta ou indiretamente pelo autor, como A Selva, Emigrantes, Eternidade, A Lã e a Neve ou Terra Fria, assim como aquele que podemos considerar um romance histórico, intitulado O Instinto Supremo, o uso da ficção surge como processo de autentificação do narrado. No ‘Pórtico’ deste último, o escritor justifica o seu uso:

Fiel à realidade literária, que pelo seu poder condensador e harmonizante é, como de há muito se sabe, mais convincente, tantas vezes mais verosímil do que a da vida, em numerosos passos desta obra rompi deliberadamente com a história, em prol da ficção criadora e livre, para que os seus heróis não parecessem mitos, as suas acções não segregassem a incredulidade que brota das fábulas, as suas virtudes emergissem da própria condição humana, como em todas as épocas foi verdade, antes dos factos se decomporem e tornarem lendários. (CASTRO, 1968: 17-18)

A credibilização das narrativas castrianas passa, como o autor indica, pela ficcionalização das suas histórias, dos seus romances; deste modo, as mensagens que os textos veiculam são transmitidas pelas personagens de um modo mais natural, pois o uso do quotidiano, quer nos quadros apresentados, quer na própria linguagem despretensiosa, criam uma relação de empatia com o leitor, que afasta qualquer suspeita de descrições fantasiosas ou inexatas, sob o efeito do processo de verosimilhança aqui construído.
Tzvetan Todorov, citando Oscar Wilde[37], corrobora esta ligação entre ficção e realidade através da literatura:

A vida em si é “terrivelmente desprovida de forma”. Dessa ausência resulta o papel da arte. “A função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo”. Ora, criar um mundo verdadeiro implica que a arte não rompe a sua relação com o mundo. (TODOROV, 2007: 66)

Em consequência, toda a obra do escritor reflete um esforço de legitimação dos seus ideais, mesmo que para isso seja necessário recorrer a uma trama ficcional que reforce e enriqueça literariamente a mensagem que pretende transmitir.

Postura de um novel humanista
Embora possamos assumir que Ferreira de Castro foi, como soía dizer-se, um homem da sua época, ou seja, viveu sob uma ineludível influência dos conceitos sociais e morais então vigentes, o escritor empenhou-se sempre em, à luz da sua filosofia humanista, recusar tudo e todos os que, de alguma forma, revelassem diferença ou discriminação para com os seus semelhantes. O investigador Ricardo Alves afirma:

Não há, conscientemente, uma atitude etnocêntrica por parte do escritor n’A Volta ao Mundo. Mas, enquanto produto da sua própria cultura, constata-se como ele radica nas ideias progressistas ocidentais — com toda a carga positiva e equívoca que esta palavra encerra — a mudança das mentalidades das novas gerações desses territórios para com a tradição, “numa luta contra o passado”, combate de que ele quis ser um dos paladinos e que aplaudia onde quer que ele se manifestasse. (ALVES, 2002: 48)

Esse empenho na recusa de um etnocentrismo que lhe é, por inscrição cultural, inerente, encontra-se visível na sua atitude de autocrítica e no aviso que faz aos seus leitores, aquando da sua descrição da Índia e da sua civilização:

Os tipos, a cor do pigmento e as raças variam de grupo para grupo; tudo isto parece fantasia teatral, coisa imaginada. No primeiro contacto visual, o forasteiro tem de fazer um esforço para aceitar que toda esta humanidade é igual àquela a que ele pertence. (CASTRO,1950a: 19- 20)

Por outras palavras, o escritor alerta o leitor — e referindo-se a alguns países ou regiões e povos que visitou e que, à época, seriam considerados, por variegados fatores, civilizacionalmente atrasados — para a possibilidade de algumas conceções ocidentais preconceituosas e a-históricas se poderem sobrepor a uma renovada visão humanista do Mundo.
De facto, não há como não atentar na mirada europeísta do autor e de como ela influencia a sua perceção da humanidade. Existe efetivamente um olhar civilizador ocidental que Ferreira de Castro lança sobre as regiões intra e extraeuropeias que visitou.
Porém, e em abono da verdade e defesa do escritor, não nos podemos esquecer que esse mesmo olhar recai sobre o seu próprio país, vítima, como muitos outros, de um atraso moral, civilizacional e tecnológico assaz importante. Como Ricardo Alves salienta, “(...) pode dizer-se que a produção jornalística de Ferreira de Castro evidencia já uma preocupação por temas sociais, como as condições de vida dos presos, os meios de acolhimento nos albergues nocturnos (…), a vida dos operários na Mina de S. Domingos” (ALVES, 2002: 30).
Face ao exposto, constata-se que o problema pátrio é também por si analisado; porém, devido à existência de uma censura estatal extremamente repressiva, as suas críticas só muito mais tarde ganharão voz, pois, agastado com os cortes deturpantes, parciais e não raras vezes totais dos seus artigos, muitos deles sem razão minimamente plausível, desistirá do jornalismo até que, eventualmente, a liberdade de imprensa venha a ser restabelecida.
Só regressa às questões do próprio país quando a sua projeção internacional como escritor lhe permite tornar-se relativamente tolerado ou imune às investidas dos opositores, dos que se esforçam por coartar a sua liberdade de expressão e, por extensão, a verdade sobre as injustiças e as atrocidades internas pois, como diz o autor, “(…) os inimigos da liberdade só o são quando dispõem dela, quando gosam de todas as liberdades, inclusivé a de eliminar a liberdade dos outros.” (CASTRO, 1946: 1)
O escritor não é um turista, ávido por exibir cosmopolitismo e colecionar países e regiões no seu passaporte; é acima de tudo, um humanista que viaja para tentar conhecer, sinalizar e, eventualmente, compreender um mundo que, muito embora alienígena, sofre e tem os mesmos erros e problemas de que a sua pátria padece, também ela prenhe de miséria, fome e opressão.
Não procura o pitoresco, se essa singularidade passa pela infelicidade de um povo; para ele, o pitoresco é a originalidade da diferença de uma sociedade para com outras culturas e outros seres que se lhe assemelham na condição humana.
No japão, muito embora tenha feito observações pouco abonatórias dessa sociedade, visto ela constituir, na época, um país opressor, pois dominava a vizinha China com mão de ferro e pela força das armas, não deixa, contudo, de louvar as caraterísticas positivas dos nipónicos, retratando-os como uma etnia literária e artisticamente avançada, cuja capacidade tecnológica considerava, em certos aspetos, superior à dos norte-americanos. O seu espírito crítico não deixa, pois, de fazer um reparo em defesa da sua — cada vez maior — crença de que, afinal, humanisticamente falando, não existe plural na definição de “ser humano”:

Nós próprios, durante esta longa viagem, durante esta longa sucessão de povos, de costumes e de países diferentes, temos verificado, uma vez mais, quanto é absurdo julgar os homens pela sua cor ou pelo desenho dos seus olhos. Passamos duma terra para outra, duma raça para outra raça e, ao cabo de alguns dias, já nos parece natural o que a princípio nos surpreendeu e quase nos esquecemos de que os homens com quem estamos a conviver são, na aparência e nos usos, diferentes daqueles com quem convivemos semanas antes, porque, acima dos costumes e da cor da pele, persiste sempre e sobretudo — o Homem. (CASTRO, 1950b: 290)

Cruz Malpique apercebe-se bem dessa convicção de igualdade e pertença que Castro faz sempre transparecer na sua postura como escritor e cidadão do Mundo e que transporta para os seus livros:

Ferreira de Castro e a sua obra literária constituem um todo. Ele está nela, ela está nele. Consubstanciam-se. Osmoseiam-se. Penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la. Ferreira de Castro foi às vivências pessoais, transladou-as umas vezes na primeira pessoa, outras vezes na terceira, para lhes dar aparente impessoalidade mas, no fundo, é ele quem está sempre, na raiz daquilo que escreviveu. (MALPIQUE, 1976: 172)

É, todavia, notória a proeminência com que Castro tece acutilantes comentários sobre as injustiças que vai observando no seu périplo pelo mundo, assim como sobre a tirania e cupidez das classes dominantes, não se inibindo, porém, de atribuir a alguns dos povos dominados, por via da sua passividade ou excessiva resignação ou, como dirá Ferrão Moreira[38], “[p]or conveniências opíparas de uns e entranhadas covardias de outros” (MOREIRA, 1967: 99), o seu quinhão de responsabilidade:

Quando, há perto de quatro séculos e meio Vasco da Gama chegou a esta costa [Índia], o panorama devia ser o mesmo. Mas cobria-se, então, de mistério. Nós sabemos hoje que, nesta massa escura e ondulada onde finda o mar, reina a miséria e vegetam densas multidões semi-famintas e semi-nuas, separadas por ódios de raças e credos, tão grandes que nem a desgraça comum as une [.] (CASTRO, 1950a: 49)

Do mesmo modo, referindo-se ao povo malaio, o escritor critica o conformismo patente naqueles que teriam sobejas razões para se revoltarem contra um statu quo de milénios:
(…) gentes que labutam aqui, pelo magro arroz de cada dia ou que vêm, das minas de estanho, gastar, em Kuala Lumpur, o pouco que amealharam do muito pouco que receberam — e sempre a sorrir, com optimismo, perante a exploração de que são vítimas. (CASTRO, 1950a: 223)
Mesmo concedendo o devido e imprescindível distanciamento temporal e histórico e atentando às profundas e complexas mudanças políticas, geográficas e sociais que o orbe experienciou desde a criação das obras citadas, torna-se-nos difícil não ver espelhado o contemporâneo nas descrições do autor e nos seus comentários. Aparte o maravilhamento do Viator e a tentativa de compreensão e assimilação de mundos e culturas aos quais é estranho, o escritor faz transparecer frequentemente, de modo assaz incisivo e sem pudores, um misto de piedade, amargura e denúncia. Eurico Gama[39] afirma que Castro “escreveu com o coração, por vezes sangrando perante tantas injustiças praticadas no mundo atroz que vivemos[.]” (GAMA, 1976:145) Como ácrata assumido desde muito jovem e, nas palavras deste bibliófilo e editor elvense,
a sua ideologia política palpita em todos os seus livros, mas nunca neles encontramos palavras recalcadas pelo ódio, pecado em que Aquilino com frequência se deixava cair. Ferreira de Castro está sempre acima dessas misérias, sem, contudo trair os seus nobres ideais. (ibidem)
De facto, o autor de Emigrantes, não obstante a sua mordacidade e demonstrações de revolta perante as injustiças que presenciou ou denuncia, fá-lo de um modo expositivo, jornalístico, sem demonstração de excessiva rudeza ou agressividade. Como afirmou Agustina Bessa-Luís, citada por Pedro Calheiros, “[o]s contrastes da sociedade causavam-lhe uma pena indigna. Nunca agressiva. Ele era um homem de boa índole, não sabia insultar nem se encolerizava facilmente.” (CALHEIROS, 2007: 19)
As observações e relatos que produz, longe de meros apêndices de um livro de viagens, acabam por revelar o estímulo subjacente à criação, não apenas da obra A Volta ao Mundo, mas também da sua outra publicação, Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, dedicado à mesma temática. Alves, referindo-se à primeira obra, afirma:

Ao contrário de alguns orientalistas do século XIX (…), Castro não procurou o exotismo para satisfazer a curiosidade fácil dos leitores. Registou o belo e o feio, o sublime e o medonho, exalçando-os, deplorando-os e relativizando-os de acordo com a sua visão do mundo e da vida. (ALVES, 2002: 48-49)

Ferreira de Castro foi um escritor com uma sensibilidade incomum, cujo espírito crítico tanto condenava como indultava, de acordo com as circunstâncias, os povos e culturas que visitou. Nalguns trechos das suas obras nota-se essa dicotomia censura-louvor, numa maneira muito própria de, como diz Alves acima, registar o belo e o feio, o sublime e o medonho. Na sua visita a Jerusalém – cidade sagrada para muçulmanos, judeus e cristãos, observa:

(…) as gentes, cá fora, falam, gesticulam muito, altercam entre si, num rumor infindável; dentro, porém, dos pequenos estabelecimentos há sempre figuras de árabes, esboçadas na obscuridade, que se mantêm em completa quietude, pensativos, abstractos, os olhos com a neblina da distância, o corpo presente e o espírito ausente. A alma muçulmana, feita destes contrastes bruscos, dá ao pitoresco das ruas de Jerusalém alguma coisa que está por cima do pitoresco, do ruído e da ânsia de quitar proveito do estrangeiro; algo de melancólica espiritualidade, de leve sombra que se estende, indolentemente, sobre o sol que dorme nas vetustas pedras. (CASTRO, 1949d: 157)

Mais à frente o autor revela o seu modus operandi, de que forma ele exorta a observar o mundo, ou seja, a interpretá-lo. Não o avalia apenas com o que em aparência se lhe depara, mas sobretudo com a visão interior, com o perscrutar crítico do espírito: “Perante Jerusalém, como perante as paisagens, o importante não é o que se vê e sim o estado de alma com que se vê. Na Palestina, o principal não é o que está; o principal é o que cada um traz dentro de si próprio.” (CASTRO, 1949d: 169)
Em conformidade, e referindo-nos ao trabalho do escritor, citamos a investigadora Sofia de Melo Araújo, que afirma:

(...) há que reconhecer o extraordinário papel da Arte em geral, e da literatura de ficção em particular, não apenas como veículo de ideias definidas, mas também enquanto gerador de questionações e reinterpretações do Mundo e da Vida, que assumem mesmo papéis de destaque na transformação do Real. (ARAÚJO, 2016: 72)

Para Sofia Araújo essa aceitação traduz-se “na necessidade de constatar que, para além dos efeitos estéticos, a obra de arte é sempre uma representação de valores, de escolhas, e que alguns desses valores não são simplesmente estéticos, mas sociais, políticos e éticos”. (idem: 73)
O escritor esforçou-se sempre por apresentar os episódios da humanidade e, em geral, da vida à superfície do planeta, tal qual elas se manifestavam: sem filtros e sem véus, embora salvaguardando uma narrativa dentro do que considerava socialmente aceitável, tanto nos seus textos literários como nos jornalísticos.
Assim, Adelino Ferreira Neves recorda o desencanto amargo com que Ferreira de Castro acolheu a informação de que um artigo seu tinha sido suprimido pela Censura. Nesse texto, Castro, mais do que a notícia como mero trato jornalístico, impessoal e frio, ressaltava aspetos sociais que apelavam a uma compreensão, compaixão e justiça pelo que se escondia por detrás de um drama humano, provocado por precipitação e abuso de poder das autoridades: em Beja, um homem havia sido acusado de roubo de cereais; para o tentarem condenar, levaram a sua mulher para a cadeia, onde foi torturada, numa tentativa de obter dela a confirmação do roubo. Esta, não resistindo ao sofrimento, enforcou-se na cela. Em desespero, o marido, ao saber de tão terrível desenlace, barricou-se em casa, armado. Cercado pela GNR e pela PSP, durante o tiroteio que se iniciou, matou um chefe das forças policiais, tendo também sofrido ferimentos. Preso e enviado ao hospital numa ambulância, com febre devido às escoriações, pediu água. O guarda que seguia na viatura, enfurecido pela morte do chefe, em resposta e por vingança, alvejou-o, matando-o. Posteriormente soube-se que o homem estava inocente.
Castro faz a notícia, fiel aos acontecimentos. Neves, como correspondente e redator regional d’O Século em Beja, manda-a publicar, enviando-a para Lisboa. Mais tarde, visitando o autor nessa cidade, soube que a notícia tinha sido totalmente cortada pelo lápis azul da Censura:
Passados tantos anos ainda hoje revejo nitidamente o semblante de tristeza e mágoa de Ferreira de Castro, depois de ter lido a reportagem que escrevera!... E. perguntando-lhe eu da sua impressão crítica dos acontecimentos, Ferreira de Castro disse-me simplesmente... ‘O Matos nunca se poderá considerar um criminoso... defendeu-se dos que o queriam matar; nada teria acontecido se não lhe tivessem morto a mãe dos seus filhos e depois o não tivessem perseguido tão ferozmente.’ [40] (NEVES, 1976: 13-14)
Ana Cristina Carvalho reproduz o extrato de uma entrevista do autor ao Diário de Lisboa (1945), onde este, amargamente, mas com fina ironia, refere a sua incredulidade perante os cortes censórios que, amiudadas vezes, sofria nos seus artigos jornalísticos:

Uma vez, cheguei a escrever três artigos sobre o mesmo assunto — sobre o Natal — e todos foram proibidos, porque neles eu aludia aos pobres que, nessa noite, tinham frio. Chega a parecer inverosímil (...) que as esferas oficiais houvessem deliberado fazer acreditar o país e o estrangeiro que em Portugal ninguém tinha frio, nem fome, nem miséria, que havia, portanto, um Portugal que nós não víamos em parte alguma e que era diferente daquele que nós víamos todos os dias e em toda a parte. (CASTRO apud Carvalho, 2017: 130)

Também Ricardo Alves reconhece o ónus sofrido pelo autor – no fundo, por todos os escritores portugueses não alinhados com as políticas do regime — e que reflete na sua constatação de que “Castro escreveu a sua obra sob a pressão da censura, de Emigrantes a Os Fragmentos. Sentiu, portanto, duma forma aguda os constrangimentos e o sufoco dum estado repressivo e policiado.” (ALVES, 2002: 100)
De facto, o escritor refere na sua última obra – Os Fragmentos – essa sensação torturante com que teve de conviver durante toda a sua vida profissional de escritor e de jornalista, de não poder escrever as verdades que lhe brotavam do mais íntimo da sua consciência e com as quais pretendia denunciar os erros e iniquidades do sistema e, por extensão, do mundo: “(…) de todos esses fabricantes de perniciosos silêncios, o mais nocivo de todos (…) não é o censor real, é a sua consequência, o censor abstracto que se instala no nosso cérebro e de lá nos comanda impiedosamente.” (CASTRO, 1974: 39)
Ferreira de Castro relembra a mágoa com que “(…) f[o]i obrigado a vigiar o comportamento das palavras para além das suas imposições estéticas, nesta mesma secretária de onde eles deviam erguer voo, direitos à luz exterior, e quedarem afinal na escuridão das gavetas, como na de um túmulo.” (idem: 11)
São, como já acima foi referido, contínuos os cortes às suas crónicas, e também aos seus livros: depois de já ter publicado A Volta ao Mundo, Eternidade e Terra Fria, tenta dar ao prelo O Intervalo, no que é prontamente impedido pela Censura. Esta obra, publicada postumamente após o 25 de abril de 1974, e inserida no livro Os Fragmentos, aborda a vida de um personagem ficcional, chamado Alexandre Novais, um dirigente anarcossindicalista português, obrigado a refugiar-se em Espanha por ser alvo de perseguição política no seu país.
A ação decorre em 1933, em Cádis, onde o português participa nas insurreições operárias da Andaluzia, que acabam por redundar no massacre de Casas Viejas, onde populares revoltosos sucumbem, independentemente do seu sexo ou idade, às mãos das forças policiais — acontecimento verídico que precipitou a queda da 2ª República espanhola. Tratava-se, assim, de um tema interditado pelo Estado Novo, pois implicava, não apenas a reprodução inadmissível de uma sublevação popular, como indiciava também a existência de atitudes repressivas do Estado, em território luso.
Por razão desse impedimento, e dando voz a Ferreira de Castro: “Mas já então eu vivia exclusivamente da minha pena. Tinha, pois, de trabalhar. E foi por essa exigência que escrevi, com desalento imenso, o meu primeiro livro de viagens, esses ‘Pequenos Mundos’ que nunca pensara escrever quando os trilhara num sonho errante.” (idem: 78)
Não podendo falar abertamente das injustiças e misérias do seu país, o único recurso foi o de o fazer espelhando noutros mundos o mundo em que nascera e que lhe era interdito criticar.
De notar que, na última obra referida, a sua descrição da ilha da Madeira já consegue deixar transparecer os primeiros vislumbres de uma crítica ao imobilismo e segregacionismo estatal, no que concerne ao bem-estar do povo, sem que, em consequência, seja impedido pela Censura:

O nível de vida do povo, sobretudo do camponês, é impressionantemente baixo. Como na Córsega, a existência humana nas aldeias da Madeira caracteriza-se por uma forçada sobriedade na alimentação. Aqui bebe-se aguardente a mais e pão a menos. (…) Até há pouco tempo havia o sonho da emigração; mas fechadas as portas da América, só no álcool o camponês gozará, porventura, fictícia redenção e momentâneo esquecimento. O seu hortejo, o leitezito da sua vaca, que ele vende para lacticínios, e os bordados que faz a mulher, dão-lhe tão fraco rendimento que nenhuma hipótese de vida farta lhe é possível admitir. Como nas aldeias do continente, encontramos na Madeira menos crianças que vão à escola porque os pais não podiam comprar os livros de ensino. (CASTRO, 1949d: 279)

O pitoresco, como expressão genuína do povo, esse casticismo português de primitivismo e miséria, explorado como um exotismo intraeuropeu, atrativo para os estrangeiros e para benefício económico do Estado e de alguns privilegiados, começa a ser referido com mais incisividade:

Não há muito tempo, esta expressão de existência primitiva era apenas vista como “coisa pitoresca”. O forasteiro arribava, fruía o encanto das longas sebes de buxo e de hidrângeas, sorria-se paternalmente das barraquitas, que são graciosas na sua pobreza e abalava a narrar a impressão colhida do povo que vivia na nossa época como nas épocas primárias. Hoje, desde que se tenha o coração e cérebro em bom funcionamento, isto levanta outras sugestões. (CASTRO, 1949d: 281)


A atitude paternalista atribuída aos forasteiros, e a que o autor se refere, poderá ser considerada uma forma de exotismo intraeuropeu, mas a que não podemos atribuir em exclusivo a visão eurocêntrica e depreciativa que os países do Norte do Continente tinham — e mantêm ainda — sobre os territórios soberanos do Sul da Europa. Muito para além disso, trata-se de uma mirada de supremacia social que poderá ser exercida por um qualquer grupo que se autointitule superior, geralmente em termos de classe, económicos, ou mesmo nacionais, independentemente desta dicotomia continental.
Podemos assim falar também de um “microexotismo intraeuropeu” quando abordamos, por exemplo, algumas formas de turismo rural que não se enquadrem em padrões ecológicos ou culturais, mas que se destinem apenas à fruição dessa “existência primitiva” como “coisa pitoresca”. Sob esta perspetiva, um português da Madeira poderia ser visto como exótico aos olhos de um seu compatriota continental.
Apesar da origem da visão eurocêntrica do Norte Europeu, que acima referimos, ter raízes históricas e geográficas muito mais antigas e complexas, é relevante citar Roberto Dainotto:

“With the Reformation, a latitudinal crisis ‘between an increasingly wealthy protestant North and an increasingly impoverished Catholic South’ (Pagden, introduction 13)[41] completed the latitudinal fracture of Europe, shifting its center of influence away from the Mediterranean.” (DAINOTTO, 2007: 44)

Desta crise, e segundo alguns autores – diz Dainotto – nasceu o Espírito da Europa Moderna.
Podemos, assim, compreender um pouco melhor as razões de uma conceção redutora que englobava os quatro países mediterrânicos aderentes à União Europeia nas décadas de 80 e 90 do Século XX – Portugal, Itália, Grécia e Espanha –, e que os países do Norte apelidaram de PIGS[42]: “A modern European identity, in other words, begins when the non-Europe is internalized—when the south, indeed, becomes the sufficient and indispensable internal Other: Europe, but also the negative part of it.” (DAINOTTO, 2007: 4)
Por estas mesmas razões não será de admirar que o autor, profeticamente, se permita, sessenta e dois anos antes das declarações acima transcritas, em 1945, conceder uma entrevista, onde tece críticas ao desempenho governamental e, no geral, ao estrato social dominante sem, contudo, ser demasiado explícito, evitando assim represálias desnecessárias, e para si moralmente desgastantes:

Não sou político. Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos. (CASTRO, 1945) [43]

Por essa altura, a projeção de Ferreira de Castro como escritor, fruto do acolhimento extremamente positivo da crítica e dos leitores, um pouco por todo o mundo, no seguimento das várias traduções e publicações das obras Emigrantes em 1928, e A Selva em 1930, tinha surtido os seus efeitos:

A excepcional recepção internacional da obra de Ferreira de Castro explica grandemente o medo do regime salazarista de proibir as suas obras e de inquietar o escritor. Prender ou censurar Ferreira de Castro, o Soljenitsyne luso, pela sua aura, seria uma autodenúncia internacional dos maus hábitos repressivos do regime e dirigir ainda mais os holofotes para a miséria do povo português.[44] (CALHEIROS, 2017: 35)

Numa carta laudatória enviada ao escritor no seguimento da publicação da novela A Missão, em 1954, Jaime Brasil revela-nos, não apenas a relativa intocabilidade de que Castro gozava, mas também, no que concernia aos editores, o temor de represálias que subjazia a publicação das suas obras:

A novela central é assaz subversiva para lhe ter causado apreensões e aos leões editores. É preciso terem-lhe muito respeito para dos seus acacianos prelos saírem coisas tão atentatórias da ordem estabelecida. Parabéns pela sua coragem, a sua de autor e não a deles editores, pois neles não se trata de coragem, mas de medo. [45] (BRASIL, 1954: 199)

Ferreira de Castro é, como Aquilino Ribeiro, um autor inconformado; o primeiro foi um migrante económico, o segundo, temporariamente um exilado político, posteriormente indultado. Embora separados por treze anos de idade, pois Aquilino nasceu em 1885, partilham o mesmo pensamento ideológico e ideal humanístico: o anarquismo. Nenhum tem qualquer filiação partidária, são republicanos e anticlericais e ambos se insurgem contra o Estado Novo, por questões políticas, sociais e humanitárias; os dois são jornalistas e escritores, mas, ao contrário da suavidade castriana, Aquilino é truculento. Na sua juventude, foi preso por posse de bombas e suspeito de colaborar no assassínio do rei D. Carlos e do seu filho e sucessor, D. Luís Filipe, além de participar em levantamentos e outras atividades ditas subversivas.
No entanto, ambos foram “tolerados” pelo Estado a quem criticavam, pois que o sucesso da sua projeção nacional e mundial exigia um abrandamento ou supressão de medidas punitivas ou restritivas, de modo a salvaguardar a imagem de normalidade e tolerância que o governo pretendia fazer passar ao resto do mundo. De outro modo, seriam hoje, provavelmente, autores quase desconhecidos.
Sem pretender entrar em exageros encomiásticos, achamos, contudo, relevante e pleno de significado o retrato moral que Cruz Malpique faz de Ferreira de Castro: “humano, humanista e humanitário.” (MALPIQUE, 1976: 173) Dois exemplos, para nós, mais marcantes desta afirmação e dos quais não podemos abdicar —sob pena de retirarmos à nossa exposição a alma de Ferreira de Castro —, surgem aquando dos seus relatos das visitas à Índia e, posteriormente, à China. Comecemos pela terra dos Brâmanes:

Maletas feitas, abalamos, um dia, do hotel. A numerosa criadagem formava, consoante o hábito, filas à porta do quarto, atenta à gorgeta (…). Só o “intocável” estava longe, encolhido, isolado, na parte mais obscura do corredor. Ao gratificá-lo, estendemos-lhe a nossa mão, numa pueril mas irrefreável atitude contra o aviltamento do ser humano. Gesto inédito, decerto, na sua vida, ele quedou-se, a contemplar-nos, perplexo. Só perante a teimosia da mão que se lhe oferecia, se decidiu a apertá-la, timidamente, os olhos apavorados, receando não haver compreendido bem e ofender-nos. Afinal, nós éramos iguais em tudo, que para os defensores das castas um europeu e um pária da Índia são ambos intocáveis e impuros… já à porta do ascensor, demos conta de que nos havíamos esquecido dos cigarros e, por eles, volvemos ao quarto. Fomos encontrar o pária a chorar. Ao passarmos, ele soergueu a cabeça e nos seus olhos de grande superfície branca vimos uma submissão e uma inútil gratidão que jamais tínhamos visto noutro olhar…
Pouco depois, o expresso de Agra, levando-nos, partiu da arrogante estação de Bombaim. (CASTRO, 1950a: 74-75)


Na Índia, embora combatido durante décadas, o sistema de castas — no fundo, uma forma de xenofobia e racismo internos —, estritamente ligado à miséria, ignorância e fanatismo religioso de um dos países mais populosos do planeta, pode ainda hoje refletir-se parcialmente no presente, expondo episódios que se poderão aproximar da realidade que Ferreira de Castro presenciou há mais de oitenta anos. Entretanto, na China, o panorama modificou-se radicalmente, embora saibamos que lá, como em qualquer outro país, continua a existir muita miséria escondida e incómoda.
Ferreira de Castro, em 1939, em plena Guerra Sino-Nipónica e no início da II Guerra Mundial, parte da cidade chinesa de Xangai, então ocupada pelos japoneses, para Cobe, no País do Sol Nascente.
Antes de abandonar o cais e embarcar no navio fretado, lembra-se que ainda possui cerca de dez ou doze dólares chineses que, fora do país, nenhum valor terão, devido à extrema desvalorização provocada pelo clima bélico então vigente. Chama o condutor de um jinrixá[46] que acabara de deixar um cliente e oferece-lhos. Ele, após compreender que se tratava de uma dádiva, fica incrédulo e admirado. Castro comenta, não se esquecendo, todavia, de, à semelhança do exemplo que demos sobre a Índia, assinalar subtilmente a exploração e os contrastes sociais:

Com uma só libra se pode fruir um dia de opulência. O trabalhador nativo continua, porém, a receber uns míseros cêntimos. Quis o destino que, para nós, a última imagem humana da velha China mártir fosse a deste sudoroso chinês, de calções curtos e blusa sem mangas, que, com uma mancheia de papéis amarrotados, papéis que nem sequer traduziam generosidade da nossa parte, nos contemplava como se não soubesse ao certo se havíamos perdido o juízo ou se ele estava a sonhar. Na nossa frente erguiam-se os imponentes edifícios de Xangai, catedrais de negócios, e corria a terra chinesa, onde, há já séculos, bandos de alienígenas iniciaram, em proveito próprio, a colheita das riquezas nacionais — e nunca mais a abandonaram. (CASTRO, 1950b: 171)

N’A Volta ao Mundo, da qual retirámos as citações acima, e tal como em Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, Ferreira de Castro divide-se por três tipos de descrição: a geográfica, a histórica e a etnográfica, mantendo em permanência elos de ligação com destaques não menos importantes, talvez mesmo veladamente fulcrais, que serão a injustiça social, as condições desumanas que presenciou no mundo do seu tempo, na sua vivência e nas suas viagens e que, embora aparentem por vezes terem sido extirpadas ou atenuadas nos nossos dias, continuam a surgir mais encobertas e, eventualmente, ainda mais gravosas do que as constatadas à época das descrições do autor. Mesmo considerando que A Selva é um romance de cariz autobiográfico e Pequenos Mundos e A Volta ao Mundo são livros de viagens, seria provavelmente a vertente de denúncia das injustiças sociais, o verdadeiro motivo da sua conceção. No caso de Portugal, o autor recusava-se a compactuar com descrições miríficas que mostrassem um jardim da Europa à beira-mar plantado e habitado por um povo de jardineiros felizes. Seria isso o que o Estado Novo pretendia mostrar aos olhos do mundo, através do controlo da Imprensa, dos poetas e dos escritores portugueses.
Assim, não lhe sendo permitido denunciar o estado da Nação, opta, contra sua vontade e por força da necessidade de subsistência, por escrever os livros referidos. Nestes, não se inibe, todavia, de denunciar as injustiças, expor a miséria, a opressão e as péssimas condições de sobrevivência de cada povo e de cada país que visitou, deixando por vezes, nas entrelinhas, indícios suficientes para se poderem estabelecer ligações com os problemas análogos da sua pátria.
Surge a este propósito uma questão fraturante que tem sido alvo de diversas interpretações: o papel desempenhado pelo autor na génese do neorrealismo português.
No documentário Estado Novo e Literatura, consultável no arquivo online da Rádio Televisão Portuguesa, Luís Augusto Costa Dias (à época, diretor do Museu do Neorrealismo) comenta que, embora Ferreira de Castro possa encontrar-se “dentro do espectro neorrealista”, o seu papel será mais o de “recuperação dos realismos.” (DIAS, 1997: passim)
Segundo o investigador, “a característica basilar do neorrealismo” é “a questão da utopia”, ou seja, “a criação de uma sociedade nova livre de opressões”, através de “uma corrente da arte e do pensamento”, em simultaneidade, e não como “uma literatura exclusivamente política.” (idem)
No entanto, existe uma ligação política que une os pioneiros do neorrealismo: a sua convicção de que só a luta de classes poderá ser o procedimento tendente à criação de uma sociedade mais justa e equilibrada ou, por outras palavras, uma sociedade de inspiração marxista.
Tal não é o caso de Ferreira de Castro: ácrata convicto, nunca aceitaria subjugar os seus ideais a uma qualquer – fosse qual fosse – estrutura de poder, razão por que foi, fiel a si próprio, e até ao fim dos seus dias, agnóstico e apartidário. Como observa Aguiar-Branco, referindo-se ao autor:

[a]firmou sempre que a liberdade de pensar é indissociável da dignidade humana. O seu conceito e prática de liberdade levou-o, inclusivamente, a não professar nenhum credo religioso, nem aderir a qualquer fação ou partido político, apesar de reiterados convites e da sua valia entre os intelectuais neorrealistas e nos meios anarco-sindicalistas. (AGUIAR-BRANCO, 2017: 16)

Damos, assim, alguma razão a Ricardo António Alves, quando este afirma que “se ele foi um precursor, não deixa de ser bizarro ter antecipado na estética uma via discordante da sua própria ideologia, tanto mais que quem abre caminhos, trilha-os forçosamente, mesmo que depois acabe por se afastar deles — e não foi o caso.” (ALVES, 2002: 74)
A opinião de João Gaspar Simões é, em parte, concordante com a de Ricardo Alves:

Sem dúvida que são muitas as divergências a assinalar entre o realismo social de Ferreira de Castro e o realismo social dos neo-realistas. A mais evidente é esta: enquanto a literatura do autor de A Selva é fortemente temperada de realidade experiencial, digamos, jornalística, a literatura dos neo-realistas é assinalada por um regresso ao subjectivismo de tipo “Matière de Bretagne”,[47] uma vez que a falta de experiência da realidade evocada conduz à introdução da poesia onde é mister encontrarmos a realidade.[48] (SIMÕES, 1967: 151)

No entanto, no seguimento da sua exposição, Simões volta a reacender a polémica, deixando o leitor num impasse quanto à sua inscrição estético-ideológica:

Copiam-lhe os métodos os novos realistas? Não. Seguem-lhe a filosofia? Tão-pouco. Adoptam-lhe a estética? Também não. Em que é que o realismo social de Ferreira de Castro pode considerar-se, então, precursor do realismo social dos neo-realistas? Apenas em ser realismo social. (…) Os neo-realistas, mesmo que nada aprendam com Ferreira de Castro no ponto de vista da concepção romanesca, têm nele um precursor. E um precursor mais válido do que parece. Enquanto a sua literatura é vivida como experiência humana, a deles — a da maior parte deles — é concebida de cor, elaboração livresca equacionada de acordo com uma estética mais próxima da subjectividade da novela de cavalaria que da objectividade dos relatos quase jornalísticos em que se funda a autêntica novelística de fundo realista. (idem: 152)

Lucas Maia[49]explica este processo de separação de correntes ideológicas, embora de inspiração comum, que poderá fazer-nos entender melhor o motivo das divergências em torno da categorização deste autor:

Durante o processo de afirmação do anarquismo como um movimento social, o aparecimento e influência do russo Mickhail Bakunin é de fundamental importância. Bastante influenciado pelas idéias de Proudhon, Bakunin vai levar às últimas conseqüências as idéias de anarquia como negação da autoridade e do estado. Criou-se deste modo uma polêmica entre Marx e Bakunin ou como entrou para os anais da história do movimento comunista: os socialistas autoritários, discípulos de Marx e os socialistas libertários, discípulos de Bakunin. Os primeiros, amantes da autoridade e do estado, os segundos, a negação racional e direta da autoridade, do estado e dos governos. (MAIA, 2010: 140-141)


Face ao exposto, somos tentados a acreditar que José Maria Ferreira de Castro é um dos escritores mais importantes do Realismo Social no nosso país, movimento artístico então emergente e perseguido. Quanto à sua inscrição no Neorrealismo, limitamo-nos a expor os argumentos teóricos que se nos têm deparado sem, contudo, abraçar qualquer posição estética, pois não consideramos avisado adotar uma decisão definitiva sobre um tema que, pela dificuldade de escolha entre algumas teorias aceites como minimamente válidas e pela dubiedade de outras, não pode exigir uma tomada de opinião sólida sem uma investigação mais aprofundada, e que não constitui o objetivo desta dissertação.

Considerações Finais
No presente estudo, procuramos atardar-nos em pegadas éticas e estéticas de algumas obras de Ferreira de Castro.
Tentámos compreender o autor nos limites de uma multidisciplinaridade, para nós, possível. Aflorámos um pouco da ética, da estética, da moral, do humanismo, da literatura, da sociologia e da política; analisámos o seu percurso vital, quase desde a nascença, o seu desterro compulsório e desvalido, e como lutou para se libertar e à Humanidade, como um todo, de um futuro determinista, não com um intuito biografista, mas colocando tal démarche ao serviço do nosso desígnio, que é o de procurar assimilar a sua ética universalista e o objeto estético por que ansiava. Valemo-nos, à impossibilidade de outros recursos, de livros do autor e de meios audio-visuais e estudos com ele relacionados, assim como obras que selecionámos dentro do quadro multidisciplinar acima referido. Desse modo, peça a peça, capítulo a capítulo, seguimos o seu percurso singular.
Começámos, assim, por analisar as suas origens modestas e os pressupostos de desenvolvimento literário e pessoal, que em nada abonavam a seu favor, e concluimos que, aliado a um anseio de se tornar jornalista, — objetivo preconcebido ainda na infância, em Oliveira de Azeméis —, juntou a uma vontade forte uma visão humanitária, ambas reforçadas pela sua própria experiência e cimentadas pela exploração e condições desumanas a que ele e os seus companheiros de infortúnio se sujeitaram.
Vimos, mais tarde, que o jovem José Maria, ainda adolescente, e pese embora as dificuldades de sobrevivência, aliou o seu desejo de pertencer ao mundo mediático, editando pequenos artigos nos jornais locais — e em paralelo com uma incipiente produção novelística —, a um esforço tenaz de leitura que abarcava as mais diversas e possíveis disciplinas do conhecimento, ao seu alcance. Foi, portanto, um autodidata atento, o que já lhe permitia escrever com acuidade e certa erudição.
Inicia-se nesta fase o seu interesse pelas doutrinas sociais, muito em voga na época, com particular incidência no anarco-sindicalismo, que marcaria o seu percurso até ao fim dos seus dias e que muito cedo se transforma numa forma de realismo social muito própria, que culmina no que apodamos de Novel Humanismo. Este, tendo como pano de fundo várias personagens de referência na sua vida literária e humanística, como Kropotkine, Marechal Rondon, assim como sua primeira mulher Diana de Liz, entre outros, materializa-se numa relação de alteridade “impregnada de cristianismo”, ou, por outras palavras, numa espécie de “franciscanismo” ( Emery apud ALVES, 2002: 157) ateu.
Viajante, sedento de compreender e interagir com o Mundo em que vivia, alargou os seus horizontes e estreitou a sua ligação com povos e culturas próximas e longínquas, sempre atento aos enormes fossos sociais com que deparava, tentando interpretar as razões dessas diferenças com paciência e compaixão.
É, pois, esta, em essência, a sua ética: nem filiado nem acólito, Ferreira de Castro adota uma prática que, passando pela observação, compreensão, denúncia e crítica, atinge o seu clímax num altruísmo transmutado em amor incondicional pelo Mundo, pela Natureza e suas díspares manifestações e, muito particularmente, pela Humanidade.
Antes, porém, e num longo processo, o autor teve de exorcizar-se de visões preconcebidas e fraturantes sobre a sociedade, sublimar as suas conceções do Orbe e pacificar-se com a Natureza. A sua visão da juventude, naturalmente aguerrida e ansiosa pela mudança, foi-se transformando pela ponderação e pela compreensão dos seres com quem partilhava a espécie, acabando por lhe conceder a paz dos que se sentem indivisos com o Universo.
No decorrer da sua vida e como manifestação da sua ética, Ferreira de Castro produziu obras literárias que veiculam a materialização dos seus ideais, da sua visão do Cosmos, da Natureza e da Humanidade que o habita, e que poderão ser consideradas o seu corpus estético.
Pela nossa análise chegámos, porém, à conclusão de que o impacto inicial da sua Obra, pese embora a qualidade literária e o reconhecimento dos valores que encerra, tem vindo a diluir-se por força das suas circunstâncias temporais e situacionais específicas que, na nossa opinião, fazem-lhe perigar a sobrevivência no tempo literário; embora o impacto mundial tenha sido extremamente relevante, à época, as suas descrições viáticas e os seus romances foram perdendo a atualidade perante o público leitor, apesar de toda a sua riqueza como objeto multidisciplinar (histórico, sociológico, político e etnológico, entre outros), apenas resistindo maioritáriamente no seio dos meios académicos e de algumas entidades exclusivamente dedicadas à sua existência e produção intelectual. Na ausência destes, as obras de Ferreira de Castro, embora possuindo uma elevada eticidade, cedo se transformariam em triviais romances e livros de viagens, onde se observariam algumas abordagens à construção social da época, com as suas injustiças e desigualdades, mas que eventualmente passariam despercebidas, e os seus livros acabariam por se tornar textos obsoletos, redundando em meras curiosidades literárias.
A investigadora Sofia Araújo inicia o primeiro capítulo do seu estudo, por nós anteriormente citado, com uma observação, na nossa opinião, muito pertinente:

A aproximação científica da Ética à ficção dá-se na generalidade dos casos pelo estudo da função (ou disfunção) exercida pela Literatura na formação ética dos seus leitores, da forma como o recurso à Literatura, enquanto experiência estética e enquanto reduto de vivências vicariantes, pode influenciar ou mesmo determinar a atitude ética (e respetiva seleção axiológica) do seu recetor. (ARAÚJO, 2016: 33)[50]

Relevamos, assim, a importância da divulgação da obra de José Maria Ferreira de Castro, não apenas como objeto de fruição estética, mas principalmente como somatório dos valores éticos que hoje, como então, é importante difundir. No entanto, não será difícil entender a razão do seu “apagamento” no panorama literário português ou, mais propriamente, no circuito de leitura português; Segundo os dados do Conselho Nacional de Educação, nota-se que
(...)no que respeita à implantação da forma de cultura predominante da modernidade, a cultura escrita, Portugal é, desde meados do século XIX, separado do espaço geográfico e cultural de que faz naturalmente parte, tornando-se numa periferia da periferia, e tal comportamento agrava-se durante o século XX, quando o país se torna ele próprio numa tendência, ou seja, evidencia um atraso tal que não é “agrupável” com outros países europeus[.][51] (CANDEIAS, 2010: 30)
Assim, a sua ética, embora na essência, imutável, não atinge na atualidade os objetivos iniciais propostos e a projeção que o conjunto do seu trabalho literário pretendia veicular, visto a existência de um público-alvo ser, à época deficitário. Ao mesmo tempo que a anterior, também a sua obra, entendida como objeto estético, foi esvanecendo por falta de leitores sensíveis à perceção estética — circunstâncias que tiveram repercussões negativas óbvias durante as gerações seguintes.
Apesar dos louváveis e insistentes esforços de recuperação das entidades acima referidas que, em continuidade, se debruçam sobre o seu trabalho, Ferreira de Castro, referência literária e ética, tem-se vindo a tornar diáfano à medida que a sua escrita se afunda no passado.
Devido ao complexo entorno que focámos no desenvolvimento do tema proposto, torna-se difícil avaliar com distanciamento e isenção José Maria Ferreira de Castro; é necessário ler atentamente as suas obras e as recensões dos seus críticos mais fidedignos, tapando os olhos e os ouvidos aos modismos, aos gostos das leituras fáceis ou resumidas e a quaisquer tentativas insidiosas de inscrição em cultos ou ideologias.
Apesar da injusta névoa que paira sobre o seu trabalho, os seus livros valem pelo conteúdo, pela coerência e pela mensagem que o leitor consciente e atento identifica, assim como Ferreira de Castro vale pela sua humanidade e universalidade; juntos fazem, como numa transmutação alquímica, a Obra. Nas palavras de Cruz Malpique, que citámos anteriormente: “Consubstanciam-se, osmoseiam-se, penetram-se. Não sabe a gente desentraçá-la.”
Os livros que Castro escreveu são o seu reflexo, e tudo quanto aí deixa transparecer é sincero, sem subterfúgios. Neles apercebemo-nos dos seus medos, dos seus sonhos, das suas amarguras e dos seus momentos de felicidade e familiarizamo-nos com a sua ética (novel) humanista, com o seu grande sentido de justiça e a sua bondade humanitária.
O autor foi um visionário que carregava uma revigorada Utopia, idealizada, iniciada e fortalecida no seio da maior floresta virgem do planeta. Não podemos afirmar que nada sucede por acaso, mas podemos acreditar que as circunstâncias que forçaram o então infante a emigrar para o Brasil e as desventuras sofridas por quem era demasiado novo para sofrer as agruras de um clima estranho, um desenraizamento familiar e pátrio e um labor etariamente impróprio, foram os principais responsáveis pelo desenvolvimento da vocação e da personalidade forte do escritor. Se, porventura, José Maria se tivesse rendido ao propósito original do enriquecimento, se se tivesse deixado influenciar pelo sonhos quiméricos que na época circulavam em muitas aldeias de Portugal, onde o mito do brasileiro rico era recorrente, regressaria (ou não) à sua pátria, imagem viva da sua própria personagem de Emigrantes e de, fugazmente, A Lã e a Neve: o desventurado Manuel da Bouça; ou poderia voltar “brasileiro” e rico e acabaria por morrer, como poucos outros, influente, opulento, não raras vezes benemérito, é certo. Teríamos, contudo, perdido o escritor, a obra, o humanismo, a bondade e a sua grande influência como interventor social.
Felizmente para ele e para nós, a criança já levava consigo para o Brasil os rudimentos de um desejo que aí se tornaria cada vez mais forte: ser jornalista. O resto já é do conhecimento geral.
Ferreira de Castro recusou títulos e honrarias durante toda a sua vida; mas, a sua condição de ser humano, imperfeito como os seus pares, permitiu-lhe uma insignificante, perdoável e justificada vaidade.
Na sua visita ao Egito, o autor comenta a necrópole de Sakkara, declarando: “Os mortos, quando deixaram pedras a falar por eles, viveram sempre mais do que os vivos.“ (CASTRO, 1949d: 138) Na Serra de Sintra, no local da sua sepultura, existe, por sua expressa vontade, um simples banco de pedra que lhe serve de lápida tumular; é a sua Menfis. Nele está gravado o nome, data de nascimento e morte, e a sua profissão: escritor. Não contém epitáfio; esse, foi por si escrito, muitos anos antes:

Meu irmão longínquo, se não puderes continuar a viver na terra quando o sol se apagar, não me deixes, aqui, entre os mortos. Antes de partires para outro sistema planetário que a tua ciência houver conquistado, escava na serra onde eu e quem o meu coração tiver amado dormimos o último sono e leva contigo um pouco de pó que guarde, ainda, algo de nós. Assim, morrerei com a sensação de que viverei mais, de que não ficarei abandonado entre os destroços… (CASTRO, 1948: 9)

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[1] Consideramos, para este efeito, maioria quando se trate de, por exemplo, uma região ou um povo, subjugado aos ditames de um governo ou qualquer outra organização social ou grupo; por minoria, entendemos grupos étnicos ou outros (negros, indianos, homossexuais, transgéneros, etc.), sujeitos às mesmas condições.
[2] Não confundir com o Humanismo Universalista, ou Movimento Siloísta, criado em 1969 pelo escritor argentino Mario Luis Rodriguez Cobos (1938-2010), também conhecido pelo pseudónimo Silo. (Vide https://partidohumanista.cl/mario-luis-rodriguez-cobos/). Embora, possivelmente, não exista qualquer relação, as bases deste movimento são muito similares ao que Ferreira de Castro praticava.
[3] Luís Garcia e Silva (1933-2020) – médico dermatologista e militante libertário, foi editor do jornal A Batalha. (Vide Introdução e Notas da coletânea de artigos “Ecos da Semana”, editada em 2004 pelo Centro de Estudos Libertários de Lisboa in http://ric.slhi.pt/Suplemento_de_A_Batalha/estudos/monografias).
[4] Abstemo-nos de utilizar a referência bibliográfica Sic nas citações apresentadas, visto a sua maioria conter grafia já não utilizada, e corrermos o risco de entrar em exagero na reprodução do advérbio latino. Mantém-se então essas ocorrências, numa reprodução fiel dos textos consultados, e de total responsabilidade dos seus autores.
[5] Expressão que optámos por usar em alternativa a outras designações que, por demasiado utilizadas em díspares assuntos e ocasiões, externos ao nosso trabalho, poderiam induzir os nossos leitores em erro.
[6] O Realismo Social está presente nas mais diversas artes e visa observar e realçar as condições sociopolíticas das classes trabalhadoras com o intuito de denunciar as desigualdades e injustiças provocadas pelas estruturas de poder dominantes.
[7] É o próprio Ferreira de Castro quem assume o romantismo, não apenas nas obras primárias, renegadas por si, mas estendendo-se por toda a sua produção literária: “Eu tinha vinte e sete anos e olhei para trás. Tudo quanto havia escrito, todas as experiências estéticas já realizadas, inclusive as páginas mais audaciosas, que me pareciam, por esse seu carácter, as mais originais, encontravam-se imbuídas de romantismo, sentimento que vinha desde a meninez e me acompanharia pela vida fora, em satélite do meu próprio realismo futuro, me acompanharia tão persistentemente como a Lua acompanha a Terra, mesmo quando não a vemos” (CASTRO, 2007: 20).
[8] Miguel Real afirma que A Selva, “possui[ndo] uma dimensão social, que o conteúdo do romance evidencia, e, porém, quanto ao estilo, mais naturalista do que realista, salientando mais a estranheza e a anormalidade dos comportamentos humanos do que a evidenciação das relações sociais colectivas estabelecidas justa ou injustamente na sociedade” (REAL, 2007: 268).
[9] As chavetas retas figuram na citação.
[10] “Pequena história de A Selva” foi acrescentada a esta edição, extraída da edição comemorativa de A Selva, de 1955).
[11] Professor Doutor Eugénio Francisco dos Santos (1937-2022). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[12] Torna-se evidente que o jovem Ferreira de Castro não pertencia ao primeiro grupo de emigrantes – os Brasileiros de Torna-Viagem -, industriados para atividades que, à partida, lhes garantiriam sucesso profissional e económico, mas sim ao grupo de emigrantes indiferenciados, engodados, não raras vezes, pelas promessas de engajadores sem escrúpulos, para serventia em mesteres inferiores, mal remunerados e amiudadamente escravizantes.
[13] Elena Muriel Ferreira de Castro, pintora (1913-2007). Casou com o escritor em 1938.
[14] Extrato de uma mensagem, publicada no jornal Diário de Lisboa em 09/06/1966.
[15]. Discurso de abertura da sessão de homenagem a Ferreira de Castro por ocasião das comemorações dos 100 anos de vida literária do escritor.
[16] António dos Santos Pereira (1954- ) – professor catedrático da Universidade da Beira Interior, na área de História e Arqueologia.
[17] Conferência pronunciada em 19 de outubro de 2016.
[18] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”. A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[19] Alberto Figueira Gomes (1912-1986) – escritor e jornalista madeirense.
[20] Ferreira de Castro recusou sempre a reedição de todas as obras anteriores a 1928, “aquelas primeiras produções que eu próprio considerava e considero, apenas tentativas” (CASTRO in SALEMA, 2021. Min 17.48) — obras rudimentares que não espelhavam os seus ideais estéticos.
[21] Winifred L. Chappell (1879-1951) foi uma professora, diaconisa da Methodist Federation for Social Action (MFSA), sufragista, escritora e editora norte-americana, muito ativa na defesa dos pobres e dos explorados.
[22] Ana Cristina Leitão Martins de Carvalho (1961- ), doutorada em Ecologia Humana, investigadora integrada do CICSNova (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. É membro do Conselho Editorial da revista C@striana on line.
[23] Esta citação integra o capítulo “A aldeia nativa” da obra Os Fragmentos.
[24] Idem, ibidem.
[25] Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) foi um sertanista e engenheiro militar brasileiro. Foi também diretor do Serviço de Proteção ao Índio e idealizador do Parque Nacional de Xingu.
[26] João Peregrino Júnior da Rocha Fagundes (1898-1983), jornalista, médico, contista e ensaísta, foi presidente da Academia Brasileira de Letras.
[27] Esta edição contém “Pequena história de A Selva”, reproduzida da edição comemorativa de 1955.
[28] Nathaniel Hawthorne (1804-1864) - escritor norte-americano.
[29] José de Freitas - jornalista e escritor (1910-1976).
[30] Diana de Liz (1892-1930): pseudónimo literário de Maria Eugénia Haas da Costa, primeira mulher de Ferreira de Castro, também conhecida como “Mimi Haas” — nome com que assinava as suas contribuições para vários jornais e revistas.
[31] António dos Santos Pereira – doutorado em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor Catedrático na Universidade da Beira Interior.
[32] Manuel Simplício Geraldo Ferro – doutorado em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, exercendo o cargo de Professor Auxiliar na mesma Faculdade.
[33] José Dias de Melo (1925-2008), poeta e escritor açoriano. Conferência proferida em 16 de setembro de 1966, na sociedade literária “Artista Faialense”.
[34] Trata-se de uma afirmação do próprio Ferreira de Castro (1974. p: 60).
[35] Página 17 da edição que consultámos (Alves refere a pág. 15 da edição de 1980, que utilizou).
[36] Citação extraída do capítulo “A Revolta da Andaluzia (1931)” e O Intervalo.
[37] Wilde, Oscar, 1996, Le Déclain du Mensonge, Œuvre, Paris, Gallimard: 791; Le Antique,ibidem, pp 865 e 853.
[38] Dr. Fernando Ferrão Moreira, professor de Língua e História Pátria na, então, Escola Técnica e Elementar Gomes Teixeira, no Porto.
[39] Eurico Gama (1913-1977), bibliógrafo e editor, foi diretor da Biblioteca Municipal de Elvas.
[40] Extraído do artigo “In memoriam de Ferreira de Castro”, de Adelino Vieira Neves – Cascais, 1976.
[41] PAGDEN, Anthony. ‘‘Europe: Conceptualizing a Continent.’’ The Idea of Europe:From Antiquity to the European Union, ed. Pagden. New York, Woodrow Wilson Center Press, 2002. 33–54. Citado pelo autor.
[42] Portugal, Italy, Greece, Spain: “É um acrónimo de clara intenção pejorativa (pig, porco em inglês) criado nos anos noventa do século XX para designar Portugal, Itália, Grécia e Espanha. Esta categorização articula uma dimensão geográfica e cultural – Europa do sul ou mediterrânica – e outra económica – países cronicamente deficitários – para transmitir uma mensagem simples: ‘povos do Sul que sendo incapazes de se sustentarem a si próprios vivem à custa do Norte virtuoso, endividando-se’.“ Extrato do artigo de José Maria de Castro Caldas: “ PIGS – Observatório sobre Crises e Alternativas” in https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=7809.
[43] Extrato da entrevista concedida ao Diário de Lisboa em 17 de novembro de 1945: “O Momento Político”,A posição do escritor perante a Censura segundo Ferreira de Castro. In https://ceferreiradecastro.org/entrevista-diario-de-lisboa-17-novembro-1945.php.
[44] Pronunciado por Pedro Calheiros na “Conferência Inaugural”, em 11/10/2016.
[45] Ao referir-se aos “leões editores”, Ricardo Alves esclarece que se trata de uma alusão aos proprietários da Guimarães & Cª, Maria Leonor e Francisco da Cunha Leão.
[46] O mesmo que riquexó.
[47] On donne le nom de « matière de Bretagne » à un ensemble de légendes et de chansons, diffusées à l'origine par des jongleurs gallois et armoricains, et qui alimentèrent, entre 1150 et 1250 environ, un certain nombre de romans appelés romans bretons. In https://www.larousse.fr/encyclopedie/divers/matieres_de_Bretagne_et_romans_bretons/180250.
[48] Extrato de um artigo publicado por Simões no jornal O Primeiro de Janeiro, em 29/06/1966.
[49] Lucas Maia dos Santos, doutorado em Geografia e professor na Universidade Estadual de Goiás, no Brasil. Especializou-se em: Marxismo, Geografia e Sociologia do trabalho e Geografia Urbana.
[50] Araújo explica o que entende por aproximação científica: Ética, enquanto domínio científico, não é o conjunto de respostas que escolhemos dar às questões de valores, mas antes o próprio exercício reflexivo em torno desses mesmos valores. Como tal, uma reflexão em torno dos aspetos éticos de determinada obra ou de aspetos da mesma será sempre uma reflexão aberta e teórica, e não uma classificação objetiva e definitiva, e muito menos um ato normativo. (ARAÚJO, 2016: 73)
[51] Segundo o autor, o declínio do país teve início no dealbar do século XX; até aí, Portugal estava agrupado com outros países (Bulgária, Roménia, Grécia e Jugoslávia) no último patamar da tabela europeia de evolução educativa.

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